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Processo nº 240/2007
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A., Ld.ª, instaurou no Tribunal Cível do Porto acção declarativa de
condenação, sob a forma de processo sumário, contra B., Ld.ª, pedindo que a ré
fosse “condenada a pagar à autora a quantia de 14.000,00 euros, acrescida de
juros, à taxa de 9,25%, desde a citação, e no mais legal”.
Por despacho de 13 de Dezembro de 2006, a 1.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Porto
decidiu que “a presente acção declarativa passa a seguir os termos do processo
comum sumário, em conformidade com a indicação feita pela autora na petição
inicial e o disposto nos arts. 462.º e 783.º e segs. do CPC, devendo submeter-se
os autos a nova distribuição, agora sob a 2.ª espécie, dando-se baixa da
anterior (cfr. arts. 220.º, a), 221.º e 222.º, todos do CPC).”
Para assim concluir, a decisão recorrida recusou “a aplicação do artigo único da
Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, assim como a norma correspondente ao
art. 21.º do DL n.º 108/2006, de 08/06, na interpretação de que constitui
autorização suficiente para implementação da medida acolhida pelo Ministro da
Justiça através da dita Portaria, por se considerar que ambas as normas violam o
princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP e, consequentemente, não
aplicar a esta acção o regime processual civil experimental aprovado pelo cit.
Decreto-Lei.”
Nos termos da respectiva fundamentação, “a questão que necessariamente se impõe
é a de saber se há ou não razões juridicamente válidas que justifiquem a
imposição e, simultaneamente, limitação da aplicação a um tão escasso número de
tribunais com competência cível, o mesmo é dizer, em função das regras da
competência territorial previstas nos artigos 73.º, 74.º, 76.º, 85.º a 87.º e
89.º, todos do CPC, a um tão escasso número de cidadãos e empresas de um Estado
de Direito democrático como é a República Portuguesa (art. 2.º da CRP).” O
tribunal a quo confessa a sua “total perplexidade perante o elenco e natureza
dos argumentos utilizados para fundamentar a desigualdade de tratamento de
cidadãos e empresas no plano do exercício de direitos e interesses subjectivos
através do recurso aos tribunais. Julgamos mesmo que tais argumentos, assentes
em meras considerações de natureza abstracta, vaga e imprecisa, estão muito
longe de constituir justificação objectiva e racional para o que quer que seja.”
“Antes de mais, temos por historicamente adquirida a ideia de que a mera
localização territorial das causas, que por sua vez é consequência da
localização das pessoas, das coisas ou dos interesses considerados relevantes,
não poderá nunca constituir critério legítimo, ao menos num Estado de Direito
Democrático e Unitário, para fundamentar a aplicação de diferentes formas de
processo ao mesmo tipo de causas, o mesmo é dizer de diferentes conjuntos de
actos estruturados, fundados em concepções diversas quanto aos meios mais
adequados para alcançar a justa composição jurisdicional de conflitos de
interesses de igual natureza.” Pelo que questiona: “Na verdade, como poderá
entender-se que uma acção de despejo, pelo simples facto de ter por objecto um
imóvel situado no Porto, assuma necessariamente tramitação diversa da assumida
por uma acção de despejo que tenha por objecto um imóvel situado em Vila Nova de
Gaia, ou Vila Velha de Ródão, ou Vila Flor?!”
O tribunal a quo acrescenta: “Mas, mesmo à luz dos critérios de selecção
alinhados na portaria em análise, a eleição dos quatro únicos referidos
tribunais com competência para aplicação obrigatória do RPCE não pode deixar de
merecer a qualificação de acto destituído de justificação racional e objectiva
e, por isso, arbitrário.” E mais adiante na fundamentação questiona: “À luz dos
critérios tidos pela portaria como legítimos para justificar a diferença de
tratamento de cidadãos e empresas no processo de obtenção de resolução de um
litígio de interesses particulares através dos tribunais, como compreender
racionalmente que
na área metropolitana do Porto apenas os juízos cíveis e os juízos de pequena
instância cível reúnam os requisitos indispensáveis ao merecimento da aplicação
do novo regime processual?” “E que dizer, no que respeita à área metropolitana
de Lisboa, quando se considera que apenas os juízos cíveis de Almada e Seixal
merecem ter papel activo em tão maravilhosa experiência legislativa dos tempos
modernos?!”
Ainda segundo a decisão recorrida, “está bom de ver que o carácter experimental
do regime em causa não tem qualquer virtualidade para fundamentar objectiva e
racionalmente uma resposta positiva à questão enunciada em III).” “Na verdade, o
regime em causa não é nem mais nem menos experimental do que qualquer outro
regime, no sentido de que enquanto vigorar no ordenamento jurídico nacional,
produzirá inevitavelmente efeitos jurídicos concretos, afectando,
consequentemente, o equilíbrio das relações jurídicas de toda a comunidade. Como
qualquer outro regime legal em vigor, estará inevitavelmente sujeito a
permanente juízo de avaliação de conformidade político-legislativa, podendo ser
objecto de revisão ou revogação a todo o tempo por órgão constitucionalmente
competente para o efeito.” “A originalidade da experimentação está, afinal, tão
só, no facto de se aplicar apenas a algumas causas em tribunal, deixando de fora
causas do mesmo tipo.” “Assim sendo, é o próprio carácter experimental do novo
regime, na definição que ele mesmo apresenta, que se assume como razão de ser da
desigualdade de tratamento materialmente infundada que vimos evidenciando.
Dizendo de outro modo, fundamentar a discriminação de tratamento no seu carácter
experimental significa qualificar tal experiência como discriminatória e, por
isso, intolerável.” “Aplicar ao caso dos autos o RPCE, ou o regime do processo
sumário previsto no CPC (aplicável a iguais causas nas demais comarcas do país,
com excepção das comarcas de Almada e Seixal), não será com certeza indiferente
à solução do mesmo (ou não estivéssemos, nas palavras do próprio legislador,
perante «uma alteração de vulto num domínio sensível».”
2. Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto
no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82), “para apreciação da declarada inconstitucionalidade do artigo único da
Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, e a norma correspondente ao art. 21.º
do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho”.
Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações,
concluindo:
1º
As normas constantes do artigo 21º do Decreto Lei n° 108/2006, de 8 de Junho, e
do artigo único da Portaria n° 955/2006, de 13 de Setembro, enquanto delimitam a
apenas determinadas circunscrições judiciais a aplicabilidade do “regime
processual experimental”, ali previsto, não ofendem o princípio constitucional
da igualdade.
2°
Na verdade, a diversidade de tratamento processual que se verifica entre as
partes que litiguem nesses tribunais, onde já vigora o dito regime, e as que
litigam nos tribunais sediados nas restantes circunscrições, decorre da
prossecução de um interesse relevante na administração da justiça, evitando os
inconvenientes que inevitavelmente decorreriam da aplicação generalizada de
soluções discutíveis, drasticamente inovatórias e insuficientemente testadas
pela prática judiciária.
3º
Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo
de não inconstitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.
A., Ld.ª não alegou.
Tendo havido redistribuição, em virtude de nova composição do Tribunal
Constitucional, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
A)
A questão de constitucionalidade
3. As normas sob juízo
Estão sob juízo, no presente recurso de constitucionalidade, as normas contidas
no artigo 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 e no artigo único da Portaria nº
955/2006.
É a seguinte, a redacção do artigo 21º do Decreto-Lei nº 108/2006:
Artigo 21º
Aplicação no espaço
1 – O presente decreto-lei aplica-se nos tribunais a determinar por portaria do
Ministério da Justiça.
2 – Os tribunais a que se refere o número anterior devem ser escolhidos de entre
os que apresentem elevada movimentação processual, atendendo aos objectos de
acção predominantes e actividades económicas dos litigantes.
Determina por seu turno o artigo único da Portaria nº 955/2006
Artigo único
Aplicação no espaço
O regime processual experimental, aprovado pelo Decreto-Lei nº 108/2006, de 8 de
Junho, aplica-se aos seguintes tribunais:
a) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca de Almada;
b) Juízos Cíveis do Tribunal de Comarca do Porto;
c) Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal de Comarca do Porto;
d) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca do Seixal.
A decisão de que interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, o Ministério
Público (desde logo ao abrigo da alínea a) do artigo 280º da Constituição)
recusou a aplicação destas normas com fundamento em violação do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP.
É no entanto impossível compreender o sentido e o alcance da questão de
constitucionalidade que, por este modo, é colocada ao Tribunal se as normas sob
juízo não forem antes do mais lidas no contexto da regulação em que se inserem.
4. O regime de processo civil experimental
Partindo do princípio – expresso na sua exposição de motivos – segundo o qual
«[a] realidade económico-social actual é consideravelmente diferente da que viu
nascer o Código de Processo Civil», o Decreto-Lei nº 108/2006 aprovou, para ser
aplicado às acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e
às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de
contratos, um regime autodesignado como regime processual experimental (artigo
1º). Desenhado (ainda de acordo com a referida exposição de motivos) sob o signo
da «simplicidade», da «flexibilidade» e da confiança «na capacidade e no
interesse dos intervenientes forenses em resolver com rapidez, eficiência e
justiça os litígios em tribunal», este regime processual experimental
estrutura-se em torno de algumas regras e princípios essenciais, bem
caracterizados de resto no texto da decisão de que interpôs recurso o Ministério
Público. Assim, e inter alia, enfatiza-se o dever de gestão processual (artigo
2º); possibilita-se que os actos processuais venham a ser praticados por forma
electrónica (artigo 3º); prevê-se que haja distribuição diária (artigo 4º) e que
a citação edital seja feita através de anúncios em página informática de acesso
público (artigo 5º); cria-se a figura da ‘agregação de acções’ e admite-se a
‘prática de actos em separado’ (artigos 6º e 7º); como se permite que a matéria
de facto seja decidida na sentença, podendo esta limitar-se à parte decisória
(artigo 15º); que, no âmbito de procedimentos cautelares, se antecipe o juízo
sobre a causa principal (artigo 16º) e que, em regra, se limitem a dois os
articulados (artigo 8º).
A ‘alma’ do sistema parece estar, porém, no dever de gestão processual,
consagrado no artigo 2º, e que impende naturalmente sobre o juiz. Não discutindo
agora – por inútil – a questão de saber em que medida será novo um tal dever,
face ao já fixado nos artigos 265º e 265º-A do Código de Processo Civil, a
verdade é que a amplitude com que agora ele vem reafirmado (no artigo 2º do RPE)
parece fazer crer que, aqui, foi clara a intenção do legislador ordinário. Por
um lado, o regime processual experimental fixa um paradigma de tramitação
processual, assaz simplificado, e que é aplicável a todas as acções declarativas
cíveis, qualquer que seja o seu valor; mas por outro lado – e justamente porque
existe agora um amplo dever judicial de gestão processual, entendido como «dever
de adoptar a tramitação processual às especificidades da causa» – tal paradigma
simplificado de tramitação parece não ser mais do que um ‘modelo-padrão’, ao
qual o juiz pode aderir, mas a partir do qual pode também ele próprio vir a
‘construir’ a tramitação (mais complexa) que seja adequada ao caso. A ser assim,
o abandono do princípio da legalidade e da tipicidade das formas processuais –
em benefício de um princípio novo, o da possibilidade de construção casuística,
pelo juiz, dessas mesmas formas –, parece ser a matriz essencial do regime
processual experimental (assim, Luís Filipe Brites Lameiras, Comentário ao
Regime Processual Experimental, Coimbra, Almedina, 2007, p. 31.)
Foi o próprio legislador que qualificou este regime como sendo experimental
(artigo 1º do Decreto-Lei nº 108/2006). E como toda a «experimentação» implica a
existência de um «teste, ou de um «ensaio», antes da adopção de uma qualquer
solução ‘definitiva’, o legislador, em coerência com a qualificação por ele
mesmo feita, resolveu limitar no tempo e no espaço a vigência do regime, a fim
de poder avaliar os seus efeitos antes que se se dispusesse pela ‘vigência
plena’ do novo paradigma. Por isso, determinou, no artigo 20º, que o Decreto-Lei
nº 108/2006 fosse revisto no prazo de dois anos a contar da sua entrada em vigor
– que foi a 16 de Outubro de 2006; e que, durante todo este período de vigência,
se garantisse a «respectiva avaliação legislativa através dos serviços do
Ministério da Justiça competentes para o efeito.» Como dispôs que, durante o
tempo da «experimentação», o novo modelo de processo civil fosse só aplicado a
certos tribunais «a determinar por portaria do Ministério da Justiça» (artigo
21º).
5. O objecto do recurso
É exactamente sobre esta última disposição legislativa – e sobre a sua
concretização através de portaria – que incide a questão de constitucionalidade
posta ao Tribunal no presente recurso.
Com efeito, e como o sublinha, nas suas alegações, o representante do Ministério
Público no Tribunal, não se inclui no objecto do recurso a questão de saber se
serão ou não conformes à Constituição alguma ou algumas das normas da nova
tramitação processual instituída, individualmente tomadas. O que antes se
procura saber é se será ou não conforme à Constituição – mais precisamente, ao
princípio da igualdade – a decisão legislativa de aplicar todo este sistema de
normas apenas a certas circunscrições judiciais e não a outras, decisão essa
desde logo tomada no artigo 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 e concretizada pelo
artigo único da Portaria nº 255/2006.
Uma tal decisão é, como já se viu, ‘explicada’ pela «natureza experimental» que
confessadamente se conferiu ao modelo instituído. O legislador não quis que tal
modelo fosse tido como ‘definitivo’, ou capaz de substituir imediatamente o
regime processual vigente. Ao invés, o que pretendeu foi «testar e aperfeiçoar
os dispositivos de aceleração, simplificação e flexibilização processuais
consagrados, antes de alargar o seu âmbito de aplicação» (exposição de motivos
do Decreto-Lei nº 108/2006, itálico nosso). Semelhante intuito de
«experimentação» levou a que não apenas se limitasse no tempo a vigência do
decreto-lei, determinando a sua revisão obrigatória no prazo de dois anos, como
também a que se «opta[sse], num primeiro momento, por circunscrever a aplicação
deste regime a um conjunto de tribunais a determinar pela elevada movimentação
processual que apresentem…» (exposição de motivos do decreto-lei).
Estão assim estreitamente associadas a questão da «natureza experimental» do
regime e a questão da sua limitação no espaço (apenas ao número contado de
tribunais identificados pela norma da portaria). Dessa estreita associação tem
aliás perfeita consciência a decisão recorrida, quando sustenta que «é o próprio
carácter experimental do novo regime, na definição que ele mesmo apresenta, que
se assume como a razão de ser da desigualdade de tratamento materialmente
infundada que vimos evidenciando» (fls. 32 dos autos).
A ser deste modo, deve a questão de constitucionalidade que o presente recurso
coloca ao Tribunal equacionar-se como segue: é constitucionalmente tolerável –
desde logo face ao princípio da igualdade – que o regime processual civil
instaurado pelo Decreto-Lei nº 108/2006, por ser um regime «experimental», seja
apenas aplicável às circunscrições judiciais identificadas (por autoridade da
lei) no artigo único da Portaria nº 255/2006? Nesta questão vão incluídos dois
problemas que, por razões de método, devem ser distinguidos: (i) o problema de
saber se é ou não conforme à Constituição a aplicação do regime processual civil
àquelas, e apenas àquelas, circunscrições judiciais que foram identificadas, por
autoridade da lei, pelas normas regulamentares em questão; (ii) o problema de
saber se é a própria «experimentação legislativa» constitucionalmente
censurável. Como já se viu – e como se confirmará pela exposição subsequente –
os dois problemas estão estreitamente associados: a sua distinção é apenas
operativa sob o ponto de vista metodológico.
B)
Regime Processual Civil Experimental e Princípio da Igualdade
6. O parâmetro constitucional
É antiga, e firme, a jurisprudência constitucional que vem densificando o
conteúdo do princípio da igualdade contido no artigo 13º da CRP, naquela
vertente que, aqui, exclusivamente nos interessa – como vínculo específico do
legislador e não como princípio aplicável ao poder administrativo e, ou, ao
poder judicial. É sabido que o Tribunal tem sempre dito que, nessa sua vertente,
«igualdade» não significa proibição de tratamentos jurídicos diferenciados;
significa antes a proibição de diferenças que afectem as pessoas e que não sejam
fundamentadas à luz do próprio sistema constitucional. No dizer de Dworkin, não
está – não pode estar – aqui em causa um «direito» das pessoas a um tratamento
em todos os casos iguais; o que está em causa é o «direito» a ser-se tratado
como um igual. (Ronald Dworkin, Sovereign Virtue, The Theory and Practice of
Equality, Harvard University Press, 2000, p. 11).
Esta orientação foi sempre sufragada pelo Tribunal, num lastro de jurisprudência
que, por ser vasto, não pode agora vir a ser integralmente convocado: basta que
se recorde, por exemplo, a sua continuação recente nos Acórdãos nºs 442/2007 e
620/2007 e no Acórdão nº 232/2003 – que faz neste domínio uma síntese expressiva
de todo o acervo jurisprudencial anterior (todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt)
No entanto, e ainda neste campo, é por demais vago identificar o conteúdo do
princípio da igualdade com recurso, apenas, à ‘categoria’ da proibição de
diferenças [de tratamento legislativo] que não sejam fundamentadas à luz do
sistema constitucional.
Com efeito, e como se disse no Acórdão nº 412/2002 (também referido pelo Acórdão
nº 232/2003), «o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões
ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a
obrigação de diferenciação, significando a primeira a imposição da igualdade de
tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para
situações manifestamente desiguais (...); a segunda, a ilegitimidade de qualquer
diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v.g., ascendência,
raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge
como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.» (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 54º vol., p. 417)
Significa isto que – e se deixarmos por agora de lado a última destas três
«dimensões», que coloca o problema complexo, e neste momento de abordagem
inútil, das chamadas «discriminações positivas» –, se deve introduzir um
distinguo nessa classe ampla das «diferenças não [constitucionalmente]
fundamentadas» cuja imposição é proibida pelo princípio da igualdade, quando
dirigido ao legislador. Uma coisa é a proibição do arbítrio, ou de diferenças
legislativamente impostas e que não tenham a justificá-las um qualquer
fundamento racional bastante; outra, a proibição de discriminação, ou de
diferenças que encontrem o seu fundamento em certos ‘critérios subjectivos’ que,
pela sua estreita relação com a dignidade das pessoas, a Constituição entendeu
serem à partida insusceptíveis de justificar a existência de regimes jurídicos
distintos. A utilidade do ‘distinguo’ – disse-o o Tribunal, por exemplo, no
Acórdão nº 191/88 (DR, Iª série, nº 231, p. 4080) – não está apenas no facto de
ele ter acolhimento no próprio texto da Constituição, que reserva o nº 2 do
artigo 13º à enunciação separada da proibição de discriminação; está ainda, e
sobretudo, no facto de às duas ‘dimensões da igualdade’ corresponderem testes de
constitucionalidade dotados de diversa ‘densidade’. É que «quando ao nível
normativo se estabelece uma diferenciação que se escora em um desses factores»
[os tais ‘critérios subjectivos’ que se mostram à partida como insusceptíveis de
fundamentar diferenças de trato entre as pessoas], então, «será de presumir, ao
menos à partida, que se está perante uma discriminação constitucionalmente
inadmissível», sendo que «se posterior investigação revelar que tal factor é a
única e exclusiva causa da diferenciação, então será certo e seguro que se
registará infracção ao princípio constitucional da igualdade» (Acórdão nº
191/88, loc. cit.). Mas se forem outros e diferentes os motivos que fundaram a
diferença diverso terá que ser, também, o teste de constitucionalidade que se
lhes aplicará. A instância que for competente para a realização de um tal
‘teste’ terá nessa altura que averiguar da racionalidade e da objectividade dos
motivos que fundaram a diferença, merecendo o legislador censura quando, e
apenas quando, se mostrar que foram arbitrárias ou absurdas
as suas ‘razões’, por não haver motivo ‘racional’ e ‘objectivo’ – ou que seja
intersubjectivamente apreensível como tal – que as possa justificar.
Sustenta a decisão recorrida que as normas sob juízo violam o artigo 13º da
Constituição. E, embora identifique por diversas vezes tal lesão como relevando
do «arbítrio legislativo» – por entender que é destituída de qualquer
justificação racional e objectiva a decisão do legislador de aplicar o regime
processual experimental apenas aos tribunais identificados pela Portaria nº
955/2006 –, não deixa de convocar também, e noutros momentos, aquela lesão do
princípio que se identifica com a proibição de discriminação. Fá-lo não apenas
quando se abona num tratamento doutrinário do parâmetro constitucional que não
exclui nenhuma das suas duas dimensões (fls. 25 dos autos); mas também quando
afirma a natureza intolerável, porque discriminatória, da própria
«experimentação» legislativa, em si mesma considerada (fls. 32). Importa, no
entanto – e pelas razões já aduzidas – distinguir.
7. As normas sob juízo e a proibição de discriminação
A proibição de discriminação, contida no artigo 13º, nº 2, da CRP – e entendida,
no presente contexto, enquanto vínculo do legislador – corresponde a uma
tradição funda do constitucionalismo que pode ser compreendida por intermédio do
recurso a três elementos fundamentais, todos eles interrelacionados. Primeiro,
pela particular ‘densidade’ do controlo que se faz das escolhas do legislador,
sempre que este institua diferenças de regime jurídico que se possam incluir no
âmbito da referida proibição. Segundo, pela particular natureza dos motivos que,
neste domínio, fundamentam a proibição das diferenças legislativas. Terceiro,
pelo próprio conteúdo do acto legislativo discriminatório, ou seja, pela
intensidade e espécie de diferenças que, a serem acolhidas pelo legislador,
devam ser entendidas como discriminação. Ao primeiro elemento, relativo à
‘densidade’ do controlo, já nos referimos antes, pelo que a ele não voltaremos.
Fixemo-nos agora na análise do segundo e terceiro elementos.
O nº 2 do artigo 13º da CRP enumera os motivos que fundamentam a proibição de
discriminação, em consonância, aliás, com o que se passa em ordens
constitucionais próximas da nossa (veja-se, a título de exemplo, o artigo 3º, nº
3, da Constituição alemã e o artigo 14º da Constituição espanhola). No entanto,
e como nenhuma destas ‘enumerações’ pode ser entendida como um elenco fechado –
mas apenas como uma ‘definição’ enunciativa: quanto a este ponto, e por exemplo,
veja‑se o Acórdão nº 191/88, loc.cit. –, a técnica da enumeração, presente na
nossa ordem e ordens constitucionais próximas da nossa, não dispensa neste
domínio o esforço de abstracção e de conceitualização. Alguma natureza especial
terão que ter estes motivos, que fundamentam em qualquer caso a proibição
constitucional de discriminação. Tem entendido normalmente a doutrina que tal
natureza especial deve ser achada a partir do valor constitucional da igual
dignidade das pessoas – ou, no dizer de Dworkin, no «direito» que elas têm a ser
tratadas como iguais – de forma a que se considerem motivos ou factores
discriminatórios todos aqueles «que se baseiem exclusivamente em atributos
[subjectivos] sobre os quais as pessoas não têm qualquer possibilidade de
controlo, ou em opções de vida (…) que as pessoas são livres de formar» (assim,
Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República
Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 110). No mesmo sentido, o direito
norte-americano, que conta neste domínio com uma rica elaboração doutrinária,
atribui a estes ‘factores’ ou ‘motivos’ discriminatórios – que aí não são sequer
enunciados na lei positiva – a designação plástica de «categorias suspeitas»
[suspect categories]. (Assim, Lawrence H. Tribe, American Constitutional Law,
The Foundation Press, 1988, 2ª ed., p. 1465.)
Quanto ao terceiro elemento – qual o conteúdo das diferenças que, a serem
acolhidas pelo legislador, são de espécie e intensidade suficientes para serem
tidas como discriminatórias – deve dizer-se que o direito português, pela sua
formulação positiva, confere ao intérprete orientações mais claras do que
aquelas que são concedidas por outros ordenamentos. Com efeito – e vejam-se uma
vez mais os exemplos já citados do artigo 3º, nº 3, da Lei Fundamental de Bona e
do artigo 14º da Constituição espanhola –, normalmente os textos constitucionais
não explicitam o conteúdo típico do acto discriminatório. Ao invés, diz o nº 2
do artigo 13º da CRP que «[n]inguém pode ser privilegiado, beneficiado,
prejudicado, privado de um direito ou isento de qualquer dever em razão de (…)».
A explicitação confere, como se vê, orientações claras ao intérprete quanto à
consistência da própria ‘discriminação’.
É bem evidente que das normas sob juízo decorrem diferenças de tratamento entre
as pessoas. Como resulta das disposições conjugadas dos artigos 21º do
Decreto-Lei nº 108/2006 e do artigo único da Portaria nº 955/2006 que o regime
processual experimental só será aplicável às acções declarativas cíveis a que
não corresponda processo especial e às acções especiais para o cumprimento de
obrigações pecuniárias emergentes de contratos cujos termos correrem em certos
tribunais e não noutros, é claro que quem for parte num desses processos terá,
por meras razões de localização territorial das causas, «tratamento diverso»
daquele que valerá para os outros casos, em que permanecerá aplicável o regime
processual comum. Mas o que não é de modo algum claro é que tal «diversidade de
tratamento» consubstancie uma discriminação constitucionalmente proibida, no
sentido exacto que deve ser dado a tal «proibição» e que acabou de se
identificar.
Com efeito, é desde logo assaz duvidoso que a «mera razão de localização
territorial» – critério decisivo, in casu, para a aplicação da diferença de
regimes – possa ser vista como um ‘critério’ ou ‘motivo’ discriminatório,
análogo, pela sua natureza, aos enunciados no elenco aberto do nº 2 do artigo
13º. É certo que se trata aqui de um «motivo» em relação ao qual – e para usar
os termos da orientação atrás esboçada – «as pessoas não têm qualquer
possibilidade de controlo»; mas também é certo que se não confunde ele com
nenhum «atributo subjectivo» que, pela sua relação com o princípio da igual
dignidade das pessoas, deva logo à partida ser desconsiderado como fundamento de
diferenciações constitucionalmente admissíveis.
Por outro lado, do conteúdo da diferença – ou da diversidade de tratamento,
resultante da aplicação de diferentes regimes processuais – não resulta que
[alguém] seja «privilegiado, beneficiado (…) ou privado de qualquer direito»,
nos termos do nº 2 do artigo 13º da CRP. Na verdade – e ao contrário do que
parece decorrer, a certo passo, do entendimento perfilhado pela decisão
recorrida (fls. 22 dos autos) – não se retira de nenhuma disposição
constitucional a existência de um qualquer direito dos particulares a uma certa
e determinada conformação do processo [civil], que se imponha ao legislador
ordinário como um standard fixo de tramitação processual que deva ser adoptada
ne varietur. Como o Tribunal tem sempre dito – e vejam-se, a este propósito, os
Acórdãos nºs 960/96, 222/90, 86/88 e 404/87 – a conformação legislativa do
processo civil está vinculada ao princípio do due process of law, consagrado
desde logo no artigo 2º e decorrente do artigo 20º da CRP. O que decorre deste
princípio é o direito a uma solução jurídica dos conflitos que seja obtida em
prazo razoável, dispensada com a observância das garantias de imparcialidade e
independência e com um correcto funcionamento do princípio do contraditório.
Sendo estas as vinculações constitucionais do processo civil, para além delas
situa‑se o espaço de liberdade conformadora do legislador, que não é portanto
previamente limitado pela existência de um direito a uma certa e determinada
tramitação processual.
É certo que – e a decisão recorrida di-lo, a fls. 23 – juízo e modo de
instauração do juízo não são nunca variáveis independentes, pelo que a
existência de processos diferentes pode conduzir à existência de ‘juízos’
diferentes. Tal não chega, porém, para que se qualifique como discriminatória a
‘diferença’ que, indiscutivelmente, o regime agora em causa possibilita. Resta
por isso apenas saber se não será ela arbitrária.
8. As normas sob juízo e a proibição do arbítrio
Como já se viu, o artigo único da Portaria nº 955/2006 determina que o regime
processual experimental seja aplicado, apenas, nos Juízos de Competência
Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada; nos Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto; nos Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal
de Comarca do Porto e nos Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal
da Comarca do Seixal. Fá-lo, como também já se sabe, por determinação do artigo
21º do Decreto-Lei nº 108/2006.
Sustenta a decisão recorrida que os «argumentos» utilizados para fundamentar
esta restrição da aplicação no espaço do regime experimental, «assentes em meras
considerações de natureza abstracta, vaga e imprecisa», «estão muito longe de
constituir justificação objectiva e racional para o que quer que seja» (fls. 27
dos autos). Em seguida, aduz a decisão algumas razões que, no seu entendimento,
ilustrariam a natureza ‘arbitrária’ – isto é, nem ‘racional’ nem ‘objectiva’ –
das escolhas feitas, neste domínio, pelo legislador.
Em primeiro lugar, o ‘facto’ de se ter eleito, como critério determinante da
aplicação das normas do RPE, «a mera localização territorial das causas» (fls.
28 dos autos): a este respeito diz a decisão recorrida que, em Estado de direito
democrático e unitário, tal nunca poderá constituir critério legítimo para
«fundamentar a aplicação de diferentes formas de processo ao mesmo tipo de
causas» (ibidem). Depois, alega-se a discrepância existente entre os motivos que
teriam levado o legislador a fixar um novo modelo processual e o seu âmbito de
aplicação: «[i]nicialmente projectado para responder a necessidades particulares
de certo tipo de litigância, a protagonizada pelos chamados ‘litigantes de
massa’ (…), o novo regime processual acaba afinal por ter aplicação a todas as
acções declarativas cíveis (comuns) que corram nos referidos tribunais» (fls.
29). Finalmente, questionam-se, à luz desses mesmos motivos, as escolhas
concretas de aplicação territorial que foram feitas, perguntando-se, a fls. 30:
«como compreender racionalmente que na área metropolitana do Porto apenas os
juízos de pequena instância cível reúnam os requisitos indispensáveis ao
merecimento da aplicação do novo regime processual? (.) E que dizer, no que
respeita à área metropolitana de Lisboa, quando se considera (...) apenas os
juízos cíveis de Almada e Seixal?»
Foram pois estas as «perplexidades» que levaram o tribunal a quo a recusar a
aplicação in casu do regime experimental aprovado pelo Decreto-Lei nº 108/2006,
com fundamento no carácter arbitrário da desigualdade de tratamento que dele
decorreria para cidadãos e empresas «no plano do exercício de direitos e
interesses subjectivos através do recurso aos tribunais».
No entanto, e a propósito do princípio da proibição do arbítrio, decorrente do
nº 1 do artigo 13º da CRP, tem sempre sublinhado o Tribunal duas ideias
essenciais que importa agora recordar. Antes do mais, que não estão aqui em
causa – que não podem estar aqui em causa – ‘juízos’ sobre a bondade das
soluções legislativas; depois, que proibindo a Constituição neste domínio apenas
«as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é
dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor
constitucionalmente relevantes» (Acórdão nº 39/88, in AcTC, 11º vol., pp. 233 e
ss.), deve descobrir-se a ratio das disposições em causa, para, a partir dessa
mesma ratio, se poder avaliar se as mesmas possuem ou não uma «fundamentação
razoável» (Acórdão nº 232/2003 e doutrina aí citada: AcTC, 56º vol., p. 39).
Ora a ratio das disposições em juízo encontra-se, como já se viu, na natureza
«experimental» deste regime processual novo, assente nos princípios da
«simplicidade», da «flexibilidade» e da confiança «na capacidade e no interesse
dos intervenientes forenses em resolver com rapidez, eficiência e justiça os
litígios em tribunal». Justamente porque o legislador quis «testar» e
«aperfeiçoar» um regime assim desenhado antes de alargar o seu âmbito de
aplicação, é que – e recorde-se a exposição de motivos do decreto-lei – se
optou, num primeiro momento, por circunscrever a aplicação deste regime a «um
conjunto de tribunais a determinar pela elevada movimentação processual que
apresentem».
Compreende-se que, à luz desta razão, se não pudessem escolher todos os
tribunais que apresentassem elevada movimentação processual, mas apenas alguns
deles (a questão colocada pela decisão recorrida quanto à eleição, nas áreas
metropolitanas de Lisboa e do Porto, de ‘apenas’ aqueles juízos e não de outros
tem assim alguma resposta razoável). Como se compreende, ainda à luz da mesma
razão, que, no número contado de tribunais escolhidos para «testar» o regime, se
decidisse que, neles – num universo já por si limitado –, se aplicasse o novo
modelo processual a todas as acções declarativas cíveis. Como se compreende
finalmente que, a aceitar‑se a razoabilidade do «teste» e do «ensaio», ele não
poderia ser feito com outro critério que não o da «mera localização territorial
das causas».
É certo que desta ratio resultam diferenças de tratamento entre as pessoas. Como
afirma o tribunal a quo, por causa dela «uma acção destinada a efectivar a
responsabilidade civil emergente de acidente de viação» pode assumir «um ou
outro regime processual consoante o acidente tenha ocorrido num ou noutro lado
(…)». Mas certo é também que tais diferenças não são nem absurdas nem
arbitrárias: encontrou-se para elas uma razão de ser, um fundamento inteligível,
e esse não foi outro que a natureza «experimental» do novo regime de processo
civil.
Justamente por concordar que assim é – que a desigualdade de tratamento é
razoavelmente fundada na natureza experimental do regime – é que a decisão de
que se interpôs recurso acaba por contestar a «experimentação» em si mesmo
considerada: «aqui chegados, é tempo de chamar à discussão o autoproclamado
carácter ‘experimental’ do regime processual em causa por forma a saber se o
mesmo poderá ou não constituir razão objectiva (…) para justificar a
discriminação (..)» (fls. 30-1 dos autos). A questão, diga-se desde já, tem toda
a pertinência. Como tem dito o Tribunal, não é uma qualquer «razão» que pode
justificar as diferenças de tratamento entre as pessoas. Idóneos para libertar o
legislador de um juízo de censura – quando está em causa a proibição do arbítrio
– serão apenas aquelas «razões» ou «fundamentos materiais bastantes» que
correspondam a critérios de valor constitucionalmente relevantes. Resta por isso
saber se se inclui na categoria o fenómeno da «experimentação legislativa», em
si mesmo tomado.
C)
Fundamentos constitucionais da experimentação legislativa
9. O regime processual instituído pelo Decreto-Lei nº 108/2006 é, de acordo com
a qualificação que lhe foi dada pelo próprio legislador, um «regime
experimental» Tal significa – como já se viu – que, antes que o regime fosse
adoptado como modelo definitivo de regulação, se procurou testar ou ensaiar a
aplicação das suas normas, limitando tal aplicação no tempo e no espaço de modo
a melhor poder avaliar os efeitos dela decorrentes.
Como salienta, nas suas alegações, o representante do Ministério Público no
Tribunal, não é novo entre nós um tal «método» de legislação, que aliás tem sido
densamente discutido em direito comparado (veja-se, por todos, Charles-Albert
Morand (org.), Évaluation Législative et Lois Expérimentales, Presses
Universitaires d’Aix-Marseille, 1993). O que o caracteriza é a indecisão do
legislador.
Com efeito, a «normação experimental» pressupõe antes do mais um legislador
indeciso, ou ao qual faltam certezas quanto à regulação definitiva a adoptar
para o cumprimento de certas políticas públicas ou para a disciplina de certos
domínios da vida colectiva. Ao invés, por isso, de esperar que a adequação do
Direito às realidades se faça, na continuidade, pela jurisprudência, ou na
descontinuidade, por reformas legislativas sucessivas – como sucede com o
método, chamemos-lhe assim, ‘clássico’ de normação –, o «legislador
experimental» testa ou ensaia primeiro, num espaço e num tempo limitados, a
aplicação e os efeitos da aplicação das suas normas, a fim de evitar os riscos
que, em situações de elevado grau de incerteza quanto aos efeitos de certa
regulação, geraria porventura a adopção de sistemas normativos ‘definitivos’.
(Pierre-Henri Bolle, «Lois Expérimentales et Droit Pénal», em Boletim da
Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 321-335). Assim, o legislador que
«experimenta» – tal como o legislador que toma ‘medidas’ para situações que não
são nem gerais nem abstractas – parece ser movido por uma racionalidade
técnico‑económica que será diversa daquela que orienta os métodos ‘comuns’ de
legiferação.
Sustenta a decisão recorrida que merecem censura constitucional estes métodos
«experimentais», em si mesmo considerados, por serem eles desde logo
discriminatórios.
Já vimos, porém, que, no caso dos autos, assim não é. E, sendo certo que ao
Tribunal não está vedado a formulação de juízos com fundamentos diversos dos que
foram, no recurso, invocados (artigo 79º‑C da Lei do Tribunal Constitucional), a
verdade é que também se não vê que outras regras e princípios constitucionais
poderiam sustentar a censura da adopção, pelo legislador, do método
«experimental», em si mesmo tomado.
Com efeito – e o Tribunal já o tem dito por diversas vezes: veja-se, a título de
exemplo, o Acórdão nº 1/97 –, não decorre de nenhuma norma da Constituição que,
entre nós, a função legislativa deva ser entendida de modo a excluir, de forma
apriorística, certos e determinados conteúdos em detrimento de outros. Como se
afirmou no Acórdão atrás citado, nem a ordenação constitucional do princípio da
separação dos poderes (artigo 111º da CRP) nem as regras de distribuição da
função legislativa pela Assembleia da República e pelo Governo (artigos 161º,
164º, 165º e 198º da CRP) comportam semelhante exclusão.
Algo diverso se poderá passar em outros ordenamentos jurídicos, em que, ao
invés, se terá sedimentado um certo conceito constitucional de lei que, pelo seu
conteúdo, será avesso à racionalidade técnico-económica que é própria da
«legislação experimental». Parece ser esse o caso do direito francês. Com efeito
– e após uma pronúncia por parte do Conselho Constitucional – a Constituição
francesa teve que ser revista, de forma a comportar hoje, no seu artigo 37-1,
uma autorização expressa, endereçada ao legislador, para a emissão de
«legislação experimental» (Sobre o assunto: Florence Crouzatier-Durand,
«Reflexões sobre o Conceito de Experimentação Legislativa», in Legislação,
Cadernos de Ciência de Legislação, nº 39, Janeiro-Março 2005, pp. 5-29). Pelo
contrário, e em direito português, não é necessária uma tal autorização
constitucional expressa. Semelhante autorização vai implícita no conceito aberto
de lei que a CRP alberga.
É claro que, sendo entre nós a «lei experimental» uma lei como as outras – ou
seja, expressão da actividade constitucionalmente permitida do legislador –, não
poderá ela em caso algum furtar-se à obediência dos princípios constitucionais
(orgânicos, procedimentais e materiais) que regem toda a função legislativa.
Nessa medida, haverá desde logo que ter em conta que o legislador de um Estado
de direito não poderá nunca desonerar-se do dever, que é o seu, de procurar
criar um Direito que seja, tanto quanto possível, estável; que poderá haver
certos domínios da ordem jurídica que, pela natureza, intensidade e relevo dos
bens jurídicos neles protegidos, sejam pelo seu conteúdo hostis ao uso da
técnica da «experimentação»; que, sempre que de uma tal técnica resultarem
encargos especiais para as pessoas, deverão eles ser reduzidos ao mínimo
possível de acordo com o princípio da proporcionalidade. Que, finalmente e por
razões de segurança, deve em qualquer caso o legislador que «experimenta» dizer
que o faz: deixar claro quais são os limites, temporais e espaciais, de
aplicação das normas que ficam sujeitas à avaliação do ‘ensaio’ ou da
‘experiência’.
Como, no caso sob juízo, se perfazem todas estas condições ou limites, por
nenhuma razão merece ele qualquer censura constitucional.
III
Decisão
Por estes motivos, decide-se conceder provimento ao recurso, reformando‑se a
decisão recorrida de acordo com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Rui Manuel Moura Ramos