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Processo n.º 438/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. e Outro, inconformados com a decisão da 1.ª Vara Criminal do Tribunal do
Porto que os condenou como autores materiais de um crime de infracção de regras
de construção, recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, o qual veio a
confirmar a decisão recorrida.
Nesse Acórdão, os Exmos. Desembargadores abordaram a questão da
inconstitucionalidade do crime previsto no artigo 277.º, n.º 1, alínea b), do
Código Penal, nos seguintes termos:
“A propósito da norma penal em branco, temos de convir que não existe uma
uniformidade do que se deve entender como tal, havendo quem prefira um conceito
amplo, que consistirá em toda e qualquer descrição incompleta de uma norma
penal, independentemente da sua concretização, enquanto um conceito mais
restrito considera apenas como tal as normas penais que remetem a integração da
sua previsão para fontes normativas inferiores ou mesmo administrativas ―
veja-se a propósito Teresa Beleza e F. Costa Pinto, no seu ‘O regime legal do
erro e as normas penais em branco’ (2001), p. 31. assim como a doutrina e a
jurisprudência aí referida.
Por sua vez, a inconstitucionalidade decorrente de uma norma legal em branco
está relacionada com o princípio da legalidade, contido no art. 29.°, n.º 1 da
C. Rep., segundo o qual ‘Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em
virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer
medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.’
[…].
Como corolário deste princípio temos o princípio da tipicidade, o qual impõe que
o comportamento subsumível a uma norma penal — ou contra-ordenacional — esteja
suficiente e autonomamente formulado no respectivo tipo legal, de modo que
aquando da sua aplicação seja possível efectuar um controlo objectivo.
[…]
A propósito deste crime do art. 277.° e outros, sem pôr em causa a sua
constitucionalidade, já se escreveu que se trata de situações ‘porventura
inevitáveis em função das artes técnicas envolvidas’, justificadas ‘quer para
evitar descrições excessivamente pormenorizadas dos tipos de ilícito, quer pela
inclusão no Código Penal de um número considerável de novas incriminações
associadas ao desenvolvimento da sociedade técnica e pós-industrial do séc. XX’
– Tereza Beleza e F. Costa Pinto, ob. cit., p. 50.
Ora a descrição objectiva e subjectiva do crime de dano de regras de construção,
tal como está tipificado no art. 277. °, n.° 1, al. b), mormente na sua parte
final, que é o que está aqui em causa, é suficientemente expressiva, apreensível
e entendível para a normalidade dos cidadãos, pelo que a remissão que se faz
para as regras legais, regulamentares ou técnicas aí expressas não padece de
qualquer vício de inconstitucionalidade.”
Vieram os Recorrentes arguir a nulidade do Acórdão da Relação, o que foi julgado
improcedente.
2. Subsequentemente, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, que
veio a ser admitido por despacho de fls. 1622, para apreciação:
“1. Do art. 277°, n° 1, alínea b) do Código Penal no sentido de que essa norma,
enquanto norma penal ‘em branco’ que indiscutivelmente é, possa remeter para
norma que não seja lei ou decreto-lei aprovado com autorização legislativa.
2. Do art. 277°, n° 1, alínea b) do Código Penal no sentido de que essa norma,
enquanto norma penal ‘em branco’ que indiscutivelmente é, possa remeter para
normas que prevejam, por si, sanções, agravando essas sanções.
3. Do Decreto-Lei 155/95, mormente dos seus arts. 3°, alíneas e) e h) e 6°, n° 4
e da Portaria 101/96, no sentido de que estas normas são aplicáveis por
analogia, como sustentáculo de uma condenação penal, a trabalhos de elevadores.
4. Do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil aprovado pelo
Decreto 41821, mormente do seu art. 30°, no sentido de que estas normas são
aplicáveis por analogia, como sustentáculo de uma condenação penal, a elevadores
e não só a plataformas suspensas de construção civil.”
Notificados para produzirem alegações, concluíram então do seguinte modo:
“I – É inconstitucional orgânica e materialmente, por violação dos arts. 165°,
n° 1, alínea c) e 29°, n° 1 da Constituição, a interpretação (como a do Acórdão
recorrido) segundo a qual uma norma penal em branco, como a do art. 277°, n° 1,
alínea b) do Código Penal, pode remeter para norma que não seja Lei ou
Decreto-Lei aprovado com autorização legislativa.
II – É inconstitucional por violação do princípio da lei penal mais favorável
(decorrência do art. 29°, n° 1 da Constituição) a interpretação como a que faz o
Acórdão recorrido de uma norma penal em branco, como a do art. 277°, n° 1,
alínea b) do Código Penal, no sentido de que pode remeter para normas que
prevejam, per se, sanções, agravando essas sanções.
III – É inconstitucional por violação da proibição de analogia, resultado do
princípio nulla poena sine lege certa, consagrado no art. 29°, n° 1 da
Constituição, a aplicação feita pela Acórdão recorrido do Decreto-Lei 155/95 e,
consequentemente da Portaria 101/96, aos trabalhos de elevadores (que são do
campo das engenharias mecânica e electrotécnica, não se englobando na categoria
de construção de edifícios, de engenharia civil e de apoio directo àquelas, e
sujeitos à legislação própria) para concretização das normas regulamentares a
que se refere a norma penal em branco que é o art. 277°, n.º 2 do Código Penal.
IV – É inconstitucional por violação de proibição de analogia a interpretação
feita pelo Acórdão recorrido segundo a qual a expressão ‘aparelhos elevatórios’
constante do n° 8 do Anexo 1 do Decreto-Lei 155/95 – que se refere aos aparelhos
de elevação usados na construção de edifícios, incluindo monta-cargas de obra
(arts. 134° e segts. do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil
aprovado pelo Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958) – se aplica também a
elevadores de passageiros que não podem ser usados na construção de edifícios.
V – É inconstitucional igualmente por violação do princípio da proibição da
analogia a responsabilização feita pelo Acórdão recorrido dos Recorrentes, pelo
plano de segurança e saúde de obra, por atribuição analógica da qualidade de
coordenador de segurança e saúde e de director de obra – pessoas a quem o
Decreto-Lei 155/95, no seu art. 6º, nº 4 atribui estas responsabilidades.
VI – É inconstitucional ainda, por violação daquele mesmo proibição da analogia,
a aplicação a elevadores do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção
Civil feita pelo Acórdão recorrido respectivo, nomeadamente o seu art. 30°, que
se aplica a plataformas suspensas. Existindo normas aplicáveis aos elevadores,
inexiste lacuna que tenha de ser integrada por recurso à analogia com essa
norma, analogia que sempre estaria vedada em direito penal.
VI – Um perigo criado por negligência só pode advir de urna conduta negligente,
pelo que o n° 2 do art. 277° do Código Penal, por inconstitucional, viola o art.
29°, n° 1 da Constituição e deve ser alvo de interpretação abrogante, incorrendo
o Acórdão recorrido em inconstitucionalidade por violação da aplicação da lei
penal mais favorável ao manter este n° 2 como fundamento da pena aplicada aos
Recorrentes.”
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, suscitou questões prévias
conducentes à não admissibilidade do recurso e pronunciou-se no sentido da
improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Por não terem sido suscitadas de forma processualmente adequada, face ao
disposto no n° 2 do artigo 72° da LTC, não poderá o Tribunal Constitucional
conhecer das questões a que se reportam os pontos III, IV, V e VI das conclusões
apresentadas pelos recorrentes.
2. A norma resultante do artigo 277°, n° 1, alínea b), n° 2 e n° 3 do Código
Penal, possui um grau suficiente de clareza e determinabilidade, contendo em si
todos os elementos essenciais e relevantes que caracterizam o tipo legal de
crime aí estabelecido, não tendo sido interpretada e aplicada em desconformidade
com a Constituição, designadamente, com os seus artigos 29° e 165°, n° 1, alínea
c).
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
3. Notificados do teor da resposta do Ministério Público, pronunciaram-se os
Recorrentes no sentido do conhecimento e consequente procedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II ― Fundamentos
A)
Delimitação do objecto do recurso
4. Somente as questões enunciadas no requerimento de interposição do recurso
podem integrar o objecto do recurso de constitucionalidade. Ora, no que se
refere aos pontos 3 e 4 desse requerimento, facilmente se constata que o seu
teor se afigura como impertinente já que a questão de inconstitucionalidade,
nesta parte, não foi suscitada de modo processualmente adequado perante o
Tribunal que proferiu a decisão recorrida (nos termos previstos no artigo 72.º,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Pelo que, relativamente a esses
segmentos, não pode haver lugar ao conhecimento do recurso por falta de
pressupostos.
5. Consta-se igualmente que não se pode conhecer da questão de
constitucionalidade consignada no ponto 2 do requerimento de interposição do
recurso. Com efeito, a norma constante do artigo 277.º, n.º 1, alínea b), do
Código Penal, remete para outras normas legais e regulamentares, vindo, por esta
forma, a integrar, nas condutas descritas, o aludido tipo legal de crime.
Das normas legais e regulamentares convocadas e aplicadas pelo Tribunal
recorrido resulta que a pena que esse Tribunal considerou aplicável foi a
prevista no artigo 277.º, n.º 1, do Código Penal. Nestes termos, a dimensão
normativa sujeita pelos Recorrentes à sindicância deste Tribunal não foi
aplicada como ratio decidendi.
B)
Apreciação do objecto do recurso
6. Será, pois, de considerar, apenas, o primeiro ponto referenciada no
requerimento de interposição de recurso, com o seguinte dizer:
[Interpretação efectuada] Do art. 277º, nº 1, alínea b) do Código Penal no
sentido de que essa norma, enquanto norma penal “em branco” que
indiscutivelmente é, possa remeter para norma que não seja lei ou decreto-lei
aprovado com autorização legislativa
7. No que concerne à alegada inconstitucionalidade orgânica adiante-se desde já
que não se verifica qualquer violação do princípio da legalidade, na sua
vertente de reserva de lei. Com efeito, não é relevante a norma legal ou
regulamentar encontrar-se inserida em diploma sem força legal bastante (lei ou
decreto-lei autorizado). O que releva é que a lei remetente – essa sim – revista
a necessária força legal bastante, o que, inequivocamente, sucede com a norma
constante do artigo 277.º, n.º 1, do Código Penal.
8. Da simples leitura do artigo 277.º, n.º 1, do Código Penal verifica-se que a
aludida norma estabelece que a conduta do agente aí prevista comporta quatro
vertentes distintas: a) violação das regras de construção, isto é, a violação de
regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas nas várias
fases da construção; b) destruição ou danos em meios ou aparelhagem destinados a
prevenir acidentes e violação de regras que impõem a instalação de tais meios ou
aparelhagem; c) dano ou destruição de instalações; d) perturbação do
funcionamento de serviços.
Assim, no que se reporta ao segmento em questão (artigo 277.º, n.º 1, alínea
b)), o tipo legal de crime é preenchido pela infracção de leis ou regulamentos.
Com efeito, da sentença condenatória extrai-se a conclusão de que os Recorrentes
foram condenados como autores de um crime previsto e punido pelos artigos 277.º,
n.º 1, alínea b), e n.ºs 2 e 3, e 285.º, do Código Penal, com referência ao
artigo 30.º, do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958 (que aprovou o
Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil), artigos 6.º, n.º 3, e
14.º, do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, e n.º 11 da Portaria n.º 101/96,
de 3 de Abril.
Dispõe o mencionado artigo 30.º, do Regulamento acabado de referir que todas as
faces das plataformas suspensas deverão ter guardas com a altura mínima de 0,90
m, não podendo os espaços livres permitir a passagem de peões. O artigo 6.º, n.º
3, do Decreto-Lei n.º 155/95, citado, estipula que, sempre que se preveja a
realização de trabalhos que impliquem riscos especiais para a segurança e saúde,
nos termos do anexo II ao mesmo diploma, o plano de segurança e de saúde deve
incluir medidas adequadas a tais riscos, remetendo o artigo 14.º a
regulamentação das regras técnicas de concretização das prescrições mínimas de
segurança para portaria. Trata-se da também citada Portaria n.º 101/96 cujo n.º
11 estabelece que, sempre que haja riscos de quedas em altura, devem ser
adoptadas medidas de protecção colectiva adequada e eficazes ou, na
impossibilidade destas, de protecção individual, nos termos da legislação
aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção
Civil.
Daí que nas situações em que exista disposição legal ou regulamentar a mesma
integra o tipo legal de crime em questão, pelo que o agente que não observe a
mencionada disposição legal ou regulamentar vem, com a sua conduta, a preencher
o assinalado tipo legal de crime.
Resulta portanto que a norma em análise não padece de qualquer indeterminação ou
incompletude, respeitando o princípio constitucional da legalidade penal.
9. Em suma, tal como foi interpretada pela decisão recorrida, a norma do artigo
277.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, face ao reenvio normativo que efectua
para outras regras legais e regulamentares, em nada contradiz o princípio da
legalidade criminal, não assistindo assim razão aos Recorrentes.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante às
questões invocadas nos pontos 2 a 4 do requerimento de interposição de recurso;
b) Negar provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UCs.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos