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Processo n.º 1177/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no n.º 4 do art.º 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do despacho proferido pelo juiz do 1.º Juízo do referido
tribunal do Porto que decidiu não admitir o recurso interposto pelo reclamante
para o Tribunal Constitucional de um anterior despacho do mesmo tribunal que
determinou a remessa dos autos processados até então como processo sumário ao
DIAP do Porto para tramitação sob outra forma processual.
2 – Fundamentando a sua reclamação discorre o reclamante do seguinte
jeito:
«Não se conformando com a decisão judicial que indeferiu o requerimento de
recurso oportunamente apresentado, vem do mesmo – nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 77º e 78º-A, nºs 3 e 4, ambos da Lei Orgânica do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sucessivamente
alterada pelas Leis nºs 143/85, de 26 de Novembro, 85/89, de 07 de Setembro
(cfr. Declaração de 03 de Novembro de 1989), 88/95, de 01 de Setembro, 13-A/98,
de 26 de Fevereiro (cfr. Rectificação nº 10/98, de 23 de Maio), bem como dos
artigos 688º e 689º, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do
disposto no artigo 69º daquela Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – o
Ministério Público reclamar, com base nas razões que se expõem de seguida.
Reclama-se do despacho judicial que indeferiu o requerimento de recurso
oportunamente apresentado pelo Ministério Público, fundamentando que «(...),
salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional».
Ousando discordar do teor desta afirmação, quer-nos parecer que tendo o
Ministério Público – na sequência do despacho da Mma. Juiz a quo que ordenou a
conclusão dos autos ao Ministério Público «uma vez que no tribunal de turno foi
apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do art. 387°, nº
2, al. a) do CPP, não tendo sido deduzida acusação» - reservado para o início da
audiência de julgamento o uso da faculdade concedida pelo artigo 389º nº 2, do
Código de Processo Penal, a posterior decisão judicial que recaiu sobre essa
posição do Ministério Público não só nega a aplicação concreta da disposição
legal por este invocada (melhor, a faculdade que se protestou exercer em devido
tempo ao abrigo dessa disposição legal) como fundamenta essa não aplicação no
facto de que «realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por
acusação apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as
garantias de defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele
auto, a totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova».
Não sendo de exigir fórmulas sacramentais para dizer as coisas, quer-nos parecer
que outra coisa não fez a Mma. Juiz que não tenha sido recusar a aplicação
concreta da norma em que o Ministério Público se baseou para reservar o
exercício da faculdade invocada, fundamentando mesmo essa recusa no facto de que
a aplicação de tal norma não só seria inconstitucional por violar o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal como poria em causa
as garantias de defesa do arguido.
Parece-nos claro que quer pela leitura integral do despacho judicial recorrido,
quer pelos antecedentes que ao mesmo conduziram, será forçoso concluir que, em
rigor, o que a Mma Juiz a quo fez foi declarar que recusava, por
inconstitucional, a aplicação daquela norma quando literalmente interpretada no
sentido de permitir a realização de julgamento em processo sumário nos casos em
que o Ministério Público não tenha deduzido acusação e se reserve para o início
da audiência de julgamento em processo sumário o poder de substituir a acusação
pela leitura do auto de notícia elaborado pelo OPC revelando-se este auto de
notícia insuficiente na medida em que se mostre omisso quanto aos factos
susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime em causa, quanto às
disposições legais aplicáveis e quanto às provas que fundamentam a acusação.
Assim nos parecendo ser, tais são as razões em que fundamentamos a presente
reclamação, a ser decidida em conferência pelo Tribunal Constitucional.
Para finalizar, requeremos que à presente reclamação seja junta certidão
integral dos autos.».
3 – Resulta ainda dos autos o seguinte quadro que se tem por
pertinente para a melhor compreensão da questão a decidir:
3.1 – No 1.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do
Porto foi apresentado, em 27 de Outubro de 2007, um auto de notícia por detenção
levada a cabo por um agente da PSP de A., onde, entre outros elementos
descritivos, se fez constar sob o item “Data da Ocorrência e Enquadramento:
data/hora: 2007-10-27/04:55h.Tipificação: crimes contra a segurança das
comunicações” e sob o item “Informações Complementares” que o arguido conduzia o
veículo referido no auto com uma taxa de 1,56g/l conforme teste feito no
aparelho Drager e controlo posterior feito na Secção de Acidentes da Divisão de
Trânsito.
3.2 – Por despacho de 27 de Outubro de 2007, o juiz do Tribunal de
Turno do Porto declarou a impossibilidade de realização de audiência imediata
(por inexistência de sala de audiências) e determinou que o “arguido seja
notificado para comparecer no próximo dia 29/10/2007, pelas 10 horas, no
Tribunal competente, a fim de aí ser julgado em processo sumário, art.º 387.º,
n.º 2, alínea a) do CPP”.
3.3 – Por despacho datado de 29 de Outubro de 2007, o juiz do
referido tribunal de pequena instância ordenou a vista dos autos “ao Ministério
Público, uma vez que no tribunal de turno foi apenas requerido o adiamento da
audiência, nos termos do art.º 387.º, n.º 2, alínea a) do CPP, não tendo sido
deduzida acusação”.
3.4 – Aberta vista nos autos, o Ministério Público escreveu:
“Visto. Reservamos para o início da audiência de julgamento o poder
de substituir a apresentação de acusação pela leitura do auto de notícia
elaborado pelo OPC detentor”.
3.5 – Concluídos os autos novamente ao juiz do referido tribunal de
pequena instância, este proferiu o despacho do seguinte teor:
«Não foi deduzida, até ao momento, acusação no processo, sendo certo que o Digno
Procurador Adjunto, no douto requerimento que antecede, se limita a referir que
reserva “ para o início da audiência de julgamento o poder de substituir a
apresentação de acusação pela leitura do auto de notícia elaborado pelo OPC
detentor”
Ora, se é certo que o auto de notícia contém factos susceptíveis de integrarem o
elemento objectivo do crime de condução em estado de embriaguez, o mesmo é, no
entanto, totalmente omisso quanto:
-- aos factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do mesmo 3 crime,
ou seja, a culpa na forma de dolo ou negligência, sendo certo que a
jurisprudência é unânime no entendimento de que tais factos devem constar da
acusação (vd., por todos, o Ac. da Relação de Guimarães de 07.04.2003, in CJ,
tomo li, págs. 291-294);
-- às disposições legais aplicáveis, já que se refere apenas “Tipificação:
Crimes contra a segurança das comunicações”;
-- às provas que fundamentam a acusação;
Conclui-se, assim, que pretendendo o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela simples leitura do auto de notícia, sem qualquer
“aditamento” que o complete nos aspectos supra referidos, deve a acusação ser
rejeitada por não conter a narração completa dos factos que integram a prática
do crime, não indicar as disposições legais aplicáveis nem as provas que a
fundamentam (cfr. arts. 283º, nº 3, als. b) a d) e 311º, nºs 2, al. a) e 3, als.
b), c) e d) do CPP).
Realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por acusação
apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio constitucional da
estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de
defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele auto, a
totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova.
Pelo exposto, determino a remessa dos presentes autos ao DIAP do Porto para
tramitação sob outra forma processual (art. 390º, al. a) do Cód. de Processo
Penal).
Notifique e transitado remeta.».
3.6 – Inconformado com este despacho, o Ministério Público interpôs
recurso dele para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da douta
decisão judicial proferida nos autos à margem referenciados, datada de 29 de
Outubro de 2007, vem, nos termos da alínea a), do nº 1 do artigo 280º, da
Constituição da República Portuguesa, do nº 1, do artigo 75-A, e, ainda, da
alínea a), do nº 1, do artigo 70º, estes da Lei do Tribunal Constitucional (Lei
nº 28/82. de 15 de Novembro. alterada pelas Leis nº 143/85, de 26 de Novembro;
85/89, de 07 de Setembro; 88/95, de 01 de Setembro; e 13/A/98, de 26 de
Fevereiro). interpor recurso directo para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, pois que a
decisão de que ora se recorre, que não admite recurso ordinário - cfr., artigo
391º, do Código de Processo Penal -, ao recusar a aplicação do artigo 389º, nº
2, do mesmo diploma legal, com os fundamentos que sustentou e remetendo os autos
para o DIAP, fez uma inconstitucional interpretação quer dos preceitos legais
que aplicou, quer do que se recusou a aplicar, na medida em que com essa sua
concreta actuação violou o princípio do caso julgado formal uma vez que voltou a
pronunciar-se acerca de urna questão já ultrapassada (leia-se, processualmente
precludida), no sentido de que relativamente a ela se encontrava já esgotado o
poder jurisdicional com o proferimento do anterior despacho judicial que
procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em processo sumário,
sendo certo que, a acolher-se a argumentação expendida no despacho judicial ora
recorrido, o que parcialmente se tenderia a conceder, deveria ter-se enveredado
por trilhar caminho diverso, iniciando a audiência e fazendo oportuno uso dos
mecanismos da alteração (substancial, parece-nos, porque a questão, na certeira
óptica da Mma. Juiz a quo, colocar-se-ia entre factos que. por serem
insuficientes, não integrariam qualquer crime, e factos que, se acrescentados de
outros. preencheriam já um tipo legal de crime) dos factos, o que, se nos
afigura que seria suficiente para, dando guarida aos propósitos de celeridade
subjacentes ao processo especial sumário, não deixar de salvaguardar ainda as
garantias de defesa do arguido.
Tendo o Ministério Público legitimidade para o efeito, requer-se a V. Exa se
digne admitir e encaminhar o presente recurso.».
3.7 – Foi sobre este requerimento que recaiu o despacho reclamado,
do seguinte teor:
«O Digno Procurador Adjunto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do
despacho de fls. 16, que ordenou a remessa dos presentes autos de processo
sumário ao DIAP do Porto, para tramitação sob outra forma processual, nos termos
do art. 390º, al. a) do Código de Processo Penal, por se ter entendido que a
acusação por mera remissão para o auto de notícia deveria ser rejeitada, nos
termos dos arts. 283º, nº 3, als. b) a d) e 311º, nºs 2, al. a) e 3, als. b), c)
e d) do Código de Processo Penal, já que o auto em causa, contendo embora factos
susceptíveis de integrarem o elemento objectivo do crime de condução em estado
de embriaguez, é totalmente omisso quanto aos factos susceptíveis de integrarem
o elemento subjectivo do mesmo crime, às disposições legais aplicáveis e às
provas que fundamentam a acusação.
*
Cabe a este tribunal, nos termos do art. 76º, nºs 1 e 2 da Lei 28/84, de 15/11,
na sua actual redacção, decidir sobre a admissibilidade do recurso, sendo certo
que este deve ser indeferido quando a decisão o não admita.
O recurso foi interposto nos termos dos arts. 280º, nº 1, al. a) da Constituição
da República Portuguesa e 70º, nº 1, al. a) da Lei de organização, funcionamento
e processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15/11, na sua actual
redacção).
De acordo com tais preceitos, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento
em inconstitucionalidade.
Ora, salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, indefiro o requerimento de recurso de fls. 19 nos termos do art.
76º, nº 2 da Lei 28/82, por entender que a decisão em causa o não admite.
Notifique o MP.».
4 - O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
B – Fundamentação
5 – O despacho reclamado não admitiu o recurso de
constitucionalidade por haver entendido que o “despacho recorrido não recusa,
expressa ou implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do
regime jurídico de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa abriria com este
específico fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional”.
Ora, não pode deixar de acompanhar-se este juízo.
Na verdade, não se descortina em ponto algum da decisão pretendida
recorrer para o Tribunal Constitucional qualquer pronúncia, seja expressa, seja
implícita, no sentido de recusar a aplicação ao caso concreto de determinada
norma jurídica, como seja aquela que o reclamante invoca – a norma do art.º
389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Da decisão não consta qualquer afirmação verbal no sentido de
recusar a aplicação de tal norma.
Também não se vê que da argumentação expendida para fundamentar a
não realização do julgamento do arguido sob a forma de processo sumário e a
remessa dos autos ao DIAP do Porto resulte como estando necessariamente
pressuposto um juízo de recusa de aplicação do referido preceito do art.º 389.º,
n.º 2, do CPP com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Antes de mais, o despacho pretendido recorrer inferiu o critério
normativo com base no qual concluiu pela impossibilidade de realização do
julgamento do arguido em processo sumário apenas dos “art.ºs 283.º, n.º 3, als.
b) a d) e 311.º, nºs 2 e 3, als. b), c) e d) do CPP” e não também do art.º
389.º, nº 2, do mesmo compêndio normativo.
Por outro lado, o mesmo despacho convoca os princípios
constitucionais da “estrutura acusatória do processo criminal” e das “garantias
de defesa do arguido” apenas para estribar a bondade da determinação feita, no
plano do direito infraconstitucional, do critério normativo a que aportou na
actividade judicativa de interpretação daqueles preceitos.
Mas em tal juízo não vai implicada qualquer decisão no sentido de
recusar a aplicação do art.º 389.º, n.º 2, do CPP por violar esses ou outros
princípios constitucionais.
O reclamante confunde a ponderação, na actividade de interpretação
da lei, a par de outros, dos argumentos sistemáticos de base constitucional com
a formulação de qualquer juízo de invalidade constitucional desse critério e a
sua recusa de aplicação.
Igualmente não é possível ver na não aplicação do critério normativo
que o reclamante tem por ajustado à decisão do caso concreto – a não aplicação
do art.º 389.º, n.º 2, do CPP, na acepção defendida pelo reclamante – qualquer
recusa de aplicação do mesmo preceito como fundamento em inconstitucionalidade.
Acresce, ainda, que a circunstância de a decisão pretendida recorrer
poder conduzir, na óptica do reclamante, a uma violação do caso julgado formal,
não releva para daí se poder concluir que a decisão operou uma recusa de
aplicação do art.º 389.º, n.º 2, do CPP.
Tal aspecto apenas relevará no plano da bondade da solução
interpretativa a que o tribunal chegou e da correcção da sua aplicação ao caso
concreto.
Todavia, estes são já aspectos que fogem à competência sindicante do
Tribunal Constitucional: é que não lhe cabe conhecer do mau direito, mas apenas
do não direito.
Temos, pois, de concluir pelo indeferimento da reclamação.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Sem custas, por delas estar isento o reclamante.
Lisboa, 14.01.2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos