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Processo nº 584/07
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., na qualidade de concessionária para a concepção, construção,
financiamento, conservação e exploração da auto-estrada n.º 28 (IC1 Viana do
Castelo/Caminha), requereu contra B. e C. a expropriação por utilidade pública,
com carácter de urgência, para a construção da referida auto-estrada, lanço
Viana do Castelo/Riba de Âncora, da parcela de terreno com a área de 5523 m2, a
destacar do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 418.º da
freguesia de Riba de Âncora, sito no lugar de Barrosa, da referida freguesia,
tendo-lhe sido atribuído o número 368.
A declaração de utilidade pública respeitante a esta expropriação foi efectuada
pelo Despacho n.º 18.240/2003, de 18 de Agosto, do Secretário de Estado da Obras
Públicas, publicado no D.R., n.º 220, II Série, de 23 de Setembro de 2003.
O acórdão arbitral atribuiu pela expropriação da parcela em causa o valor global
de € 31.215,00.
A expropriante interpôs recurso do acórdão arbitral, nos termos do disposto nos
artigos 58.º e seguintes do Código das Expropriações de 1999, invocando
argumentos de facto que, em seu entendimento, conduziriam a que a indemnização
pela expropriação da parcela referida se quedasse pelo valor global de €
10.415,25.
O Juiz do Tribunal de Caminha proferiu sentença, em 11-4-2007, que, qualificando
a parcela expropriada como “solo apto para outros fins”, decidiu o recurso
interposto do seguinte modo:
“a) Não aplico a norma ínsita no artigo 23º, nº 4, do Código das Expropriações,
aprovado pela Lei nº 168/99 de 18 de Setembro, com fundamento na
inconstitucionalidade da mesma, designadamente, na violação do disposto nos
artigos 13º, nº 1, 62º, nº 2 e 103º, nº 3, da Constituição da República
Portuguesa;
b) Julgo parcialmente procedente, por parcialmente provado, o recurso interposto
por A., S.A. e, consequentemente, fixo a indemnização devida aos expropriados em
€ 14.811,75, a actualizar, a final, nos termos do disposto no artigo 24º, nº 1,
do Código das Expropriações.”
Desta sentença recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos
termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, al. a), e 75.º-A, da Lei 28/82, de
15/11 (LTC), na parte em que recusou a aplicação da norma contida no artigo
23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de
Setembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“Pelas razões invocadas no Acórdão nº 422/04, proferido pelo Plenário do
Tribunal Constitucional, a norma constante do artigo 23º, nº 4, do Código de
Expropriações de 1999 não viola o disposto nos artigos 13º e 62º, nº 2 da
Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
*
Fundamentação
1. A norma cuja aplicação foi recusada
A decisão recorrida considerou inconstitucional e, consequentemente, não aplicou
a norma constante do artigo 23.°, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999,
nos termos da qual “ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os
critérios previstos no Código das Expropriações deverá ser deduzido o valor
correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de
contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na
avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos.”
Esta disposição não tinha correspondência nos anteriores Códigos das
Expropriações, tendo sido uma inovação da Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, que
aprovou o actual Código.
Pronunciaram-se pela sua inconstitucionalidade ALVES CORREIA em “A
jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade
pública e o Código das Expropriações de 1999”, na R.L.J., Ano 133.º, pág.
116-119, e em anotação ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 422/04, na
R.L.J., Ano 134º, pág. 340-352, LUÍS PERESTRELO DE OLIVEIRA, em “Código das
Expropriações anotado”, pág. 92-93, da ed. de 2000, da Almedina, VICTOR SÁ
PEREIRA e ANTÓNIO PROENÇA FOUTO, em “Código das Expropriações”, pág. 86, da ed.
de 2002, do Rei dos Livros, JOÃO PEDRO DE MELO FERREIRA, em “Código das
Expropriações anotado”, pág. 174-175, da 4ª ed., da Coimbra Editora, PEDRO ELIAS
DA COSTA, em “Guia das Expropriações por utilidade pública”, pág. 263, da ed. de
2003, da Almedina, e VASCO VALDEZ MATIAS, em “Parecer sobre o Código das
Expropriações”, pág. 13-15, da ed. pol. de 1999, da APAE.
2. A posição anterior do Tribunal Constitucional
Este Tribunal decidiu, no Acórdão n.º 422/2004 (pub. em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 59º vol., pág. 687), tirado em Plenário, ao abrigo do disposto
no art.º 79.º - A, da LTC, num caso em que estava em causa a mesma norma, mas em
que a entidade expropriante era o Município onde se situava o terreno
expropriado, não julgar inconstitucional a norma questionada.
Considerou-se que o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Código das
Expropriações de 1999, não violava nem o princípio da igualdade, nem o direito a
uma justa indemnização, consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º e 62.º,
n.º 2, da C.R.P. - fundamentos então invocados para recusar a aplicação daquela
norma pela sentença proferida no processo em que foi prolatado o referido
acórdão.
Posteriormente, efectuaram o mesmo juízo de constitucionalidade, por remissão
para os fundamentos do acórdão acima referido, os seguintes acórdãos do Tribunal
Constitucional:
- n.º 585/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 588/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 625/2004 (pub. em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 60.º vol., pág.
503).
- n.º 629/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 643/2004 (pub. no Diário da República, II Série, de 10-1-2005).
- n.º 644/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 662/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 683/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 251/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 332/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
No acórdão n.º 625/2004 afirmou-se que “o acolhimento dessa orientação implica
não apenas o acatamento do sentido da decisão das questões de
constitucionalidade expressamente tratadas pelo acórdão do Plenário, mas também
o respeito pela projecção que, relativamente a questões nele não explicitamente
apreciadas, há que atribuir aos juízos em que se fundaram tais decisões, pelo
menos quando constituam seu pressuposto lógico necessário.”
Este raciocínio permitiu que também se considerasse, nesse acórdão e noutros
posteriormente proferidos, que o disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Código das
Expropriações de 1999, não violava também o princípio da não retroactividade
fiscal, consagrado no art.º 103.º, n.º 3, da C.R.P..
3. A delimitação do objecto do recurso
A situação em que se recusou a aplicação do disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do
Cód. das Exp., nos presentes autos, é algo diversa da situação sobre a qual
recaiu o acórdão n.º 422/2004, tirado por este Tribunal em Plenário, uma vez que
aí a entidade expropriante era o próprio Município onde se localizava o terreno
expropriado, enquanto neste processo a entidade expropriante é uma sociedade
comercial anónima - a “A., S.A.”, concessionária da construção da auto-estrada
a que se destina a parcela expropriada.
Apesar da sentença recorrida revelar conhecer a posição que defende que o n.º 4,
do art.º 23.º, do Cód. das Exp., deve der interpretado no sentido que o mesmo só
é aplicável às expropriações em que a entidade expropriante é o Município onde
se situa o terreno expropriado (vide ALVES CORREIA em “A jurisprudência do
Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das
Expropriações de 1999”, na R.L.J., Ano 133º, pág. 116-117, e LUÍS PERESTRELO DE
OLIVEIRA, em “Código das Expropriações anotado”, pág. 92-93), admitiu a
aplicação infraconstitucional da citada norma à situação sub iudice, apenas a
tendo afastado por contrariar preceitos constitucionais.
Não competindo ao Tribunal Constitucional questionar a bondade da interpretação
do direito infraconstitucional acolhida pela decisão recorrida, deve limitar-se,
nos termos do art.º 70.º, n.º 1, a), da LTC, a verificar a correcção da recusa
da aplicação do disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das Expr., com
fundamento na sua inconstitucionalidade, apesar de, neste caso, a entidade
expropriante não ser o Município onde se situa o terreno expropriado.
Por outro lado, a norma sob análise reporta-se à dedução na indemnização por
expropriação da diferença entre o valor da contribuição autárquica efectivamente
satisfeito e aquele que seria pago, caso se tivesse considerado como matéria
colectável aquele montante indemnizatório.
A contribuição autárquica foi um imposto de receita municipal, criado pelo D.L.
n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica
(C.C.A.), e substituído posteriormente pelo imposto municipal sobre imóveis
(IMI), criado pelo Código de Imposto Municipal sobre Imóveis (C.I.M.I.),
aprovado pelo D.L. n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que, no seu art.º 31.º, nº
1, revogou o C.C.A., determinando que deve considerar-se “a contribuição
autárquica substituída pelo imposto municipal sobre imóveis para todos os
efeitos legais”.
Contudo, tendo a decisão recorrida efectuado o seu juízo de
inconstitucionalidade com referência à contribuição autárquica, uma vez que o
montante da indemnização, por expropriação, deve ser calculado à data da
publicação da Declaração de Utilidade Pública (art.º 24.º, n.º 1, do Cód. das
Exp.), que neste caso ocorreu em 18 de Agosto de 2003, ou seja em data anterior
à revogação do C.C.A., é o regime desse imposto e não o do posterior IMI, que
deve estar presente na presente análise de constitucionalidade.
4. A natureza da norma
O facto de, neste caso, a entidade expropriante não ser o Município onde se
situa o imóvel expropriado e ser antes uma sociedade anónima, suscita
pertinentes interrogações sobre a natureza da disposição contida no n.º 4, do
art.º 23.º, do Cód. das Exp., a qual já foi questionada na fundamentação do
acórdão n.º 422/2004 e, sobretudo, no voto de vencido a ele aposto do Cons.º
Vítor Gomes.
A norma aqui em questão encontra-se inserida no diploma (Código das
Expropriações) que regula a expropriação de bens imóveis e direitos a eles
inerentes, de titularidade privada, por razões de utilidade pública,
compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante, no
título (III) dedicado ao conteúdo da indemnização e no artigo (23.º) onde se
explicitam os princípios e regras gerais que presidem à determinação do valor do
bem expropriado, para efeito de fixação da indemnização pela expropriação.
No n.º 4, do artº 23.º, do Cód. das Exp., impõe-se a dedução ao valor dos bens
expropriados, calculado por aplicação dos critérios referenciais fixados nos
artº 26.º e seguintes, do valor correspondente à diferença entre as quantias
efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o
expropriado teria pago nos últimos cinco anos, com base na avaliação efectuada
para efeitos de determinar o montante da indemnização devida pela expropriação.
O fundamento ou pressuposição desta norma é a desarmonia entre o valor do bem
expropriado, considerado para efeito de liquidação anterior de contribuição
autárquica, e o valor da avaliação efectuada para efeito de atribuição de
indemnização por expropriação por utilidade pública, visando-se corrigir a
disfunção revelada pelo apuramento da quantia indemnizatória a pagar pelo acto
expropriativo.
Inserir-se-á esta norma, encarada na sua substância, no conjunto concatenado de
regras e princípios que formam o instituto jurídico da expropriação por
utilidade pública, como parece indiciar a sua localização sistemática, ou será
antes uma “norma fiscal espúria enxertada no Código das Expropriações” (ALVES
CORREIA, em “A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por
utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999”, na R.L.J., Ano 133º,
pág. 116), por respeitar à liquidação e cobrança adicional de um imposto?
A resposta a esta pergunta é decisiva para se saber quais os princípios e
preceitos constitucionais que devem ser convocados para se aferir da sua
constitucionalidade.
Sendo o Direito Fiscal o direito dos impostos, as normas de direito fiscal são
aquelas que disciplinam as relações jurídicas a que dá lugar a percepção dos
impostos (BRAZ TEIXEIRA, em “Princípios de direito fiscal”, pág. 35, da 3ª ed.,
da Almedina, e CASALTA NABAIS, em “Direito fiscal”, pág. 9 e 10, da 3ª ed., da
Almedina).
A contribuição autárquica foi um imposto de receita municipal criado pelo D.L.
n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica
(C.C.A.). Este imposto veio substituir a antiga contribuição predial e incidia
sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no
território português (art.º, 1.º, do C.C.A.).
A sua liquidação e cobrança competia aos Serviços Centrais da Direcção Geral das
Contribuições e Impostos (art.º 18.º e seg., do C.C.A.), sendo, contudo, os
Municípios onde se situavam os imóveis sobre os quais incidia o imposto, os
titulares da respectiva receita (art.º 16.º, a), da Lei 42/98, de 6 de Agosto).
Efectuando-se a operação dedutiva prevista no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das
Exp., caberia, nesses casos, à entidade expropriante proceder à liquidação e
cobrança adicional da contribuição autárquica, assim como seria ela a
beneficiária da respectiva receita, uma vez que não foi legalmente consagrado o
dever desta proceder à transferência da quantia deduzida à indemnização pela
expropriação para “os cofres” do respectivo Município.
Esta alteração da entidade responsável pela gestão do imposto e da titular da
respectiva receita, a qual, neste caso, passou a ser uma sociedade anónima, a
quem foi concessionada a construção da auto-estrada a que se destina o imóvel
expropriado, apesar de impressionar, não é suficiente para se poder dizer que a
norma em causa não tem natureza fiscal.
Se, tradicionalmente, o sujeito responsável pela gestão dos impostos era a
administração fiscal, nos tempos mais recentes, essa competência passou a ser
dividida entre a administração fiscal e os particulares (os contribuintes ou
terceiros), falando-se já numa privatização da administração dos impostos, pelo
que não deixa de ter natureza fiscal a liquidação e cobrança adicional da
contribuição autárquica efectuada pela entidade expropriante, em processo de
expropriação de imóvel, mesmo que essa entidade seja um particular, agindo em
nome do Estado.
Mais estranho é o facto da receita desse imposto estar consignada à entidade
expropriante, deixando assim de ser uma receita do Município onde se localizava
o imóvel expropriado.
Apesar do titular da receita do imposto ser normalmente o Estado, os municípios
ou outros entes públicos, hoje em dia já se verificam casos, embora raros, em
que a lei determina que os beneficiários dessa receita possam ser pessoas
colectivas privadas, tendo em vista um determinado interesse público, como
também sucede no presente caso, em que a expropriante é uma concessionária do
Estado, agindo em nome deste (v.g. art.º 32.º, n.º 4 e 6, da Lei n.º 16/2001, de
22 de Junho).
Assim, se a conexão de procedimentos introduzida pelo art.º 23.º, n.º 4, do Cód.
das Exp., levanta graves problemas ao nível da liquidação, titularidade e
impugnabilidade da pretendida cobrança adicional de imposto, não parece que
essas dificuldades e anomalias, sejam só por si suficientes para excluir o
disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das Exp., do direito fiscal,
considerando a sua clara pressuposição e intencionalidade tributária.
Mas esta norma também pode ser olhada noutra perspectiva.
O resultado da sua aplicação, tal como o dos preceitos previstos nos n.º 2 e 3,
do mesmo artigo 23.º, traduz-se numa efectiva diminuição do valor da
indemnização a atribuir ao proprietário do imóvel expropriado, pelo que o seu
conteúdo interfere efectivamente na conformação do respectivo direito.
No Código das Expropriações de 1999, além de regras definidoras dos critérios a
deve obedecer o cálculo da indemnização devida pelo acto expropriativo, existem
normas “flanqueadoras” do quantum indemnizatório, que pretensamente visam evitar
valorizações especulativas ou injustificadas, em nome de alegados interesses
públicos. Foi nestas últimas que o legislador procurou inserir a norma em
análise.
Assim, na medida em que o disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das Exp.,
interfere na operação de fixação do montante da indemnização devida pelo acto
expropriativo, também se pode dizer que o mesmo respeita ao direito das
expropriações.
O conteúdo da norma em causa tem, pois, uma natureza mista, inserindo-se no
direito fiscal, quanto à sua pressuposição, e no direito das expropriações,
quanto aos seus efeitos.
Por isso, justifica-se que os princípios constitucionais que orientam estes dois
ramos do direito possam ser convocados para se solucionar a questão de
constitucionalidade suscitada neste processo.
5. O princípio constitucional da justa indemnização
O artº 62.º, n.º 2, da C.R.P., determina que a expropriação por utilidade
pública só pode ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização.
Apesar da Constituição ter remetido para o legislador ordinário a fixação dos
critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação, ao exigir que
esta seja “justa”, impõe a observância dos seus princípios materiais da
igualdade e proporcionalidade, assim como do direito geral à reparação dos
danos, como corolário do Estado de direito democrático (artº 2.º, da C.R.P.).
Em termos gerais e utilizando definição comum à jurisprudência deste Tribunal,
poder-se-á dizer que a “justa indemnização” há-de tomar como ponto de referência
o valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda do bem que lhe
pertencia, com respeito pelo princípio da equivalência de valores. O valor
pecuniário arbitrado, a título de indemnização, deve ter como referência o valor
real do bem expropriado.
Se é admissível que na fixação deste montante interfiram razões de interesse
público que justifiquem a introdução de cláusulas de correcção do puro valor de
mercado, de modo a evitar avaliações que não se enquadrariam na ideia do valor
“justo”(v.g. o disposto nos art.º 23.º, n.º 2, a), b), c) e d) e n.º 3), já não
devem ser admitidas operações redutoras do valor real do bem expropriado,
visando apenas uma diminuição oportunista da indemnização a pagar, ou com
fundamentos estranhos à equidade desse valor.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., ao impor a dedução do valor
correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de
contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na
avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos, ao
montante indemnizatório calculado de acordo com os critérios previstos no Código
das Expropriações, está a reduzir o valor da indemnização a receber pelo
expropriado, sem que essa redução tenha como finalidade a afinação da “justiça”
desse valor.
Na verdade, a aplicação desta disposição interfere relevantemente na fixação do
quantum indemnizatório (ALÍPIO GUEDES, em “Valorização de bens expropriados”,
pág. 79, da 2ª ed., da Almedina, refere que essa redução é, em média, da ordem
dos 5% do montante indemnizatório), resultando esta tentativa de cobrança de uma
prestação totalmente alheia ao acto expropriativo e às operações de apuramento
do valor do bem expropriado, através de um enxerto procedimental, numa
arbitrária diminuição do valor da indemnização a pagar, com benefício
injustificado para a entidade expropriante.
Traduzindo-se, pois, o disposto no art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., numa
diminuição do montante indemnizatório a pagar pelo acto expropriativo, sem
qualquer fundamento no acerto do valor “justo” do bem expropriado, mostra-se
violado o princípio constitucional da “justa indemnização”, consagrado no art.º
62.º, da C.R.P..
E, uma vez que ao conceito de “justa indemnização” está umbilicalmente ligada a
observância do princípio constitucional da igualdade (art.º 13.º, nº 1, da
C.R.P.), na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos
públicos, abrangendo a relação externa da expropriação (ALVES CORREIA, na anot.
cit., na R.L.J., Ano 134º, pág. 346), o art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., ao
impedir que os expropriados sejam plenamente compensados pelo “sacrifício”
patrimonial que lhes foi exigido, recebendo menos do que aquilo que perderam,
também infringe o referido princípio da igualdade de encargos.
6. O princípio constitucional da igualdade fiscal
O princípio constitucional da igualdade fiscal, como expressão específica do
princípio geral estruturante da igualdade (art.º 13.º, da C.R.P.), não se resume
à regra da universalidade dos impostos, segundo a qual estes incidem sobre todos
aqueles que têm capacidade contributiva, determinando também que todos devem
estar adstritos ao pagamento de impostos com base no mesmo critério – a regra da
uniformidade dos impostos (sobre este princípio, vide SOUSA FRANCO, em “Finanças
públicas e direito financeiro”, vol. II, pág. 178-182, da 4ª ed., da Almedina, e
CASALTA NABAIS, em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 435 e seg., da
ed. de 1998, da Almedina).
Segundo esta regra, o que é igual deve ser tributado igualmente e o que é
desigual deve ser tributado desigualmente, na medida dessa desigualdade. Mas a
diferenciação entre o que é igual ou desigual implica a adopção de critérios
valorativos das realidades tributáveis.
Para apurar a eventual violação deste princípio pela norma recusada pela
sentença recorrida convém efectuar um rápido sobrevoo pelo regime da
contribuição autárquica.
A contribuição autárquica sucedeu à contribuição predial, cujo Código mais
recente havia sido aprovado em 1963, pelo D.L. nº 45.104, de 1 de Junho, no
âmbito da Reforma Fiscal de 1958-1966, dirigida pelo Prof. Teixeira Ribeiro (a
contribuição predial terá sido criada pela Lei de 19 de Abril de 1845, sendo a
“jugada”, cobrada no reinado de D.Afonso Henriques, o primeiro imposto predial
conhecido em Portugal).
Esta reforma caracterizou-se por consagrar um sistema misto de impostos
cedulares sobre o rendimento, taxando as suas diferentes categorias, consoante a
respectiva origem, a que acrescia um imposto de sobreposição – o imposto
complementar – que tributava globalmente a soma de todos os rendimentos
pessoais. Nesse conjunto de impostos figurava a contribuição predial, que
tributava os rendimentos efectivamente obtidos, no respeitante aos prédios
urbanos arrendados, o valor locativo, ou seja a utilidade obtida pelo
respectivo uso ou fruição que era dada pela renda que o proprietário poderia
obter, caso tivesse arrendado o imóvel, relativamente aos prédios urbanos não
arrendados, e a renda da terra, obtida pelo rendimento médio presumido,
determinado por avaliação directa ou cadastral, no tocante aos prédios rústicos.
Com a reforma fiscal operada nos anos 1988-1989, a inclusão na base de
tributação dos novos impostos – IRS e IRC – de todos os rendimentos efectivos
auferidos pelos contribuintes, conduziu à consequente extinção da contribuição
predial, apenas relativamente aos prédios produtores de rendimentos, o que
resultou na necessidade de repensar a problemática da tributação predial.
Foi nesta conjuntura legislativa, aliada à problemática do financiamento das
autarquias locais, que nasceu a contribuição autárquica, consagrada no C.C.A.,
aprovado pelo D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, que entrou em vigor em
1-1-1989.
Este novo imposto municipal pretendeu ser um imposto sobre o património
imobiliário, que incidia sobre o valor de todos os prédios situados no
território de cada município (art.º 1.º, do C.C.A.), enquanto o rendimento real
que alguns deles proporcionavam continuava a ser tributado em sede de IRS e IRC.
Mais do que na lógica do princípio da capacidade de pagar, a criação deste
imposto foi justificada pelo princípio do benefício, na medida em que os
proprietários dos prédios são especiais beneficiários de infra-estruturas e
serviços muito onerosos que a colectividade lhes proporciona, desempenhando as
autarquias um papel relevante nesse domínio (LOPES PORTO, em “A reforma fiscal
portuguesa e a tributação local”, em “Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo
Correia”, no B.F.D.U.C., nº especial do ano de 1984, vol. III, pág. 133-137, RUI
DUARTE MORAIS, em “Notas sobre a contribuição autárquica”, em “Fisco”, 1989,
vol. I, t. 7, pág. 15, VASCO VALDEZ MATIAS, em “A contribuição autárquica e a
reforma da tributação do património”, pág. 24-25, da ed. de 1999, da Vislis, e
CASALTA NABAIS, em “As bases constitucionais da reforma tributária do
património”, em “Fisco”, 2004, vol. XV, t. nº 111/112, pág. 18-20).
Estabeleceu o C.C.A., no seu art.º 7.º, n.º 1, que o valor tributável dos
prédios é o seu valor patrimonial determinado nos termos de um futuro Código das
Avaliações.
Mas, enquanto este Código não entrasse em vigor, os art.º 6.º a 9.º, do D.L. n.º
442-C/88, de 30 de Novembro, estabeleceram, transitoriamente, o seguinte:
“Artº 6º
1 – O valor tributável dos prédios urbanos, enquanto não for determinado de
acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da
capitalização do rendimento colectável actualizado com referência a 31 de
Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.
2 - O rendimento colectável dos prédios urbanos não arrendados, reportado a 31
de Dezembro de 1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 4% ao
ano, cumulativa, com o limite de 100%, desde a última avaliação ou actualização,
não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do disposto no nº
1 do artigo 69º da Lei nº 2/88, de 28 de Janeiro.
Art.º 7.º
1 – O valor tributável dos prédios rústicos, enquanto não for determinado de
acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da
capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de
Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 20.
2 – O rendimento colectável dos prédios rústicos, reportado a 31 de Dezembro de
1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 2% ao ano,
cumulativa, com o limite máximo de 100%, desde a última avaliação ou
actualização, não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do
disposto no nº 1 do artigo 69º da Lei nº 2/88, de 28 de Janeiro.
Artº 8º
1 – Enquanto não entrar em vigor o Código das Avaliações, os prédios continuarão
a ser avaliados segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição
Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei nº 45
104, de 1 de Julho de 1963, determinando-se o seu valor tributável de acordo com
o disposto nos nºs 1 dos artigos 6º e 7º do presente decreto-lei.
2 – No caso de terrenos para construção, o seu valor tributável será determinado
por aplicação das regras contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as
Sucessões e Doações.
Art.º 9º
Até à entrada em vigor da nova legislação que as regulamente, a organização e
conservação das matrizes será feita por aplicação das correspondentes normas do
Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 45 104, de 1 de Julho de 1963.”
Perante a falta de um consensual Código de Avaliações pronto para entrar em
vigor simultaneamente com o C.C.A., o legislador recorreu ao regime revogado,
limitando-se a prever uma pequena actualização automática do valor tributável
constante das desactualizadas matrizes prediais.
Apesar da A.R. ter emitido autorização legislativa no sentido do Governo poder
aprovar um Código de Avaliações (art.º 50.º, b), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março,
a qual foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo acórdão
n.º 358/92, deste Tribunal, por indeterminação), isso nunca chegou a suceder (um
projecto do Código de Avaliações foi publicado em “Ciência e Técnica Fiscal”, nº
384, Outubro-Dezembro de 1996, pág. 187-235), pelo que as transcritas normas
transitórias perpetuaram-se, tendo acabado por vigorar durante todo o período de
vida da contribuição autárquica.
A constatação da profunda desactualização das matrizes prediais, perante a quase
inexistência de operações de reavaliação pela administração fiscal, nomeadamente
nas situações previstas no artº 263.º, b), e 264.º, do C.C.P.I.I.A., não é
suficiente para que o automatismo da valoração da avaliação efectuada no âmbito
de um processo de expropriação, imposta pelo n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das
Exp., seja considerado um atentado ao princípio da igualdade fiscal.
Na verdade, não pode a desactualização generalizada dos valores matriciais,
resultante da não utilização pela administração fiscal dos mecanismos legais
previstos para evitar esse fenómeno, justificar que se “interdite” um preceito
que prevê, nos casos em que ocorre uma avaliação do imóvel para efeitos de
fixação da indemnização pela expropriação, uma actualização automática daqueles
valores, aproveitando a realização daquela avaliação.
A inexecução generalizada duma lei, por inércia dos órgãos do poder executivo,
frustrando os objectivos do respectivo regime legal, não é suficiente para que
se considere que viola o princípio da igualdade o preceito legal que preveja um
mecanismo de funcionamento automático capaz de atingir aqueles objectivos, em
apenas alguns casos, dispensando a prática de actos de execução.
O princípio da igualdade, funcionando como aferidor de constitucionalidade, deve
ter como termos de comparação previsões normativas, sendo duvidoso que estas
possam ser substituídas por realidades resultantes de uma deficiente execução da
lei, por inércia da administração pública, mesmo que generalizadas.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., prevê um mecanismo de reavaliação
distinto do regime geral, face à existência de um circunstancialismo próprio,
tratando de forma diferente aquilo que é diferente e de forma adequada à
diferença verificada, pelo que o funcionamento de um regime de reavaliação
automática do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica não
viola, só por si, o princípio da igualdade fiscal.
Todavia, nos impostos sobre o património adquirem especial importância os
critérios de valoração dos bens que o integram, de cuja aplicação resultará a
quantificação da base tributária, a qual é um dos elementos-chave dos resultados
de qualquer imposto.
Sendo a contribuição autárquica um exemplo paradigmático de um imposto real e
objectivo, uma vez que o sujeito passivo do mesmo é determinado pela qualidade
de ser titular de um direito real sobre um imóvel, a regra da uniformidade impõe
uma igualdade horizontal, ou seja, todos os que são titulares da mesma forma de
riqueza devem ser tributados da mesma maneira (SOUSA FRANCO, na ob. cit., pág.
181).
Assim, para que fosse respeitado o princípio da igualdade fiscal, na sua regra
da uniformidade, os critérios de valoração da propriedade dos imóveis que
integravam a realidade tributada através da contribuição autárquica teriam que
ser uniformes, relativamente a cada espécie de bens.
Daí que importe comparar o critério valorativo resultante da aplicação do
disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das Exp., com critério valorativo
geral donde resulta a base de incidência da contribuição autárquica.
Considerando o sentido das acima referidas normas transitórias do D.L. n.º
442-C/88, de 30 de Novembro, que acabaram por se aplicar durante todo o período
de vigência da contribuição autárquica, foram os seguintes os critérios de
fixação do valor tributável da contribuição autárquica, relativamente aos
diversos tipos de imóveis:
a) Prédios rústicos
Nos termos do art.º 7.º, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor
tributável dos prédios rústicos era o que resultava da capitalização do
rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988,
através da aplicação do factor 20.
Este rendimento colectável era a renda fundiária, correspondendo esta ao saldo
de uma conta anual de cultura em que o crédito é representado pelo rendimento
bruto e o débito era constituído pelos encargos mencionados no nº 1, do artº
59.º, do C.C.P.I.I.A., diminuído aquele saldo do lucro da exploração (artº 36.º,
do C.C.P.I.I.A.).
b) Terrenos para construção
Nos termos do n.º 2, do art.º 8.º, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o
valor tributável destes terrenos era determinado por aplicação das regras
contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, o qual no
seu artº 94.º, § 4º, determinava que a avaliação de terrenos considerados para
construção basear-se-ia no valor venal de cada metro quadrado.
c) Prédios urbanos
Nos termos do art.º 6.º, n.º 1, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor
tributável dos prédios urbanos, era o que resultava da capitalização do
rendimento colectável actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988,
através da aplicação do factor 15.
Este rendimento colectável, quando os prédios se encontravam arrendados, era
igual às rendas efectivamente recebidas em cada ano, liquidas de uma
percentagem para despesas de conservação e dos encargos referidos no art.º
115.º, do C.C.P.I.I.A., quando suportados pelo senhorio (art.º 113.º, do
C.C.P.I.I.A.).
Quando os prédios não se encontravam arrendados, o rendimento colectável
obtinha-se deduzindo do valor locativo a percentagem e encargos mencionados no
art.º 113.º, do C.C.P.I.I.A., correspondendo o valor locativo à justa renda pelo
período de 1 ano em regime de liberdade contratual (art.º 125.º, do
C.C.P.I.I.A.).
Da análise destes parâmetros resulta que, anacronicamente, a contribuição
autárquica apesar de se assumir como um imposto sobre o património, teve como
critério preponderante de cálculo do valor tributável dos imóveis a
capitalização do seu rendimento líquido real ou presumido (com a excepção dos
terrenos para construção), uma vez que as referidas normas “transitórias” se
limitaram a consagrar uma actualização da capitalização dos rendimentos
colectáveis constantes das matrizes, fixados segundo as regras do Código da
Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (C.C.P.I.I.A.).
Como escreveu RUI DUARTE MORAIS, “sem o novo Código de Avaliações a contribuição
autárquica pouco mais é, na prática, que a velha contribuição predial com outro
nome” (in “Notas sobre a contribuição autárquica”, em “Fisco”, 1989, vol. I, t.
n.º 7, pág. 16).
Conhecidos os critérios gerais estipulados para o cálculo da base de incidência
da contribuição autárquica, importa agora verificar se o art.º 23.º, nº 4, do
Cód. das Expr., obriga a uma liquidação adicional deste imposto, mantendo a
uniformidade de critério de cálculo do valor tributável.
Sendo o controlo de constitucionalidade efectuado por este Tribunal, nos termos
da a), do nº 1, do art.º 70.º, da LTC, um controlo concreto ou incidental,
relativamente ao processo onde ele foi suscitado, tem sido afirmado que o
recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental aferida
pela susceptibilidade de repercussão útil no processo concreto de que emerge,
não servindo, assim, para dirimir questões meramente teóricas ou académicas.
Assim, estando em causa neste processo a fixação duma indemnização pela
expropriação duma parcela de terreno integrando um prédio rústico, classificado
para esse efeito como “solo para outros fins”, apenas importa verificar o
critério estabelecido no Código das Expropriações para a avaliação deste tipo de
terrenos, uma vez que é esse o critério que determina o valor da matéria
colectável da contribuição autárquica liquidada adicionalmente.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp. de 1999, ao determinar que “ao montante
indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previsto no Código das
Expropriações deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as
quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o
expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de
expropriação nos últimos cinco anos”, impõe como valor tributável para
liquidação da contribuição autárquica relativa aos últimos 5 anos anteriores à
expropriação, o resultado da avaliação efectuada para efeitos de atribuição da
indemnização pela expropriação.
Ora, nos termos das disposições do Código das Expropriações, a fixação desse
valor, relativamente aos prédios rústicos que não sejam aptos para a construção
é efectuada segundo as seguintes regras:
“Artigo 23.º (Justa indemnização)
1 – A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade
expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da
expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu
destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da
publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as
circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.
…
5 – Sem prejuízo do disposto nos n. 2 e 3 do presente artigo, o valor dos bens
calculado de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e
seguintes deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação
normal de mercado, podendo a entidade expropriante e o expropriado, quando tal
se não verifique, requerer ou o tribunal decidir oficiosamente, que na
avaliação sejam atendidos outros critérios para alcançar aquele valor.
…
Artigo 27º - (Cálculo do valor do solo para outros fins)
1 – O valor do solo apto para outros fins será o resultante da média aritmética
actualizada entre os preços unitários de aquisições ou avaliações fiscais que
corrijam os valores declarados efectuadas na mesma freguesia e nas freguesias
limítrofes nos três anos, de entre os últimos cinco, com média anual mais
elevada, relativamente a prédios com idênticas características, atendendo aos
parâmetros fixados em instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão
específica.
2 – Para os efeitos previstos no número anterior, os serviços competentes do
Ministério das Finanças deverão fornecer, a solicitação da entidade
expropriante, a lista das transacções e das avaliações fiscais que corrijam os
valores declarados efectuadas na zona e os respectivos valores.
3 – Caso não se revele possível aplicar o critério estabelecido no nº 1, por
falta de elementos, o valor do solo para outros fins será calculado tendo em
atenção os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da
declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração
do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da
região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de
influir no respectivo cálculo.
Conforme resulta do transcrito artº 23.º, n.º 1, do Cód. das Exp., o critério
geral de valorização dos bens expropriados, como medida do ressarcimento do
prejuízo sofrido pelo expropriado, no seguimento de longa tradição legislativa,
é o do seu valor corrente, ou seja o seu valor venal ou de mercado, numa
situação de normalidade económica.
Como escreveu ALVES CORREIA “… a indemnização calculada de acordo com o valor de
mercado, isto é, com base na quantia que teria sido paga pelo bem expropriado se
este tivesse sido objecto de um livre contrato de compra e venda, é aquela que
está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial
do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não
expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto” (em “O plano
urbanístico e o princípio da igualdade”, pág. 546, da ed. de 1989, da Almedina).
Apesar deste valor de mercado não poder atender a situações especulativas e
poder sofrer algumas correcções impostas por razões de justiça que visam evitar
enriquecimentos injustificados (vide as alíneas do n.º 2, e o n.º 3, do artº
23.º, do Cód. das Exp.), donde resultará um “valor de mercado normativo”, é ele
que constitui o critério referencial determinante da avaliação dos bens
expropriados para o efeito de fixação da respectiva indemnização a receber pelo
expropriado.
Procurando evitar alguma subjectividade na determinação deste valor, o
legislador fixou critérios valorativos instrumentais, relativamente a vários
tipos de bens expropriados.
Quanto aos “solos aptos para outros fins”, o que abrange as parcelas de prédios
rústicos que não se destinem à construção, adoptou-se como critério instrumental
preferencial o cálculo aritmético do valor médio actualizado entre os preços
unitários das aquisições ou avaliações fiscais que corrijam os valores
declarados, efectuados na mesma freguesia, ou nas freguesias limítrofes nos 3
anos, de entre os últimos 5, com média anual mais elevada, relativamente a
prédios com idênticas características, atendendo aos parâmetros fixados em
instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão específica (art.º 27.º,
n.º 1, do Cód. das Exp.).
As avaliações fiscais aqui referidas eram as correctivas dos valores declarados
nas transmissões de bens, as quais obedeciam às regras do Código da Sisa e do
Imposto sobre as Sucessões e Doações, em nada se identificando com as avaliações
para correcção do valor tributável pela contribuição autárquica, constante das
matrizes prediais (artº 14.º, nº 3, b), do C.C.A.), as quais tinham como
critério o disposto no C.C.P.I.I.A., no que respeita aos prédios rústicos não
destinados à construção (art.º 7.º, do D.L. n.º 442 – C/88, de 30 de Novembro).
No caso de não poder ser aplicado este critério por falta de elementos, o que
parece ter ocorrido por sistema, como já previa PEDRO ELIAS DA COSTA (em “Guia
das expropriações por utilidade pública”, pág. 310, da ed. de 2003, da
Almedina), o valor de mercado será encontrado, por aplicação de um segundo
critério instrumental subsidiário complexo que ponderará, em conjunto, os
seguintes elementos do terreno expropriado: os seus rendimentos efectivo ou
possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a
natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de
acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e
outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influir no respectivo cálculo
(art.º 27.º, n.º 3, do Cód. das Exp.).
Neste critério subsidiário, mas de frequente aplicação, perante a
inaplicabilidade prática do critério preferencial, a consideração do rendimento
efectivo ou possível do terreno expropriado, além de não corresponder à renda
fundiária do C.C.P.I.I.A., é apenas um dos elementos a ponderar, na panóplia de
factores que devem ser considerados para se encontrar o valor de mercado do
terreno expropriado.
Além destes critérios instrumentais não se identificarem com o critério geral
estabelecido para o cálculo da base de incidência da contribuição autárquica, é
necessário ter presente a sua mera instrumentalidade face ao critério principal
que é o do valor de mercado do bem expropriado, o qual não só é ponto de partida
para uma delimitação mais precisa da justa indemnização, mas também ponto de
chegada, face ao disposto no n.º 5, do art.º 23.º, do Cód. das Exp.. Conforme
dispõe este normativo “…o valor dos bens calculado de acordo com os critérios
referenciais constantes dos artigos 26º e seguintes deve corresponder ao valor
real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado, podendo a entidade
expropriante e o expropriado, quando tal se não verifique, requerer ou o
tribunal decidir oficiosamente, que na avaliação sejam atendidos outros
critérios para alcançar aquele valor”.
Desde que o funcionamento dos critérios instrumentais não conduza a um resultado
conforme ao critério principal, há que proceder às correcções necessárias a que
este critério se mostre observado, pelo que é ele que, em última instância,
determina o valor normativo do bem expropriado.
Comparando o regime geral de valoração da base de incidência da contribuição
autárquica, com o regime de valoração do Código das Expropriações,
relativamente aos terrenos de prédios rústicos que não sejam aptos para a
construção, verifica-se que enquanto o primeiro adopta como critério o da renda
fundiária, o segundo tem como critério o valor de mercado.
São critérios perfeitamente distintos, cuja aplicação conduz a resultados
diferentes, sendo os valores obtidos com a aplicação do último critério bem
superiores aos resultantes da aplicação do primeiro (no estudo realizado em
Dezembro de 1996, pelo GAPTEC da Universidade Técnica de Lisboa, em conjunto com
a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais – Ministério das Finanças,
coordenado por SIDÓNIO PARDAL, e que se encontra publicado em “Ciência e Técnica
Fiscal”, nº 384, pág. 81 e seg., o valor médio patrimonial dos prédios rústicos
para efeitos de liquidação da contribuição autárquica nos anos de 1993, 1994 e
1995 era de 14.000$00, seguramente muito inferior ao valor médio das
indemnizações por expropriação desse tipo de terrenos).
Assim, do funcionamento do disposto no art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., o
cálculo do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica, relativo
aos últimos 5 anos anteriores à expropriação, é diferente para os prédios
expropriados e os não-expropriados, não existindo qualquer razão justificativa
para tal diferenciação.
Se esta circunstância, pela necessidade da realização duma operação de avaliação
do prédio expropriado, pode indiciar a desactualização do valor tributável
aplicado, tornando evidente a necessidade da sua correcção, já não justifica que
se fixe um novo valor tributável para liquidação adicional da contribuição
autárquica, com utilização de critério diferente do legalmente estabelecido,
apenas para aproveitar a avaliação entretanto efectuada no processo
expropriativo.
Verificando-se uma dualidade de critérios na fixação do valor tributável, sem
qualquer justificação, estamos perante uma violação do princípio da igualdade
fiscal, o que também torna inconstitucional esta norma.
7. Conclusão
Verificada a violação pela norma em causa dos parâmetros constitucionais da
justa indemnização e da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos,
incluindo o da igualdade tributária, importa julgá-la inconstitucional,
dispensando-se, por economia de argumentação, o seu confronto com o princípio da
proibição da retroactividade dos impostos, invocado na decisão recorrida.
*
Decisão
Nestes termos decide-se julgar inconstitucional, por violação dos princípios
constitucionais da justa indemnização, consagrado no artigo 62.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa, e da igualdade dos cidadãos perante os
encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, enquanto expressão
específica do princípio geral da igualdade constante do artigo 13.º, da
Constituição da República Portuguesa, o artigo 23.º, n.º 4, do Código das
Expropriações de 1999, julgando-se improcedente o recurso.
*
Sem custas.
*
Lisboa, 14 de Janeiro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
José Borges Soeiro
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Carlos Pamplona de Oliveira – com
declaração
Ana Maria Guerra Martins (com declaração)
Vítor Gomes (com declaração)
Benjamim Rodrigues ( vencido de acordo com a
declaração de voto anexa)
Gil Galvão (vencido pelas razões constantes do
acórdão N.º 422/2004, actualizadas, no essencial,
pelos fundamentos constantes da declaração de
voto do Exmo. Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Maria João Antunes (vencida, nos termos da
declaração que se junta)
Rui Manuel Moura Ramos (com declaração)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto o presente acórdão pelas razões invocadas no voto expresso no Acórdão
422/2004, de que divergi.
Entendo, assim, que a norma em causa, visando introduzir um factor arbitrário de
desvalorização no montante devido ao expropriado, viola essencialmente o
princípio da “justa indemnização” a que se refere o artigo 62º n.º 2 da
Constituição, conforme vinha sendo definido pelo Tribunal (cfr., a título de
exemplo, o Acórdão 86/2003 – DR, II série, de 23MAI2003).
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo dúvidas quanto à natureza fiscal da norma constante do nº 4 do artigo 23º
do Código de Expropriações, acompanho apenas a fundamentação do ponto 5,
considerando-a suficiente para julgar a norma como inconstitucional. Não
subscrevo, portanto, a fundamentação do ponto 6 relativa ao princípio
constitucional de igualdade fiscal.
Ana Maria Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
As reservas, que mantenho, quanto à natureza tributária formal da
dedução em causa, expressas em declaração aposta ao acórdão n.º 422/2004 para
que remeto, não me impedem, ultrapassada esta questão pela qualificação
adoptada, de acompanhar as ponderações do acórdão quanto à violação do princípio
da igualdade fiscal.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido, por não poder acompanhar a decisão e os fundamentos em que a
mesma se abona.
2 – Não tendo a posição que obteve vencimento conseguido deixar de
aceitar expressamente várias dúvidas sobre a bondade de alguns dos fundamentos
em que se estribou e afastar, sem quaisquer reservas, a bondade das razões que
suportaram a orientação anterior do Tribunal expressa no Acórdão n.º 422/04 e
nos demais que se lhe seguiram (identificados na presente decisão) – antes tendo
assumido expressamente constantes formulações argumentativas substancialmente
dubitativas –, impunha-se que, em abono do princípio da segurança jurídica,
mantivesse a orientação anterior.
3 – Continuamos a pensar ser bem fundada a posição anterior
constante daquele acórdão n.º 422/04.
4 – O mesmo não entendemos relativamente à argumentação agora
aduzida para suportar a nova orientação. Senão vejamos.
4.1 – O acórdão perspectiva a norma do n.º 4 do art.º 23.º do Código
das Expropriações de 1999 (doravante, CE) como sendo uma norma de natureza
mista, em que a dimensão fiscal ofende o princípio constitucional da igualdade
fiscal e a vertente relativa ao regime das expropriações viola o princípio da
justa indemnização.
Não vemos que venha mal ao mundo com a opção dualista seguida na
qualificação jurídica da norma em causa.
Todavia, como simples operação de qualificação, ela apenas pode ter
préstimo para evidenciar as características essenciais do regime ou dos regimes
que transporta e não para constituir, ela própria, fonte do regime pretendido
instituir, ao contrário do que está subjacente à decisão.
4.2 – Não obstante considerarmos, pelos efeitos jurídicos que
projecta, que a norma do nº 4 do art. 23º do C.E. é, materialmente, uma norma de
natureza fiscal, conquanto “espúria” para usar a terminologia qualificatória do
Prof. Dr. Fernando Alves Correia, há-de conceder-se que ela apenas pode ser
vista como uma norma relativa ao regime legal das expropriações no ponto em que
nela se dispõe que deve haver lugar à dedução ao montante da indemnização
apurado nos termos do CE da diferença entre as quantias efectivamente pagas a
título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com
base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos.
Nesta dimensão, o preceito limita-se a estatuir uma obrigação de
dedução que, como adiante se verá, tem a natureza de uma simples retenção fiscal
quando o credor do imposto não seja o expropriante, e não a prever um regime de
compensação, pois nem o preceito em causa nem outro qualquer atribuem essa
diferença à entidade expropriante quando esta não seja o município da situação
dos bens, ao contrário do que o acórdão afirma.
Por outro lado, o preceito em nada interfere com os critérios de
avaliação que o CE estabelece para determinar o valor dos bens expropriados: os
bens são avaliados de acordo com os critérios previstos no CE como constituindo
a densificação, no plano infraconstitucional, do princípio constitucional da
justa indemnização, consagrado no n.º 2 do art.º 62.º da Constituição.
O efeito a que o preceito se refere é um efeito que ocorre já depois
de apurado o montante correspondente à indemnização que deveria ser paga ao
expropriado: se se constatar, a quando do momento do pagamento da indemnização
calculada, que o expropriado deveria ter pago, em face da avaliação para efeitos
expropriativos, contribuição autárquica superior àquela que pagou nos cinco anos
anteriores então deverá ser-lhe deduzida a diferença.
Como operação posterior e exterior ao processo e às regras legais de
determinação do valor dos bens expropriados a pagar pela entidade expropriante,
não se vê como é que ela pode interferir na determinação desse valor, a qual
acontece em momento temporal e racionalmente anterior e por aplicação dos
critérios legais, autonomamente definidos, que densificam o princípio
constitucional da justa indemnização.
Neste ponto, e em sede de contribuição autárquica, a relevância
substancial que se atribui ao que se recebeu a título de indemnização pelos bens
expropriados está tão distante do critério constitucional de determinação do
valor correspondente “à justa indemnização” como a obrigatoriedade de se ter de
considerar esse montante como um rendimento sujeito ao imposto sobre o
rendimento das pessoas singulares, a título de incrementos patrimoniais (cf.
art.º 1.º, n.º 1, e 9.º do CIRS).
A diferença está apenas na oportunidade escolhida pelo legislador
fiscal para fazer funcionar a norma fiscal, por evidentes razões de
praticabilidade, simplificação e eficácia fiscal: no caso da contribuição
autárquica, o momento do pagamento da indemnização; no IRS, no momento da sua
liquidação anual.
Considerar como valor de indemnização pela expropriação apenas o seu
valor líquido do imposto da contribuição autárquica é tão errado como ter por
valor de indemnização apenas o seu valor líquido dos impostos sobre o rendimento
anual!
O efeito constitutivo desta dimensão da norma corresponde a uma
simples retenção de imposto a entregar ao respectivo credor tributário, nos
termos que são possibilitados pelos art.ºs 20.º e 34.º da Lei Geral Tributária
(LGT).
Ao contrário do defendido no acórdão, o credor da contribuição
autárquica não é a entidade expropriante, salvo se esta for, por coincidência, o
município da situação dos bens expropriados.
E não o é porque o preceito em causa ou outro qualquer não investe o
expropriante na titularidade da receita obtida em tais termos.
Ora, é sabido que o sujeito activo da relação tributária é a
entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das
obrigações tributárias (art.º 18.º da LGT).
A receita em causa, cobrada por ocasião da expropriação, e devida a
título de diferença de contribuição autárquica, cabe ao município da situação
dos bens expropriados.
É o art.º 16.º da Lei da Finanças Locais, n.º 42/98, de 6 de Agosto,
vigente ao tempo, que o afirma, dizendo que “constituem […] receita dos
municípios o produto da cobrança dos impostos a que os municípios tenham
direito, designadamente a contribuição autárquica […]”.
O mesmo se passa hoje relativamente ao imposto sucessor da
contribuição autárquica – o imposto municipal sobre imóveis (IMI) –, de acordo
com o disposto no art.º 10.º, alínea a), da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro.
Sendo assim, é indiferente que a entidade expropriante seja o
município ou outra entidade pública ou concessionária de serviços públicos: a
receita obtida pela via da operacionalidade do preceito em causa cabe e só pode
caber ao município da situação dos bens. Só este tem o título legal da sua
atribuição.
4.3 – Na sua outra considerada vertente, é imputada à norma uma
natureza fiscal, ponto em que estamos de acordo com o acórdão.
E é uma norma fiscal porque regula uma relação jurídica relativa à
percepção de impostos, no caso da contribuição autárquica.
Numa tal dimensão, a norma estabelece, para o caso de avaliação de
bens efectuada para efeitos de expropriação, qual é o valor patrimonial dos
prédios que deve ser relevado como valor tributável para efeitos de liquidação
da contribuição autárquica nos últimos cinco anos, estipulando que o valor
patrimonial é aquele que for determinado de acordo com os critérios previstos no
CE para efeitos de determinação do valor da indemnização a pagar pela entidade
expropriante, bem como, ainda, uma obrigação de proceder à liquidação adicional
do imposto que for devido em função desse valor.
A norma, neste vector, é, por um lado, uma norma de definição da
matéria colectável da contribuição autárquica, assumindo-se aqui como uma norma
complementar, conquanto concernente apenas às hipóteses de expropriação de bens,
da norma constante do art.º 7.º do Código da Contribuição Autárquica, e, por
outro, simultaneamente, uma norma respeitante ao procedimento de cobrança do
imposto.
Como neste passo nota o acórdão, nada impede constitucionalmente que
a gestão da liquidação e cobrança da contribuição autárquica em causa não possa
ser cometida, por lei (como é o caso), à entidade expropriante, seja esta uma
entidade pública ou até uma sociedade concessionária de um serviço público.
A intervenção desta entidade em tal procedimento não é mais do que uma
intervenção a título de “representante” do credor do imposto, sendo
possibilitada pelo art.º 18º, n.º 1, da LGT.
De resto, nos modernos sistemas fiscais, é cada vez mais frequente a
atribuição aos contribuintes e a outros sujeitos de direito privado, que estão
numa conexão material (económica ou jurídica) próxima com os factos tributários,
da obrigação de gestão dos procedimentos de liquidação, cobrança e arrecadação
temporária dos impostos emergentes desses factos.
É o que se passa no campo do IVA e do IRS, por exemplo.
Por outro lado, não se vê que haja qualquer problema relativo à
impugnabilidade da liquidação adicional da contribuição autárquica.
A operação de dedução da eventual diferença de contribuição
autárquica consubstancia, para além do aspecto já evidenciado, o acto formal de
liquidação de imposto.
E é um acto formal de liquidação, porque fixa os direitos
tributários dos contribuintes relativos à contribuição autárquica (art.º 60.º do
Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT).
Sendo assim, torna-se evidente que o mesmo é susceptível de
impugnação perante os tribunais tributários competentes, nos termos previstos
nos arts 95.º, n.º 1, da LGT e 99.º e segs. do CPPT.
Trata-se de uma situação paralela com a que se passa nas situações
de autoliquidação [cf. arts. 82.º, alínea a), e 83.º, n.º 1, alínea a), do CIRC,
e 26.º e 40.º do CIVA], de retenção na fonte (cf. arts. 34.º da LGT, 88.º a 90.º
do CIRC, 88.º a 102.º do CIRS e Decreto-Lei n.º 42/91, de 22 de Janeiro) ou do
pagamento por conta [cf. arts. 96.º, n.º 1, alínea a), e 97.º do CIRC], em que a
liquidação é efectuada não pela administração fiscal mas pelos contribuintes,
representantes ou substitutos tributários.
Note-se que, nesses casos, a retenção na fonte poderá, também, ter
de ser efectuada num processo judicial, quando os rendimentos a ele sujeitos
sejam atribuídos em tal processo, sem que se veja aí qualquer obstáculo à sua
impugnabilidade perante os tribunais tributários.
A circunstância de, eventualmente, o acto tributário ser praticado
no processo judicial de expropriação em nada afecta a sua simples natureza de
acto materialmente administrativo-tributário.
Por outro lado, sempre importa notar que estamos em face de uma
norma que cumpre inteiramente o princípio da legalidade fiscal, seja ele visto
de uma forma estrita ou mais ampla (cf., a propósito, José Casalta Nabais,
Direito Fiscal, 2.º edição, 2003, pp. 136 e segs.), porquanto foi editada pelo
legislador que tinha competência constitucional para regular essas matérias – a
Assembleia da República [arts. 103.º, n.ºs 2 e 3, e 165.º, n.º 1, alínea i), da
CRP].
4.4 – Considera o acórdão que a norma em causa viola o princípio da
igualdade fiscal na medida em que trata diferentemente e sem razão material
bastante os proprietários expropriados e os não expropriados, já que, no que
importa a estes, o valor patrimonial relevante para efeitos de liquidação da
contribuição autárquica, e durante todo o tempo de vigência do respectivo tipo
tributário, é o valor resultante da capitalização do rendimento efectuada nos
termos previstos nos art.ºs 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de
Novembro, ou, relativamente, aos terrenos para construção, o determinado por
aplicação das regras contidas no Código de Imposto Municipal de Sisa e do
Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD).
Esta ponderação despreza ou esquece inteiramente, todavia, outros
princípios constitucionais que emprestam ao princípio da igualdade um especial
significado, no domínio fiscal, quando entendido nas suas várias significações
de princípio que impõe não só que seja dado tratamento igual a situações de
facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto
desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e
o tratamento igual das situações desiguais), mas também sem que proíba, de modo
absoluto, o estabelecimento de distinções, desde que baseadas em fundamentos
razoáveis, objectiva e racionalmente, em face da Constituição (Cf., entre
muitos, os Acórdãos n.ºs 186/90 e 232/03, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
É o que se passa com os princípios da praticabilidade e da
eficiência fiscais e com a justiça material do critério de tributação.
Ao contrário do raciocínio pressuposto no acórdão, não decorre da
regra da uniformidade dos impostos, que preenche uma das vertentes do princípio
da igualdade fiscal, que o legislador apenas possa adoptar como critérios ou
métodos de definição/aferição do valor tributável dos prédios para efeitos de
contribuição autárquica os critérios que se mostrem efectivamente idóneos para
poder captar relativamente a todos e cada um dos contribuintes a igual dimensão
ou extensão da capacidade contributiva que é relevada no domínio deste tipo de
imposto.
O princípio da uniformidade dos impostos apenas demanda que a mesma
realidade de facto económico-financeira, que foi erigida a pressuposto ou
fundamento do imposto, seja definida/aferida por idêntica medida ou por idêntico
critério de mensuração.
Sendo a realidade fáctica e económica a surpreender diferente,
diferente poderá e terá de ser o critério a usar para avaliar a concreta
capacidade contributiva.
Daí o facto de, nos diversos tipos tributários, se preverem, por
vezes, métodos diferentes para determinar a matéria colectável sujeita ao
imposto (cfr. art.ºs 21.º e segs. do CIRS e 15.º e segs. do CIRC, por exemplo).
Nesta perspectiva, nada autoriza que se considere como realidade de
facto equivalente para efeitos da relevância do valor a que se refere a
respectiva operação económica, em sede de contribuição autárquica, a situação
dos não expropriados e dos expropriados, mesmo em caso de venda dos bens fora de
processo expropriativo.
No que respeita a esta, o acórdão e as teses que alinham por ele
partem de um duvidoso princípio de equiparação jurídica entre as duas
realidades, aliás objecto de vasta controvérsia doutrinária.
Todavia, no domínio fiscal – e por razões que se prendem com o
fundamento axiológico de que o imposto pressupõe que se tenha capacidade
(económica/financeira) de o pagar – releva não o princípio da equivalência
jurídica mas o da equivalência das realidades (económicas, financeiras) de
facto.
Justifica-se assim inteiramente que, estando o regime jurídico da
expropriação funcionalizado para, simpliciter, permitir a determinação do valor
real dos bens numa economia de mercado, despida de factores especulativos e
anómalos (por isso se fala de um “valor de mercado normativamente entendido”,
“valor de mercado normal” ou “habitual”), e correspondendo o valor tributável
dos prédios, para efeitos da contribuição autárquica, ao seu valor patrimonial
(art.º 7.º do CCA), o legislador da norma em causa releve aquele valor para
efeitos da liquidação desse imposto, pelo período da caducidade.
A justiça material de uma tal solução encontra, congruentemente,
arrimo no facto de a indemnização ser paga com o dinheiro dos impostos e no
princípio de estes deverem ser pagos de acordo com a capacidade contributiva de
cada contribuinte: não tem o mínimo sentido de justiça material pagar impostos
por um valor dos bens e receber, com o dinheiro proveniente desses impostos,
indemnização por um valor diferente relativamente aos mesmos bens.
É claro que se sustenta que essa igual capacidade contributiva,
implícita na titularidade do direito de propriedade ou de usufruto dos bens
expropriados, abrangidos na incidência objectiva do imposto (não há que curar
dos direitos expropriáveis não incluídos na incidência objectiva da contribuição
autárquica), também pode existir nos casos de alienação desse direito por banda
dos não expropriados, não sendo estes sujeitos passivos da contribuição
autárquica atingidos na mesma medida, até pela circunstância de a administração
fiscal se abster de corrigir os valores tributáveis, lançando mão dos
instrumentos jurídicos expostos no referido Acórdão n.º 422/04.
Mas as situações não são idênticas.
Antes de mais, porque no caso de alienação dos bens ou direitos fora
do processo expropriativo (não expropriados), o preço é sempre um preço
subjectivamente concertado e não objectivamente determinável e determinado, não
tendo de corresponder ao seu valor normal de mercado, só este feito condizer
pela norma em causa ao seu valor patrimonial objectivo.
Por outro lado, relativamente aos não expropriados não está
afastada, de vez, a hipótese de terem de vir a pagar a contribuição autárquica
por um valor equivalente, como se demonstrou no Acórdão n.º 422/04.
O problema, aqui, é o de saber se o legislador pode conformar
constitucionalmente o imposto, no que respeita ao valor tributável, tal qual
este foi recortado no art.º 7.º do CCA, em função de certas circunstâncias
específicas, tratando-as de maneira diferente da daqueles casos de falta de
evidência objectiva do valor patrimonial dos bens abrangidos pela contribuição
autárquica, ou se, ao invés, apenas pode optar por um critério que seja
susceptível de aplicar-se, pese embora a diversidade de situações de facto, a
todos os prédios.
Ora, nós entendemos que o princípio da igualdade não obsta a tal
solução. E não obsta porque razões de justiça material, de praticabilidade e de
eficiência fiscais são susceptíveis de o justificar.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida pelas seguintes razões: o nº 4 do artigo 23º tem natureza
essencialmente tributária (ponto 5. do Acórdão nº 422/2004, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, e ponto 4.2 da declaração de voto do Senhor
Conselheiro Benjamim Rodrigues); a norma em apreciação não viola o princípio
constitucional da justa indemnização (artigo 62º, nº 2, da Constituição), porque
não se traduz numa diminuição do montante indemnizatório (Acórdão nº 422/2004,
pontos 5 e 7, e ponto 4.2 da declaração de voto do Senhor Conselheiro Benjamim
Rodrigues); a norma em causa não viola o princípio da igualdade dos cidadãos
perante os encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, enquanto
expressão específica do princípio geral da igualdade constante do artigo 13º da
Constituição, pelas razões constantes da declaração de voto do Senhor
Conselheiro Benjamim Rodrigues (ponto 4.4).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei integralmente o presente acórdão. Para além das razões
constantes da declaração que apus ao Acórdão nº 422/2004, de que dissenti, e que
enfatizavam a violação, pela norma sub judicio, do princípio da igualdade, a
reflexão posterior levou-me a concluir ainda pela indossociabilidade existente,
nesta matéria, entre aquele princípio e o da justa indemnização, pelo que
acompanho o discurso argumentativo do acórdão também neste ponto.
Rui Manuel Moura Ramos