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Processo nº 656/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. requereu, em 20/10/2006, ao Instituto de Segurança Social, I.P., que lhe
fosse concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de pagamento
de taxa de justiça e demais encargos do processo e de nomeação de patrono, para
dedução de oposição a execução que lhe havia sido movida no Tribunal Judicial de
Braga
Em 24-11-2006 foi proferida decisão pelo I.S.S. que indeferiu aquele
requerimento.
O requerente impugnou esta decisão para o Tribunal onde pendia o processo
executivo, tendo a juiz do 3º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial de Braga, por
decisão de 26-1-2007, julgado improcedente a impugnação e mantido a decisão do
I.S.S..
O requerente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de
Guimarães, o qual não foi admitido pelo tribunal recorrido, por despacho
proferido em 8-3-2007.
O Requerente reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de
Guimarães, o qual confirmou o despacho reclamado com a seguinte fundamentação:
“...O entendimento que da lei faz a Mma. Juíza, bem explanado no seu despacho de
sustentação (...) afigura-se correcto; por isso para ele se remete, aqui se
dando como reproduzido, igualmente como fundamentação ínsita neste despacho
....”
Podia-se ler no despacho de sustentação proferido pela juiz do 3º Juízo
Criminal, do Tribunal Judicial de Braga:
“... o regime de concessão do apoio judiciário e eventual reacção ao seu não
deferimento rege-se, na totalidade, pela Lei n.º 34/04, de 29/7.
Todo ele é de cariz administrativo, sem dúvida, mas com maior simplificação de
procedimentos e retirando aos interessados, dado tratar-se questões de ordem
puramente económica, a possibilidade de invocarem normas constantes dos demais
regimes adjectivos, a não ser nas situações expressamente previstas.
Tal como consta já do despacho reclamado, existe apenas um grau de recurso, em
matéria de apoio judiciário, que é para o Tribunal de Comarca.
Na verdade, outra interpretação não admite a disciplina plasmada no art. 26º n.º
2, da Lei n.º 34/2004, de 29/7, o qual dispõe que: “A decisão sobre o pedido de
protecção jurídica não admite reclamação nem recurso hierárquico ou tutelar,
sendo susceptível de impugnação judicial nos termos dos artigos 27º e 28º”.
Por seu turno, dispõe o art. 28º, do citado diploma legal que:
“1 - É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em
que está sediado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de
protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção,
o tribunal em que esta se encontra pendente.
2 - Nas comarcas onde existem tribunais de competência especializada ou de
competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de
competência.
3 - Se o tribunal se considerar incompetente, remete para aquele que deva
conhecer da impugnação e notifica o interessado.
4 - Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso, e
imediatamente conclusa ao juiz, que, por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por
extemporaneidade ou manifesta inviabilidade”.
Por outro lado, o art. 37º, do aludido diploma estabelece como único regime
subsidiário o Código de Procedimento Administrativo, em tudo o que não esteja
regulado nessa lei e apenas quanto ao procedimento de concessão de protecção
jurídica, o que afasta de forma bem clara a aplicabilidade do Cód. Proc. Penal e
o regime de recursos aí previsto.
A divergência de vocábulos empregues nos vários diplomas que têm regulado o
apoio judiciário, só por si e retirados do contexto global, não tem qualquer
relevo.
Veja-se até, por mera comparação, que também o Regime Geral das
Contra-Ordenações, aprovado pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27/10, alude
indistintamente a impugnação e recurso – v. Capítulo IV com a epígrafe “Recurso
e processos judiciais” e os n.ºs 1 e 2 do seu art. 59º, o primeiro a falar em
impugnação judicial e o segundo em recurso de impugnação – não tendo o
legislador deixado de esclarecer expressamente quais das decisões que admitiam
recurso para o Tribunal da Relação, apesar de indicar como direito subsidiário
o processo criminal, onde a regra é o duplo grau de jurisdição.
Finalmente, importa ainda anotar que a jurisprudência citada pelo ora reclamante
e disponível – Reclamação n.º 580/06-1, de 7/3/2006, do PRE – refere-se a
situação bem diversa da dos presentes autos.
Aliás, o Tribunal Constitucional tem recorrentemente entendido que a
Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de
recorrer de todo e qualquer acto do juiz e que o direito a um duplo grau de
jurisdição pode ser restringível pelo legislador ordinário, estando-lhe apenas
vedada a abolição completa ou afectação substancial deste, sendo que o texto
constitucional não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de
jurisdição. Assim, refere-se mesmo no Ac. n.º convencional ACTC8107, processo
96-0158, de 5/2/98, disponível em dgsi.pt/atcol, que “VII – De acordo com a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, o duplo grau de jurisdição em matéria
não penal não se acha constitucionalmente garantido, reconhecendo-se ampla
liberdade ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos
recursos. Nessa medida, caberá à lei infraconstitucional definir o acesso aos
sucessivos graus de jurisdição, segundo critérios objectivos, ancorados numa
ideia de proporcionalidade (relevância das causas, natureza das questões) e que
respeitar o princípio da igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico e
de forma desigual o que é distinto”.
Nesta conformidade, parece-nos que o direito de acesso à justiça em matéria de
apoio judiciário fica devidamente salvaguardado através do regime consagrado nos
aludidos arts. 26º, 27º e 28º, da Lei n.º 34/2004, carecendo de fundamento a
presente reclamação.”
O Requerente interpôs então recurso da decisão do Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), suscitando a inconstitucionalidade
das seguintes normas:
“…Para apreciação da inconstitucionalidade interpretativa das normas contidas
nos artigo 399.º do Código de Processo Penal, e no n.º 1 do artigo 28.º da Lei
n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugada concomitantemente com o artigo 9.º do
Código Civil, na interpretação emergente da douta decisão recorrida no sentido
de que não é admissível recurso da decisão judicial tirada sobre impugnação da
decisão administrativa que indefere o requerimento de Protecção Jurídica, pois
que apesar de a e expressão “em última instância” ter desaparecido do texto
legislativo actual e de a sindicância da decisão administrativa ter visto a sua
denominação alterada de “recurso de impugnação” para “impugnação judicial” “(…
o modelo de impugnação judicial da decisão da segurança social quanto ao apoio
judiciário se mantém intocado relativamente ao anterior, nesta vertente, da Lei
n.º 30-E/2000.”
Uma tal interpretação dessas conjugadas normas legais viola os princípios do
acesso ao direito e aos tribunais e do direito ao recurso, imperativos dos n.ºs
1, 4 e 5 do artigo 20.º, n.ºs 1 e 7 do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º e
artigo 203.º, in fine, todos da Constituição da República Portuguesa (...).”
O Recorrente apresentou posteriormente alegações, culminando as mesmas com a
formulação das seguintes conclusões:
“1.ª A apreciação de petição do instituto de Protecção Jurídica não configura
bagatela jurídica, antes se apresenta como questão essencial por, a montante da
questão principal trazida a juízo, poder cercear ou impedir o acesso ao direito
e aos tribunais pelo cidadão economicamente carenciado.
2.ª O recurso da decisão judicial tirada sobre a impugnação do acto
administrativo que tenha indeferido a concessão desse instituto é, na realidade,
o primeiro e único recurso jurisdicional.
3.ª A sua admissibilidade não está vedada por lei, nem nas excepções previstas
no art.º 400.º do Código de Processo Penal, nem no n.º 1 do art.º 28.º da Lei
n.º 34/2004, de 29 de Julho, não podendo existir qualquer razão para interpretar
esta norma de modo diverso do que a sua letra expressa, por absoluta omissão.
4.ª Sendo a regra geral, a do art.º 399.º da aludida lei adjectiva penal, a
aplicável pois que a irrecorribilidade tem que estar expressa taxativamente.
5.ª Sem que sequer se possam esgrimir quaisquer outros motivos, designadamente
de índole histórico ou de celeridade, que obstem a esta interpretação.
6.ª Muito menos a expressão “Alcance da decisão final’ plasmada no art.º 29.º da
mesma Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, pode ser entendida noutro sentido que não
como sendo a definitiva, a que já não admite recurso judicial, a transitada em
julgado.
7.ª É, pois, recorrível por nada estar expresso nessas normas legais no sentido
contrário, devendo estar se o não fosse, segundo a regra do citado art.º 399.º
do Código de Processo Penal.
8.ª A interpretação legislativa das normas arguidas plasmada pelo Tribunal a quo
viola o direito do cidadão carenciado a aceder de forma célere e equitativa ao
direito e aos tribunais, sindicando as decisões judiciais que se lhe afigurem de
erradas e/ou ilegais, competindo aos tribunais, em primeira linha, tutelar tais
direitos, assegurando o seu exercício, em submissão à lei e à constituição, seja
qual for a posição desse cidadão na acção a dirimir.
9.ª Devendo, em conformidade, ser declarada a inconstitucionalidade das normas
dos artigos 28.º, n.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e do art.º 399.º, do
Código de Processo Penal, na interpretação dada, contrária ao sentido emergente
da aplicação da regra do n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, de que a decisão
judicial tirada da impugnação do acto administrativo é irrecorrível por violar
os imperativos dos artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, artigo
202º, n.ºs 1 e 2, e artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa (...).”
O Ministério Público concluiu as contra-alegações, por si apresentadas, do
seguinte modo:
“A norma constante do artigo 28º, nº 1, da Lei nº 34/04, interpretada em termos
de consagrar a irrecorribilidade da decisão, proferida pelo tribunal de 1ª
instância, que haja julgado improcedente a impugnação deduzida pelo interessado
em obter o apoio judiciário, não viola qualquer preceito ou princípio
constitucional.
Termos em deverá improceder o presente recurso.”
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as normas
contidas no artigo 399.º, do Código de Processo Penal, e no n.º 1, do artigo
28.º, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, conjugadas com o artigo 9.º, do Código
Civil, quando interpretadas no sentido de que não é admissível recurso da
decisão do tribunal de comarca que decida a impugnação judicial da decisão
negativa da segurança social.
Impõe-se, porém, restringir o universo das normas cuja interpretação importa
sindicar, na medida em que as normas contidas no artigo 399.º, do Código de
Processo Penal, e no artigo 9.º, do Código Civil, não integram expressa ou
implicitamente a ratio decidendi da decisão recorrida.
O tribunal a quo fundou a sua decisão exclusivamente na interpretação e
aplicação dos artigos 26.º, n.º 2, e 28.º, da Lei nº 34/2004, em especial no
referido art.º 28.º.
Entretanto, a Lei 47/2007, de 28 de Agosto de 2007, veio introduzir alterações à
Lei n.º 34/2004, tendo modificado a redacção do seu artigo 28º, o qual passou a
dispor expressamente, no seu n.º 5, que a decisão judicial que conceda ou recuse
provimento à impugnação da decisão dos serviços de segurança social, é
irrecorrível.
Contudo, estas alterações só são aplicáveis aos pedidos de apoio judiciário
apresentados após 1-1-2008, pelo que não assumem qualquer relevância no caso
concreto.
Assim sendo, o objecto do recurso restringir-se-á à aludida questão da
inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 26.º, n.º 2, e
28.º, nº 1, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de
que não é admissível recurso da decisão do tribunal de comarca que decida a
impugnação judicial da decisão negativa da segurança social.
2. Da questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos
26.º, n.º 2, e 28.º, nº 1, da Lei 34/2004.
O presente recurso versa a temática do direito de recurso, em especial a vexata
quaestio da exigência constitucional de um duplo grau de jurisdição, desta feita
relacionada especificamente com o regime jurídico de acesso ao direito e aos
tribunais, aprovado pela Lei 34/2004, de 29 de Julho.
Entendeu o tribunal a quo que a decisão proferida em primeira instância pelo
tribunal de comarca sobre a impugnação judicial da decisão negativa do serviço
de segurança social é insusceptível de recurso.
A decisão recorrida funda este entendimento na interpretação conjugada das
normas contidas nos artigos 26.º, n.º 2, e 28.º, n.º 1, da Lei 34/2004.
Vejamos o teor das normas da Lei 34/2004 com relevância para a decisão do
presente recurso de constitucionalidade:
“(...)
Art. 26.º
(Notificação e impugnação da decisão)
(...)
2. A decisão sobre o pedido de protecção jurídica não admite reclamação nem
recurso hierárquico ou tutelar, sendo susceptível de impugnação judicial nos
termos dos artigos 27.º e 28.º.”
(...)
Art. 27.º
(Impugnação judicial)
(...)
3. Recebida a impugnação, o serviço de segurança social (...) dispõe de 10 dias
para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a,
enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal
competente.
(...)
Art. 28.º
(Tribunal competente)
1. É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em
que está sediado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de
protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção,
o tribunal em que esta se encontra pendente.
(...)
4. Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso, e
imediatamente conclusa ao juiz, que, por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade
ou manifesta inviabilidade.
Art. 29.º
(Alcance da decisão final)
1. A decisão que defira o pedido de protecção especifica as modalidades e a
concreta medida do apoio concedido.
(...).”
Não cabe aqui sindicar ou tecer considerações relativamente ao acerto ou
desacerto da interpretação jurídica destas normas concretamente levada a cabo
pela decisão recorrida.
Apenas interessa saber se o resultado hermenêutico expressa ou implicitamente
alcançado pelo tribunal a quo respeita as regras ou princípios constitucionais.
Todavia, não se deixa de registar que a interpretação normativa ora posta em
crise no presente recurso de constitucionalidade corresponde à posição defendida
por alguma doutrina (vide SALVADOR DA COSTA, em “O apoio judiciário”, pág. 185,
da 5.ª Edição, da Almedina pág. 185) e maioritariamente seguida pela
jurisprudência dos Tribunais da Relação.
A Lei 34/2004 prevê a possibilidade de impugnação judicial da decisão negativa
da segurança social ao fazer intervir o tribunal de comarca.
Esta impugnação judicial conduz assim à primeira apreciação jurisdicional da
pretensão do requerente do benefício do apoio judiciário.
Não se está aqui na presença de um recurso em sentido próprio na medida em que a
decisão posta em crise não foi proferida por um tribunal, ou seja, não há que
falar aqui em qualquer satisfação de grau de recurso ou mesmo de um duplo grau
de jurisdição.
A questão do direito ao recurso só se coloca, pela primeira vez, perante a
emergência de uma decisão negativa do tribunal de comarca.
Importa saber o que está em causa quando se fala em direito ao recurso.
A propósito do processo civil, ensinava PAULO CUNHA (“Processo Comum de
Declaração”, 2.º Vol., págs. 368 e 376 e segs., ed. de 1944, de Augosto Costa)
que os recursos são os meios de impugnação da sentença que consistem em se
procurar a eliminação dos defeitos da sentença injusta ou inválida por devolução
do julgamento a outro órgão da judicatura hierarquicamente superior, ou em se
procurar a correcção de uma sentença já transitada em julgado.
Tal noção geral de recurso é igualmente recebida no âmbito do processo penal
(vide GERMANO MARQUES DA SILVA, em “Curso de Processo Penal”, III, pág. 301, da
ed. de 1994, da Verbo).
“A impugnação das decisões satisfaz um interesse da parte prejudicada, que assim
pode obter a correcção de uma decisão que lhe é desfavorável. Aquela impugnação
também corresponde aos interesses gerais da comunidade, porque a eliminação de
decisões erradas ou viciadas não só combate os sentimentos de segurança e
injustiça, como favorece o prestígio dos tribunais e a uniformização
jurisprudencial. (...) A impugnação da decisão perante um tribunal de hierarquia
superior assenta no pressuposto de que aquele tribunal se encontra em melhores
condições de apreciar o caso sub iudice do que o tribunal recorrido. Tal
deve-se, entre outros factores, quer à experiência e maturidade dos juízes que o
compõem, quer à colegialibilidade dos tribunais superiores (por oposição ao
tribunal singular que opera na primeira instância), quer ainda à concentração
dos seus esforços em aspectos específicos da causa.” (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA,
em “Estudos sobre o novo Processo Civil”, pág. 376, da 2ª ed., da Lex).
Um olhar minimamente atento sobre as regras que conformam a extensão da
recorribilidade no âmbito das diferentes jurisdições permite chegar à conclusão
de que a regra geral adoptada pelo legislador ordinário no nosso sistema
processual é a da recorribilidade das decisões judiciais para instâncias
superiores.
Essa tem sido aliás a orientação geral dos diversos sistemas jurídicos desde a
introdução da appelatio do direito processual romano, apesar da existência de
tribunais de recurso hierarquicamente superiores não deixar de suscitar opiniões
críticas, sobretudo em épocas de “revolução” (referenciando estas críticas, vide
ARMINDO RIBEIRO MENDES, em “Direito processual civil III – Recursos”, pág.
121-123, da ed. da A.A.F.D.L., de 1982).
Contudo, olhando a Constituição, não vemos nenhum preceito que consagre
expressamente, em termos genéricos, o direito a um duplo grau de jurisdição.
A Revisão Constitucional de 1997 procedeu somente à alteração do artigo 32.º,
n.º 1 da Constituição, autonomizando expressamente o recurso no contexto das
garantias de defesa que o processo penal deve assegurar.
Este direito ao recurso, como garantia de defesa, tem sido identificado pelo
Tribunal Constitucional com a garantia do duplo grau de jurisdição quanto a
decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penas respeitantes à
situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer
outros direitos fundamentais. Ao mesmo tempo que isso é reconhecido, não se
deixa igualmente de afirmar que a Constituição não assegura o duplo grau de
jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal, havendo
assim de admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em
certas fases do processo e que, relativamente a certas decisões, possa mesmo não
existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial do direito
de defesa do arguido.
Tal exigência viria a vigorar cumulativamente na ordem jurídica portuguesa por
força da entrada em vigor, em 1 de Março de 2005, do Protocolo n.º 7 à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 2.º consagrou também expressamente,
como valor supra-legal, o “direito a um duplo grau de jurisdição em matéria
penal”.
No plano constitucional processual civil não se encontra expressamente
consagrada qualquer norma sobre recursos.
Porém, são vários os preceitos constitucionais dos quais se pode retirar uma
consagração implícita do direito ao recurso, nomeadamente aqueles que se referem
ao Supremo Tribunal de Justiça e aos Tribunais judiciais de primeira e segunda
instância (artigos 209.º, n.º 1, a), e 210.º, n.º 1, 3, 4 e 5).
Desta previsão constitucional de tribunais de diferente hierarquia resulta que o
legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de
recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação global dos
recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais
superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional (cfr.
FERNANDES THOMAZ e COLAÇO CANÁRIO, em “O objecto do recurso em processo civil”,
na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 42, 1982, II, págs. 365-366, e ARMINDO
RIBEIRO MENDES, na ob. cit., págs. 124-127).
Para além desta limitação, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de
liberdade na conformação do direito ao recurso.
Não é desconhecida, porém, a tese da imposição constitucional da recorribilidade
das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, pelo menos os que
integram a categoria constitucional dos “direitos, liberdades e garantias”. Esta
tese tem origem numa declaração de voto aposta por VITAL MOREIRA, no acórdão n.º
65/88 (em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 11.º vol., pág. 653) com o
seguinte teor:
“Votei a conclusão do acórdão, mas não acompanho em tudo a respectiva
fundamentação. Com efeito, penso que há‑de considerar‑se constitucionalmente
garantido – ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático –
o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos
fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria
penal – como se reconhece no acórdão – mas também todas as decisões judiciais
que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a
categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 25.º e
seguintes da CRP).
É neste entendimento que continuo a sustentar o que noutro lugar
subscrevi (Constituição da República Portuguesa Anotada, de que sou co‑autor,
juntamente com J. J. Gomes Canotilho), no sentido de que «o direito de recurso
para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes
garantias constitucionais», naturalmente quando se trata da «defesa de direitos
fundamentais» (ob. cit., 2.ª ed., vol. 1.º, p. 181, nota III ao artigo 20.º).
De resto, não é por acaso que em alguns ordenamentos constitucionais
estrangeiros existem específicos recursos de defesa de direitos fundamentais
(«recurso de amparo», «Verfassungsbeschwerde»), inclusive contra decisões
judiciais, recurso normalmente destinado aos tribunais constitucionais, ou com
funções de jurisdição constitucional. Entre nós, não existindo tal figura (cf.
ob. cit., ibidem), penso que não pode deixar de considerar‑se necessária ao
menos a garantia de um grau de recurso (e portanto de um «duplo grau de
jurisdição») como componente inerente ao regime constitucional das garantias dos
direitos fundamentais constitucionais.
Recorde‑se, de resto, que uma tal ideia de reapreciação
jurisdicional das decisões (inclusive as judiciais) que afectem direitos
fundamentais encontra eco mesmo no plano de direito internacional, no âmbito da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, através da queixa dos particulares à
Comissão Europeia dos Direitos do Homem, com eventual submissão de tal queixa ao
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.”
A esta posição veio a aderir ANTÓNIO VITORINO, na declaração de voto aposta ao
acórdão n.º 202/90 (em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 16.º vol., pág.
505).
Pode ler-se também no comentário de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA ao artigo
20.º, da C.R.P. (em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I,
págs. 161-165, da 4.ª Edição, da Coimbra Editora):
“O direito de acesso aos tribunais e à tutela judicial efectiva não fundamenta
um direito subjectivo ao duplo grau de jurisdição. Discute-se em que medida o
direito de acesso aos tribunais inclui o direito ao recurso das decisões
judiciais, traduzido no direito ao duplo grau de jurisdição. A chamada doutrina
de “2.ª instância em matéria penal” encontra-se expressamente consagrada no art.
14.º-5 do PIDCP e resulta já do art. 32.º-1 da CRP (Ac. TC n.º 210/86 e 8/87).
Não existe, porém, um preceito constitucional a consagrar “a dupla instância” ou
o duplo grau de jurisdição em termos gerais (Ac. TC n.º 31/87, 65/88, 163/90,
259/97 e 595/98). Todavia, o recurso das decisões judiciais que afectem direitos
fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, mesmo fora do
âmbito penal, apresenta-se como garantia imprescindível desses direitos. Em todo
o caso, embora o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à
regulação dos requisitos e graus de recurso, ele não pode regulá-lo de forma
discriminatória, nem limitá-lo de forma excessiva (...)”.
Referem ainda JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (em “Constituição Portuguesa
Anotada”, tomo I, pág. 200, da ed. de 2005, da Coimbra Editora) o seguinte:
“A plenitude do acesso à jurisdição e os princípios da juridicidade e da
igualdade postulam um sistema que assegure a protecção dos interessados contra
os próprios actos jurisdicionais, incluindo um direito de recurso.
É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de
acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos
interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à
recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário,
permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo
colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora
maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso (…).
O Tribunal Constitucional reconhece, no entanto, que – por força dos artigos
27.º, 28.º, e 32.º, n.º 1 – a exigência de um duplo grau de jurisdicção (…) está
constitucionalmente consagrada no âmbito do processo penal, não relativamente a
todas as decisões proferidas, mas em relação às decisões condenatórias do
arguido (…) bem como às decisões respeitantes à situação do arguido em face da
privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais
(…).
Conclusão análoga – sustentada, em termos ainda assim não inteiramente
coincidentes, mais por parte da doutrina do que pela jurisprudência dominante
(…) deve admitir-se relativamente às decisões jurisdicionais que imponham
restrições a direitos, liberdades e garantias (ou, pelo menos, em face da
preocupação constitucional, subjacente ao artigo 20.º, n.º 5, em assegurar a
tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos,
liberdades e garantias pessoais, em relação às decisões jurisdicionais que
restrinjam tais direitos). A conclusão baseia-se na analogia com a situação
consagrada em matéria de restrições à liberdade e é coerente com o princípio do
carácter restritivo das restrições aos direitos, liberdades e garantias, que se
extrai do artigo 18.º, n.º 2 e 3.”
A referência a esta opinião também se encontra em diversos acórdãos do Tribunal
Constitucional, sem que contudo se mostre aplicada como fundamento de qualquer
decisão que tenha imposto o direito ao recurso em processo civil.
Antes de avançarmos para uma análise desta tese, importa verificar se o direito
à concessão de apoio judiciário pode ser qualificado como um direito que integra
a categoria constitucional dos “direitos, liberdades e garantias”. Para isso
justifica-se perdermos algum tempo numa caracterização sintética do sistema
legal de acesso ao direito e aos tribunais e precisar aquilo que pode ser posto
em causa no plano infraconstitucional quando é proferida uma decisão negativa do
serviço de segurança social.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais, conforme foi consagrado e
regulado na Lei n.º 34/2004, encontra-se impressiva e suficientemente descrito
nas normas que a seguir se passam a enunciar.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a
ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou
cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício
ou a defesa dos seus direitos (artigo 1.º, n.º 1).
O acesso ao direito compreende a informação jurídica e a protecção jurídica
(artigo 2.º, n.º 2).
A protecção jurídica é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou
susceptíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que
versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão (artigo 6.º,
n.º 2).
A protecção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio
judiciário (artigo 6.º, n.º 1).
O apoio judiciário compreende as seguintes modalidades: a) dispensa total ou
parcial de taxa de justiça e demais encargos com o processo; b) nomeação e
pagamento de honorários de patrono; c) pagamento de remuneração do solicitador
de execução designado; d) pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos
com o processo, de honorários de patrono nomeado e de remuneração do solicitador
de execução designado (artigo 16.º, n.º 1).
O regime do apoio judiciário aplica-se em todos os tribunais e nos julgados de
paz, qualquer que seja a forma de processo (artigo 17.º, n.º 1).
O apoio judiciário é concedido independentemente da posição processual que o
requerente ocupe na causa (artigo 18.º, n.º 1).
A decisão sobre a concessão de protecção jurídica em geral compete ao dirigente
máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do
requerente (artigo 20.º, n.º 1).
O procedimento de protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário é
autónomo relativamente à causa que respeite, não tendo qualquer repercussão
sobre o andamento desta, com algumas – e não pouco relevantes – excepções
(artigo 24.º, n.º 1).
Efectivamente, uma vez requerido o apoio judiciário, suspende-se, neste caso, o
prazo para o pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo até à
decisão definitiva do pedido de apoio judiciário (artigo 18.º, n.º 2).
Acresce a isso que quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na
pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o
prazo que estiver em curso interrompe-se e inicia-se, conforme os casos, a
partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação ou a partir da
notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de
patrono (artigo 24.º, n.º 4).
Estas excepções acabadas de referir assumem relevância indiscutível no âmbito de
qualquer jurisdição, em especial no processo civil.
Importa ter presente que os processos cíveis estão sujeitos a custas e que a
falta de pagamento das mesmas é acompanhada de consequências jurídicas
processuais negativas (artigos 1.º e 28.º, do Código das Custas Judiciais).
A falta de pagamento da taxa de justiça inicial pelo autor determina o
desentranhamento da petição inicial (artigo 467.º, n.º 5, do Código de Processo
Civil).
A falta de pagamento da taxa de justiça inicial pelo réu determina o
desentranhamento da contestação e, se for o caso, da réplica (art. 486.º-A, n.º
6, do Código de Processo Civil).
A falta de pagamento da taxa de justiça subsequente pelo autor e pelo réu
determina a não produção das diligências de prova requeridas ou sugeridas pelo
faltoso (artigo 512.º-B, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Nos recursos a falta de pagamento das taxas de justiça inicial e subsequente
pelo autor e pelo réu determina o desentranhamento da alegação, do requerimento
ou da resposta apresentada pela parte em falta (artigo 690.º-B, n.º 2, do Código
de Processo Civil).
Por outro lado, não se pode perder de vista que a constituição de advogado é
obrigatória, para além do mais, nas causas de competência de tribunais com
alçada, em que seja admissível recurso ordinário, nos recursos e nas causas
propostas nos tribunais superiores (artigo 32.º, n.º 1, a) e c) do Código de
Processo Civil).
Se a parte não constituir advogado, sendo obrigatória a constituição, o tribunal
fá-la-á notificar para o constituir dentro de prazo certo, sob pena, consoante
os casos, de o réu ser absolvido da instância, de não ter seguimento o recurso
ou de ficar sem efeito a defesa (artigo 33.º, do Código de Processo Civil).
Acresce que se o réu não contestar, tendo sido citado regulamente na sua pessoa
– ou tendo sido ordenado o desentranhamento da contestação –, consideram-se
confessados os factos articulados pelo autor (artigo 484.º, nº 1, do Código de
Processo Civil).
A matéria relacionada com a atribuição do apoio judiciário saiu da esfera dos
tribunais – na parte que se refere à competência para a apreciação dos pedidos
de apoio judiciário – e passou a ser da competência dos serviços da segurança
social com a entrada em vigor da Lei 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
Foi então argumentado pelo então Ministro da Justiça que “o apoio judiciário
destina-se a quem se encontra em situação de carência económica e constitui uma
prestação social dos Estado idêntica às suas outras prestações sociais. Não
deve, por isso, ser tramitada em tribunal, como é actualmente, mas, sim, nos
serviços da segurança social, como acontece com as demais prestações sociais.
(...) Ora, a atribuição de uma prestação social de apoio judiciário é o mesmo
que a atribuição de uma prestação social de subsídio de desemprego, de
rendimento mínimo garantido, de qualquer outra prestação social relativamente às
quais não se vai requerer ao tribunal a sua concessão” (Vide discussão, na
generalidade, da proposta de lei n.º 51/VIII, D.A.R. I Série, n.º 26, págs.
993-994).
A atribuição de competência decisória a uma entidade administrativa em matéria
de concessão de apoio judiciário teve por objectivo libertar os tribunais do
peso burocrático dos procedimentos de avaliação da situação económica dos
interessados num contexto de ausência de qualquer litígio carecido de
composição, mas essa deslocação ou desjudicialização não pode significar em si
mesma uma restrição ao direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais.
A relevância constitucional da concessão da protecção jurídica, nomeadamente a
concessão do benefício do apoio judiciário, não se esgota na decisão da
segurança social.
O requerente do benefício do apoio judiciário tem em vista aceder ao Direito e
aos tribunais para fazer valer um direito próprio ou para se opor ao exercício
de um direito por terceiros.
A protecção jurídica requerida pode reportar-se ao exercício de qualquer
direito, no âmbito de qualquer jurisdição (constitucional, cível, laboral,
penal, administrativa,...), e a decisão negativa da segurança social pode
condicionar ou comprometer seriamente o exercício desses direitos, tendo já
sido acima enunciadas as consequências da falta de pagamento das custas
judiciais e da falta de constituição de advogado em processo civil.
O direito à protecção jurídica em sentido amplo ou, pelo menos, o direito ao
apoio judiciário, embora se traduza num direito a prestações estaduais, não
deixa de constituir um direito suficientemente densificado no plano
constitucional.
Da visão exposta resulta com clareza que a defesa dos direitos em geral pode ser
afectada pela concreta conformação do regime processual do acesso ao direito e
aos tribunais dos economicamente carenciados, pelo que o direito à obtenção de
apoio judiciário por estes é um elemento essencial do direito ao acesso aos
tribunais, pelo que deve ser encarado como um direito fundamental de natureza
análoga à dos “direitos, liberdades e garantias”, participando nessa medida do
correspondente regime (vide, neste sentido, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, em
“Constituição Portuguesa anotada”, ob cit., pág. 181).
Tendo-se concluído pela qualificação constitucional do direito ao apoio
judiciário como direito fundamental, importa agora verificar se essa
qualificação exige o recurso da decisão judicial que confirma o indeferimento
pelos serviços da segurança social do pedido de reconhecimento desse direito.
Escreveu-se no acórdão hoje mesmo proferido por este Tribunal no processo n.º
651/07:
“…afigura‑se que – para além dos casos em que este Tribunal tem tradicionalmente
afirmado a imposição constitucional de um direito ao recurso jurisdicional (ou
direito a um duplo grau de jurisdição), a saber: as decisões condenatórias em
processo penal ou que impliquem a adopção de medidas restritivas da liberdade ou
de outros direitos fundamentais do arguido (orientação reafirmada, por último,
nos Acórdãos n.ºs 500/2007 e 588/2007, que justamente julgaram não
inconstitucional a norma constante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004,
de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso
da decisão judicial tirada sobre impugnação de decisão administrativa que
indefere requerimento de apoio judiciário) – é sustentável que, sendo
constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos
lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias),
sejam esses actos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, forçoso
é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam
eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira
e directa da afectação de tais direitos. Considera‑se, pois, que quando uma
actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito
fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deve ser
reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a
afectação do direito fundamental do cidadão teve origem numa actuação da
Administração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo
jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação
judicial dessa decisão.
O direito ora em causa – o direito ao apoio judiciário como condição de
exercício efectivo do direito de acesso aos tribunais – comunga da
fundamentalidade deste último direito (“o direito de acesso ao direito e à
tutela jurisdicional efectiva (…) é, ele mesmo, um direito fundamental,
constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais,
sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito” – J. J. Gomes Canotilho
e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol.
I, Coimbra, 2007, p. 408), salientando estes comentadores que “o facto de serem
hoje os serviços de segurança social as entidades competentes para a apreciação
de concessão de apoio judiciário não significa que estejamos aqui perante uma
dimensão do direito à segurança social, mas sim perante uma dimensão
prestacional de um direito, liberdade e garantia” (obra citada, p. 411). Esta
relação de instrumentalidade justificou que o legislador tenha atribuído
relevância à natureza do direito para cujo exercício o apoio judiciário é pedido
para determinar o tribunal materialmente competente para conhecer da impugnação
judicial da decisão administrativa que haja denegado esse apoio (cf. n.ºs 1 e 2
do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004). No presente caso, visando o pedido de apoio
a constituição do requerente como assistente em inquérito criminal, a decisão
da impugnação judicial coube, em primeira instância, ao juiz de instrução
criminal e o recurso intentado interpor da decisão judicial dessa impugnação foi
apreciado (para não ser admitido) pela Secção Criminal do Tribunal da Relação,
tomando em linha de conta, a par do citado artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, o
artigo 399.º do CPP.
De acordo com o entendimento atrás exposto, compreende‑se que quando
a concessão do apoio (ou assistência) judiciário competia, em primeira linha,
aos tribunais, o legislador tenha sempre assegurado recurso da decisão judicial
que negasse essa concessão (cf. supra, 2.1.), porque então a afectação do
direito de acesso aos tribunais era directamente imputável à actuação do
tribunal.
Diferentemente, após a Lei n.º 30‑E/2000, a afectação do direito de
acesso aos tribunais deriva da prolação de um acto administrativo, contra o qual
foi assegurado o acesso aos tribunais, através da possibilidade de impugnação
judicial da decisão da Segurança Social. Não se trata de ressuscitar a concepção
monista do contencioso administrativo, que via na fase judicial um mero
prolongamento da fase graciosa e equiparava a decisão administrativa a uma
decisão judicial. Do que se trata é de reconhecer que, neste contexto, mesmo que
essa impugnação venha a ser julgada improcedente, a afectação do direito do
cidadão de acesso aos tribunais não é directamente imputável à decisão
judicial que julgue a impugnação, e o direito de reapreciação judicial das
decisões (ou condutas) jurisdicionais só se deve considerar constitucionalmente
imposto, de acordo com a tese avançada, se a afectação de direitos fundamentais
tiver tido origem na actuação do tribunal.
Na verdade, não resultando nunca, nestes casos, a eventual violação do direito
fundamental à obtenção de apoio judiciário, de acto do tribunal, o qual se
limita a verificar a correcção do indeferimento proferido pelos serviços de
segurança social do pedido de apoio deduzido, mesmo que o confirmem, a protecção
constitucional aos direitos fundamentais não impõe um controlo por um tribunal
hierarquicamente superior da decisão do tribunal que decidiu a impugnação
daquele indeferimento.
Daí que, tal como foi já decidido nos acórdãos deste Tribunal n.º 500/2007 e n.º
588/2007 (ambos disponíveis no site www.dgsi.pt) e no proferido hoje no processo
n.º 651/07, também se conclua que não viola qualquer parâmetro constitucional a
interpretação normativa dos artigos 26.º, n.º 2, e 28.º, nº 1, da Lei 34/2004,
de 29 de Julho, no sentido de que não é admissível recurso da decisão do
tribunal de comarca que aprecia a impugnação judicial da decisão negativa da
segurança social.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por A., da decisão
proferida, em 26-1-2007, neste processo, pelo juiz do 3º Juízo Criminal, do
Tribunal Judicial de Braga.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do D.L. nº 303/98, de 7 de
Outubro (artigo 6.º, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos