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Processo nº 1178/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Pequena Instância Criminal do
Porto, em que é reclamante o Ministério Público e reclamado A., foi proferida
decisão de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, em
9 de Novembro de 2007.
2. Por despacho, de 29 de Outubro de 2007, foi determinada a remessa dos autos
ao DIAP do Porto para tramitação sob outra forma processual (artigo 390º, alínea
a), do Código de Processo Penal), com a seguinte fundamentação:
«Não foi deduzida, até ao momento, acusação no processo, sendo certo que o Digno
Procurador Adjunto, no douto requerimento que antecede, se limita a referir que
reserva “ para o início da audiência de julgamento o poder de substituir a
apresentação de acusação pela leitura do auto de noticia elaborado pelo OPC
detentor”.
Ora, se é certo que o auto de notícia contém factos susceptíveis de integrarem o
elemento objectivo do crime de condução em estado de embriaguez, o mesmo é, no
entanto, totalmente omisso quanto:
-- aos factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do mesmo crime,
ou seja, a culpa na forma de dolo ou negligência, sendo certo que a
jurisprudência é unânime no entendimento de que tais factos devem constar da
acusação (vd., por todos, o Ac. da Relação de Guimarães de 07.04.2003, in CJ,
tomo II, págs. 291-294);
-- às disposições legais aplicáveis, já que se refere apenas “Tipificação:
Crimes contra a segurança das comunicações”;
-- às provas que fundamentam a acusação;
Conclui-se, assim, que pretendendo o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela simples leitura do auto de notícia, sem qualquer
“aditamento” que o complete nos aspectos supra referidos, deve a acusação ser
rejeitada por não conter a narração completa dos factos que integram a prática
do crime, não indicar as disposições legais aplicáveis nem as provas que a
fundamentam (cfr. arts. 283°, n° 3, als. b) a d) e 311°, n°s 2, al. a) e 3, als.
b), c) e d) do CPP).
Realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por acusação
apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio constitucional da
estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de
defesa do arguido, que desconheceria, face á mera leitura daquele auto, a
totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova».
3. O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), mediante
requerimento, de onde se extrai o seguinte:
«(…) a decisão de que ora se recorre, que não admite recurso ordinário – cfr.,
artigo 391.º, do Código de Processo Penal –, ao recusar a aplicação do artigo
389.° n°2, do mesmo diploma legal, com os fundamentos que sustentou e remetendo
os autos para o DIAP, fez uma inconstitucional interpretação quer dos preceitos
legais que aplicou, quer do que se recusou a aplicar, na medida em que com essa
sua concreta actuação violou o princípio do caso julgado formal uma vez que
voltou a pronunciar-se acerca de uma questão já ultrapassada (leia-se,
processualmente precludida), no sentido de que relativamente a ela se encontrava
já esgotado o poder jurisdicional com o proferimento do anterior despacho
judicial que procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em
processo sumário, sendo certo que, a acolher-se a argumentação expendida no
despacho judicial ora recorrido, o que parcialmente se tenderia a conceder,
deveria ter-se enveredado por trilhar caminho diverso, iniciando a audiência e
fazendo oportuno uso dos mecanismos da alteração (substancial, parece-nos,
porque a questão, na certeira óptica da Mma. Juiz a quo, colocar-se-ia entre
factos que, por serem insuficientes, não integrariam qualquer crime, e factos
que, se acrescentados de outros, preencheriam já um tipo legal de crime) dos
factos, o que, se nos afigura que seria suficiente para, dando guarida aos
propósitos de celeridade subjacentes ao processo especial sumário, não deixar de
salvaguardar ainda as garantias de defesa do arguido».
4. Por despacho, que constitui o objecto da presente reclamação, o recurso de
constitucionalidade não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
«O Digno Procurador Adjunto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do
despacho de fls. 18, que ordenou a remessa dos presentes autos de processo
sumário ao DIAP do Porto, para tramitação sob outra forma processual, nos termos
do art. 390º, al. a) do Código de Processo Penal, por se ter entendido que a
acusação por mera remissão para o auto de notícia deveria ser rejeitada, nos
termos dos arts. 283°, n°3, als. b) a d) e 311°, n°s2, al. a) e 3, als. b), c) e
d) do Código de Processo Penal, já que o auto em causa, contendo embora factos
susceptíveis de integrarem o elemento objectivo do crime de condução em estado
de embriaguez, é totalmente omisso quanto aos factos susceptíveis de integrarem
o elemento subjectivo do mesmo crime, às disposições legais aplicáveis e às
provas que fundamentam a acusação.
*
Cabe a este tribunal, nos termos do art. 76°, nºs 1 e 2 da Lei 28/84, de 15/11,
na sua actual redacção, decidir sobre a admissibilidade do recurso, sendo certo
que este deve ser indeferido quando a decisão o não admita.
O recurso foi interposto nos termos dos arts. 280°, n° 1, al. a) da Constituição
da República Portuguesa e 70°, n° 1, al. a) da Lei de organização, funcionamento
e processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15/11, na sua actual
redacção).
De acordo com tais preceitos, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento
em inconstitucionalidade.
Ora, salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional».
5. Deste despacho vem agora o recorrente reclamar para a conferência (artigo
76º, nº 4, da LTC), pelas seguintes razões:
«Reclama-se do despacho judicial que indeferiu o requerimento de recurso
oportunamente apresentado pelo Ministério Público, fundamentando que «(...),
salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional».
Ousando discordar do teor desta afirmação, quer-nos parecer que tendo o
Ministério Público - na sequência do despacho da Mma. Juiz a quo que ordenou a
conclusão dos autos ao Ministério Público «uma vez que no tribunal de turno foi
apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do art°. 387°,
n°2, al. a) do CFP, não tendo sido deduzida acusação» - reservado para o início
da audiência de julgamento o uso da faculdade concedida pelo artigo 389.° n°2,
do Código de Processo Penal, a posterior decisão judicial que recaiu sobre essa
posição do Ministério Público não só nega a aplicação concreta da disposição
legal por este invocada (melhor, a faculdade que se protestou exercer em devido
tempo ao abrigo dessa disposição legal) como fundamenta essa não aplicação no
facto de que «realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por
acusação apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as
garantias de defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele
auto, a totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e aprova».
Não sendo de exigir fórmulas sacramentais para dizer as coisas, quer-nos parecer
que outra coisa não fez a Mma. Juiz que não tenha sido recusar a aplicação
concreta da norma em que o Ministério Público se baseou para reservar o
exercício da faculdade invocada, fundamentando mesmo essa recusa no facto de que
a aplicação de tal norma não só seria inconstitucional por violar o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal como poria em causa
as garantias de defesa do arguido.
Parece-nos claro que quer pela leitura integral do despacho judicial recorrido,
quer pelos antecedentes que ao mesmo conduziram, será forçoso concluir que, em
rigor, o que a Mma Juiz a quo fez foi declarar que recusava, por
inconstitucional, a aplicação daquela norma quando literalmente interpretada no
sentido de permitira realização de julgamento em processo sumário nos casos em
que o Ministério Público não tenha deduzido acusação e se reserve para o início
da audiência de julgamento em processo sumário o poder de substituir a acusação
pela leitura do auto de notícia elaborado pelo OPC revelando-se este auto de
notícia insuficiente na medida em que se mostre omisso quanto aos factos
susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime em causa, quanto às
disposições legais aplicáveis e quanto às provas que fundamentam a acusação».
6. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se
pronunciou no seguinte sentido:
«Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal “a quo”, – exclusivamente fundado na alínea a)
do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70º, nº 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma “verdadeira” recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389º, nº 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz “a quo” de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer “aditamento”, num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389º, nº 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a “substituição” da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389º, nº 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigo 283º, nº 3, e 311º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal) para concluir
que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da audiência,
pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas por aqueles
preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa “linha de fronteira” entre a verdadeira
“recusa de aplicação” normativa, enquadrável na alínea a) do nº 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos legais
“em conformidade com a Constituição” (cf., v.g., os Acórdãos nºs 170/85, 425/89,
137/89, 636/94 e 1020/96) afigura-se que – no caso dos autos – o juízo de
inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou “única ou primacialmente”
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros – A Decisão de Inconstitucionalidade,
pg. 331 e segs) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental, mas
não desempenhando “o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação”
(cf.ainda o Acórdão nº 285/02)
Assim, por se afigurar que o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se limitou
a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera “leitura” pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira “recusa de aplicação normativa”, enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A presente reclamação tem como objecto o despacho que não admitiu o recurso de
constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a)
do nº 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento na não verificação de um dos seus
requisitos: recusa de aplicação de norma por violação de norma ou princípio
constitucional. No caso, por se ter entendido que não houve recusa de aplicação,
expressa ou implícita, do artigo 389º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Em autos em tudo idênticos aos presentes, o Tribunal Constitucional decidiu
indeferir a reclamação (Acórdão nº 8/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), com os fundamentos seguintes, que se acompanham:
«(…) resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento primordial e
determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o Ministério
Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia
da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do artigo 389.º
do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as disposições dos
artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alíneas
b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam que a acusação do
Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a narração dos factos, a
indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e que o presidente do
tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento, sem ter havido
instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada,
sendo tida como tal a acusação que não contenha a narração dos factos, a
indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam, ou
se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado».
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão