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Processo n.º 834/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da
decisão do relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu não conhecer do
recurso de constitucionalidade interposto da decisão do Presidente da Relação do
Porto, de 10 de Março de 2007, que lhe indeferiu a reclamação deduzida de
decisão da 1.ª instância, de não admissão de recurso interposto para o Tribunal
da Relação.
2 – Fundamentando a sua reclamação, o reclamante expendeu um longo
discurso que acabou por sintetizar nas seguintes proposições conclusivas:
«1ª O aqui reclamante vê o seu recurso no conhecido pela decisão sumária por
no entender desta o art. 456º do C.P.C. nunca haver sido pronunciado
inconstitucional pelo TC e por a instância recorrida da Presidência da Relação
do Porto no ter aplicado as normas arguidas de inconstitucionalidades nos seus
fundamentos e por o Tribunal Constitucional só poder reapreciar o juízo de
inconstitucionalidade que fosse feito na instância recorrida da Presidência da
Relação do Porto
2ª Tal como bem escreve a decisão sumária aqui em reclamação “impõe-se que
seja sujeita ao seu (do TC) escrutínio decisão dos tribunais que haja concluído
em sentido oposto (do TC)”
3ª Nas suas alegações para o Tribunal de Comarca (Pequena Instância do
Porto) o aqui reclamante invocou a protecção da confidencialidade das suas
missivas assim mencionadas nos termos do art. 126º nº 3 do CPP para obstar a que
as mesmas fossem violadas a pretexto de simples prova. Como resposta a essas
alegações a Pequena Instância Cível do Porto referiu que se fosse dada protecção
confidencialidade das missivas teríamos descoberto a forma de praticar por esse
meio crimes impunemente.
4ª Perante esse tribunal de comarca e dentro de reclamação contra a não
admissão de recursos, o aqui reclamante ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art.
70º da LTC arguiu a inconstitucionalidade do art. 126º nº 3 do CPP assim
interpretado, tal como já fora julgado inconstitucional no Acórdão nº 607/2003
do TC.
5ª Foi aplicado pelo mesmo tribunal de comarca o art. 456º do CPC com o
sentido de punir o aqui reclamante em litigância de má fé por este advogado de
profissão haver praticado infracção disciplinar de cobrar honorários a
constituintes oficiosos.
6ª Inconformado o aqui reclamante, advogado de profissão, com tal
condenação em litigância de má fé, por desvio de poder disciplinar a cargo da
recorrida Ordem dos Advogados e jurisdição administrativa e por ser
documentalmente falso que houvesse constituição oficiosa deferida pela
autoridade competente, havendo até pelos autos indeferimento transitado desse
pedido de constituição oficiosa, arguiu a inconstitucionalidade dessa norma do
art. 456º do CPC assim interpretada por infringir a presunção de inocência
constitucionalmente consagrada.
7ª A inconstitucionalidade desta norma foi arguida no texto da reclamação
apresentada perante o mesmo tribunal de comarca que deu despacho de manter tudo
quanto fora decidido, subindo e mesma reclamação para a Presidência da Relação
do Porto que não admitiu os recursos em questão, deixando em claro que “se,
eventualmente, há ofensa da CRP perante o TC que se devera reagir”
8ª A decisão sumária ao não conhecer o recurso por a Presidência da Relação
do Porto não ter examinado as inconstitucionalidades cria um paradoxo processual
em prejuízo do aqui reclamante que não pode ser prejudicado por as instâncias
jurisdicionais não se entenderem quanto ao conhecimento das
inconstitucionalidades arguidas, dizendo o PR que deve ser o TC a conhecer e
este que não conhece por o PR no ter conhecido.
9ª Em jurisprudência constitucional menos formalista extrai-se o princípio
de que nunca pode ser prejudicado o recorrente por o tribunal “a quo” não ter
conhecido das inconstitucionalidades suscitadas devendo mesmo assim o TC
dar-lhes conhecimento com o sentido de que o não conhecimento prévio equivale ao
indeferimento, e.g. Ac. TC publicado na pág. 4291 do DR II série de 24/03/1999”.
10ª Foi diametralmente diferente o tratamento formal dado no
acórdão-fundamento nº 607/2003, porquanto no tribunal “a quo” – Relação de
Lisboa – não foi examinada a inconstitucionalidade do art. 126º nº 3 do CPP, o
que não impediu o TC de conhecer esse recurso e de lhe dar provimento.
11ª Não foi suscitada, previamente, a inconstitucionalidade dessa norma no
tribunal “a quo” o que não impediu, também assim, a sua declaração de
inconstitucionalidade nesse Acórdão nº 607/2003.
12ª Esse tribunal “a quo”, a Relação de Lisboa, não aplica sequer a norma –
126º nº 3 CPP – que viria a ser declarada inconstitucional por entender que os
diários, matéria em causa, ao contrário das cartas-missivas confidenciais não
têm protecção legal proibitória no C.P.P. ou na Constituição.
13ª Tal não aplicação do art. 126º nº 3 C.P.P. na “ratio dedidendi” do
tribunal “a quo” foi incapaz de obstar ao conhecimento da sua
inconstitucionalidade, incompreendendo-se para o nosso caso em reclamação tanta
objecção formal ao seu conhecimento depois de a matéria em causa nos nossos
autos (cartas-missivas confidenciais) gozar de ampla e explícita protecção legal
e constitucional com a previsão dum processo de suprimento especial, “sine qua
non” para a sua valoração probatória contra o consentimento do confidente.
14ª Não lembra a ninguém que diários com confidências pedófilas tenham
protecção constitucional superior a cartas-missivas confidenciais sem incidência
criminal, depois de a nossa Constituição vedar expressamente a ingerência de
autoridades públicas na confidencialidade de cartas – salvo por razões criminais
o que não é o caso dos presentes autos – mas não vedar de modo expresso como
refere a Relação de Lisboa no acórdão-fundamento nº 607/2003 a ingerência em
diários quanto mais em matéria criminal: vide art. 34º nº 4 da Constituição em
confronto com acórdão 607/2003 do TC proferido com um acolhimento formal
invertido ao que foi dado na decisão sumária em reclamação.
15ª Pode a decisão sumária em reclamação ser alterada por lavrar em erro
manifesto quanto a norma arguida pelo recorrente nos termos da alínea g) que é o
art. 126º nº 3 C.P.C. e não o art. 456º C.P.C. como julga a decisão sumária.
16ª Pode também ser conhecida ao abrigo da alínea b) a inconstitucionalidade
suscitada do art. 456º do C.P.C. se o tratamento formal da questão não for muito
invertido do que se fez no acórdão nº 607/2003, sendo inadmissível um Estado de
direito em Portugal se o TC se conformar com a forma como foi aplicado ao
cidadão aqui recorrente o art. 456º do C.P.C. em claro atropelo do princípio
basilar da presunção de inocência».
3 – Os recorridos não responderam.
4 – A decisão ora reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no art.º 70.º, n.º 1, alíneas b) e g) da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão do Presidente da Relação do
Porto, de 10 de Março de 2007, que lhe indeferiu a reclamação deduzida de
decisão da 1.ª instância, de não admissão de recurso interposto para o Tribunal
da Relação.
2 – No seu requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, o recorrente discorre do seguinte jeito:
“a) Foi arguida no tribunal a quo a inconstitucionalidade do artigo
456.º do CPC, com a interpretação de um Tribunal Cível poder condenar um
advogado em litigância de má fé com fundamento em prática de alegada infracção
disciplinar sem existir qualquer decisão definitiva sobre o cometimento dessa
alegada infracção disciplinar proferida pela Ordem dos Advogados ou pela
jurisdição administrativa, em procedimento disciplinar previsto nos termos da
Lei, por infringir a presunção de inocência enunciada no n.º 2 e n.º 10 do
artigo 32.º da CRP e por infringir a parte final do n.º 1 do artigo 211.º da
CRP.
O tribunal a quo não atendeu à reclamação de inconstitucionalidade
dessa norma pelo que a reclamação subiu para o Juiz ad quem, Presidente da
Relação do Porto, que a indeferiu.
Este recurso relativamente a esta norma é ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da LOTC.
b) Foi arguida a inconstitucionalidade do artigo 678.º, n.º 2, do
CPC, com o sentido de poder ser indeferida a admissão da subida dum recurso, que
é interposto com fundamento em ofensa de caso julgado, por se entender que
inexiste qualquer ofensa de caso julgado cometida, infringindo o artigo 2.º e a
parte final do n.º 4 do artigo 20.º da CRP, no tribunal a quo que a não acolheu
pelo que a mesma subiu para o Juiz ad quem, Presidente da Relação do Porto, que
manteve a aplicação da referida norma arguida de inconstitucionalidade.
Este recurso relativamente a esta norma é ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1 alínea b), da LOTC.
c) Foi arguida a inconstitucionalidade do artigo 678.º, n.º 3, do
CPC, com o sentido de não poder ser admitido um recurso, que é interposto com
fundamento de que o valor da causa excede a alçada do tribunal de que se
recorre, entendendo-se que a apreciação feita sobre o valor em causa e que é
objecto de recurso, no Tribunal, não constitui uma decisão que admite recurso,
infringindo-se a regra dum processo equitativo determinada na parte final do n.º
4 do artigo 20.º da CRP e o n.º 1 do artigo 202.º da CRP.
O Tribunal a quo não reconheceu a inconstitucionalidade da norma,
pelo que subiu a reclamação para o Juiz ad quem, Presidente da Relação do Porto,
que a indeferiu.
Este recurso sobre a inconstitucionalidade desta norma é ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LOTC.
d) Por último, recorre-se para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LOTC (Lei Orgânica do Tribunal
Constitucional), da aplicação que foi feita no tribunal a quo de norma já
anteriormente declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Na contra-alegação redigida pelo reclamante contra o recurso da aqui
reclamada para condenação daquele em litigância de má fé, evoca-se o artigo
126.º, n.º 3, do CPP como tutelando a nulidade da prova por violação da
confidencialidade de cartas, dando assim fundamento à pretensão do reclamante à
não violação da respectiva confidencialidade. Assim se pode ler na parte final
da conclusão 1.ª da contra-alegação e até na conclusão 7.ª da alegação do
recurso principal redigido pelo agora reclamante.
Perante esta fundamentação da pretensão do aqui reclamante, o
tribunal a quo, Pequena Instância Cível do Porto, declara que «litigou de má fé
… deduzindo e insistindo em … pretensão cuja falta de fundamento não ignorava».
Deste modo, o tribunal a quo considera que a falta de fundamento da
evocação do artigo 126.º do CPP é tanta para obstar à valoração de cartas
confidenciais como meio de prova que justifica a sua condenação em litigância de
má fé.
Ao aplicar o artigo 126.º do CPP com o sentido de ser lícita a
valoração de cartas confidenciais como meio de prova para procedimento
disciplinar e de constituir litigância de má fé a sua evocação para o impedir,
esse despacho do tribunal a quo afronta grosseiramente o Acórdão n.º 607/2003 do
Tribunal Constitucional, que, por unanimidade, julga inconstitucional o artigo
126.º, n.º 3, do CPP, com o sentido de não ser ilícita a valoração como meio de
prova dos escritos confidenciais a que se refere a mesma norma para crimes na
ausência de uma ponderação, à luz dos princípios da necessidade e da
proporcionalidade, sobre o conteúdo, em concreto, desses escritos confidenciais,
por violar os artigos 1.º, 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da CRP.
Não estando em causa qualquer crime para a avaliação disciplinar e
muito menos um crime com a censurabilidade em causa no acórdão-fundamento do
Tribunal Constitucional, apenas uma alegada falta disciplinar, a forma como o
tribunal a quo despacha a avocação feita do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, para
impedir a valoração de escritos confidenciais como meio de prova, está nos
antípodas desse acórdão de inconstitucionalidade, muito mais quando se imputa
litigância de má fé a quem invoca tal norma como fundamento da sua pretensão à
não ingerência dum processo disciplinar no conteúdo dos seus escritos
confidenciais.
A norma em causa é, pois, o artigo 126.º, n.º 3, do CPP, julgada
inconstitucional pelo Acórdão n.º 607/2003, publicado no Diário da República, II
Série, de 8 de Abril de 2004, com a ligeireza como foi aplicada ao ponto de se
condenar em litigância de má fé quem pretendia a sua aplicação no espírito
constitucional do mesmo acórdão.
Este recurso, nos termos da LOTC, tem efeito suspensivo com subida
nos próprios autos e imediatamente após a decisão que venha a recair sobre a
arguição de nulidade doutra parte do Despacho.”.
3.1 – O recorrente, advogado, havia intentado, nos Julgados de Paz
da Comarca do Porto, acção declarativa de responsabilidade extracontratual
contra Rui Freitas Rodrigues, também advogado, e a Ordem dos Advogados, pedindo
a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 3740,98, a título de
indemnização por danos à sua personalidade, por, no âmbito do processo
disciplinar que lhe foi instaurado pela segunda demandada e distribuído ao
primeiro demandado como seu relator, terem permitido que fossem juntas ao
referido processo disciplinar duas cartas-missivas confidenciais da sua autoria.
3.2 – Da sentença do Juiz de Paz que julgou improcedente a acção,
por considerar não ter havido violação ilícita de direitos de personalidade do
demandante, mas que também não acolheu a pretensão dos demandados no sentido de
o autor ser condenado como litigante de má fé, recorreu, quanto à primeira
decisão, o ora recorrente e, quanto à não condenação como litigante de má fé,
recorreu subordinadamente a Ordem dos Advogados.
3.3 – Por sentença de 15 de Julho de 2005, do 1.º Juízo do Tribunal
de Pequena Instância Cível do Porto, foi negado provimento ao recurso principal
(do autor) e julgado procedente o recurso subordinado (da Ordem dos Advogados),
condenando-se o ora reclamante como litigante de má fé.
3.4 – Desta decisão de condenação como litigante de má fé interpôs o
ora reclamante recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que foi admitido por
despacho de 22 de Novembro de 2005, tendo o recorrente apresentado as
respectivas alegações.
3.5 – Após diversas vicissitudes processuais, foi proferido o
despacho de 12 de Outubro de 2006, no qual, constatando-se não ter o recorrente
pago a taxa de justiça devida pela interposição do referido recurso e não
beneficiando de apoio judiciário no âmbito do presente processo, determinou-se a
sua notificação para pagar a taxa de justiça em dívida, acrescida de multa.
3.6 – O recorrente interpôs, em 31 de Outubro de 2006, recurso deste
despacho, que, porém, não foi admitido por despacho de 9 de Novembro de 2006,
por o valor da causa não ser superior à alçada do tribunal e por não ser
aplicável o estatuído no artigo 678.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC),
por não se verificar ofensa de caso julgado, uma vez que não houve qualquer
decisão anterior (quer do Julgado de Paz, quer do Tribunal de Pequena Instância
Cível do Porto) sobre a questão de não beneficiar o recorrente de apoio
judiciário no âmbito do presente processo.
3.7 – Notificado deste despacho, o recorrente apresentou, em 28 de
Novembro de 2006, o requerimento de fls. 360 do processo principal e 488 destes
autos, no qual, numa primeira parte, interpõe novo recurso “da decisão que
refere «o valor da causa não é superior à alçada deste Tribunal»”, e, numa
segunda parte, declara “impugna[r] por meio de recurso a decisão que lhe não
admitiu o recurso interposto com fundamento em ofensa de caso julgado”.
3.8 – Por despacho de 7 de Dezembro de 2006 (fls. 361 do processo
principal), não foi admitido o novo recurso, por o referido quanto ao valor da
causa não ser uma decisão, mas a fundamentação da decisão de não admissão do
primeiro recurso, e, quanto à segunda parte, foi determinada a notificação do
recorrente para apresentar reclamação, nos termos do artigo 688.º, n.º 2, do
CPC.
3.9 – Em 9 de Janeiro de 2007, o recorrente deduziu reclamação para
o Presidente do Tribunal da Relação do Porto (fls. 364 a 379 do processo
principal) contra os dois despachos de não admissão de recurso: (i) o de 9 de
Novembro de 2006, que não admitiu o recurso interposto do despacho de 12 de
Outubro de 2006, que determinou a sua notificação para pagar a taxa de justiça
em dívida, acrescida de multa, e (ii) o de 7 de Dezembro de 2006, que não
admitiu o recurso da passagem do despacho de 9 de Novembro de 2006 que refere
que “o valor da causa não é superior à alçada deste Tribunal”.
3.10 – Essa reclamação termina com a formulação das seguintes
conclusões e pedidos:
“1. É inconstitucional o artigo 456.° do CPC com a interpretação de
um tribunal cível poder condenar um advogado em litigância de má fé com
fundamento em prática de alegada infracção disciplinar sem existir qualquer
decisão definitiva sobre o cometimento dessa alegada infracção disciplinar
proferida pela Ordem dos Advogados ou pela jurisdição administrativa, em
procedimento disciplinar previsto nos termos da Lei, por infringir a presunção
de inocência enunciada no n.º 2 e n.º 10 do artigo 32.º da CRP e por infringir a
parte final do n.º 1 do artigo 211.º da CRP.
2. É inconstitucional o artigo 678.º, n.º 2, do CPC, com o sentido
de poder ser indeferida a admissão da subida dum recurso, que é interposto com
fundamento em ofensa de caso julgado, por se entender que inexiste qualquer
ofensa de caso julgado cometida, infringindo o artigo 2.º e a parte final do n.º
4 do artigo 20.° da CRP.
3. É inconstitucional o artigo 678.°, n.º 3, do CPC, com a
interpretação de não poder ser admitido um recurso, que é interposto com
fundamento de que o valor da causa excede a alçada do tribunal de que se
recorre, entendendo-se que a apreciação feita sobre o valor da causa e que é
objecto de recurso, no Tribunal, não constitui uma decisão que admite recurso,
infringindo-se a regra dum processo equitativo determinada na parte final do n.º
4 do artigo 20.º da CRP e o n.º 1 do artigo 202.º da CRP.
4. A ilegitimidade é de conhecimento oficioso por qualquer entidade
judicial, não podendo a Presidência da Relação do Porto, como entidade judicial,
recusar-se a dela conhecer sob pena de infringir os seus deveres funcionais –
vide artigos 494.º, n.º 1, alínea e), e 495.º do CPC.
5. Conforme a jurisprudência da Relação do Porto votada unanimemente
no Acórdão de 21 de Setembro de 2000, registado no Livro n.º 419, a fls. 184 e
seguintes, não tem legitimidade para recorrer da não condenação em má fé quem
requereu essa condenação da parte contrária sem sucesso.
6. Cumpre à Presidência da Relação do Porto deliberar essa
ilegitimidade, da parte contrária ao aqui reclamante, a qual, precisamente;
recorreu de uma decisão que não condenou o aqui reclamante em litigância de má
fé.
7. Fazendo-o, como é seu dever oficioso, a Presidência da Relação do
Porto faz cumprir a sua própria jurisprudência de um modo imparcial, geral e
abstracto.
Nestes termos, declare-se a ilegitimidade da parte contrária ao aqui
reclamante a partir do recurso por si interposto contra a não condenação do
reclamante em má fé e defira-se a admissibilidade dos dois recursos interpostos
nos termos da Lei com fundamento em ofensa de caso julgado, o primeiro, e com
fundamento em valor da causa que excede a alçada do tribunal de que se recorre,
o segundo.”
3.11 – Por despacho do Presidente do Tribunal da Relação do Porto,
de 10 de Março de 2007, a reclamação foi indeferida com a seguinte
fundamentação:
“Foram precisos quase 38 anos para sermos confrontados com uma peça
jurídica como a dos autos. Foram precisos mais de 6 anos para nos chamarem a
atenção para o exercício dos nossos deveres jurisdicionais. Finalmente, quando a
única tábua de salvação que se encontrou é a CRP e invocada, directamente,
perante o PR [Presidente da Relação] e em sede de reclamação, é mais do que
duvidosa legalidade todo o processado. E é de tal maneira o inusitado que temos
vindo a dispensar longas horas para nos apercebermos do que é que aqui se
discute e como se discute. Na verdade, recorrer dum despacho que se pronuncia
sobre a admissão/não de um recurso interposto e restrito à respectiva
fundamentação merece tratamento, pelo menos, extrajudicial: apreciação pela
Entidade que superintende sobre a admissão e disciplina dos respectivos membros.
Mas não ficamos pelas assinaladas originalidades. É que estamos
perante uma acção que teve o seu início, por ser essa a competência, que jamais
foi questionada, nos Julgados de Paz. Daí que não seja possível o recurso ao
Tribunal da Relação e, muito menos, ao PR. Já agora chama-se a atenção de que
uma coisa é a decisão, singular, sem recurso, do PR e outra as do Tribunal da
Relação, em colectivo dos respectivos Juízes Desembargadores. Como também uma
coisa é interpor recurso dum Tribunal de Comarca a funcionar nos termos
regulares e outra é quando este se reveste já das funções de tribunal de
recurso, pelo que é ilícita – para não qualificar de forma mais gravosa – a
invocação generalizada de acórdãos.
Daí que, pese embora todo o processamento, cuidado e sereno, do Juiz
recorrido/reclamado, os autos deveriam ter-se ficado na 2.ª (segunda, está
certo) instância deste tipo de acção, vedando-se, à nascença, a remessa ao
Tribunal da Relação. Tudo conforme se dispõe nos artigos 688.°, n.º 5, e 687.°,
n.º 3, do CPC, bem como nos seus princípios gerais de que o Juiz do processo
dispõe de todos os poderes de admissibilidade e regularização das peças que lhe
são apresentadas nos autos, sem necessidade de terem de ser não admitidas por
quem a elas se dirige.
Por outro lado, o artigo 62.°, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de
Julho, só permite recurso para o Tribunal de Comarca e em condições muito
restritas, pelo que não é possível interpor recurso [ou] deduzir reclamação das
suas decisões.
Se, eventualmente, há ofensa da CRP, é perante o TC que se deverá
reagir.
Decidiu o Tribunal de Comarca condenando o aqui reclamante por
litigância de má fé, quando o não fizera o Julgado de Paz? Nada obsta, porque
tudo decorreu em sede de recurso. E em última instância, quer tenha sido em
confirmação da sentença do Julgado de Paz, quer invertendo a sua decisão, pois
foi sempre em sede de recurso.
Por idênticas razões, também não obsta à inadmissibilidade do
recurso pela via do valor, o disposto no artigo 456.°, n.º 2, do CPC.
De igual modo, o que versa o n.º 2 do artigo 678.° sobre ofensa de
«caso julgado». De qualquer maneira, finalmente, exarado fica que não é possível
interpor recurso – muito menos, em duplicado – de despachos de não admissão de
recurso restritos à fundamentação: uma decisão pode ser alterada/não mas no seu
objecto/fundo mérito, não por não se concordar com este ou aquele fundamento.
Por isso, também esta reclamação poderia e deveria ter conhecido
tratamento mais radical, fazendo-lhe corresponder tantas peças como apensos
quantos as vias por que se enveredou nas reacções às decisões judiciais. Quanto
mais não fosse para evitar todo um mundo de confusões numa acção, que por
natureza e disciplina adjectiva, pressupõe a maior simplicidade de
procedimentos.
Em consequência e em conclusão, indefere-se a reclamação,
apresentada no Rec. n.º 4388/05.9THPRT – 1.°, da Pequena Instância Cível do
Porto, pelo autor recorrente A.”.
3.12 – Notificado desse despacho, o recorrente veio, em 26 de Março
de 2007: (i) dele interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional
(fls. 505); e (ii) arguir a sua nulidade (fls. 507).
3.13 – Por despacho de 30 de Março de 2007, o Presidente do Tribunal
da Relação do Porto, indeferiu a arguição de nulidade.
3.14 – Notificado deste despacho, dele veio o reclamante interpor um
segundo recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento de 19 de
Abril de 2007.
3.15 – Este segundo recurso não foi admitido pelo despacho do
Presidente do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Abril de 2007.
3.16 – Desse despacho de não admissão do recurso, o ora recorrente
reclamou para o Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 76.º, n.º 3, da
LTC, tendo essa reclamação sido indeferida pelo Acórdão n.º 359/2007, constante
dos autos.
4 – Sob apreciação do Tribunal Constitucional está, pois, agora, o
recurso interposto da decisão referida no ponto 3.11, através do requerimento
transcrito no ponto 2, que apenas foi admitido já depois de proferido o
mencionado Acórdão n.º 359/07 (fls. 578).
5 – Porque se configura uma situação que se enquadra na hipótese
recortada no n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC passa a decidir-se imediatamente.
6.1 – O recorrente recorre da identificada decisão do Presidente da
Relação do Porto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g) do art.º 70.º da LTC,
pretendendo a apreciação das questões de constitucionalidade mencionadas no
requerimento que acima se deixou transcrito.
Vejamos, pois.
6.2 – E começando pelo recurso interposto ao abrigo da alínea g) do
art.º 70.º da LTC. Este preceito admite o recurso para o Tribunal Constitucional
das decisões dos tribunais “que apliquem norma já anteriormente julgada
inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
Trata-se de uma norma que se fundamenta numa ideia de defesa da
Constituição e da legalidade democrática: se o órgão de fiscalização concentrada
da constitucionalidade se pronunciou já no sentido da inconstitucionalidade ou
da ilegalidade de certa norma, impõe-se que seja sujeita ao seu escrutínio
decisão dos tribunais que haja concluído em sentido oposto.
Embora o não diga expressamente, esse recurso tem como objecto a
norma do art.º 456.º do Código de Processo Civil (CPC) “com a interpretação de
um Tribunal Cível poder condenar um advogado em litigância de má fé com
fundamento em prática de alegada infracção disciplinar sem existir qualquer
decisão definitiva sobre o cometimento dessa alegada infracção disciplinar
proferida pela Ordem dos Advogados ou pela jurisdição administrativa, em
procedimento disciplinar previsto nos termos da Lei”.
Ora, a decisão recorrida não aplicou esta norma. A decisão, ora
recorrida – relembre-se, o despacho do Presidente da Relação do Porto – apenas
decidiu se deviam ou não ser admitidos os recursos mencionados em 3.9, não se
tendo pronunciado sobre o mérito da questão da condenação do recorrente como
litigante de má fé, sendo que a dimensão normativa de tal preceito, pretendida
sindicar constitucionalmente, contende com a decisão desse mérito. Trata-se de
questão que o tribunal ad quem deveria conhecer se o recurso interposto fosse
admitido.
De qualquer jeito, nunca o Tribunal Constitucional se pronunciou no
sentido da inconstitucionalidade de qualquer dimensão normativa do art.º 456.º
do CPC que seja coincidente com a definida como objecto do recurso de
constitucionalidade, pelo que não se mostra verificada a situação de
admissibilidade do recurso de constitucionalidade, prevista na referida alínea
g) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC.
E o mesmo se diga relativamente às outras questões de
constitucionalidade apontadas no requerimento de interposição de recurso se,
porventura, o recorrente as pretende sindicar ao abrigo de tal alínea.
6.3 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas pode traduzir-se numa
questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida
haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do
aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no
mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Por outro lado, importa acentuar que, neste domínio da fiscalização
concreta de constitucionalidade, a intervenção do Tribunal Constitucional se
limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o
tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal
Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida,
ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
6.4 – Ora, analisando a decisão recorrida, constata-se que esta
distraiu o fundamento normativo da decisão (recorde-se – o indeferimento da
reclamação ou seja, a confirmação da decisão de 1.ª instância de não
admissibilidade dos dois referidos recursos) não dos preceitos indicados (art.ºs
456.º, 678.º, n.º 2 e 678.º, n.º 3, do CPC), sendo que o art.º 678.º, n.º 3 do
CPC nem sequer é mencionado, mas dos art.ºs 688.º, n.º 5 e 687.º, n.º 3, do CPC
e 62.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho.
Na verdade, diz ela:
“[…]
Daí que, pese embora todo o processamento, cuidado e sereno, do Juiz
recorrido/reclamado, os autos deveriam ter-se ficado na 2.ª (segunda, está
certo) instância deste tipo de acção, vedando-se, à nascença, a remessa ao
Tribunal da Relação. Tudo conforme se dispõe nos artigos 688.°, n.º 5, e 687.°,
n.º 3, do CPC, bem como nos seus princípios gerais de que o Juiz do processo
dispõe de todos os poderes de admissibilidade e regularização das peças que lhe
são apresentadas nos autos, sem necessidade de terem de ser não admitidas por
quem a elas se dirige.
Por outro lado, o artigo 62.°, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de
Julho, só permite recurso para o Tribunal de Comarca e em condições muito
restritas, pelo que não é possível interpor recurso [ou] deduzir reclamação das
suas decisões.
[…]”.
É certo que a decisão recorrida fala do n.º 2 do art.º 678.º do CPC.
Mas fala dele no sentido de esse preceito “não obstar à inadmissibilidade do
recurso”, decorrente daquele preceito do art.º 62.º, nº 1, da Lei n.º 78/2001 e
nunca na acepção normativa recortada pelo recorrente na alínea b) do seu
requerimento de interposição de recurso, acima transcrita.
Note-se, de resto, que a decisão de 1.ª instância afastou a
aplicação desse preceito por a situação em apreço não caber na sua previsão,
sendo que o despacho ora recorrido se postou exactamente na mesma linha de
pensamento, confirmando-a.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar quer a correcção
do juízo feito pelos tribunais de instância quanto à determinação da lei
infraconstitucional aplicável à solução do caso quer do juízo de subsunção a
essa norma da situação concreta.
Deste modo, qualquer que fosse a pronúncia do Tribunal
Constitucional ter-se-ia que concluir que ela seria insusceptível de se
projectar sobre o sentido da decisão recorrida, pelo que seria inútil, ficando
com o valor de uma simples decisão académica.
Ora, essa função não cabe na jurisdição.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UCs.».
B – Fundamentação
5 – Antes de mais importa notar que o reclamante apenas se insurge
contra uma parte da decisão reclamada: a respeitante ao não conhecimento da
questão de constitucionalidade relativa ao art.º 456.º do Código de Processo
Civil (CPC), pelo que as outras se têm por decididas definitivamente.
Mesmo cingida a reclamação a esta parte da decisão, tem de convir-se
que ela em nada abala a sua bondade.
Toda a argumentação desenrolada contra a decisão ora reclamada
assenta uma errada concepção do que constitui o objecto do procedimento de
reclamação recortado no art.º 688.º do Código de Processo Civil (CPC) e do
âmbito material da pronúncia judicial nele prolatada.
Esse processo apenas pode ter como objecto o indeferimento do pedido
de interposição do recurso ou a retenção do mesmo.
Por seu lado, o presidente do tribunal que seja competente para
conhecer do recurso, a quem cabe decidir a reclamação, apenas pode conhecer da
questão de saber se o recurso que não foi admitido o deve ser ou se o recurso
que foi admitido para subir em certa fase processual deve subir em outra altura
anterior.
Não cabe nesse objecto a apreciação das questões que constituam o
objecto do recurso interposto e não admitido ou retido, sejam elas questões de
facto ou questões processuais ou de lei substantiva.
Assim sendo, não poderão tomar-se como implicitamente aplicadas por
essa decisão, para efeito da admissibilidade do recurso constitucional, as
normas alegadas, nessa reclamação, como fundamento de uma pretendida alteração
do julgado relativo não às questões da admissão ou da não retenção do recurso,
mas antes ao objecto do recurso (condenação como litigante de má fé com base na
aplicação do disposto no art.º 456.º do CPC).
Deste modo, a decisão do Presidente da Relação do Porto não conheceu
nem tinha de conhecer da questão da alegada aplicação errada do art.º 456.º do
CPC, bem como da sua inconstitucionalidade.
Consequentemente, também não pode tomar-se o silêncio sobre esta
questão de constitucionalidade como correspondendo a uma ratio decidendi
implícita para efeitos da admissibilidade do recurso constitucional.
Note-se que a eventual pronúncia que o Tribunal viesse a efectuar
sobre a questão de constitucionalidade do art.º 456.º do CPC jamais poderia ter
como efeito a alteração do julgado relativo à admissão do recurso da 1.ª
instância para o tribunal da relação.
Assim sendo, é totalmente despido de sentido o alegado paralelismo
desenhado pelo reclamante com o julgado no Acórdão n.º 607/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, pois ele é dirigido não relativamente a normas
que regulam o objecto da reclamação definida no art.º 688.º do CPC – domínio
decisório que constituiria o objecto do recurso de constitucionalidade aqui em
causa, mas não já no aresto convocado como análogo – mas relativamente a normas
pretensamente respeitantes ao julgamento do objecto dos recursos, sendo que, na
presente situação processual, o processo não está nesta fase, por o recurso não
ter sido admitido.
De tudo o exposto resulta que a reclamação não merece deferimento.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 20/12/2007
Benjamim Rodrigues
Joaquim Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos