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Processo n.º 316/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I- Relatório
1.O Ministério Público acusou A., em processo sumário, perante o
Tribunal de Comarca de Matosinhos (Juízos Criminais), imputando‑lhe a prática de
um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições
conjugadas do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada e do n.º 2 do artigo
348.º do Código Penal (desobediência qualificada).
O arguido veio a ser absolvido, por sentença de 10 de Janeiro de
2007, apesar de se ter considerado provado que, no dia 3 de Janeiro de 2007,
conduzira um motociclo na via pública, não sendo portador de licença de
condução, dado que a tinha entregue, na véspera, na Direcção-Geral de Viação, a
fim de cumprir a sanção de 30 dias de inibição de conduzir que lhe tinha sido
imposta no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 352349158.
A sentença absolutória tem a seguinte fundamentação:
“É imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de
um crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artºs. 138º do Código
Estrada e 348º n.º 2, do CP.
Antes de entrar na subsunção dos factos ao Direito cumpre apreciar uma questão
prévia que, a proceder, impedirá que o Tribunal entre na apreciação do mérito. E
essa questão é a da existência de eventual inconstitucionalidade da norma
vertida no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada.
Isto a propósito das diferenças de redacção (numa norma que se pode considerar
verdadeiramente penal) dos artºs. 139º, nº.4 dos DL 2/98, de 03/01 e DL
265‑A/2001, de 28/09 e 138º, n.º 2, do DL 44/2005, de 23/02.
Como é consabido, a definição de determinadas acções ou omissões como matéria
penal é matéria de competência reservada da Assembleia da República, pelo que
quando o Governo pretende tipificar determinados comportamentos como ilícitos
criminais só o pode fazer mediante lei de autorização legislativa – lei de
autorização legislativa que obrigatoriamente especificará o objecto da
autorização, consubstanciando uma relação de conformidade entre a lei
autorizante e o decreto-lei autorizado. Quando assim não sucede, isto é, quando
existe decreto-lei a tipificar comportamentos como crimes sem que sejam
precedidos de leis de autorização legislativa então poder-se-á estar perante uma
hipótese de inconstitucionalidade orgânica.
No dizer do Tribunal Constitucional, nestas hipóteses a lei de autorização
legislativa representa o parâmetro superior.
No caso concreto a legislação aplicável é a emergente do novo Código da Estrada,
ou seja, o regime emergente do DL 44/2005. A lei de autorização legislativa
subjacente a este diploma nada refere no que respeita à (re) tipificação ou
alteração do tipo inscrito no artigo 138º, n.º 2 do Código da Estrada
actualmente em vigor em relação às anteriores (supra-referidas) versões do
diploma em causa. Ou seja, da leitura comparada do artigo 138º, n.º 2, nas
versões actual e anterior, verifica-se que a redacção de ambas não é exactamente
igual, pelo que se verificou uma alteração nos elementos descritivos do tipo
subjacente. Ora, a Lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 04/11, não
autorizou o Governo a tipificar quaisquer condutas como ilícitos penais
(ex-novo, portanto) ou sequer a alterar nos seus elementos um tipo já existente.
Por isso, a necessidade de clara tipificação nestas matérias em lei de
autorização legislativa não se compadece com o arbítrio de interpretação do
parâmetro inferior que representa o decreto-lei autorizado. A reserva exclusiva
parlamentar nestas matérias reclama que a lei autorizante seja absolutamente
clara e apertada.
O que significa, pois, nesta nossa interpretação, que jamais houve autorização
legislativa para alterar o artigo 138º, n.º 2, do Código da Estrada, no que
respeita aos elementos nele agora enunciados, pelo que esta norma deve ser tida
como organicamente inconstitucional, devendo ser recusada a aplicação do artº
138º, n.º 2, do Código da Estrada.
Com a recusa de aplicação da referida norma, com o sentido apontado, falece em
absoluto o objecto da acusação, pelo que o arguido deve ser absolvido do crime
pelo qual vem acusado.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Apresentou oportunamente alegações, acolhendo-se às razões do
acórdão n.º 574/2006 deste Tribunal, em que se decidiu no sentido da
inconstitucionalidade orgânica da mesma norma, e conclui nos termos seguintes:
“Na falta de prévia autorização parlamentar para legislar sobre matéria
constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, não podia o Governo
emitir, tal como o fez, a norma do artigo 138.º, n.º 2 do Código da Estrada na
redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, pelo que
deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da
decisão recorrida.”
O recorrido não alegou.
II - Fundamentos
3. Invocando a autorização legislativa concedida pela Lei n.º
53/2004, de 4 de Novembro, e o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo
198.º da Constituição, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, veio dar
nova redacção a vários preceitos do Código da Estrada (artigo 1.º). Entre as
matérias que foram objecto de alteração avulta o regime de sancionamento dos
ilícitos estradais. Neste capítulo, se insere o artigo 138.º que, na nova
redacção, passou a dispor (sublinhada a disposição sobre que incide a
controvérsia):
Artigo 138.º
Sanção acessória
1 - As contra-ordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com
sanção acessória.
2 - Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por
sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique
uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.
3 - A duração mínima e máxima das sanções acessórias aplicáveis a outras
contra-ordenações rodoviárias é fixada nos diplomas que as prevêem.
4 - As sanções acessórias são cumpridas em dias seguidos.
Na redacção imediatamente anterior do Código da Estrada, esta
matéria estava regulada no artigo 139.º, que tinha a seguinte redacção (também
sublinhada a norma em que se punia a condução de veículos automóveis no período
de cumprimento da sanção acessória):
Artigo 139.º
Inibição de conduzir
1- As contra-ordenações graves e muito graves são sancionadas com coima e com
sanção acessória de inibição de conduzir.
2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de
um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável
às contra ordenações graves ou muito graves, respectivamente.
3 - A sanção de inibição de conduzir é cumprida em dias seguidos e refere-se a
todos os veículos a motor.
4 - Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por
desobediência qualificada.
Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente
numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes
diferenças entre os textos legais em comparação:
i) onde anteriormente se dizia: “Quem conduzir veículo a motor …”,
agora diz-se: “ Quem praticar qualquer acto”;
ii) onde se dizia: “ ….estando inibido de o fazer”, passou a dizer-se
: “ …estando inibido ou proibido de o fazer”.
Mantém-se a estatuição: a conduta tipificada era e continua a ser
punida como crime de desobediência qualificada.
O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência
qualificada prevista no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o
agente que conduza estando inibido de o fazer por força de decisão
administrativa ou judicial, como sanção acessória de contra-ordenação (anterior
n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada), mas também a conduta do individuo
que viole, no domínio rodoviário, as proibições ou interdições que resultem da
imposição de pena acessória por sentença criminal (artigo 353.º do Código
Penal). Unificou-se a punição criminal de condutas que se traduzam em
desrespeito de decisões judiciais ou administrativas que imponham ao agente
proibições ou inibições de conduzir ou outras condutas no domínio da circulação
rodoviária, seja qual for a natureza da infracção (crime ou contra-ordenação)
cuja prática pelo agente levou a essa proibição de agir ou a natureza da decisão
que a impôs (decisão judicial ou administrativa).
Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte
(dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao
anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a
manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento
da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção
acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos
mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão “qualquer acto”.
E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por
proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena
acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio
geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença
criminal.
4. Foi com esta interpretação que o acórdão n.º 574/2006 (publicado
no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro) confirmou o juízo de
inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência
legislativa constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição,
formulado pela sentença que nesse processo estava em reapreciação.
Com efeito, na Lei n.º 53/2004 não se vislumbra autorização ao
Governo para, como se diz na sentença agora em apreciação, proceder à
'(re)tipificação ou alteração do tipo inscrito no artigo 138.º, n.º 2, do Código
da Estrada actualmente em vigor', ou seja, para alterar o que constava da
anterior versão do mesmo Código no domínio da definição de crimes e penas
criminais, como seria necessário para que o Governo pudesse legislar nesta
matéria, face à reserva relativa de competência legislativa estabelecida pela
alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Todavia, não pode interpretar-se esse acórdão, em que se decidiu
'confirmar o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão
recorrida', como comportando um juízo de inconstitucionalidade do n.º 2 do
artigo 138.º do Código da Estrada, em toda a sua extensão normativa.
Na verdade, o que o despacho então recorrido recusara aplicar, por
organicamente inconstitucional, fora “a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código
da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2005, na interpretação
segundo a qual comete um crime de desobediência qualificada todo aquele que
conduzir um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena
acessória aplicada por sentença criminal transitada em julgado”. Estava, pois,
em causa o desrespeito da proibição de conduzir veículos automóveis imposta como
pena acessória por uma anterior sentença criminal. E essa é, por contraposição
ao anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, uma das “zonas de não
sobreposição”. Este alcance restrito do julgamento do referido acórdão ressalta
da seguinte passagem:
'A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses
distintas e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à
variação relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos
tipificados, com consequências para os comportamentos que agora são abrangidos.
Com efeito, o nº 4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao
Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência
qualificada para quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por
sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo
que o nº 2 do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar
qualquer acto, quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer.
Independentemente de saber se, noutras hipóteses em que não existisse
[existisse?] uma exacta coincidência de factualidade típica, ainda assim por
razões de ilicitude material se teria de reconhecer o carácter inovatório da
norma em causa, o certo é que, no presente caso, o agente violou a proibição de
condução de veículo a motor decorrente da sanção acessória aplicada por sentença
transitada em julgado que o condenou por crime rodoviário. Como se verifica, não
existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas
incriminadoras'.
5. Sucede que a situação agora em apreciação é diversa.
Imputou-se ao arguido e considerou-se provada a condução de um
ciclomotor na via pública no período de cumprimento de sanção acessória de
inibição de conduzir imposta por decisão administrativa em processo de
contra-ordenação. Consequentemente, a dimensão ou o segmento normativo do n.º 2
do artigo 138.º relevante não coincide com aquele que se julgou inconstitucional
no acórdão n.º 574/2006. A situação respeita à violação da inibição de conduzir
imposta como sanção acessória por contra-ordenação estradal, conduta que já
estava prevista na redacção anterior do Código da Estrada como constituindo
crime de desobediência qualificada, ou seja, o segmento normativo do n.º 2 do
artigo 138.º em causa no presente recurso corresponde a uma “zona de
sobreposição” total com o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão
anterior àquela a que o Decreto-Lei n.º 44/2005 deu corpo.
Assim, reconduzindo o objecto do recurso à dimensão normativa
relevante, como é próprio do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, importa saber se é organicamente inconstitucional a norma
do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção emergente do
Decreto-Lei n.º 44/2005, enquanto pune como crime de desobediência qualificada
quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada
em julgado ou decisão administrativa definitiva, como sanção acessória de
contra-ordenação.
6. Há dois aspectos essenciais que podem afirmar-se sem maior
demonstração, uma vez que as considerações que a sentença recorrida faz a este
propósito não são postas em dúvida por qualquer dos sujeitos processuais e se
subscrevem, a saber:
- A Lei n.º 53/2004 não conferiu credencial ao Governo para legislar
em matéria de definição de crimes ou penas criminais, porque dela não consta
qualquer referência a esta matéria, como o Tribunal já considerou no acórdão n.º
574/2006 e se reitera;
- A norma que qualifica determinada conduta como fazendo incorrer o agente em
crime de desobediência qualificada (a disposição legal a que se refere o n.º 2
do artigo 348.º do Código Penal) consubstancia ainda a definição de crime, pelo
que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o
artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição (cfr. Acórdão n.º 256/2002,
publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 2002).
Estamos, portanto perante uma norma que pertence ao domínio de
reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e que foi
inserida em acto legislativo da autoria do Governo sem que exista credencial
parlamentar específica.
7. Todavia, nem por assim ser tem de concluir-se necessariamente pela
inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em
jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo
aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva
relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e
automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de
inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas
sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que
até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir
substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão
de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02,
450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da
República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de
Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de
Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário)
publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda,
aliás com posição discordante, a indicação de jorge miranda, Manual de Direito
Constitucional, tomo V, págs. 234/235).
Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva
relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa
concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera
verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo
também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo
texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.
Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma
editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de
competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se
vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa
primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da
Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no
ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do
Governo.
A este propósito mantém-se válida a exposição que o acórdão n.º 299/92, Diário
da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1992, faz dos contornos da
jurisprudência do Tribunal:
“(…)
Com efeito, numa primeira fase, o Tribunal Constitucional apenas julgou
inconstitucionais as normas que, versando sobre matéria integrada na reserva de
competência legislativa da Assembleia da República, fossem inovatórias.
Uma tal visão das coisas decorria do entendimento já perfilhado pela Comissão
Constitucional (cf. Pareceres n.ºs 2/79, 31/79, 24/80, 29/80, 3/82, 12/82 e
17/82, publicados nos volumes que coligiram os pareceres daquela Comissão,
respectivamente 7.º vol., p. 189, 10.º vol., p. 59, 13.º vol., pp. 129 e 249,
18.º vol., p. 141, e 19.º vol., pp. 113 e 253) e reiterado pelo Tribunal
Constitucional, entre outros, nos seus Acórdãos n.ºs 1/84 (publicado no Diário
da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1984), 56/84 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984), 142/85 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 7 de Setembro de 1985), 212/86 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1986), 254/86 (publicado no Diário da
República, 2.ª série, de 26 de Novembro de 1986), 67/87 (publicado no Diário da
República, 2.ª série, de 16 de Abril de 1987) e 423/87 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 26 de Novembro de 1987), segundo o qual não originaria
inconstitucionalidade orgânica a produção pelo Governo de decretos-leis não
autorizados em matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da
República, desde que o Governo se limitasse a compilar e reproduzir a legislação
vigente. Nestes casos, em que o Governo se limitava a reproduzir o texto de
disposições em vigor, em nada alterando, acrescentando ou retirando ao que antes
já estava legislado, tudo se passaria como se o legislador governamental se
tivesse mantida inactivo em tal matéria, abstendo-se de legislar.
Desenvolvendo e precisando os contornos de tal entendimento, o Tribunal
Constitucional, no seu Acórdão n.º 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª
série, de 29 de Abril de 1988), introduziu uma nuance na formulação daquele
entendimento, ao sublinhar, num enfoque mais sensível a argumentos de ordem
sistemática, a relevância da «vocação global» do diploma onde as normas
reproduzidas se inserem para efeitos do juízo de constitucionalidade. Ai se
escreve que, «se é inegável que num conjunto não despiciendo de disposições do
diploma em apreço o legislador governamental se limitou a reproduzir e
‘sistematizar’ direito vigente, não é menos certo que o que sobreleva nessa
intervenção legislativa é, por um lado, o seu propósito de modificar pontos de
fundamental relevância no regime jurídico em causa e, por outro lado, o seu
significado e alcance global.
[…]
Ora, nestas condições, não faz sentido aplicar na espécie a orientação
jurisprudencial atrás citada e restringir o juízo de inconstitucionalidade
apenas às normas desse diploma efectivamente modificadoras do regime legal
anterior: a verdade é que se está perante uma intervenção global, e de fundo, do
legislador governamental em matéria que entra por inteiro na reserva
parlamentar».
Esta argumentação viria a ser retomada nos Acórdãos n.ºs 111/88 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1988), 8/89 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1989), 407/89 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989) e 414/89 (publicado
na 1.ª série do jornal oficial de 3 de Julho de 1989) e, mais recentemente, nos
Acórdãos n.ºs 372/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de
Novembro de 1991) e 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de
Novembro de 1991) embora neste último caso com dois votos de vencido …”.
Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora
recorrido, eram punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do
artigo 139.º do Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que
se insere a norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser
punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na
nova versão do Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a
alteração da epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais
preceitos do Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico
protegido ou quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta
conduta. Nesta parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o
cumprimento das decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir
pela prática de contra-ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve
aqui intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas
as condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em
consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a
intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva
relativa da competência da Assembleia da República não gere
inconstitucionalidade orgânica.
Nestas circunstâncias, o Tribunal Constitucional não considera
violado o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pela
norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na parte (dimensão ou
segmento ideal) em que pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo
a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de
contra-ordenações, pelo que o recurso merece provimento.
III - Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código
da Estrada, enquanto pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a
motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de
contra-ordenações;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora
decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão