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Processo n.º 1130/2007
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP) e do n.º 1 do artigo 51.º e do n.º 1
do artigo 57.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), que o Tribunal
Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição da República das
seguintes normas do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, recebido na
Presidência da República no dia 21 de Novembro de 2007 para ser promulgado como
lei:
- norma constante do n.º 3 do artigo 2.º e, a título consequente, as normas do
n.º 2 do artigo 10.º e do n.º 2 do artigo 68.º;
- normas constantes do proémio do n.º1 do artigo 80.º assim como das respectivas
alíneas a) e c); do proémio do n.º 1 do artigo 101.º e das suas alíneas a) e b)
bem como do n.º 2 do mesmo preceito; e do proémio do n.º 1 do artigo 112.º assim
como das respectivas alíneas a), b) e c);
- normas constantes da alínea b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 35.º;
- norma constante do n.º 3 do artigo 36.º bem como, a título consequente, as
normas previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo e, ainda, com fundamento em
reenvio para o n.º 3 do artigo 36º, a norma constante do n.º 2 do artigo 94.º;
- norma constante do n.º 2 do artigo 54.º;
- norma constante do n.º 1 do artigo 55.º conjugada com as demais normas do
mesmo preceito;
- norma constante do n.º 8 do artigo 56.º;
- norma constante do nº 3 do artº 68º e norma prevista no nº 5 do mesmo artigo.
Fundamentou o seu pedido nas seguintes ordens de considerações:
1º As normas que são objecto do presente pedido de fiscalização da
constitucionalidade integram o decreto aprovado pela Assembleia da República que
«estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos
trabalhadores que exercem funções públicas», o qual revoga, em bloco, toda a
legislação vigente sobre a mesma matéria, nela se encontrando incluída
legislação de bases, como é o caso do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, que
estabelece princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e
gestão do pessoal da função pública.
2º O decreto sindicado, pese o facto de incidir no âmbito de uma matéria
relativamente à qual a alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP prevê a edição
de legislação de bases, não se auto-qualifica como um acto legislativo dessa
natureza, embora contenha no seu preceituado, a par de uma normação maioritária
de tipo comum, diversos princípios gerais e comandos paramétricos sobre outras
leis, susceptíveis de serem identificados como bases gerais, pelo que, em razão
do valor heterogéneo das disposições que o integram, o mesmo acto é passível de
ser qualificado como uma lei «mista».
I. Aplicação do diploma aos magistrados dos tribunais judiciais
3º A norma constante do n.º 3 do artigo 2º do decreto, a qual dispõe sobre o seu
âmbito subjectivo de aplicação, determina expressamente que «sem prejuízo do
disposto na Constituição e em leis especiais, a presente lei é ainda aplicável,
com as necessárias adaptações, aos juízes de qualquer jurisdição e aos
magistrados do Ministério Público».
4º O n.º 1 do artigo 215.º da CRP determina que os juízes dos tribunais
judiciais «formam um corpo único e regem-se por um só estatuto», do que decorre:
a) Que a mesma categoria de juízes possui uma especificidade estatutária própria
em face dos restantes juízes, bem como em relação ao Ministério Público e aos
funcionários públicos em geral;
b) Que sendo os tribunais judiciais órgãos de soberania (n.º1 do artigo 110.º da
CRP) e os juízes titulares dos mesmos órgãos (n.º 1 do artigo 215.º da CRP),
impõe-se que o conteúdo nuclear e funcional do seu estatuto conste
necessariamente de lei aprovada pela Assembleia da República ao abrigo da sua
reserva absoluta de competência legislativa (alínea m) do artigo 164.º da
Constituição).
5º Não deixa de ser legítimo inferir, no plano lógico e no teleológico, sob pena
de incongruência, que se a norma do n.º 3 do artigo 2.º do decreto coloca os
juízes dos tribunais judiciais no âmbito subjectivo de aplicação desse mesmo
diploma é porque se propõe dispor utilmente sobre o estatuto dos mesmos juízes,
matéria que figura no Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ).
6º Ora, quanto ao sentido dessa incidência normativa, não tendo a disposição
constante do n.º 3 do artigo 2.º do decreto que salvaguarda a vigência de leis
especiais qualquer intenção derrogatória do EMJ pelo diploma “sub iuditio”,
restará circunscrever a aplicação útil e possível do referido decreto aos
magistrados, a apenas dois tipos de relações jurídico-normativas, a saber:
a) A sua aplicação como legislação supletiva em relação ao EMJ;
b) A aplicação paramétrica de alguns dos seus princípios ou bases gerais ao
conteúdo do EMJ, quando tal decorra do decreto.
7º Abordando a hipótese da supletividade configurada na alínea a) do número
anterior, resulta da Constituição que os juízes dos tribunais judiciais são
titulares de órgãos de soberania, cuja independência funcional e orgânica é, por
seu turno, predicada pelas garantias de independência, inamovibilidade e
irresponsabilidade dos mesmos magistrados, pelo que caberá em exclusivo ao
respectivo estatuto – ao qual o artigo 215.º da CRP impõe um conteúdo
necessariamente especial – determinar qual a legislação supletiva que lhe será
aplicável e qual o âmbito dessa aplicação.
8º Verifica-se, por conseguinte, à luz dessa especialidade estatutária
conformada por força de uma imposição constitucional, que:
a) Uma realidade será o EMJ, como lei especial constitucionalmente qualificada e
integrada na reserva absoluta de competência legiferante da Assembleia da
República, definir qual a legislação supletiva que se lhe aplica;
b) Outra, bem diferente, será uma lei integrada na reserva relativa de
competência da mesma Assembleia, assim como na esfera concorrencial desta com o
Governo e tendo por objecto o estabelecimento dos regimes de vinculação de
carreiras e de remunerações dos trabalhadores da função pública, impor-se ao EMJ
como legislação subsidiária.
9º A solução contida no decreto que se encontra em apreciação é precisamente a
inversa da solução constitucionalmente exigível e que consta da alínea a) do
número anterior deste pedido, dado que do n.º 3 do artigo 2.º do decreto
(conjugado com outras disposições, como a do artigo 101.º), se retira uma
imposição de aplicação aos juízes, dos regimes dos trabalhadores que exercem
funções públicas, mesmo na eventual qualidade de legislação supletiva,
invertendo-se a regra decorrente do n.º 1 do artigo 215.º da CRP que reserva ao
estatuto único dos magistrados judiciais a regulação de todo o regime legal que
lhes é funcionalmente aplicável, nele compreendida a determinação da legislação
subsidiária.
10º Por consequência, o facto de o n.º 3 do artigo 2.º do decreto deslocar a
determinação de legislação subsidiária virtualmente aplicável ao EMJ, do
estatuto para os regimes de vinculação, carreiras e remunerações da função
pública, não deixa de poder ter como efeito a sua inconstitucionalidade, bem
como a inconstitucionalidade consequente de outras normas do diploma aplicáveis
aos juízes como o nº 2 do artº 10º e o nº 2 do artº 68º, dado que:
a) O alargamento do âmbito material da legislação subsidiária aplicável aos
juízes, em relação àquele que se encontra presentemente consagrado
circunscritamente no n.º 2 do artigo 10º-A, no artigo 32.º, no artigo 69.º e no
artigo 131.º do EMJ, altera, por força de uma ampliação operada por lei geral, a
previsão mais restrita do direito supletivo fixada por essas normas
estatutárias, o que envolve a sua inconstitucionalidade fundada em violação da
especialidade qualificada do EMJ, garantida pelo n.º 1 do artigo 215.º da CRP,
da qual decorre que seja apenas o estatuto a identificar a respectiva legislação
subsidiária;
b) A assimilação ou equiparação, mesmo parcial, do cargo dos juízes – titulares
de órgãos de soberania cujo exercício de funções é garantido pelos princípios
constitucionais da independência, inamovibilidade e irresponsabilidade – ao
estatuto qualitativamente diverso dos trabalhadores da função pública, o qual
supõe uma relação de hierarquia e dependência funcional com a tutela do Governo
(artigo 182.º da CRP) e a aplicação dos regimes relativos às relações de emprego
e trabalho subordinado, suscita a questão da inconstitucionalidade da norma
sindicada, por ofensa aos princípios constantes do artigo 203.º e dos n.ºs 1 e 2
do artigo 216.º da CRP;
11º Abordando agora as relações de parametricidade a que se refere a alínea b)
do número 6º do pedido, cumpre identificar, pelo menos, três disposições
normativas legais sobre a normação constantes do decreto que se afiguram
susceptíveis de definição como legislação de bases e que vertem comandos
vinculativos sobre diversas leis especiais, das quais o Estatuto dos Magistrados
Judiciais não se encontra excluído, como será o caso:
a) Da norma que declara a prevalência do próprio decreto e de leis que o
regulamentem sobre «leis especiais aplicáveis a carreiras especiais» e que
emerge da conjugação do proémio do n.º 1 do artigo 80.º do decreto e das suas
alíneas a) e c) com o n.º 2 do artigo 10.º, dela resultando a exigência de
conformidade do EMJ com princípios estruturantes do diploma em matéria de
nomeação;
b) Do disposto no n.º 1 do artigo 101.º, que prescreve a obrigatoriedade de
revisão das leis que aprovam regimes especiais e corpos especiais no prazo de
180 dias, tendo por fim a observância dos princípios e objectivos fixados nas
correspondentes alíneas, bem como no n.º 2, não se encontrando excepcionadas as
leis especiais que aprovam o estatuto dos juízes e dos magistrados do Ministério
Público;
c) A norma constante do n.º 1 do artigo 112.º do decreto, na medida em que
impõe, também sem excepcionar o EMJ, a revisão de toda a legislação especial em
matéria de suplementos remuneratórios, no prazo de 180 dias, bem como a sua
necessária subordinação a um conjunto de princípios gerais previstos nas
correspondentes alíneas.
12º Em face do exposto no número anterior, considera-se que:
a) Tendo o decreto sido emitido numa matéria que prevê a existência de bases
gerais integradas na reserva relativa de competência da Assembleia da República
(alínea t) do artigo 165.º da CRP);
b) Tendo as normas constantes dos artigos 80.º, 101.º e 112.º do decreto,
conjugados com o n.º 3 do artigo 2.º do mesmo diploma, fixado princípios
directivos, regimes gerais ou bases aplicáveis às leis especiais, nelas
incluídas as que aprovam os estatutos dos magistrados judiciais e dos
magistrados do Ministério Público;
c) Constituindo o Estatuto dos Magistrados Judiciais, na sua qualidade de
estatuto único dos juízes dos tribunais judiciais, uma lei dotada de
especialidade constitucionalmente qualificada, integrando-se a competência para
a respectiva emissão na reserva absoluta da Assembleia da República e a isso
acrescendo uma “reserva de densificação total” ( alínea m) do artigo 164.º);
d) Impondo o fim constitucional da reserva de lei prevista na alínea m) do
artigo 164.º da CRP que o correspondente objecto nuclear que requeira normação
primária seja consumido integralmente por lei comum da Assembleia da República,
do que resulta, atenta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a proibição
da emissão de princípios vinculantes ou bases gerais no seu âmbito material (as
quais pressuporiam, indevidamente, a emissão inconstitucional de decretos-leis e
decretos legislativos regionais de desenvolvimento);
Importará concluir que: as normas constantes do proémio do n.º1 do artigo 80.º
assim como das respectivas alíneas a) e c); do proémio do n.º 1 do artigo 101.º
e das suas alíneas a) e b) bem como do n.º 2 do mesmo preceito; e do proémio do
n.º 1 do artigo 112.º assim como das respectivas alíneas a), b) e c) podem
enfermar de inconstitucionalidade, na medida em que se apliquem, na qualidade de
bases gerais, ao EMJ, por violação do fim constitucional inerente a um domínio
da reserva absoluta que exige densificação total por lei da Assembleia da
República aprovada ao abrigo da alínea m) do artigo 164.º da CRP.
II. A desigualdade entre pessoas individuais e colectivas na celebração de
contratos de tarefa e de avença pela Administração Pública
13º As normas previstas na alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 do artigo 35.º do
decreto que definem os pressupostos de celebração com a Administração Pública de
contratos de prestação de serviços, nas modalidades de tarefa e de avença,
determinam que:
a) Por regra, a correspondente actividade deva ser realizada por uma pessoa
colectiva, fixando-se um critério geral de precedência favorável às pessoas
colectivas e em detrimento das pessoas individuais;
b) Essa regra geral apenas possa ser derrogada em situações excepcionais,
mormente no caso de se mostrar “impossível” a prestação do serviço por pessoa
colectiva ou de se verificar “inconveniência” nessa contratação;
c) A excepcionalidade da permissão de contratação de pessoas individuais deva
ser reforçada pela obrigatoriedade de sujeição a autorização prévia, a conceder
através de acto discricionário do responsável do Governo para a área das
finanças.
14º Estima-se, por conseguinte, que as normas constantes da alínea b) do n.º 2 e
do n.º 4 do artigo 35.º se mostram susceptíveis de vulnerar o princípio da
igualdade, enunciado no artigo 13º da CRP, na medida em que, estribadas
infundadamente em critérios puramente subjectivos e sem amparo em fim de relevo
constitucional atendível ou numa ponderação ancorada em critérios objectivos,
discriminam negativamente as pessoas individuais em relação às pessoas
colectivas, no que tange aos pressupostos de celebração de contratos de
prestação de serviços com a Administração Pública.
III. A retenção cautelar automática de metade da remuneração base de funcionário
indiciado responsável pela celebração de contrato de prestação de serviços
inválido
15º No caso de os contratos de prestação de serviços, nas modalidades de tarefa
e de avença, violarem os critérios constantes dos n.ºs 2 e 4 do artigo 35.º do
decreto, verifica-se que:
a) A norma do n.º 1 do artigo 36.º do mesmo diploma comina para tais contratos a
sanção da nulidade e a norma constante do n.º 2 do mesmo preceito faz incorrer o
funcionário responsável pela sua celebração em responsabilidade civil,
financeira e disciplinar;
b) O n.º 3 do artigo 36.º determina um mecanismo cautelar, nos termos do qual a
mera instauração de um procedimento administrativo para averiguar a eventual
invalidade da referida contratação ou de um processo jurisdicional tendente a
apreciar a existência de uma situação dessa natureza e a efectivar a consequente
responsabilidade financeira terá como efeito automático a cativação, pelas
unidades orgânicas competentes, de metade da remuneração do trabalhador
responsável por essa contratação.
16º O direito a um salário equitativo e a correspondente garantia de protecção
configuram posições jurídicas activas, cujo “núcleo essencial”, de acordo com a
jurisprudência constitucional assume natureza análoga à dos direitos liberdades
e garantias, dado configurar-se como uma condição necessária a uma existência
condigna (artigo 1.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP), pelo que a
cativação – automática e prévia a qualquer decisão definitiva quanto à
existência de ilicitude – de metade do salário do funcionário indiciado,
prevista no n.º 3 do artigo 36.º do decreto, restringe o direito fundamental ao
salário dos trabalhadores que exercem funções públicas, devendo, nesta medida,
sujeitar-se, na qualidade de norma restritiva, aos limites de proporcionalidade
previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.
17º Em face do exposto, a norma ínsita no n.º 3 do artigo 36.º do decreto pode
enfermar de inconstitucionalidade material, com fundamento em violação da alínea
a) do n.º 1 do artigo 59.º conjugada com os n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP,
dado que:
a) Restringe de forma desnecessária, desadequada e irrazoável o direito ao
salário dos trabalhadores da função pública indiciados pela celebração de
contrato de prestação de serviços eventualmente ilegal, já que, sem fundamento
em interesse público de relevo constitucional que o justifique, impõe a adopção
automática de uma medida cautelar excessiva, a qual implica a cativação por
tempo indefinido de metade do valor do seu salário, antes mesmo de ser
verificada a invalidade do contrato de prestação de serviços celebrado e de ser
apurada a existência de responsabilidade financeira;
b) Restringe para além do constitucionalmente admissível o direito do
trabalhador indiciado à retribuição, já que o automatismo decorrente da
cativação “cega” e por tempo indefinido de metade do seu vencimento pode
implicar uma lesão ao direito a uma existência pessoal e familiar condigna,
depreciando-se o conteúdo fundamental da norma constitucional que garante a
protecção do salário;
Neste sentido, podem ainda enfermar de inconstitucionalidade, a título
consequente, as normas previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo e, ainda, com
fundamento em reenvio para o n.º 3 do artigo 36.º, a norma constante do n.º 2 do
artigo 94.º.
IV. O desenvolvimento de princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos
mediante portaria
18º A norma do nº 1 do artº 54º do decreto não regula directamente a tramitação
do “procedimento concursal” relativo ao recrutamento dos trabalhadores,
limitando-se a fixar nas correspondentes alíneas, “princípios” que devem ser
obedecidos pelas normas que vierem a aprovar essa tramitação, normas essas que,
segundo o nº 2 do mesmo artigo devem assumir a forma de portaria.
19º Existem fundadas dúvidas sobre a conformidade da norma prevista no nº 2 do
artigo 54.º do decreto com as normas constitucionais constantes dos n.ºs 2 e 3
do artigo 112º, da alínea c) do nº 1 do artigo 198º e, ainda, da alínea c) do
n.º 1 do artigo 227.º da CRP, já que se pode ter como violada a reserva de
desenvolvimento de bases gerais por acto legislativo, dada a circunstância de:
a) O decreto “sub iuditio”, nos termos já expostos no número 2.º deste pedido,
ter sido emitido no âmbito de uma matéria cujas correspondentes bases gerais se
encontram inseridas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia
da República;
b) Essas normas de princípios, como as previstas no n.º 2 do artigo 54.º,
deverem, na medida em que o decreto fixe normas sobre a normação legal ou
enuncie princípios jurídicos a acatar por outras normas, ser presuntivamente
qualificadas como princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos;
c) As bases gerais suporem uma reserva de desenvolvimento feita por acto
legislativo, não consentindo que um regulamento administrativo as concretize
directamente com prescindência de imediação legal e, por maioria de razão,
quando o referido regulamento for uma norma de mera execução, como uma portaria;
d) O preceito sindicado autorizar indevidamente uma portaria a desenvolver
princípios ou bases gerais de um regime jurídico, prescindindo da interposição
necessária de norma legal imposta pela natureza das bases gerais cujo
desenvolvimento é cometido em abstracto, à competência legislativa do Governo e
das regiões autónomas.
V. Determinação do posicionamento remuneratório de candidatos a recrutamento
para a função pública em procedimento concursal
20º Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 55.º do decreto que «Quando esteja em
causa o posto de trabalho relativamente ao qual a modalidade da relação jurídica
de emprego público seja o contrato, o posicionamento do trabalhador recrutado
numa das posições remuneratórias da categoria é objecto de negociação com a
entidade empregadora».
21º A norma referida no número anterior admite, ou autoriza implicitamente, sem
acautelar a fixação de limites tangíveis, que uma decisão discricionária do
empregador público possa, mediante acordo resultante de processo negocial,
preencher uma vaga aberta para um posto de trabalho relativo a uma dada
categoria profissional através de um candidato que, cumulativamente:
a) Possa auferir uma remuneração mais elevada do que a dos trabalhadores mais
antigos integrados na mesma categoria que se encontrem em exercício de funções;
b) Seja oriundo de sector externo à Administração Pública e seja titular de
menores habilitações literárias do que os trabalhadores integrados na mesma
categoria profissional e que desempenhem idêntica função.
22º Considera-se, por conseguinte, que a norma constante do n.º 1 do artigo
55.º, conjugada com as demais normas do mesmo preceito, poderá afrontar o
disposto no artigo 13.º na sua projecção sobre a alínea a) do nº 1 do artigo
59.º, ambos da CRP, da qual decorre o princípio salarial de que «para trabalho
igual deve ser assegurado salário igual», uma vez que, sem introduzir qualquer
salvaguarda e sem outro critério que não seja a negociação salarial com o
candidato a um posto de trabalho, habilita o empregador a acordar
discricionariamente com o mesmo candidato um vencimento superior ao de outros
funcionários mais antigos e com iguais ou superiores habilitações literárias que
exerçam funções idênticas em igual categoria.
VI. Fixação mediante portaria de critérios específicos ou excepcionais
condicionantes do acesso dos cidadãos à função pública
23º Dispõe o n.º 1 do artigo 56.º do decreto que o dirigente máximo da entidade
empregadora pública pode optar pelo recurso a diplomados pelo Curso de Estudos
Avançados em Gestão Pública (CEAGP), tendo em vista o recrutamento para postos
de trabalho relativos ao exercício de funções públicas e em alternativa ao
procedimento concursal, defluindo dessa disposição, bem como dos n.ºs 2, 3, 5
(com remissão para os n.ºs 4 a 7 do artigo 6.º) e 6 do mesmo artigo 56.º, que os
diplomados pelo CEAGP podem ingressar directamente na função pública, sem se
terem de submeter a concurso.
24º Verifica-se, no entanto, que o n.º 8 do mesmo artigo prevê que o «CEAGP é
regulamentado por portaria do membro do Governo responsável pela área da
Administração Pública».
25º Considerando que, à luz do n.º 2 do artigo 47.º da CRP, as disposições
normativas (gerais, especiais ou excepcionais) que regulem o direito de
liberdade dos cidadãos ao acesso à função pública integram a reserva de lei,
entende-se que o n.º 8 do artigo 56.º do diploma em análise, ao permitir que
assumam natureza regulamentar normas que condicionam o ingresso directo de
cidadãos à função pública (não através de concurso mas por meio da obtenção de
diploma do Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública - CEAGP), pode violar o
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º conjugado com o mencionado n.º 2
do artigo 47.º da Constituição.
26º Mesmo no contexto de uma interpretação alternativa à que foi exposta no
número anterior e que considere que a regulamentação do CEAPG não integra a
reserva de lei, entende-se, ainda assim, que existem dúvidas pertinentes sobre a
constitucionalidade da norma do n.º 8 do artigo 56.º do decreto, desta feita com
fundamento em violação do n.º 6 do artigo 112.º da CRP conjugado com o n.º 7 do
mesmo artigo, já que a disciplina primária de uma matéria desta natureza
exigiria um regulamento independente e o mesmo nunca poderá assumir a forma de
portaria.
VII. Fixação dos níveis máximo e mínimo de remuneração admitidos no quadro das
relações de emprego público, em portaria de conteúdo inovatório
27º Nos termos do n.º 1 do art. 68.º do decreto sindicado, «a tabela
remuneratória única contém a totalidade dos níveis remuneratórios susceptíveis
de ser utilizados na fixação da remuneração base dos trabalhadores que exerçam
funções ao abrigo de relações jurídicas de emprego público»; e, por força do n.º
1 do art. 69.º do mesmo Decreto, «a identificação dos níveis remuneratórios
correspondentes às posições remuneratórias das categorias, bem como aos cargos
exercidos em comissão de serviço, é efectuada por decreto regulamentar».
28º Sucede, porém, que a definição do «número de níveis remuneratórios e o
montante pecuniário correspondente a cada um é fixado em portaria conjunta do
Primeiro-Ministro e do membro do Governo responsável pela área das finanças»
(n.º 3 do art. 68.º do decreto), do que resulta que essa portaria:
a) Estabelecerá quer o nível máximo de remuneração admitido no quadro das
relações de emprego público, quer o nível mínimo a praticar nesse mesmo âmbito;
b) Determinará a amplitude do leque salarial observado nas relações de emprego
público;
c) Fixará, ainda, a «proporcionalidade relativa entre cada um dos níveis» (n.º 5
do art. 68.º), que irá funcionar como limite à própria negociação colectiva
anual (conforme estatui este preceito, as alterações decorrentes da negociação
colectiva terão de preservar tal proporcionalidade relativa). Ora,
29º Do decreto não resultam quaisquer directrizes ou critérios relativamente a
estes aspectos fundamentais: patamares retributivos máximo e mínimo, amplitude
da escala salarial, proporcionalidade entre níveis remuneratórios, o que
significa que serão remetidas para a portaria, a que se refere o n.º 3 do art.
68.º do diploma, as decisões de normação primárias no tocante a estas dimensões
fundamentais para a vertebração da escala salarial aplicável às relações de
emprego público.
30º Considera-se, por conseguinte, que a norma do nº 3 do artº 68º pode enfermar
de inconstitucionalidade:
a) Por violação do princípio da tipicidade da lei prevista no n.º 5 do artº.
112.º da CRP, conjugado com os n.ºs 6 e 7 do mesmo preceito, atento o facto de
aos regulamentos estar vedada a fixação de opções primárias e juízos de valor
inovatórios próprios dos critérios de decisão legislativos;
b) Por violação das normas constantes dos n.ºs 6 e 7 do art. 112.º da
Constituição que determinam que os regulamentos relativamente aos quais a lei se
limita a determinar a competência subjectiva e objectiva da sua emissão devem
assumir a forma de decreto regulamentar, caso não proceda a interpretação
referida na alínea anterior deste número;
c) Por violação das normas constantes dos nºs 6 e 7 do artº 112º da CRP na
medida em que a conjugação do n.º 1 do artigo 68º com o nº 1 do artigo 69º
subverte parcialmente a relação hierárquica ou de precedência entre decreto
regulamentar e portaria, dado que a fixação em concreto dos níveis
remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias das categorias a
constar de decreto regulamentar está limitada e pode ser alterada pela portaria
que define a tabela remuneratória única.
31º Para além do exposto nos números precedentes, verifica-se que, constam dessa
portaria o estabelecimento dos nexos de proporcionalidade entre os diversos
níveis remuneratórios que irão funcionar como limite à própria negociação
colectiva anual; ora, a norma do nº 5 do artigo 68.º do diploma ao remeter para
portaria o estabelecimento de parâmetros limitadores da acção da autonomia
colectiva, pode ficar ferida de inconstitucionalidade, por violação do que
prescreve o n.º 4 do art. 56.º da Constituição, que consagra, nesta matéria, uma
reserva de lei.
Em conclusão, com base nos indicados fundamentos, solicita que se aprecie a
constitucionalidade:
a) Da norma constante no n.º 3 do artigo 2º e, a título consequente, as normas
do n.º 2 do artigo 10º e do n.º 2 do artigo 68.º, por provável violação do
disposto no n.º 1 do artigo 215º, no artigo 203.º e nos n.ºs 1 e 3 do artigo
216.º da CRP;
b) Das normas paramétricas constantes do proémio do n.º1 do artigo 80.º assim
como as respectivas alíneas a) e c); do proémio do n.º 1 do artigo 101.º e as
respectivas alíneas a) e b) e o n.º 2 do mesmo preceito; e do proémio do n.º 1
do artigo 112.º bem como as respectivas alíneas a), b) e c), na medida em que
incidam sobre o Estatuto dos Magistrados Judiciais, com fundamento em eventual
inobservância da reserva de densificação operada por lei parlamentar emitida ao
abrigo da alínea m) do artigo 164.º da CRP;
c) Das normas constantes na alínea b) do nº 2 e no n.º 4 do artigo 35.º por
possível violação do artigo 13.º da CRP;
d) Da norma constante no n.º 3 do artigo 36.º bem como, a título consequente, as
normas previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo e, ainda, com fundamento em
reenvio para o n.º 3 do artigo 36.º, a norma constante do nº 2 do artigo 94.º,
por eventual desconformidade com as normas constantes da alínea a) do n.º 1 do
artigo 59.º conjugada com os n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP;
f) Da norma do n.º 2 do artigo 54.º por suspeita de desconformidade com os n.ºs
2 e 3 do artigo 112º, a alínea c) do nº 1 do artigo 198.º e ainda a alínea c) do
n.º 1 do artigo 227.º da CRP;
g) Da norma constante do n.º 1 do artigo 55.º conjugada com as demais normas do
mesmo preceito, por possível afronta ao disposto no artigo 13.º e na alínea a)
do n.º 1 do artigo 59.º da CRP;
h) Da norma constante no n.º 8 do artigo 56.º por provável desconformidade com o
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º conjugado com o n.º 2 do artigo
47.º da Constituição ou, em interpretação alternativa, com o n.º 6 do artigo
112.º da CRP conjugado com o n.º 7 do mesmo artigo;
i) Da norma constante do nº 3 do artº 68º por eventual desconformidade com o
disposto nos nºs 5, 6 e 7 do artº.112º da CRP; e da norma prevista no nº 5 do
artigo 68 º, conjugada com o nº 3 do mesmo preceito, por violação do n.º 4 do
artº 56º da CRP.
Em anexo ao pedido foi remetido um parecer da Assessoria para os Assuntos
Jurídicos e Constitucionais da Casa Civil da Presidência da República.
Notificado para o efeito previsto no artigo 54º da LTC, o Presidente da
Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, juntando cópia
dos Diários da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios
relativos ao Decreto da Assembleia da República n° 173/X.
O Governo, através do Primeiro-Ministro, invocando a qualidade de parte
interessada, remeteu ainda ao Presidente do Tribunal Constitucional um parecer
jurídico sobre o objecto do pedido, que foi junto aos autos.
Elaborado o memorando a que alude o artigo 58º da LTC e fixada a
orientação do Tribunal, cabe decidir.
II – Fundamentação
A aplicação do diploma aos magistrados dos tribunais judiciais
2. Suscita-se, em primeiro lugar, a questão da possível inconstitucionalidade
material da norma constante do artigo 2º, n.º 3, do Decreto da Assembleia da
República n.º 173/X (a título consequente, das normas dos artigos 10º, n.º 2, e
68º, n.º 2), por violação do disposto no artigo 215º, n.º 1, da CRP, na medida
em que essa disposição impõe a aplicação do regime geral da função pública,
constante desse diploma, como direito subsidiário, relativamente ao Estatuto dos
Magistrados Judiciais, e, bem assim, a questão da sua inconstitucionalidade
material, por violação dos artigos 203º e 216º, n.ºs 1 e 2, da CRP, enquanto
permite que certos princípios ou bases gerais da função pública, enunciados
nesse diploma, se tornem aplicáveis aos juízes, em termos de gerar uma situação
de assimilação ou equiparação, ainda que parcial, destes ao estatuto dos
trabalhadores da administração pública.
Num segundo momento, mas com referência ainda à mesma temática, vem ainda
colocada a questão da inconstitucionalidade das normas paramétricas constantes
do proémio do n.º1 do artigo 80.º e as respectivas alíneas a) e c); do proémio
do n.º 1 do artigo 101.º e as respectivas alíneas a) e b) e o n.º 2 do mesmo
preceito; e do proémio do n.º 1 do artigo 112.º e as respectivas alíneas a), b)
e c), na parte em que incidam sobre o Estatuto dos Magistrados Judiciais, com
fundamento em eventual inobservância da reserva de densificação operada por lei
parlamentar emitida ao abrigo da alínea m) do artigo 164.º da CRP, tendo em
conta que esse estatuto constitui reserva absoluta da Assembleia da República e
o Decreto n.º 173/X poderá considerar-se como emitido no uso da competência
legislativa de reserva relativa, por aplicação do artigo 165º, alínea t), da
CRP.
Importa, em todo o caso, começar por efectuar uma precisão quanto ao objecto do
pedido.
O pedido de apreciação de conformidade constitucional, quanto ao primeiro
aspecto considerado, suscita a questão da inconstitucionalidade da norma do
artigo 2º, n.º 3, do Decreto e, consequentemente, das normas dos artigos 10º,
n.º 2, e 68º, n.º 2, sem efectuar qualquer diferenciação relativamente aos seus
diversos segmentos normativos, sendo que aquela primeira disposição alude à
aplicação do regime de vínculos, carreiras e remunerações, a título subsidiário,
aos juízes de qualquer jurisdição e aos magistrados do Ministério Público.
A causa de pedir assenta, no entanto, em dois tipos de fundamentos a que
correspondem também distintos campos aplicativos: (a) em violação da
especialidade qualificada do Estatuto dos Magistrados Judiciais, garantida pelo
n.º 1 do artigo 215.º da Constituição; (b) em violação dos princípios constantes
do artigos 203.º e 216.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Se aquele primeiro fundamento se torna apenas aplicável aos juízes dos tribunais
judiciais, por serem os destinatários, numa interpretação literal, do comando
constante do artigo 215º, n.º 1, o segundo fundamento é já susceptível de
extensão aos juízes das restantes ordens de jurisdição, dada a vocação genérica
das disposições dos artigos 203.º e 216.º, n.ºs 1 e 2, que, referindo-se aos
tribunais (sem distinguir quanto à sua ordem ou categoria) e às garantias dos
juízes (sem circunscrever o seu âmbito de aplicação), permitem envolver todos os
magistrados judiciais.
O pedido parece, no entanto, pretender circunscrever a questão aos juízes dos
tribunais judiciais, não só pelas diversas referências que são feitas a essa
categoria de juízes, como também pela alusão, em várias ocasiões, ao carácter
supletivo do regime de vínculos, carreiras e remunerações em relação ao Estatuto
dos Magistrados Judiciais.
É também o que se depreende do n.º 10 do pedido que, a título de conclusão,
especifica, nas suas alíneas a) e b), os fundamentos de inconstitucionalidade –
a violação do disposto no artigo 215º, n.º 1, da Constituição e a ofensa das
garantias de independência, inamovibilidade e irresponsabilidade constantes dos
artigos 203º e 216º, n.ºs 2 e 3 -, mas subordinando-os ao exposto no proémio
desse número, em que se indica como facto genético da desconformidade
constitucional a circunstância de o n.º 3 do artigo 2.º do Decreto deslocar a
determinação de legislação subsidiária virtualmente aplicável ao Estatuto dos
Magistrados Judiciais, desse Estatuto para os regimes de vinculação, carreiras e
remunerações da função pública.
O Tribunal entende, por conseguinte, que o pedido se refere aos juízes dos
tribunais judiciais, ficando excluída a possibilidade de se apreciar os
segmentos normativos dessa disposição referentes aos juízes das restantes ordens
de jurisdição e aos magistrados do Ministério Público, relativamente aos quais
não vem identificada qualquer questão de constitucionalidade.
O diploma que está em causa pretende regular os regimes de vinculação, de
carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas e
complementarmente definir o regime jurídico-funcional aplicável a cada
modalidade de constituição da relação jurídica de emprego público. Com esse
objectivo, o diploma condensa um amplo conjunto de matérias que interessam à
função pública, regulamentando aspectos atinentes à constituição e cessação da
relação jurídica de emprego, incompatibilidades e acumulações, estruturação das
carreiras, recrutamento de pessoal e sistema remuneratório, operando entretanto
a revogação de múltiplos diplomas legais que instituem, nesse âmbito, quer os
princípios e as bases gerais do regime jurídico e os respectivos decretos-leis
de desenvolvimento, quer diversos outros regimes parcelares específicos.
O diploma assume-se, por outro lado, como um acto legislativo compósito,
porquanto inclui princípios gerais e normas concretizadoras desses princípios e
outras disposições de mera remissão para diplomas regulamentares.
O Decreto n.º 173/X é aplicável aos serviços da administração directa e
indirecta do Estado, bem como, com as necessárias adaptações, aos serviços das
administrações regionais e autárquicas, aos órgãos e serviços de apoio do
Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do
Ministério Público e de outros órgãos independentes (artigo 3º).
No que se refere ao respectivo «Âmbito de aplicação subjectivo», a lei é
aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas,
independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação
jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respectivas funções, e
aos actuais trabalhadores com a qualidade de funcionário ou agente de pessoas
colectivas que se encontrem excluídas do seu âmbito de aplicação objectivo
(artigo 2º, n.ºs 1 e 2).
O n.º 3 do mesmo artigo 2º - que aqui está particularmente em foco – estende
esse âmbito de aplicação aos magistrados judiciais e do Ministério Público, nos
seguintes termos:
Sem prejuízo do disposto na Constituição e em leis especiais, a presente lei é
ainda aplicável, com as necessárias adaptações, aos juízes de qualquer
jurisdição e aos magistrados do Ministério Público.
Outras disposições do diploma fazem expressa menção aos magistrados judiciais,
como é o caso dos artigos 10º, n.º 2, e 68º, n.º 2. O primeiro desses preceitos,
referindo-se às modalidades de constituição da relação jurídica de emprego, e
mais especificamente ao âmbito da nomeação, estipula o seguinte: «[s]em prejuízo
do disposto na Constituição e em leis especiais, são ainda nomeados os juízes de
qualquer jurisdição e os magistrados do Ministério Público”; o segundo,
inserindo-se na matéria referente ao regime remuneratório, sob a epígrafe
«tabela remuneratória única», exclui da aplicação da referida tabela os
magistrados, ao estatuir: «[n]a fixação da remuneração base dos juízes de
qualquer jurisdição e dos magistrados do Ministério Público não são utilizados
os níveis remuneratórios contidos na tabela referida no número anterior».
A ressalva contida no segmento inicial do n.º 3 do artigo 2º - como importa
começar por fazer notar - não pode deixar de entender-se como reportada, por um
lado, às normas constitucionais que estabelecem os princípios gerais relativos
ao exercício da função jurisdicional, à organização dos tribunais e ao estatuto
profissional dos magistrados (artigos 202º e seguintes da CRP), e, por outro, ao
Estatuto dos Magistrados Judiciais (aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho,
com as suas sucessivas alterações).
Ao estender o âmbito subjectivo da sua aplicação, ainda que com a já apontada
ressalva do estabelecido na Constituição e em leis especiais, aos juízes de
qualquer jurisdição, o diploma parece pretender erigir-se em direito subsidiário
relativamente ao Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Nesse sentido aponta, também, a circunstância de a extensão de regime se
efectuar com as necessárias adaptações, como aí se consigna, o que revela que os
princípios e critérios legais que estão definidos em geral para os trabalhadores
da Administração Pública poderão não ser aplicáveis aos magistrados judiciais
por contrariarem o regime privativo decorrente do texto constitucional ou das
correspondentes disposições estatutárias, e, a serem-no, poderão ter de ser
ajustados à especificidade própria do exercício do cargo.
O propósito de incorporar os magistrados judiciais no regime da função pública,
ainda que a título de lei subsidiária, é também evidenciado pela referida norma
do artigo 68º, n.º 2, por argumento a contrario sensu, visto que a exclusão dos
juízes da tabela remuneratória prevista nesse preceito tem pressuposta a ideia
de que para outros casos não excepcionados, e na ausência de um regime próprio,
vigorará o estabelecido, em geral, no novo regime jurídico de vínculos,
carreiras e remunerações.
E assim se compreende que a lei não tenha deixado de explicitar que a relação
jurídica de emprego se constitui, também em relação aos juízes, através de acto
de nomeação (artigo 10º, n.º 2).
Deve dizer-se que não é esse o modelo do regime actual.
O Estatuto dos Magistrados Judiciais define as condições de exercício de funções
dos juízes, bem como os deveres, incompatibilidades, direitos e regalias,
estabelece regras sobre o provimento no cargo e a progressão na carreira, bem
como sobre a aposentação e a cessação de funções, regula o respectivo
procedimento disciplinar e providencia sobre aspectos de organização do Conselho
Superior da Magistratura, enquanto órgão superior de gestão da magistratura
judicial. Tratando-se de um regime específico, contempla, em todo o caso,
diversas disposições subsidiárias, como são as dos artigos 10º-A, 32º, 69º e
131º, que mandam aplicar aos magistrados judiciais, em tudo o que não estiver
regulado no Estatuto, o disposto na lei geral sobre o regime do bolseiro, ou
sobre o regime da função pública em matéria dos deveres, incompatibilidades e
direitos, ou ainda em matéria de aposentação ou direito disciplinar.
Instituindo agora o Decreto uma regra genérica de aplicação supletiva aos juízes
de qualquer jurisdição, do regime de vínculos, carreiras e remunerações da
função pública, deverá entender-se que, a par de todas aquelas disposições de
direito subsidiário que estavam directamente previstas no Estatuto, passa a
subsistir disposição avulsa que define o direito subsidiariamente aplicável no
âmbito daquela disciplina jurídica.
A dúvida que vem colocada diz respeito a saber se a alteração legislativa
prevista não inverte o regime constitucionalmente exigível que decorre do
disposto no artigo 215º, nº 1, da Lei Fundamental, ou numa outra perspectiva, se
não é susceptível de induzir uma equiparação dos juízes aos trabalhadores da
Administração Pública em termos que possam pôr em causa os princípios de
independência, inamovibilidade e irresponsabilidade que constituem garantias do
exercício da actividade jurisdicional, tal como previsto nos artigos 203º e
216º, n.º s 1 e 2, da Constituição.
A objecção parece ser, pelo menos, em parte, procedente.
O Capítulo III do Titulo V da Constituição, dedicado aos tribunais, referindo-se
primacialmente aos juízes dos tribunais judiciais (artigo 215º), inclui também
normas que se reportam a todos os juízes (artigo 216.º) e normas que
especificamente visam os juízes dos restantes tribunais (artigo 217.º, n.os 2 e
3).
De acordo com o que dispõe o artigo 215.º da Constituição, «[o]s juízes dos
tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto» (n.º
1), remetendo-se para a lei o estabelecimento dos requisitos e das regras de
recrutamento dos juízes de tribunais judiciais de primeira instância (n.º 2).
Os n.ºs 3 e 4 estabelecem critérios constitucionais para o acesso dos juízes aos
tribunais superiores (n.ºs 3 e 4). Outras disposições regem sobre garantias e
incompatibilidades (artigo 216º) e, além de confiarem a competência para a
direcção e gestão das magistraturas a órgãos constitucionais autónomos (Conselho
Superior da Magistratura e Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais – artigo 217, n.º 1 e 2), remetem para a lei a definição de regras
próprias sobre a colocação, transferência, promoção e exercício da acção
disciplinar dos juízes de qualquer jurisdição, sempre com a «salvaguarda das
garantias previstas na Constituição» (artigo 217º, n.º 3).
Estas disposições, especificamente atinentes ao estatuto dos juízes, não podem
deixar de ser interpretadas conjugadamente com os princípios plasmados nos
precedentes capítulos do mesmo Título, e especialmente com os do Capítulo I que
se referem ao funcionamento dos tribunais e ao exercício da função
jurisdicional.
O artigo 202º, sob a epígrafe «função jurisdicional», no seu n.º 1, define os
tribunais como os «órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça», vindo a identificar, no n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional por
referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da
legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados.
O entendimento geral é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir
uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o
exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse
sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer
por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a
distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da
maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito (sobre os diferentes
níveis ou graus de reserva, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, Coimbra, 7ª edição, págs. 668-670; Vieira de Andrade, A
reserva do juiz e a intervenção ministerial em matéria de fixação das
indemnizações por nacionalizações, in Scientia ivridica, Tomo XLVII, n.ºs
274/276, Julho/Dezembro, 1998, pág. 224; Paulo Rangel, Reserva de jurisdição.
Sentido dogmático e sentido jurisprudencial, Porto, 1997, págs. 59-66; Joaquim
Pedro Cardoso da Costa, O princípio da reserva do juiz face à Administração
Pública na jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra, 1994
(policopiado), págs. 34-35.
A existência de uma reserva de jurisdição é a necessária decorrência da
aplicação dos princípios da separação e interdependência de poderes: sendo a
competência dos órgãos de soberania definida na Constituição e devendo estes
observar a separação e a interdependência nela estabelecidas (artigos l10.º, n.º
2, e 111.º, n.° 1), haverá de concluir-se que a atribuição constitucional de
determinada competência a um certo órgão de soberania exclui a possibilidade de
ela poder vir a ser legalmente atribuída a qualquer outro, salvo explícita ou
implícita autorização constitucional (neste sentido, o acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 71/84, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de
Janeiro de 1985).
Por outro lado, a reserva de jurisdição concretiza-se através de uma reserva do
juiz, no sentido de que, dentro dos tribunais, só os juízes poderão ser chamados
a praticar os actos materialmente jurisdicionais (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3ª edição revista, pág.
792; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III,
Coimbra, 2007, pág. 32. Assim se compreende que o Tribunal Constitucional tenha
declarado a inconstitucionalidade de normas atributivas de competência
jurisdicional a agentes que, ainda que inseridos na estrutura judiciária, não
tenham a qualidade de juiz (acórdãos n.ºs 182/90 e 247/90, que se pronunciaram
sobre a competência dos secretários judiciais para proferir decisões relativas a
custas); e, noutros casos, tenha concluído pela constitucionalidade da solução
legislativa apenas por considerar que a função judiciária atribuída a quem não
tem o estatuto de juiz não integrava o conceito de acto jurisdicional (assim,
nos acórdãos n.ºs 67/2006 e 144/2006, que abordaram a questão da atribuição ao
Ministério Público do poder de decidir, com a concordância do juiz de instrução,
a suspensão do processo).
Um outro princípio inerente à reserva de jurisdição consubstancia-se na
exigência de que o órgão jurisdicional ao qual possa ser atribuída a função de
julgar se encontre rodeado das necessárias garantias de independência e
imparcialidade.
A esse propósito, escreveu-se no já citado acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 71/84:
[…] para que determinado órgão possa ser qualificado como tribunal não basta,
nem pode bastar, que lhe haja sido cometida uma competência materialmente
incluída na função jurisdicional. É que se assim fosse, esvaziar-se-ia
completamente de conteúdo a referida reserva da função jurisdicional aos
tribunais, na medida em que todo e qualquer órgão se converteria em tribunal
pela mera atribuição de uma competência materialmente jurisdicional.
Para que um determinado órgão possa ser qualificado como tribunal é necessário,
antes de mais, que ele seja «independente», como o exige o artigo 208.° da
Constituição (o actual artigo 203º).
Por isso, há-de concluir-se, como também se refere no acórdão n.º 171/92
(publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992), «que
tribunais hão-de ser visualizados como sendo só aqueles órgãos de soberania que,
exercendo funções jurisdicionais, sejam suportados por juízes que desfrutem
totalmente de independência funcional e estatutária, não bastando, pois, a mera
atribuição de poderes às entidades da Administração para, na resolução dos
assinalados casos concretos, poderem decidir sem sujeição a ordens ou
instruções».
É esse o postulado que decorre do artigo 203º da Constituição, segundo o qual
«[o]s tribunais são independentes e apenas estão subordinados à lei».
A independência dos tribunais é descrita como uma independência objectiva, que
deriva da própria essência da actividade jurisdicional, e tem como pressuposto a
subordinação do juiz à lei; mas também como uma independência subjectiva, esta
caracterizada por uma autonomia dos tribunais em relação aos outros poderes do
Estado e em relação aos outros contitulares do poder jurisdicional - isso sem
prejuízo das relações de hierarquia e supraordenação ditadas pela existência de
diferentes categorias de tribunais em cada ordem de jurisdição (Paulo Rangel,
ob. cit., págs. 44-45).
No entanto, a independência dos tribunais conclama (ou, por outras palavras,
pressupõe e exige) a independência dos juízes, conforme se afirmou nos acórdãos
do Tribunal Constitucional n.ºs 135/88 e 393/89 (publicados no Diário da
República, II Série, de 8 de Setembro de 1988 e de 14 de Setembro de 1989,
respectivamente). Por essa mesma razão se diz que a garantia essencial da
independência dos tribunais é a independência dos juízes, que por isso se
considera necessariamente abrangida pela protecção constitucional que resulta da
norma do artigo 203º (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, citada, pág. 794).
É essa a ideia que é expressa por Oliveira Ascensão no seguinte excerto (A
reserva constitucional de jurisdição, O Direito, ano 123º, 1991, II-III
(Abril-Setembro), pág. 467):
[…] a independência dos tribunais, expressa pelo artigo 206º da Constituição
[actual artigo 203º], procura assegurar que esse corpo especializado não fique
sujeito à pressão de quaisquer outras forças, políticas antes de mais.
Mas a descrição do órgão a quem está constitucionalmente confiada a jurisdição é
incompleta enquanto não tivermos em atenção a figura do juiz [-]. Não é só a
magistratura que é independente; cada juiz é dentro dela independente, no âmbito
da sua competência. Neste sentido se diz que cada juiz é titular da totalidade
da jurisdição.
Como se ponderou no acórdão do Tribunal Constitucional n.ºs 135/88, há pouco
citado, a independência do juiz é sobretudo um dever ético-social que lhe
exigirá manter-se alheio e acima das influências exteriores e que, nessa medida,
se traduzirá numa forma de «independência vocacional» (explicitando este
aspecto, Castro Mendes, Nótula sobre o artigo 208º da Constituição [actual
artigo 203º], in Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1979, pág. 654 e
seguintes). No entanto, deverá existir um quadro legal que promova e facilite
essa independência. É nessa mesma linha de entendimento que se declara, no
acórdão n.º 52/92, que «[a] independência e imparcialidade da jurisdição exigem
garantias orgânicas, estatutárias e processuais» (sufragando este ponto de
vista, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III,
pág. 42).
As garantias orgânicas e estatutárias de que se fala são justamente aquelas que
vêm mencionadas nos artigos 215º a 218º da Constituição, a que já se fez
referência, e traduzem-se essencialmente na unicidade orgânica e estatutária dos
juízes (artigo 215º, n.º 1), nas garantias de inamovibilidade e
irresponsabilidade (artigo 216º, n.ºs 1 e 2) e no princípio do auto-governo da
magistratura, este traduzido na exigência de que a nomeação, colocação,
transferência e promoção dos juízes, bem como o exercício da acção disciplinar,
sejam efectuados por um órgão autónomo não dependente do poder executivo
(artigos 217º e 218º) (sobre a verdadeira razão de ser da existência do Conselho
Superior da Magistratura, centrada, não na protecção de raiz corporativa dos
magistrados judiciais, mas no apontado objectivo de assim se contribuir para o
reforço da independência dos tribunais, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º
279/98).
Refira-se ainda que a garantia de imparcialidade (expressamente mencionada na
Lei Fundamental em relação aos juízes do Tribunal Constitucional – artigo 222º,
n.º 5 -, mas que deve considerar-se implicitamente aplicável a todos os juízes,
como decorrência do princípio da independência dos tribunais) exige também, em
relação aos magistrados judiciais, a imposição de certas limitações de natureza
profissional, como sejam as incompatibilidades para o exercício de outras
actividades (artigo 216º, n.ºs 3, 4 e 5) e certo tipo de impedimentos
estatutários (artigo 7º do Estatuto dos Magistrados Judiciais) ou processuais
(artigos 39º e seguintes do Código de Processo Penal e 122º e seguintes do
Código de Processo Civil).
Por tudo, e em suma, como é sublinhado por Paulo Rangel, a reserva de
jurisdição, tal como está consagrada nos artigos 202º e 203º da Constituição e
nos preceitos subsequentes que regulam o estatuto dos juízes (artigos 215º a
218º), pressupõe a necessária convergência entre a dimensão material e a
dimensão organizatória da jurisdição, e postula a eliminação das reminiscências
da caracterização da função judicial como função pública e a plena assunção dos
juízes como titulares de órgãos de soberania (Repensar o poder judicial.
Fundamentos e fragmentos, Porto, 2001, págs. 175 e 299).
É em ordem a garantir a independência dos juízes, por tudo o que se deixou dito,
que a Constituição consagra um conjunto de garantias e de limitação de direitos
relativamente ao regime de exercício de funções dos magistrados judiciais, que
constitui o verdadeiro estatuto do juiz, e que foi desenvolvido, no plano do
direito ordinário, pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei
n.º 21/85, de 30 de Julho, com as suas ulteriores alterações.
O Estatuto dos Magistrados Judiciais dá concretização prática ao princípio da
unidade da magistratura judicial, nas suas vertentes de unidade orgânica e
estatutária, que decorre directamente do disposto no artigo 215º, n.º 1, da
Constituição (e a que o artigo 1º do Estatuto também alude), e que pressupõe que
a estrutura judiciária se encontre autonomizada do ponto de vista organizativo
(corpo único) e funcional (um só estatuto). A unidade orgânica e estatutária,
encontrando-se circunscrita, nos termos da referida disposição constitucional,
aos juízes dos tribunais judiciais, quer significar não apenas a separação
orgânica e funcional entre as diversas magistraturas judiciais e entre estas e a
magistratura do Ministério Público, mas também a existência de uma
especificidade estatutária em relação aos titulares de outros órgãos de
soberania, aos juízes das restantes ordens de jurisdição, aos magistrados do
Ministério Público e aos demais trabalhadores do Estado (Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, citada, pág.
821).
Todo e qualquer trabalhador da Administração Pública tem a sua posição
profissional fixada através de um conjunto determinável de disposições legais ou
regulamentares que, ainda que provenientes de diversos complexos normativos,
definem o elenco de direitos e deveres que, em cada momento, lhes são
aplicáveis, e que corresponde à sua situação estatutária (sobre a caracterização
da situação estatutária dos funcionários, Prosper Weil, Direito Administrativo,
Coimbra, 1977, págs. 69-70).
O legislador constitucional, porém, ao prescrever que «[o]s juízes do tribunais
judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto», não pode ter
tido a mera intencionalidade de declarar que os juízes, como qualquer
funcionário ou agente administrativo, estão igualmente subordinados a um
conjunto de direitos e deveres funcionais, regulados por normas de carácter
geral e abstracto que conformam o conteúdo da respectiva relação jurídica de
emprego público.
A razão de ser do preceito radica antes na necessidade de dar cobertura à
garantia de independência dos juízes, em função da sua qualidade de titular de
órgão de soberania encarregado de exercer a função jurisdicional.
O estatuto subjectivo dos magistrados está, pois, indissociavelmente ligado à
reserva de jurisdição e constitui um princípio constitucional material
concretizador do Estado de direito, na medida em que se destina a garantir a
independência e imparcialidade dos juízes no exercício da função jurisdicional
(sobre este aspecto, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, citado, págs. 667-668; Paulo Rangel, Reserva de jurisdição,
citada, pág. 48).
A unicidade de estatuto, tal como está constitucionalmente consagrada, pressupõe
duas características essenciais: (a) um estatuto unificado, constituído por um
complexo de normas que são apenas aplicáveis aos juízes dos tribunais judiciais;
(b) um estatuto específico, no sentido de que são as suas disposições, ainda que
de natureza remissiva, que determinam e conformam o respectivo regime
jurídico-funcional.
Justifica-se, por isso, que seja o próprio Estatuto dos Magistrados Judiciais,
em cumprimento do apontado critério constitucional, a determinar qual seja a
legislação supletiva e o respectivo âmbito de aplicação. Isso pela linear razão
de que é a esse diploma que, nos termos previstos no artigo 215º, n.º 1, da
Constituição, compete regular de forma mais ou menos exaustiva as matérias que
deverão integrar o estatuto do juiz e, nessa medida, delimitar com maior ou
menor amplitude o campo de intervenção do direito subsidiário e, ainda, escolher
as normas supletivas que melhor se poderão ajustar às soluções jurídicas que
tenham sido fixadas.
O que conduz a concluir que o Decreto n.º 173/X, ao ditar o regime subsidiário
aplicável aos magistrados judiciais, interfere em matéria estatutária dos juízes
e é susceptível de violar o disposto no citado artigo 215º, n.º 1, da CRP.
Ao determinar que o diploma é aplicável, com as necessárias adaptações, aos
juízes de qualquer jurisdição, sem prejuízo do disposto na Constituição e em
leis especiais, o artigo 2º, n.º 3, do Decreto n.º 173/X opera uma tendencial
equiparação dos juízes aos demais trabalhadores da Administração, por efeito da
assimilação do seu estatuto pelo regime geral da função pública através de uma
genérica aplicação subsidiária do novo regime de vínculos, carreiras e
remunerações.
Isso porque, ao assumir-se como direito subsidiário em relação ao regime de
vínculos, carreiras e remunerações aplicável aos juízes dos tribunais judiciais,
o Decreto n.º 173/X passa a reportar o Estatuto dos Magistrados Judiciais como
mera lei especial, avocando a função complementar ou integrativa dos espaços
omissos ou lacunares que o Estatuto contenha quanto a essa matéria. Em termos
tais que a eventual utilização de idêntica técnica legislativa em relação a
outras disciplinas jurídicas sectoriais da função pública abre caminho a que o
Estatuto passe a intervir simplesmente como normação especial em relação ao
regime geral da função pública.
É certo que, face ao princípio constante do artigo 7º, n.º 3, do Código Civil e
à ressalva contida no segmento inicial do artigo 2º, n.º 3, do Decreto, o regime
decorrente desse diploma, enquanto lei geral, não revoga as regras estatutárias
que, dentro do mesmo âmbito de aplicação, definam a situação jurídica dos
juízes. Mas não deixa de se estabelecer um critério de especialidade entre os
dois diplomas, de tal modo que tudo está em determinar, perante uma situação
concreta, qual é o bloco normativo directamente aplicável - o Estatuto ou a lei
geral -, com a consequente introdução de uma dualidade estatutária.
Tudo o que vem de referir-se conduz a concluir que o Decreto opera uma quebra no
estatuto subjectivo dos juízes em relação a dois momentos essenciais: estes
deixam de dispor de um estatuto único, que congregue todas as disposições que
regulem a respectiva situação funcional, visto que as fontes normativas directas
passam a ser, de um lado, o Estatuto dos Magistrados Judiciais, como lei
especial, e de outro, a lei comum da função pública, como direito subsidiário;
deixam ainda de dispor de um estatuto específico, no ponto em que o Estatuto dos
Magistrados Judiciais passa a constituir mera lei especial que apenas se aplica
quando deva prevalecer sobre uma lei geral da função pública.
Embora se não possa afirmar que ocorre, por este meio, uma afronta directa às
garantias constitucionais dos artigos 203º e 216º, n.ºs 1 e 2, fica, em todo o
caso, posta em causa a unidade e especificidade estatutária dos juízes dos
tribunais judiciais, que o artigo 215º, n.º 1, da Constituição pretendeu
consagrar, pelo que se entende estar verificada a inconstitucionalidade material
do citado artigo 2º, n.º 3, do Decreto n.º 173-X, por violação desse preceito
constitucional.
A mesma ordem de razões leva a que se considerem como inconstitucionais também
as normas dos artigos 10º, n.º 2, e 68º, n.º 2, do Decreto, a que já antes se
fez referência.
Essas disposições, determinando que a relação jurídica de emprego público,
relativamente aos juízes dos tribunais judiciais, se constitui através de
nomeação, e que, quanto a eles, se não aplicam os níveis remuneratórios
constantes da tabela remuneratória única, acabam por incidir sobre matéria
estatutária, tornando-se directamente aplicáveis aos juízes dessa categoria,
relevando, também em relação a tais disposições, a violação do princípio da
unidade e especificidade estatutária.
Ainda com referência à aplicação, aos magistrados judiciais, do regime de
vínculos, carreiras e remunerações, o pedido suscita também a
inconstitucionalidade das normas paramétricas constantes do proémio do n.º1 do
artigo 80.º assim como as respectivas alíneas a) e c); do proémio do n.º 1 do
artigo 101.º e as respectivas alíneas a) e b) e o n.º 2 do mesmo preceito; e do
proémio do n.º 1 do artigo 112.º bem como as respectivas alíneas a), b) e c), na
medida em que incidam sobre o Estatuto dos Magistrados Judiciais, com fundamento
em eventual inobservância da reserva de densificação operada por lei parlamentar
emitida ao abrigo da alínea m) do artigo 164.º da CRP.
A arguição assenta no entendimento de que o Estatuto dos Magistrados Judiciais
constitui reserva absoluta da Assembleia da República, pelo que seriam
organicamente inconstitucionais as normas legais de bases que, tendo sido
emitidas no uso de competência legislativa de reserva relativa, venham a dispor
sobre o objecto do mesmo Estatuto, sobretudo no ponto em que permitem que o
desenvolvimento legislativo dessas normas possa ser efectuado pelo Governo, no
uso da competência legislativa prevista no artigo 198º, n.º 1, alínea c), da
Constituição.
E seria esse o caso do Decreto n.º 173-X, que incidindo sobre as bases e âmbito
da função pública, foi produzido, ao menos de um ponto de vista material, ao
abrigo do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea t), da Constituição.
No entanto, a conclusão a que anteriormente se chegou no sentido da
inconstitucionalidade do artigo 2º, n.º 3, do Decreto, impede que esse conjunto
de normas (ainda que pudesse ser aplicável, na economia do diploma, aos juízes
do tribunais judiciais) possa constituir direito subsidiário relativamente ao
Estatuto dos Magistrados Judiciais, afastando consequentemente o risco de
violação de reserva de lei, por via do ulterior desenvolvimento legislativo que
venha a ser efectuado através de decreto-lei.
Esta questão surge, nestes termos, prejudicada, pelo que dela não há que
conhecer.
Desigualdade entre pessoas individuais e colectivas na celebração de contratos
de tarefa e de avença pela Administração Pública
3. Vem ainda invocada a possível inconstitucionalidade das normas previstas na
alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 do artigo 35.º do Decreto, no ponto em que, ao
definirem os pressupostos de celebração com a Administração Pública de contratos
de prestação de serviços, nas modalidades de tarefa e de avença, impõem que (a)
a correspondente actividade deva ser realizada, por regra, por uma pessoa
colectiva, e que (b) só em situações excepcionais possa ser atribuída a uma
pessoa singular, caso em que, ainda assim, a contratação fica dependente de
autorização prévia do membro do Governo responsável para a área das finanças.
O pedido fundamenta-se na violação do princípio da igualdade, enunciado no
artigo 13º da CRP, na medida em que, estribadas infundadamente em critérios
puramente subjectivos e sem amparo em fim de relevo constitucional atendível,
discriminam negativamente as pessoas individuais em relação às pessoas
colectivas, no que tange aos pressupostos de celebração de contratos de
prestação de serviços com a Administração Pública.
A norma, que define o «âmbito dos contratos de prestação de serviços», é do
seguinte teor:
1- Os órgãos e serviços a que a presente lei é aplicável podem celebrar
contratos de prestação de serviços, nas modalidades de contratos de tarefa e de
avença, nos termos previstos no presente capítulo.
2- A celebração de contratos de tarefa e de avença apenas pode ter lugar quando,
cumulativamente:
a) Se trate da execução de trabalho não subordinado, para a qual se revele
inconveniente o recurso a qualquer modalidade da relação jurídica de emprego
público;
b) O trabalho seja realizado, em regra, por uma pessoa colectiva;
c) Seja observado o regime legal da aquisição de serviços;
d) O contratado comprove ter regularizadas as suas obrigações fiscais e com a
segurança social.
3- Considera-se trabalho não subordinado o que, sendo prestado com autonomia,
não se encontra sujeito à disciplina e à direcção do órgão ou serviço
contratante nem impõe o cumprimento de horário de trabalho.
4- Excepcionalmente, quando se comprove ser impossível ou inconveniente, no
caso, observar o disposto na alínea b) do n.º 2, o membro do Governo responsável
pela área das finanças pode autorizar a celebração de contratos de tarefa e de
avença com pessoas singulares.
5- O contrato de tarefa tem como objecto a execução de trabalhos específicos, de
natureza excepcional, não podendo exceder o termo do prazo contratual
inicialmente estabelecido.
6- O contrato de avença tem como objecto prestações sucessivas no exercício de
profissão liberal, com retribuição certa mensal, podendo ser feito cessar a todo
o tempo, por qualquer das partes, mesmo quando celebrado com cláusula de
prorrogação tácita, com aviso prévio de 60 dias e sem obrigação de indemnizar.
Como bem se vê, procurando delimitar os casos em que é admissível a contratação
de prestação de serviços, por parte da Administração, a norma, para além de
convocar requisitos ligados ao próprio regime substantivo e procedimental do
contrato em causa, impõe que a actividade que constitui objecto do contrato seja
realizada, em regra, por uma pessoa colectiva, excepcionando apenas a hipótese
em que seja impossível ou inconveniente essa atribuição, caso em que o ministro
das Finanças pode autorizar a celebração de contratos de tarefa e de avença com
pessoas singulares.
Numa primeira leitura, a norma da alínea b) do n.º 2 poderia apenas pretender
definir o âmbito objectivo do contrato de prestação de serviços por referência
ao tipo de actividades que normalmente apenas são executadas em regime de
economia empresarial. Nesse ponto, a norma poderia ter pretendido substituir a
do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho (agora revogado pelo
artigo 116º, alínea s), do Decreto), que previa, a par da prestação de serviços
por pessoas privadas (artigo 10º), a contratação de serviços com empresas com o
objectivo de «simplificar a gestão dos serviços e racionalizar os recursos
humanos e financeiros para funções que não se destinem à satisfação directa do
interesse geral ou ao exercício de poderes de autoridade».
Numa tal interpretação, o preceito não poderia encontrar-se inquinado de
inconstitucionalidade porquanto a sua função seria, não a de dar preferência, na
contratação, a pessoas colectivas, mas a de autorizar a celebração de contratos
de prestação de serviços no sector de actividades económicas para as quais as
empresas estariam mais vocacionadas.
No entanto, a articulação com a subsequente norma do n.º 4 e o conteúdo
definitório dado, nos n.ºs 5 e 6, aos contratos de tarefa e de avença, enquanto
modalidades de contrato de prestação de serviços, afastam, de todo, essa solução
interpretativa e permitem aceitar o entendimento de que o regime legal confere
uma prevalência às pessoas colectivas nesse tipo de contratação, em detrimento
das pessoas singulares.
Conforme se afirma no recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 254/2007,
na linha de uma abundante jurisprudência (entre outros os acórdãos n.º 563/96,
319/00 e 232/03), o princípio da igualdade postula, na sua formulação mais
sintética, que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais
e tratamento diferente para as situações de facto desiguais, o que permite
considerar que o princípio não proíbe, em absoluto, as distinções, mas apenas
aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional. Na sua dimensão
de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, o princípio da
igualdade tolera a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de
situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que,
por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto
de vista que possa ser considerado relevante. Em suma, e no essencial, o que o
princípio da igualdade impõe é uma proibição do arbítrio e da discriminação sem
razão atendível (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 2ª edição, Coimbra, pág. 272).
Assim caracterizado, o princípio da igualdade apresenta-se como princípio
negativo de controlo ao limite externo de conformação da iniciativa do
legislador sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em
confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar
diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das
concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado
referencial. Assim, a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente
negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e
intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como
proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não
controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada
ao fim, mais razoável ou mais justa.
Numa outra dimensão, o conteúdo jurídico-constitucional do princípio da
igualdade enquadra igualmente uma proibição de discriminação, permitindo
qualificar como ilegítimas quaisquer diferenciações de tratamento baseadas em
categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 339).
Revertendo ao caso em apreço, é efectivamente estabelecida, no artigo 35.º, n.º
2, alínea b), e n.º 4 do Decreto, uma tendencial diferenciação na contratação
de serviços pela Administração com base na distinta qualidade (singular ou
colectiva) do co-contratante, privilegiando-se a outorga destes acordos com
empresas – enquanto organização de meios autonomizável em face de um sujeito,
reunindo um conjunto de factores produtivos para o exercício de uma determinada
actividade comercial – face aos trabalhadores em nome individual.
Para apreciar a conformidade constitucional de tal medida à luz do princípio da
igualdade é necessário partir da ratio das disposições em causa para retirar o
critério que justificou a diferenciação e avaliar se o mesmo possui uma
fundamentação razoável.
Não havendo uma indicação precisa, nos trabalhos preparatórios, sobre a
finalidade da lei, poderá ela ser averiguada através da análise da evolução do
tratamento legislativo dos contratos de tarefa e avença celebrados pela
Administração Pública, que permite remontar ao disposto no artigo 17.º do
Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro. Este diploma previa já a possibilidade
de celebração de contratos de serviços, embora sem fazer qualquer distinção
entre pessoas singulares e colectivas, e procurava dar a estes contratos um
carácter excepcional (n.º 2), traduzido quer na disciplina restritiva das
circunstâncias em que poderiam ser celebrados, quer na sujeição da sua outorga a
uma autorização especial conferida pelo membro do Governo responsável pelo
serviço contratante (n.º 7). A razão que pode ser apontada como constituindo o
fundamento jurídico deste regime restritivo era a da necessidade de evitar a
utilização deste tipo de vínculo precário como forma de admissão de pessoal para
a função pública, em consequência do sucessivo recurso à celebração destes
contratos e à sua renovação, em situações conjunturais que o poderiam não
justificar.
Em reforço de um maior rigor na contratação de serviços em regime de tarefa ou
avença, o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Julho, que estabeleceu os princípios
gerais em matéria de salários e gestão de pessoal (agora também revogado), veio
sujeitar os dirigentes que celebrem ou autorizem a celebração desses contratos
fora do condicionalismo legal a responsabilidade civil, disciplinar e
financeira, com a acrescida consequência da possível cessação da respectiva
comissão de serviço (artigo 10º, n.º 8).
Apesar disso, tem-se assistido nas últimas décadas a um progressivo aumento do
número de indivíduos que prestam serviço na Administração Pública ao abrigo de
vínculos jurídicos de natureza precária ou sem titulação jurídica adequada, que
desse modo são chamados a assegurar, de forma subordinada, o exercício de
funções próprias e permanentes de serviço público, mediante o recurso a
mecanismos de contratação que apenas deveriam ser utilizados para a satisfação
de necessidades transitórias e/ou específicas desses títulos, com o consequente
desfasamento entre a situação de facto e de direito, e a emergência de uma
verdadeira «função pública paralela» (sobre estes aspectos, Ana Fernanda Neves,
Relação Jurídica de Emprego Público, Coimbra, 1999, págs. 117 e segs.).
E que tem redundado, não só na implementação de iniciativas legislativas
tendentes a assegurar a regularização da situação de pessoal que se mantém ao
serviço sem vínculo adequado (assim, o Decreto-Lei n.º 413/91, de 19 de
Outubro), como também na conversão daqueles vínculos precários em definitivos,
por via do recurso, por parte dos interessados, aos tribunais, que, por vezes,
têm dado prevalência, na apreciação jurídica dos casos, à situação factual do
agente, em detrimento do vínculo formal (cfr., por exemplo, o acórdão do STA de
12 de Maio de 1998, no Processo n.º 43500).
Assim se compreende que o recente Decreto-Lei n.º 169/2006, de 17 de Agosto, com
a intencionalidade de controlar a admissão de efectivos, tenha conferido uma
nova redacção ao n.º 7 do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 41/84, estabelecendo um
regime mais exigente de celebração e renovação de contratos de prestação de
serviços, e, simultaneamente, tenha determinado, até 31 de Dezembro de 2006, a
cessação de todos os contratos cuja necessidade de manutenção não tenha sido
confirmada pelos serviços ou tenha sido objecto de um juízo de desnecessidade
feito pelos membros do Governo envolvidos no processo de autorização (cfr. o
respectivo preâmbulo).
Como tudo indica, o regime constante da alínea b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo
35.º do Decreto enquadra-se na mesma linha estratégica de contenção de efectivos
e de racionalização de recursos humanos, pelo que a preferência concedida à
contratação de serviços a empresas tem sobretudo o objectivo de evitar o
artificial sobredimensionamento da estrutura da Administração Pública em matéria
de pessoal, começando por evitar, dentro do possível, a celebração de contratos
com pessoas singulares, cuja continuidade pudesse gerar novas situações de
disfuncionalidade, que os mecanismos de controlo anteriormente instituídos não
conseguiram impedir.
Neste conspecto, é possível justificar a diferenciação introduzida à luz de um
critério que se afigura razoável, por ser compatível com fins
constitucionalmente relevantes, como sejam a boa organização e gestão dos
recursos públicos, e por estar dotado de um mínimo de coerência entre os
objectivos prosseguidos e os resultados previsíveis. Por outro lado, o critério
em causa é objectivo, relevando para esta apreciação não a circunstância de ele
se fundar na natureza pessoal (individual ou colectiva) dos grupos de
destinatários, mas sim o facto de a determinação daquilo que é igual e desigual
e a escolha da justa medida da diferenciação se fundarem, como sucede no caso em
apreço, em termos de comparação e juízos valorativos intersubjectivamente
reconhecíveis de forma minimamente clara e comprovável.
Não se vê, assim, motivo bastante para considerar verificada a pretendida
inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
Retenção cautelar automática de metade da remuneração base de funcionário
indiciado responsável pela celebração de contrato de prestação de serviços
inválido
4. O pedido imputa ainda uma inconstitucionalidade material à norma ínsita no
n.º 3 do artigo 36.º do Decreto n.º 173/X, por violação da alínea a) do n.º 1 do
artigo 59.º conjugada com os n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP, com base nos
seguintes fundamentos: (a) restringe de forma desnecessária, desadequada e
irrazoável o direito ao salário dos trabalhadores da função pública indiciados
pela celebração de contrato de prestação de serviços eventualmente ilegal, já
que, sem fundamento em interesse público de relevo constitucional que o
justifique, impõe a adopção automática de uma medida cautelar excessiva; (b)
restringe para além do constitucionalmente admissível o direito do trabalhador
indiciado à retribuição, já que o automatismo decorrente da cativação «cega» e
por tempo indefinido de metade do seu vencimento pode implicar uma lesão ao
direito a uma existência pessoal e familiar condigna, depreciando-se o conteúdo
fundamental da norma constitucional que garante a protecção do salário.
A ser procedente, o juízo de inconstitucionalidade, conforme se invoca,
determinaria também a inconstitucionalidade, a título consequente, das normas
previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo e da norma constante do n.º 2 do artigo
94.º, neste caso, por efeito da remissão que aí é feita para o citado artigo
36º, n.º 3.
Referindo-se às consequências do incumprimento dos requisitos de celebração dos
contratos de prestação de serviços, que se encontram definidos no preceito
imediatamente anterior, a norma do artigo 36º, agora em análise, tem a seguinte
redacção:
1- Sem prejuízo da produção plena dos seus efeitos durante o tempo em que tenham
estado em execução, os contratos de prestação de serviços celebrados com
violação dos requisitos previstos nos n.ºs 2 e 4 do artigo anterior são nulos.
2- A violação referida no número anterior faz incorrer o seu responsável em
responsabilidade civil, financeira e disciplinar.
3 - A título cautelar, as unidades orgânicas competentes para o processamento e
pagamento das remunerações cativam automaticamente, a partir do mês seguinte
àquele em que tenha sido instaurado o procedimento administrativo ou
jurisdicional, tendente a averiguar da invalidade da contratação ou a efectivar
a responsabilidade
financeira, respectivamente, metade da remuneração base do indiciado
responsável, até ao limite do montante que tenha sido despendido por força da
contratação.
4- Findo o procedimento, as importâncias cativadas são entregues nos cofres do
Estado, nos termos legais, ou são devolvidas, com os correspondentes juros
legais, conforme o caso.
5- Para os efeitos do disposto no n.º 3 a entidade competente pela instrução do
procedimento informa da sua instauração as unidades orgânicas ali referidas.
Reputando como nulos os contratos de prestação de serviços celebrados com
preterição dos requisitos legais (ainda que mantendo os efeitos putativos que
resultem da respectiva execução), o n.º 2 do artigo 36º prevê a
responsabilização civil, financeira e disciplinar do dirigente ou funcionário
que tenha autorizado a contratação ilegal, e comina a cativação, a título
cautelar, de metade da remuneração base do agente responsável, em vista ao
ressarcimento, pela entidade pública lesada da totalidade das verbas despendidas
com a contratação.
Da interpretação conjugada dos n.ºs 3, 4 e 5 do referido preceito, poderá
concluir-se que a retenção de verbas, e a sua afectação aos cofres do Estado ou
devolução ao interessado, opera nos seguintes termos: (a) logo que existe
notícia da celebração indevida de contratos de prestação de serviços é
instaurado o procedimento administrativo ou jurisdicional destinado a averiguar
a invalidade da contratação ou a efectivar a correspondente responsabilidade
financeira; (b) o instrutor do processo informa as entidades processadoras das
remunerações; (c) estas cativam automaticamente a partir do mês seguinte àquele
em que tenha sido instaurado o procedimento, metade da remuneração base do
indiciado, até ao limite do montante que tenha sido despendido por força da
contratação; (d) findo o procedimento, as verbas cativadas são entregues à
Fazenda Nacional ou devolvidas ao funcionário visado, consoante se tenha
concluído pela ilicitude da contratação ou a responsabilidade financeira de quem
a autorizou ou pela inexistência de qualquer ilegalidade.
Deve começar por dizer-se que a possibilidade de dirigentes e funcionários se
encontrarem sujeitos a responsabilidade civil, disciplinar e financeira e se
tornarem responsáveis pela reposição de quantias indevidamente pagas em caso de
inobservância de procedimentos relativos à contratação de pessoal, estava já
contemplada, no regime actual, precisamente para ilegal celebração de contratos
de prestação de serviços, pelo já citado artigo 10º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º
184/89, de 2 de Julho.
Outras disposições previam o mesmo tipo de responsabilidade para dirigentes e
funcionários que autorizassem nomeações de pessoal não vinculado à função
pública sem prévia audição da Direcção-Geral da Administração Pública (artigos
19º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 13/97, de 17 de Janeiro, e 11º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 326/99, de 18 de Agosto), ou que admitissem pessoal, com
preterição das formalidades legais, para suprir insuficiências resultantes da
implementação de medidas de flexibilização do horário ou do período de trabalho
(artigos 6º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 324/99, de 18 de Agosto, e 7º, n.º 4, do
Decreto-Lei n.º 325/99, da mesma data), preceitos estes que foram agora
incluídos no elenco das disposições revogadas pelo novo regime dos vínculos,
carreiras e remunerações (artigo 116º, alínea jj), uu), vv), e xx), do Decreto
n.º 173/X).
A responsabilidade financeira prevista em qualquer dessas disposições
destinava-se a efectivar a entrega nos cofres do Estado do quantitativo que
tivesse sido abonado ao pessoal ilegalmente contratado, mediante o competente
processo jurisdicional a decorrer perante o Tribunal de Contas, sem prejuízo da
concomitante responsabilidade disciplinar (ou até criminal) em que o agente
pudesse ter incorrido. Distingue-se, por outro lado, da responsabilidade civil,
que opera apenas na relação externa, quando tenham sido ofendidos deveres
resultantes de uma vinculação contratual, causando danos ao outro contraente
(responsabilidade contratual), ou tenham sido violadas disposições legais
destinadas a proteger interesses de terceiros (responsabilidade extracontratual)
(quanto a estas diferentes formas de responsabilidade por contraposição à
responsabilidade financeira, cfr. Parecer da PGR n.º 14/2000, de 31 de Maio de
2001).
A novidade introduzida pelo presente artigo 36º, n.º 3, é a de ter previsto,
para além da responsabilidade financeira, civil e disciplinar inerente a uma
actuação administrativa ilícita, a aplicação automática de uma medida cautelar
que, provisória e antecipadamente, pretende assegurar o ressarcimento de verbas
que foram indevidamente utilizadas com a contratação ilegal.
O procedimento que desencadeia a retenção de verbas poderá ser constituído por
um processo disciplinar que se destine a verificar, desde logo, a
responsabilidade disciplinar do agente por violação de normas atinentes à
contratação de serviços, ou por um processo de inquérito, quando se pretenda
averiguar preliminarmente a eventual existência de irregularidades na
contratação, ou ainda por um processo de julgamento de responsabilidade
financeira, que, neste caso, corre termos perante o Tribunal de Contas e que tem
em vista tornar efectiva a responsabilidade emergente de factos revelados em
relatórios de auditoria, que, para esse efeito, são enviados pela entidade
administrativa competente ao agente do Ministério Público junto daquele órgão
jurisdicional (artigos 57º, n.º 1, e 58º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, da Lei n.º
98/97, de 26 de Agosto).
A admissibilidade, em termos gerais, da adopção de medidas provisórias no âmbito
de um procedimento administrativo era já reconhecida pelo artigo 84º do Código
do Procedimento Administrativo, tendo essencialmente em vista garantir a
eficácia da decisão final a proferir no procedimento.
O direito disciplinar não desconhece também, a existência desse tipo de
providências que se destinam a permitir adoptar medidas que evitem a sonegação
de provas ou impeçam a alteração do estado dos factos e dos documentos ou livros
em que se descobriu ou se presume descobrir alguma irregularidade, aí se
incluindo a suspensão preventiva do arguido quando a sua presença possa
revelar-se inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade (artigos
53º e 54º do Estatuto Disciplinar).
O traço comum das providências cautelares de natureza procedimental que podem
ser aplicadas no processo disciplinar e, em geral, em qualquer procedimento
administrativo, é o de assegurarem o efeito útil do procedimento, com o
propósito de permitirem a manutenção do statu quo ante de modo a evitar a
deterioração do equilíbrio de interesses existente à partida até que a questão
de fundo venha a ser dirimida no processo próprio. Trata-se, por isso, de
medidas cautelares conservatórias, que visam evitar a inutilização prática dos
interesses públicos que um determinado procedimento visa prosseguir, e que
seriam irreparavelmente lesados se tivessem de aguardar a tramitação que deverá
ser normalmente seguida para proferir uma decisão final (Marcelo Rebelo de
Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa,
2007, págs. 132-133).
Se atentarmos nos critérios gerais descritos no citado artigo 84º do CPA,
podemos concluir que a aplicação de uma medida provisória por parte de um órgão
administrativo depende da verificação dos seguintes requisitos: (a) que o
procedimento tenha sido iniciado, podendo, no entanto, a medida provisória ser
contemporânea do início oficioso do procedimento ou determinada a requerimento
dos interessados; (b) que haja receio de que sem a adopção da medida provisória
o fim do procedimento possa frustrar-se; (c) que a medida se destine a evitar
lesão grave ou de difícil reparação de interesses públicos (Freitas do Amaral et
allii, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 4ª edição, Coimbra, pág.
168).
Por outro lado, a doutrina vem já chamando a atenção, em relação a esse tipo de
providências cautelares procedimentais, para a necessidade de ponderação dos
interesses em presença por forma a que, em ordem à aplicação do princípio da
proporcionalidade, o prejuízo que resulta para o destinatário da medida não
exceda o dano que com ela se pretende evitar (idem, 143).
O que ressalta no caso da medida cautelar prevista no artigo 36º, n.º 3, do
Decreto n.º 173/X, por confronto com as providências cautelares que poderão ser
adoptadas, em geral, em sede de procedimentos administrativos, é que ela é uma
medida obrigatoriamente imposta por lei, sem qualquer possibilidade de avaliação
dos concretos interesses em jogo, que resulta automaticamente da simples
comunicação da instauração de um procedimento administrativo ou jurisdicional
que se destine a averiguar a responsabilidade do visado, independentemente de
qualquer prévia indagação sobre a suficiência ou validade dos factos
indiciários, e sem possibilidade do exercício do contraditório, e que, para além
de tudo isso, tem uma função, não meramente conservatória (que poderia
justificar-se por conveniência de evitar a subtracção de provas), mas unicamente
antecipatória, com o declarado objectivo de realizar a satisfação de interesses
do erário público ainda na pendência do processo e antes de qualquer indicação
segura sobre o sentido da decisão final a proferir.
Resta acrescentar que a responsabilidade reintegratória do funcionário, poderá
ser accionada através do Tribunal de Contas, quando requerida pelo Ministério
Público, nos termos já referenciados (quanto a este aspecto, o já citado Parecer
da PGR n.º 14/2000); mas também através de processo disciplinar, nos termos
previstos nos artigos 65º, n.º 1, e 91º do Estatuto Disciplinar, o qual poderá
culminar com a aplicação de pena disciplinar adequada à gravidade dos factos e a
decisão condenatória de reposição de verbas, que implicará o desconto nos
vencimentos que venham a ser processados posteriormente, no caso de não
pagamento voluntário (cfr., acórdão do STA de 6 de Março de 1990, Processo
25131); e ainda por via do procedimento de reposição de dinheiros públicos, que
está regulamentado nos artigos 36º e seguintes do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28
de Julho, que regula o regime financeiro dos serviços e organismos do
Administração Pública.
Podendo ser invocada, em todo este contexto - como se deixou entrever -, a
violação do princípio da proporcionalidade, cabe efectuar uma análise, ainda que
sucinta, dos interesses do particular destinatário que poderão ser afectados
pela medida cautelar prevista na norma em apreço.
5. O artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição consagra em relação a todos
os trabalhadores o direito à «retribuição do trabalho segundo a quantidade,
natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual
salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».
O direito à retribuição do trabalho, ainda que sediado no Titulo III da Parte I
da Constituição, relativo aos «direitos e deveres económicos e sociais», tem
sido reconhecido como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, que, como tal, compartilha do regime constitucional
próprio destes em todos os aspectos materiais do seu regime, e designadamente
com referência ao artigo 18º (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra, 4ª edição, págs. 374 e 770; Jorge
Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005,
pág. 598).
O artigo 36º, n.º 3, do Decreto n.º 173/X, enquanto norma restritiva do direito
à retribuição, com aquela sobredita qualificação, apenas poderia ser legítima se
preenchesse os requisitos que promanam do artigo 18º, n.º 2, da Constituição,
que pressupõe antes de mais a verificação das seguintes condições: (a) que a
restrição esteja expressamente credenciada no texto constitucional, ou pelo
menos, não possa deixar de ser admitida num quadro de ponderação de conflitos
entre bens ou valores constitucionais (n.º 2, 1ª parte); (b) que só se possa
justificar para salvaguardar um outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido, de tal modo que o sacrifício imposto pela lei restritiva não possa
ser tido como arbitrário, gratuito ou desmotivado (n.º 2, in fine); (c) que a
restrição obedeça ao princípio da proporcionalidade, na sua tríplice vertente de
princípio da adequação - as medidas restritivas legalmente previstas devem
revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei -,
princípio da necessidade - as medidas restritivas devem revelar-se necessárias
e, por isso, exigíveis, porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos
por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias - e
princípio da proporcionalidade em sentido estrito - os meios legais restritivos
não podem ser desproporcionados ou excessivos em relação aos fins que se
pretendem obter (n.º 2, 2ª parte) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit.,
págs. 392-393).
No caso vertente, poderá entender-se que a obrigatoriedade da cativação de parte
da remuneração do dirigente ou funcionário, a título cautelar, para assegurar o
ressarcimento pelo Estado de verbas indevidamente gastas numa contratação ilegal
pode encontrar justificação na necessidade de preservação do princípio da
legalidade administrativa (artigo 266º, n.º 2, da CRP). E pode configurar-se até
como um meio adequado à satisfação do interesse público, no ponto em que permite
antecipadamente garantir o reembolso de importâncias despendidas ilegalmente e
desincentivar as condutas abusivas por parte de quem tem responsabilidade no
domínio da gestão de pessoal. No entanto, a automaticidade da medida cautelar,
sem qualquer prévia audição do interessado, nem avaliação de grau de culpa e da
eventual existência de causa justificativa em função do circunstancialismo do
caso, tornam essa medida manifestamente excessiva e desproporcionada, sobretudo
quando se tem presente que o erário público dispõe de outros meios legais que
lhe permitem obter o reembolso das importâncias em causa, designadamente por
via, quer do processo disciplinar, quer da intervenção do Tribunal de Contas em
sede do processo jurisdicional de responsabilidade financeira.
Certo é que a providência teria o efeito útil de permitir a antecipação do
ressarcimento que é devido à entidade pública e evitar o periculum in mora, isto
é, o prejuízo que resultaria da demora processual quando o reembolso apenas
pudesse ser concretizado no termo do respectivo procedimento administrativo ou
jurisdicional.
No entanto, uma providência cautelar, ainda que de natureza administrativa, e
sobretudo quando se caracteriza como uma providência antecipatória que tenha em
vista alterar a situação jurídica preexistente e constituir uma situação
jurídica nova – que apenas poderá ser confirmada na decisão final a proferir no
processo principal -, não pode ter como fundamento apenas um juízo de valor
absoluto sobre os interesses da entidade administrativa, mas deverá ter em
conta, segundo o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, os
danos que essa solução possa acarretar para a contraparte.
Como é de concluir, a cativação automática de metade da remuneração do
funcionário responsável, com base na simples notícia da possível existência da
infracção, sem uma apreciação perfunctória da boa aparência do direito e sem uma
averiguação mínima acerca dos reflexos económicos que essa medida possa
acarretar na esfera jurídica do interessado, não pode deixar de ser entendida
como medida excessiva que viola frontalmente o princípio da proporcionalidade.
Nestes termos, a norma em causa mostra-se ser inconstitucional por violação do
disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da CRP, interpretado conjugadamente
com o n.º 2 do artigo 18º.
De resto, o direito à retribuição do trabalho, constitucionalmente consagrado,
tem pressuposta a ideia de destinação da remuneração à satisfação das
necessidades pessoais e familiares do trabalhador, o que justifica as exigências
de pontualidade e regularidade no cumprimento da obrigação (artigos 267º e 269º
do Código do Trabalho) e as especiais garantias de tutela da integridade do
salário, que impõem a regra da inadmissibilidade da compensação da retribuição
em dívida com créditos da entidade empregadora sobre o trabalhador e a da
parcial impenhorabilidade ou cessão dos montantes remuneratórios (artigos 270º e
271º do Código do Trabalho e 824º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo
Civil). O direito à retribuição implica, por conseguinte, a disponibilidade dos
valores que compõem o salário e o consequente ingresso na esfera patrimonial do
trabalhador, pelo que a cativação automática de remunerações, em termos que
afectam o princípio da proporcionalidade, é ainda susceptível de violar o
direito de propriedade, tal como está consignado no artigo 62º, n.º 1, da CRP,
na sua componente de direito de uso e fruição de direitos de valor patrimonial
(quanto a esta dimensão do direito de propriedade, Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição
revista, citada, págs. 800 e 804; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, citada, págs. 626-627).
6. Acresce que a previsão do artigo 36º, n.º 3, ao permitir que essa mesma
medida possa ser adoptada também quando se inicie um processo de
responsabilidade financeira (que, como se deixou esclarecido, decorre
necessariamente perante o Tribunal de Contas), tem ainda a característica
peculiar de transformar uma medida cautelar administrativa (que deveria
projectar os seus efeitos apenas na relação directa entre a Administração e o
particular), numa providência instrumental do processo jurisdicional, para
efeito de assegurar a antecipação provisória dos efeitos da decisão a proferir
no âmbito desse processo, sem qualquer prévia sindicância do juiz competente.
E nessa medida, não pode deixar de entender-se que uma providência legislativa
com um tal conteúdo afecta a reserva de jurisdição, entendida como reserva de um
conteúdo material funcional típico da função jurisdicional. Na verdade, a
reserva de jurisdição actua simultaneamente como limite de actos legislativos e
de decisões administrativas, tornando-os inconstitucionais quando tenham um
conteúdo materialmente jurisdicional (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, citado, págs. 664-665). Pelo que a possibilidade legal
conferida pela norma sub judicio de permitir à Administração aplicar uma medida
cautelar de retenção de remunerações, também nos casos em que se venha a iniciar
um processo jurisdicional de responsabilidade financeira, para garantir o efeito
útil da respectiva decisão condenatória, representa (independentemente de saber
se esse processo consente providências cautelares jurisdicionais) uma indevida
ingerência do legislador na reserva do juiz, implicando a prática de um acto
que, na circunstância, só poderia ser adoptado por um órgão jurisdicional.
Sublinhe-se, a este título, que a cativação de remunerações não opera ope legis,
mas resulta da intermediação de uma actuação administrativa: o dirigente do
serviço que endereça ao Tribunal de Contas o relatório de auditoria ou de
inspecção que fundamenta a responsabilidade financeira do funcionário visado,
informa o serviço processador de vencimentos, e é esta entidade (que se integra
ainda no âmbito da Administração Pública) que define inovatoriamente a situação
jurídica do interessado, fixando, através de um acto jurídico individual e
concreto, o montante da remuneração que é cativada (quanto à caracterização dos
actos de processamento de vencimentos como verdadeiros actos administrativos,
quando envolvam um efeito inovatório, entre muitos, os acórdãos do STA de 11 de
Dezembro de 2001, Processo n.º 47140, de 22 de Fevereiro de 2001, Processo n.º
46988, e de 4 de Novembro de 2003, Processo n.º 48050).
Certo é que, nessa eventualidade, o conteúdo jurídico do acto de processamento
de vencimento corresponde a um determinado efeito que é determinado por lei, mas
isso apenas significa que se trata de um acto estritamente vinculado; essa
circunstância não descaracteriza a actuação da Administração como acto
administrativo, visto que ela não deixa de ser uma conduta voluntária unilateral
de aplicação do direito numa determinada situação jurídica concreta (quanto à
relevância da vontade na emissão de todo e qualquer acto administrativo, ainda
que totalmente vinculado, Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, ob.
cit., págs. 87-88).
A cativação de remunerações, quando se encontre associada à efectivação de
responsabilidade financeira perante o Tribunal de Contas, no ponto em que
resulta de uma actuação administrativa (embora como necessária consequência da
lei) não pode entender-se como uma medida cautelar de carácter jurisdicional
resultante de expressa determinação legal, que, como tal, deva ainda
considerar-se inserida no âmbito material da jurisdição.
Tratando-se de uma medida administrativa que passa a figurar como providência
cautelar antecipatória em relação a um processo jurisdicional, ela interfere na
composição provisória de um conflito de interesses existente entre a
Administração e o funcionário envolvido, resolvendo uma questão de direito que
se situa na esfera material da função de julgar e que envolve assim a violação
do princípio consagrado no artigo 202º da CRP (em sentido similar, Maria
Assunção Esteves considera que as medidas cautelares administrativas são
contrárias ao princípio de reserva de jurisdição quando o interesse público ao
abrigo do qual foram praticadas entra em relação de conflito com outros valores
ou interesses subjectivos cuja resolução se enquadra na função jurisdicional –
cfr. Função administrativa ou função jurisdicional? As providências cautelares
da Administração no Decreto-Lei n.º 234/99, de 25 de Junho, in Estudos de
Direito Constitucional, Coimbra, 2001, págs. 134-135).
7. No âmbito da mesma problemática, o pedido coloca também a questão de saber se
a retenção de metade da remuneração base do indiciado responsável não viola o
conteúdo essencial da garantia de protecção salarial prevista na citada norma do
artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre
disposições legais cuja aplicação suscita esta mesma questão e poderão
apresentar com o caso dos autos algum paralelismo, ao analisar a
constitucionalidade do artigo 45º, n.º 1, da Lei n.º 28/84 (que prevê a
impenhorabilidade total das prestações devidas a beneficiários pelas
instituições de segurança social), do artigo 824, n.º l, alínea b), do Código
de Processo Civil (que prevê a penhorabilidade parcial dos salários auferidos
pelo executado) e do artigo 15º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar (que determina
para os funcionários e agentes aposentados que as penas de suspensão ou
inactividade sejam substituídas pela perda da pensão por igual período de
tempo).
Essa jurisprudência pode sintetizar-se nos seguintes quatro vectores: nos
acórdãos n.ºs 411/93 e 130/95 julgou-se inconstitucional a norma do artigo 45º,
n.º 1, da Lei n.º 28/84, apenas na medida em que isenta de penhora a parte das
prestações devidas pela segurança social que excede o mínimo adequado e
necessário a uma sobrevivência condigna; no acórdão n.º 349/91, sem pôr em causa
o princípio exposto nessa outra orientação jurisprudencial, que igualmente
manteve, considerou-se não inconstitucional a mesma norma no ponto em que a
pensão efectivamente auferida pelo interessado apenas permitia garantir a
sobrevivência minimamente digna do beneficiário; no acórdão n.º 62/02 julgou-se
inconstitucionais as normas dos artigos 821º, n.º 1, e 824, n.º l, alínea b), e
n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são
penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido; no
acórdão n.º 442/2006 (e em situação semelhante no acórdão n.º 518/2006)
conclui-se pela não desconformidade constitucional da norma do artigo 15º, n.º
1, do Estatuto Disciplinar, na parte em que permite que aos funcionários e
agentes aposentados possa ser aplicada, em caso de infracção disciplinar, a pena
de perda de pensão por tempo igual à pena de inactividade ou de suspensão que
seria de aplicar se não fosse a aposentação.
O princípio a que o Tribunal Constitucional aderiu nos quatro primeiros acórdãos
citados, em que se discutia a impenhorabilidade total (ou parcial) dos
rendimentos provenientes de salários (e pensões), é o de que é inconstitucional
a norma quando põe em causa o direito ao mínimo de sobrevivência, ou, melhor
dito, o direito a não ser privado do mínimo necessário à sobrevivência. Esse
direito tem como ponto de partida o princípio da dignidade da pessoa humana e a
dimensão material do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º da
CRP, pelo que o Tribunal entendeu que havia uma lesão inconstitucional do seu
conteúdo sempre que o remanescente dos salários e pensões a penhorar não fosse
superior ao montante do salário mínimo nacional ou do rendimento mínimo
garantido.
Nos acórdãos n.ºs 442/2006 e 518/2006, que se pronunciaram sobre a perda da
pensão, ponderou-se que a situação era aí diferente daquela que permite a
penhora de rendimentos provenientes de pensões sociais ou rendimentos do
trabalho de montante não superior ao salário mínimo nacional. É que a afectação
da pensão de aposentação não resulta de um acto de penhora, visando a satisfação
coerciva de um direito de crédito não satisfeito voluntariamente pelo devedor,
traduzindo-se antes numa forma de pena disciplinar que visa punir uma infracção
da mesma natureza praticada pelo titular da pensão. Neste caso, são as legítimas
finalidades de natureza repressiva e preventiva que fundamentam a pena
disciplinar, e que ficariam definitivamente prejudicadas pela sua
inaplicabilidade, decorrente de um eventual juízo de inconstitucionalidade da
norma do artigo 15º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar; enquanto naquele outro caso
a finalidade da penhora não é afectada, de modo definitivo, pela impossibilidade
de atingir uma parte dos rendimentos penhoráveis.
Não é qualquer dessas a situação que agora se coloca.
Certo é que artigo 36º, n.º 3, do novo regime de vínculos, carreiras e
remunerações comina a retenção automática de metade da remuneração sem
salvaguardar a possibilidade de essa redução remuneratória, pela sua amplitude,
vir a pôr em risco o mínimo necessário à subsistência dos visados. Tratando-se,
porém, de dirigentes de serviços e de funcionários de nível hierárquico
superior, a que se encontram atribuídas funções de direcção e de gestão dos
serviços, é de crer que estejam, em regra, posicionados nos escalões superiores
ou intermédios da estrutura remuneratória, e que não seja provável que a perda
de metade da remuneração gere uma situação limite susceptível de afectar as
condições de sobrevivência. Mas para além disso, e sobretudo, a diminuição
patrimonial é uma consequência negativa que deriva da prática de actos de
contratação ilícita e que o visado sempre terá de suportar na sua esfera
jurídica, quando se venha a concluir pela existência da irregularidade no
correspondente processo disciplinar ou de responsabilidade financeira.
Neste plano de consideração, a situação aproxima-se mais da hipótese analisada
nos acórdãos n.ºs 442/2006 e 518/2006, em que se ponderou, para efeito de se
formular um juízo de constitucionalidade, a finalidade específica do
procedimento que está em causa e a função sancionatória da perda da remuneração.
O ponto é que a norma sub judicio comina uma redução remuneratória, a título
cautelar, ainda na pendência do procedimento destinado a averiguar a
responsabilidade financeira do agente, antes de culpa formada e da prolação de
qualquer decisão definitiva que reconheça o dever de reposição de verbas.
Neste condicionalismo, a redução drástica da remuneração do visado, acarretando
porventura uma impossibilidade de satisfazer os habituais compromissos
económicos e sociais – ainda que não ponha em risco o mínimo necessário a uma
existência condigna – reconduz-se a uma restrição desproporcionada do direito ao
salário, que acaba por determinar, nos termos já antes referidos, uma violação
do direito à retribuição do trabalho mas por referência ao princípio da
proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, da CRP.
Resta considerar que todas as precedentes considerações (cfr. supra 4, 5, 6 e 7)
conduzem igualmente a concluir pela inconstitucionalidade, com idênticos
fundamentos, da norma transitória do artigo 94º, n.º 2, do Decreto, que também
integra o objecto do pedido.
Com efeito, esse preceito, no seu n.º 1, determina que os serviços procedam à
reapreciação dos contratos de prestação de serviços, para efeitos da sua
renovação, à luz da nova disciplina jurídica resultante do artigo 35º, e, no n.º
2, comina o incumprimento desse regime, mutatis mutandis, com as consequências
que decorrem do artigo 36º, e, consequentemente, com a retenção automática de
metade da remuneração do dirigente ou funcionário responsável, como prevê o n.º
3 desse artigo, segundo o procedimento considerado nos subsequentes n.ºs 4 e 5.
A referida norma, por efeito da remissão feita para o artigo 36º, está, por
isso, também inquinada de inconstitucionalidade.
O desenvolvimento de princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos mediante
portaria
8. Coloca-se ainda a questão da eventual inconstitucionalidade da norma do nº 2
do artigo 54º do Decreto por desconformidade com as disposições constitucionais
dos n.ºs 2 e 3 do artigo 112º, da alínea c) do nº 1 do artigo 198º e, ainda, da
alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, já que se pode ter como violada a
reserva de desenvolvimento de bases gerais por acto legislativo.
Neste aspecto, o pedido assenta nos seguintes considerandos:
a) O Decreto sub judicio foi emitido no âmbito de uma matéria cujas
correspondentes bases gerais se encontram inseridas na reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República, por força do que dispõe o
artigo 165º, n.º 1, alínea t), da CRP;
b) O artigo 54º, n.º 1, enuncia princípios jurídicos atinentes à tramitação do
procedimento concursal que presuntivamente devem ser qualificadas como
princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos, e cujo desenvolvimento apenas
poderá ser efectuado por imediação legislativa;
c) O n.º 2 do mesmo preceito, ao remeter a regulamentação da tramitação do
procedimento concursal, e, por conseguinte, a concretização dos referidos
princípios gerais, para portaria a emitir pelo membro do Governo da tutela viola
a reserva de desenvolvimento das bases gerais por acto legislativo.
O artigo 54º, epigrafado «Tramitação do procedimento concursal», insere-se
sistematicamente num Capítulo dedicado ao recrutamento de pessoal, onde se
incluem disposições que estabelecem a obrigatoriedade do concurso de provimento
(artigo 50º), a exigência de níveis habilitacionais e outros requisitos de
recrutamento (artigos 51º e 52º) e os métodos de selecção a utilizar (artigo
53º).
Incidindo sob os trâmites do procedimento, para efeito da selecção dos
candidatos nos lugares a prover, o artigo 54º dispõe:
1- O procedimento concursal é simplificado e urgente, obedecendo aos seguintes
princípios:
a) O júri do procedimento é composto por trabalhadores da entidade empregadora
pública, de outro órgão ou serviço e, quando a área de formação exigida revele a
sua conveniência, de entidades privadas;
b) Inexistência de actos ou de listas preparatórias da ordenação final dos
candidatos;
c) A ordenação final dos candidatos é unitária, ainda que lhes tenham sido
aplicados métodos de selecção diferentes;
d) O recrutamento efectua-se pela ordem decrescente da ordenação final dos
candidatos colocados em situação de mobilidade especial e, esgotados estes, dos
restantes candidatos.
2- A tramitação do procedimento concursal, incluindo a do destinado a constituir
reservas de recrutamento em cada órgão ou serviço ou em entidade centralizada, é
regulamentada por portaria do membro do Governo responsável pela área da
Administração Pública ou, tratando-se de carreira especial relativamente à qual
aquela tramitação se revele desadequada, por portaria deste membro do Governo e
daquele cujo âmbito de competência abranja órgão ou serviço em cujo mapa de
pessoal se contenha a previsão da carreira.
O Decreto foi emitido ao abrigo da competência legislativa genérica da
Assembleia da República conferida pelo artigo 161º, alínea c), da CRP, pela qual
o Parlamento pode «fazer leis sobre todas as matérias salvo as reservadas pela
Constituição ao Governo». No entanto, o artigo 165º, n.º 1, alínea t), integra
na reserva relativa parlamentar «as bases do regime e âmbito da função pública»,
o que poderá ser entendido como tudo o que se refere à relação jurídica de
emprego público e à delimitação do seu âmbito, onde se poderão incluir normas
relativas à demarcação das áreas em que os organismos e os servidores do Estado
ficam submetidos a esse regime legal, bem como aquelas que respeitem ao
recrutamento ou ao regime de aposentação (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, citada, pág. 676).
Parece dever dar-se como assente, em qualquer caso, que se inserem na reserva
relativa da Assembleia, ao abrigo da referida disposição constitucional, aquelas
matérias que envolvam a densificação de direitos fundamentais, como o acesso à
função pública e o direito de exercício de profissão (ibidem). Nesse sentido
apontam também Jorge Miranda e Rui Medeiros, ao relacionarem o âmbito da norma
do artigo 165º, n.º 1, alínea t), com a do artigo 269º, onde precisamente se
estabelecem os princípios materiais informadores da função pública (Constituição
da Portuguesa Anotada, Tomo II, citada, pág. 534). Neste preceito se faz apelo
não só à especificidade do regime da função pública com a sua vinculação
exclusiva ao interesse público – o que nos remete para questões relacionadas com
a acumulação de cargos públicos e o regime de incompatibilidades (n.ºs 1, 4 e 5)
-, mas também às garantias de defesa dos trabalhadores da Administração Pública,
mormente no que concerne ao exercício de direitos políticos e o direito de
audição em processo disciplinar (n.ºs 2 e 3).
A questão que agora se coloca é de saber se o reenvio feito, pelo n.º 2 do
artigo 54º, da matéria de tramitação do procedimento concursal para simples
portaria não viola o princípio que decorre das disposições conjugadas dos
artigos 112º, n.º 2, e 198º, n.º 1, alínea c), da Constituição, que pressupõe
que o desenvolvimento dos princípios ou bases gerais do regime jurídico contido
em leis seja efectuado por decreto-lei do Governo.
Como vem sendo reconhecido, a Constituição não define o que são leis de bases
(acórdão do Tribunal Constitucional n.º 493/05). No caso de a lei se não
autoqualificar como tal, são de presumir como leis de bases as leis da
Assembleia da República naquelas matérias em que a reserva de lei se limita
justamente às bases dos regimes jurídicos previstas no artigos 164º e 165º. Fora
desses casos são de qualificar como leis de bases as leis que de facto se
limitem aos princípios gerais dos regimes jurídicos e que não devolvam
expressamente o seu desenvolvimento para diploma regulamentar, pois então deixa
de existir um pressuposto necessário das leis de bases, que é o seu
desenvolvimento legislativo. Inversamente, um indício seguro da existência de
uma lei de bases é a exigência por ela estabelecida de desenvolvimento ou de
regulamentação mediante decreto-lei (nestes precisos termos, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª
edição, citada, pág. 508).
No caso vertente, já tomámos em linha de conta que o Decreto n.º 173/X, não
tendo sido emitido ao abrigo da alínea t) do n.º 1 do artigo 165º da
Constituição, nem se autodenominando como uma lei de bases, é um diploma
heterogéneo que contém bases e princípios gerais do regime jurídico que pretende
regular, mas também, nalguns casos, o desenvolvimento legislativo desses
princípios, e, noutros, a remissão da sua concretização para regulamento
administrativo.
Não podendo ser tido como uma lei de bases, poderá suceder que algumas das suas
normas possam ser qualificadas como bases do regime da função pública. Como tais
devem entender-se aquelas que, num acto legislativo, definam as opções
político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se justifique
que seja ainda efectuada por via legislativa (Gomes Canotilho, Direito
constitucional e teoria da Constituição, citado, pág. 755; Jorge Miranda, Manual
de direito constitucional, tomo V, 3ª edição, Coimbra, pág. 377; acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 261/04).
Ora, no Decreto n.º 173/X, as ideias centrais que, em matéria de recrutamento de
pessoal, representam uma clara opção de política legislativa são as que constam
dos artigos 50º, 51º, 52º e 53º, onde se enuncia o princípio do concurso e se
estabelecem os requisitos de admissão e os critérios de selecção de candidatos.
O artigo 54º, por seu turno, reporta-se a elementos consensuais que se encontram
justificados por evidentes razões de equidade e transparência ou por
conveniência de simplificação processual – a constituição do júri; a eliminação
das listas provisórias; o carácter unitário da lista de ordenação de candidatos,
a ordem de precedência no preenchimento das vagas. Por outro lado, o
regulamento, para que se remete a concretização do disposto nesse preceito,
limitar-se-á a definir a tramitação do procedimento concursal, desempenhando uma
função instrumental de mera ordenação das fases do concurso e de especificação
dos seus elementos constitutivos.
Não podendo caracterizar-se a aludida norma, nos termos precedentemente
expostos, como norma de bases, a remissão para o regulamento não viola a reserva
de desenvolvimento das bases gerais por acto legislativo.
Cabe referir ainda, embora essa questão não tenha sido suscitada no pedido, que
a norma do artigo 54º, n.º 1, não podendo ser caracterizada como uma norma de
bases, segundo o entendimento acabado de expor, tem apesar disso um alcance
normativo concreto que, correspondendo a uma normação primária em matéria de
procedimento concursal, se torna susceptível de ser desenvolvida por via
regulamentar. O órgão legiferante não deixou, por isso, de fazer actuar, nesse
domínio específico, o princípio de reserva de lei que deriva do artigo 165º, n.º
1, alínea t), da CRP. Não se limitou a conferir à Administração a competência
subjectiva para regulamentar esses aspectos do regime jurídico - o que
implicaria a emissão de um regulamento independente, que necessariamente deveria
revestir a forma de decreto regulamentar -, mas fixou com suficiente densidade
normativa um conjunto de regras cujo desenvolvimento se quadra no âmbito de um
regulamento executivo ou complementar.
Determinação do posicionamento remuneratório de candidatos a recrutamento para a
função pública em procedimento concursal
9. O pedido suscita ainda a inconstitucionalidade da norma do artigo 55.º, n.º
1, do Decreto por violação do princípio da igualdade salarial, por aplicação das
disposições dos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP, no ponto em que
a norma admite, ou autoriza implicitamente, sem acautelar a fixação de limites
tangíveis, que uma decisão discricionária do empregador público possa, mediante
acordo resultante de processo negocial, preencher uma vaga aberta para um posto
de trabalho relativo a uma dada categoria profissional através de um candidato,
em termos tais que, cumulativamente:
a) Possa auferir uma remuneração mais elevada do que a dos trabalhadores mais
antigos integrados na mesma categoria que se encontrem em exercício de funções;
b) Seja oriundo de sector externo à Administração Pública e seja titular de
menores habilitações literárias do que os trabalhadores integrados na mesma
categoria profissional e que desempenhem idêntica função.
Segundo se sustenta, o princípio trabalho igual, salário igual, pode ser posto
em causa na medida em que esse novo regime, sem introduzir qualquer salvaguarda
e sem outro critério que não seja o da negociação salarial com o candidato a um
posto de trabalho, habilita o empregador a acordar discricionariamente com o
mesmo candidato um vencimento superior ao de outros funcionários mais antigos e
com iguais ou superiores habilitações literárias que exerçam funções idênticas
em igual categoria.
A referida norma surge inserida no Capítulo III do Título IV, atinente ao regime
de carreiras, o qual congrega diversas regras relativas ao recrutamento de
pessoal, incluindo as respeitantes ao procedimento concursal (artigos 50º a
54º), e que, sob a epígrafe «Determinação do posicionamento remuneratório»,
prescreve o seguinte:
1 - Quando esteja em causa posto de trabalho relativamente ao qual a modalidade
da relação jurídica de emprego público seja o contrato, o posicionamento do
trabalhador recrutado numa das posições remuneratórias da categoria é objecto de
negociação com a entidade empregadora pública e tem lugar:
a) Imediatamente após o termo do procedimento concursal; ou
b) Aquando da aprovação em curso de formação específico ou da aquisição de certo
grau académico ou de certo título profissional, nos termos da alínea c) do n.º 3
do artigo 41.º, que decorram antes da celebração do contrato.
2- Para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo anterior, a
negociação com os candidatos colocados em situação de mobilidade especial
antecede a que tenha lugar com os restantes candidatos.
3- Sem prejuízo de contactos informais que possam e devam ter lugar, a
negociação entre a entidade empregadora pública e cada um dos candidatos, pela
ordem em que figurem na ordenação final, efectua-se por escrito.
4- Em casos excepcionais, devidamente fundamentados, designadamente quando o
número de candidatos seja de tal modo elevado que a negociação se torne
impraticável, a entidade empregadora pública pode tomar a iniciativa de a
consubstanciar numa proposta de adesão a um determinado posicionamento
remuneratório enviada a todos os candidatos.
5- O eventual acordo obtido ou a proposta de adesão são objecto de fundamentação
escrita pela entidade empregadora pública.
6- Em cada um dos universos de candidatos referidos na alínea d) do n.º 1 do
artigo anterior, bem como relativamente à ordenação de todos os candidatos, a
falta de acordo com determinado candidato determina a negociação com o que se
lhe siga na ordenação, ao qual, em caso algum, pode ser proposto posicionamento
remuneratório superior ao máximo que tenha sido proposto a, e não aceite por,
qualquer dos candidatos que o antecedam naquela ordenação.
7- Após o seu encerramento, a documentação relativa aos processos negociais em
causa é pública e de livre acesso.
8- Quando esteja em causa posto de trabalho relativamente ao qual a modalidade
da relação jurídica de emprego público seja a nomeação, lei especial pode
tornar-lhe aplicável o disposto nos números anteriores.
9- Não usando da faculdade prevista no número anterior, o posicionamento do
trabalhador recrutado tem lugar na ou numa das posições remuneratórias da
categoria que tenham sido publicitadas conjuntamente com os elementos referidos
no n.º 3 do artigo 50.º.
Importa ter presente, para melhor compreender o alcance da aludida disposição,
que a lei prevê a existência de carreiras gerais e carreiras especiais (artigo
41º), que poderão incluir, em qualquer dos casos, carreiras unicategoriais ou
pluricategoriais (artigo 42º), sendo que a cada categoria de carreiras
corresponde um número variável de posições remuneratórias (artigo 45º).
Acresce que, em função da verbas disponíveis para encargos com pessoal, o
dirigente do serviço poderá proceder a alterações de posicionamento
remuneratório na categoria dos trabalhadores da unidade orgânica, que já se
encontrem no activo, as quais terão por base a avaliação do respectivo
desempenho (artigos 46º a 48º).
Por outro lado, como resulta com evidência do disposto no artigo 50º, n.º 1, o
recrutamento de trabalhadores para o preenchimento de lugares vagos depende de
uma opção gestionária que tenha em linha de conta os critérios definidos no
artigo 7º, n.º 1, alínea b), e n.ºs 2 e 3, relativamente à afectação de verbas
orçamentais a encargos com pessoal.
De acordo com essas referidas disposições, as verbas orçamentais dos órgãos ou
serviços afectas a despesas com pessoal poderão destinar-se a suportar encargos
com as remunerações dos trabalhadores que se devam manter em exercício de
funções, ou com o recrutamento de trabalhadores necessários à ocupação de postos
de trabalho vagos, ou ainda com alterações do posicionamento remuneratório dos
trabalhadores no activo ou com a atribuição de prémios de desempenho. Essa
afectação tem por base de ponderação dos objectivos e actividades do órgão ou
serviço, a motivação dos respectivos trabalhadores (mormente para o efeito de
alteração do posicionamento remuneratório), o nível do desempenho atingido pelo
órgão ou serviço no ano anterior ao da preparação da proposta de orçamento.
Além disso o dirigente do serviço, considerados todos esses factores, pode optar
pela afectação integral das verbas orçamentais apenas a uma dessas finalidades.
Tal significa que os serviços, em função dos resultados obtidos e do empenho
revelado pelos trabalhadores na execução das suas tarefas, podem prescindir de
abrir concurso para preenchimento de lugares vagos e aplicar as verbas previstas
para encargos com o pessoal na melhoria da situação remuneratória dos
trabalhadores já pertencentes aos quadros, aplicando, nesse caso, o regime
previsto nos artigos 47º e 48º. Nestes termos, o recrutamento de novos
trabalhadores pressupõe, desde logo, a impossibilidade ou inconveniência de
assegurar o cumprimento dos objectivos do órgão ou serviço através do pessoal no
activo e pode representar um juízo de avaliação sobre os índices de competência
técnica, produtividade e eficiência dos trabalhadores existentes e do nível
remuneratório que, em função desses factores, lhes deve competir.
Pressupondo que o dirigente do serviço opta pela abertura de concurso de
provimento, sem dúvida que o artigo 55º, n.º 1, introduz um mecanismo inovador
na fixação inicial da remuneração de um trabalhador contratado, permitindo que o
seu escalão retributivo na categoria profissional em que vai ingressar seja
objecto de negociação com a entidade empregadora, o que inculca que o candidato
não tem necessariamente de vir a ocupar a primeira posição da correspondente
escala salarial, mas, desde logo, poderá ficar situado numa posição intermédia
ou superior.
O sistema salvaguarda, no entanto, a aplicação de alguns critérios de equidade e
transparência: a negociação é efectuada após o termo do procedimento concursal e
pela ordem em que os candidatos figurem na lista de graduação final (n.º 1,
alínea a), e n.º 3); a negociação efectua-se por escrito e o acordo (ou a
proposta de adesão, quando for o caso) é fundamentado (n.ºs 3 e 5); quando o
número de candidatos seja de tal modo elevado que a negociação se torne
impraticável, a determinação do posicionamento remuneratório de todos os
candidatos pode ser feita através de proposta de adesão (n.º 4); a falta de
acordo com um determinado candidato implica que se inicie a negociação com o que
se lhe siga na ordenação, ao qual não poderá ser proposto um posicionamento
remuneratório superior ao máximo que tenha sido proposto, e não aceite, por um
qualquer dos candidatos que o anteceda naquela ordenação (n.º 6); após
encerramento do processo negocial, a respectiva documentação relativa é pública
e de livre acesso (nº 7).
Vê-se assim que a determinação do posicionamento remuneratório tem em
consideração a posição relativa dos candidatos na lista de graduação do concurso
e, embora haja alguma margem de liberdade decisória na fixação dos termos do
acordo - como é próprio de qualquer processo negocial –, a entidade empregadora
está, em todo o caso, impedida de formular uma proposta mais vantajosa em
relação a um candidato que se encontre na lista de graduação em posição
relativa inferior a outro, o que faz supor que a definição negociada dos
escalões remuneratórios tem por base o mérito relativo dos candidatos revelado
nas provas do concurso.
Sucede que o novo regime legal dá também abertura à possibilidade de
trabalhadores já vinculados aos quadros poderem ver alterada a sua posição
remuneratória em função da avaliação de desempenho, que significa que o sistema
preconiza, não apenas em relação ao novos trabalhadores, mas também em relação
aos que já estão integrados em carreiras, uma diferenciação remuneratória com
base na presumível ou comprovada maior qualidade de serviço ou qualificação
profissional.
A conveniência de implementar uma nova política neste domínio é, aliás,
reconhecida na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 152/X, já mencionada,
onde se afirma, como justificação para levar a efeito uma reforma profunda do
sistema, que «a dinâmica das carreiras tem estado muito baseada na antiguidade e
em níveis de avaliação de desempenho generalizadamente obtidos, o que lhe
confere natureza quase automática, ou baseada em concursos com procedimentos
muito burocratizados que, na prática, dão particular relevo a requisitos e
condições de natureza formal», e em que se aponta, na linha das directrizes do
Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), para a necessidade de «reformar
profundamente o sistema de carreiras e remunerações, reduzindo substancialmente
o número de carreiras, bem como limitando drasticamente os elementos de
progressão automática actualmente existentes».
Poderá entender-se como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade
salarial, este novo critério diferenciador de remunerações?
Sabe-se que o princípio do trabalho igual salário igual, consagrado no artigo
59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, pretendendo salvaguardar a igualdade
retributiva, apenas proíbe, enquanto afloramento do princípio da igualdade, as
discriminações ou distinções sem fundamento material, designadamente, porque
assentes em categorias subjectivas (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª
edição, Coimbra, pág. 433; no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 313/89, de 9 de Março de 1989, in BMJ n.º 385, pág. 188)).
Nestes moldes, o princípio constitucional implica a inadmissibilidade de um
tratamento salarial diferenciado pelo sexo ou por outros factores
discriminatórios, mas já comporta a individualização de salários com base no
mérito ou no rendimento, desde que sejam apurados mediante critérios e métodos
objectivos e explícitos (idem, pág. 436).
A diferenciação de salários relativamente a trabalhadores que detêm a mesma
categoria profissional poderá assim resultar não só da diversa espécie ou
natureza das tarefas desempenhadas, mas também da qualidade ou valor útil da
prestação, assim devendo entender-se a referência do texto constitucional à
qualidade do trabalho - artigo 59º, n.º 1, alínea a) (neste sentido, entre
outros, os acórdãos do STJ de 7 de Junho de 2000, Processo n.º 12/00, e de 25 de
Janeiro de 2001, Processo n.º 2025/02). Ou seja, o factor qualidade de trabalho,
que é diferente da natureza da actividade desenvolvida (que se reporta à posição
funcional do trabalhador) e da quantidade de trabalho (que corresponde à duração
ou ao tempo de trabalho), aponta no sentido da relevância das características
individuais de prestação, do seu valor útil ou do seu rendimento (idem, pág.
433)
Ao contrário do que sucede no domínio laboral privado, em que a remuneração está
ligada à pessoa do trabalhador e à sua produtividade, a diferenciação da
remuneração em função de critérios de qualidade e eficiência não tem sido
aplicada no seio da função pública por sempre se ter entendido a remuneração do
funcionário mais como a contraprestação devida pela ocupação de um determinada
categoria, e não tanto pelo modo do exercício das correspondentes funções (Paulo
Veiga Moura, Privatização da função pública, Coimbra, 2004, pág. 150).
No entanto, o legislador tem legitimidade, ao abrigo do disposto no artigo 59º,
n.º 1, alínea a), da CRP, para reconhecer, também em relação aos trabalhadores
da Administração Pública, o direito à retribuição do trabalho segundo a
quantidade, natureza e qualidade, fazendo cumprir o princípio trabalho igual
salário igual na sua dimensão positiva, segundo a qual as diferenças
qualitativas na prestação não só autorizam como impõem uma diferente remuneração
(Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª
edição, citada, pág. 773).
O legislador está impedido de instituir diferenças salariais que, à luz do texto
constitucional, se configurem arbitrárias, irrazoáveis ou injustificáveis, mas
poderá fazê-lo com base em particularidades da prestação funcional ou do seu
maior volume ou qualidade, pelo que não deixa de ser legítima uma medida
legislativa que permita, a quem está provido há menos tempo numa dada categoria,
que aufira, ou passe a auferir, uma remuneração superior à percebida por quem
dispõe de maior antiguidade no mesmo posto, desde que ela se encontre
fundamentada num motivo objectivo que possa ser entendido como válido e racional
(Paulo Veiga Moura, ob. cit., págs. 156 e 158-159).
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de declarar a
inconstitucionalidade de diversas normas aplicáveis à função pública, quando
interpretadas no sentido de permitirem que funcionários mais antigos numa dada
categoria passassem a auferir uma remuneração inferior à de outros com menor
antiguidade e idênticas habilitações. Assim, o acórdão n.º 584/98, que julgou
inconstitucional a norma contida no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 397/91, de 19
de Setembro, enquanto restringe o descongelamento na progressão nos escalões das
categorias e carreiras do pessoal docente do ensino superior e de investigação,
com efeito a partir de 1 de Julho de 1990, bem como o acórdão n.º 254/00, que
declarou inconstitucional com força obrigatória geral as normas constantes do
n.º 1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 204/91, de 7 de Junho, e do n.º 1 do
artigo 3º do Decreto-Lei n.º 61/92, de 15 de Abril, na medida em que, procedendo
ao descongelamento de escalões, limitam o seu âmbito a funcionários promovidos
após 1 de Outubro de 1989. Em qualquer dos casos estamos perante situações em
que o legislador introduziu alterações de regime legal, valorizando apenas um
elemento temporal, desligado de quaisquer considerações que se prendessem com
aspectos relativos à prestação laboral.
Não é essa a hipótese em presença.
O artigo 55º, n.º 1, do Decreto n.º 173/X permite que um trabalhador contratado,
através de negociação com a entidade empregadora, passe a ocupar uma posição
salarial intermédia ou superior da respectiva tabela remuneratória. Mas essa
eventualidade está directamente relacionada com a sua posição relativa na lista
de graduação do concurso de provimento e, por conseguinte, com o mérito que
tenha evidenciado nas provas de concurso, de tal modo que nenhum outro candidato
situado em posição inferior pode obter um nível remuneratório superior a esse.
Por outro lado, também os funcionários que já se encontrem no activo poderão
progredir na escala remuneratória por via da obtenção de melhores resultados na
avaliação do desempenho profissional, e, porventura, manterem-se numa posição
remuneratória superior às dos recém ingressados ou ultrapassarem a posição a que
entretanto estes tenham ascendido. E além de tudo, a negociação da posição
remuneratória de um novo contratado, tendo por base uma fundada expectativa
quanto ao nível qualitativo da prestação laboral, não pode deixar de tomar como
ponto de referência as posições remuneratórias ocupadas pelo pessoal que está no
activo, as quais, por efeito da avaliação do desempenho, são influenciadas pela
qualidade do trabalho efectivamente prestado. Ou seja, embora os parâmetros de
ponderação para essas duas categorias de trabalhadores sejam diversos – visto
que num caso se parte de um juízo de prognose sobre o futuro desempenho
profissional e noutro se tem em conta o reconhecimento do mérito já revelado na
prestação do serviço -, o certo é que a justa medida, a que uma negociação
remuneratória deverá conduzir, permite sempre ponderar, em termos relativos, o
grau de correspondência que é possível estabelecer entre uns e outros.
Neste contexto, a circunstância de novos contratados ou trabalhadores já
integrados nos quadros virem a auferir uma remuneração superior à de outros que
possuem maior antiguidade na categoria, resulta da introdução de um factor de
qualificação profissional, na determinação do posicionamento remuneratório, que
o legislador entendeu ser mais adequado à prossecução do interesse público.
Esse critério não ofende o princípio da igualdade salarial, que só proíbe a
diferenciação remuneratória que se mostre ser desprovida de um fundamento
material válido.
Resta acrescentar que a negociação sobre a posição remuneratória dos novos
contratados envolve, pela natureza das coisas, uma certa margem de liberdade de
conformação da entidade empregadora. O exercício desse poder, no entanto,
continua subordinado ao cumprimento dos princípios da igualdade, da
proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, n.º
2, da CRP), que necessariamente devem nortear toda a actividade administrativa.
A decisão concreta que não preencha esses parâmetros de juridicidade é
susceptível de ser impugnada contenciosamente, na jurisdição administrativa, com
fundamento em ilegalidade, pelo que não é o mau uso do mecanismo legal, por
parte da Administração, que poderá inquinar a conformidade constitucional da
solução legislativa.
Fixação mediante portaria de critérios específicos ou excepcionais
condicionantes do acesso dos cidadãos à função pública
10. Suscita-se ainda a questão da inconstitucionalidade do artigo 56º, n.º 8, do
Decreto, quando interpretado em conjugação com o artigo 47º, n.º 2, da
Constituição da República, pelo facto de, estando prevista a possibilidade de
opção, no âmbito do recrutamento de pessoal, pelo recurso a diplomados pelo
Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública (CEAGP), em alternativa ao
procedimento concursal, se ter consignado, no entanto, através desse n.º 8, que
o referido Curso seja regulamentado por portaria do membro do Governo
responsável pela área da Administração Pública.
Sustenta-se, a este propósito, que se verifica uma violação da competência de
reserva relativa da Assembleia da República, porquanto o acesso à função
pública, em condições de liberdade e de igualdade, constitui um direito
fundamental, consagrado no citado artigo 47º, n.º 2, e a sua conformação só pode
ser efectuada por via de lei, em aplicação do disposto no artigo 165º, n.º 1,
alínea b), da Constituição.
Com efeito, o artigo 56º do Decreto, integrado num Capítulo referente ao
recrutamento de pessoal, permite que o dirigente máximo do serviço proceda ao
preenchimento de vagas existentes nos quadros através de interessados que tenham
concluído com aproveitamento o Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública,
utilizando esse mecanismo em substituição do procedimento de concurso que vem
regulado nos precedentes artigos 50º a 54º.
É a seguinte a redacção do preceito:
1- Observados os condicionalismos referidos no n.º 1 do artigo 50.º
relativamente a actividades de natureza permanente, o dirigente máximo da
entidade empregadora pública pode optar, em alternativa à publicitação de
procedimento concursal nele previsto, pelo recurso a diplomados pelo Curso de
Estudos Avançados em Gestão Pública (CEAGP).
2- Para efeitos do disposto no número anterior, a entidade empregadora pública
remete ao Instituto Nacional de Administração (INA) lista do número de postos de
trabalho a ocupar, bem como a respectiva caracterização nos termos dos n.ºs 3 e
4 do artigo 50.º
3- A caracterização dos postos de trabalho cujo número consta da lista toma em
consideração que os diplomados com o CEAGP apenas podem ser integrados na
carreira geral de técnico superior e para cumprimento ou execução das
atribuições, competências ou actividades que a respectiva regulamentação
identifique.
4- A remessa da lista ao INA compromete a entidade empregadora pública a, findo
o CEAGP, integrar o correspondente número de diplomados.
5- O recrutamento para frequência do CEAGP observa as injunções decorrentes do
disposto nos n.ºs 4 a 7 do artigo 6.º.
6- A integração na carreira geral de técnico superior efectua-se na primeira
posição remuneratória ou naquela cujo nível remuneratório seja idêntico ou, na
sua falta, imediatamente superior ao nível remuneratório correspondente ao
posicionamento do candidato na categoria de origem, quando dela seja titular no
âmbito de uma relação jurídica de emprego público constituída por tempo
indeterminado.
7- O CEAGP pode igualmente decorrer em outras instituições de ensino superior
nos termos fixados em portaria dos membros do Governo responsáveis pela
Administração Pública e ensino superior, sendo, neste caso, a Direcção-Geral da
Administração e do Emprego Público a entidade competente para a gestão de todo o
procedimento.
8- O CEAGP é regulamentado por portaria do membro do Governo responsável pela
área da Administração Pública.
Como bem se vê, a utilização dos diplomados pelo CEAGP é um expediente
alternativo à abertura de concurso de provimento, que apenas pode ter lugar
quando seja possível, nas mesmas circunstâncias, recorrer ao procedimento
concursal (n.º 1), ficando o pessoal recrutado por essa via sujeito ao regime
geral de constituição da relação jurídica de emprego público (n.º 5).
Por outro lado, o artigo 56º regula não só aspectos relativos ao processo de
recrutamento (n.ºs 1, 2, 3 e 4), e às condições do respectivo regime de
vinculação (n.ºs 2 e 6), como outros atinentes à própria organização do Curso
(n.ºs 2 e 7).
Sublinhe-se que o artigo 24º do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro
(agora revogado pelo artigo 116º, alínea qq) do presente Decreto) permitia já
que por decreto-lei fossem definidas condições especiais de ingresso e acesso na
carreira técnica superior para os diplomados com o CEAGP, que fora criado junto
do Instituto Nacional de Administração, pela Portaria n.º 1319/95, de 8 de
Novembro (entretanto substituída pela Portaria n.º 327/2004, de 31 de Março),
sendo que a sua regulamentação acabou por ser efectuada pelo Decreto-Lei n.º
54/2000, de 7 de Abril, que foi também agora objecto de revogação (artigo 116º,
alínea ccc)).
A questão que se coloca é a da possível violação da reserva relativa do
Parlamento por via da agora prevista remissão dos aspectos organizativos do
CEAPG para regulamento administrativo.
O artigo 47º da Constituição, no seu n.º 2, estipula que «[t]odos os cidadãos
têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade,
em regra por concurso». E sendo esta uma matéria versada no Título II da Parte I
da Constituição, encontra-se abrangida pela referência aos direitos, liberdades
e garantias que consta do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição (neste
sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo II,
citada, pág. 534).
É de entender, por outro lado, que a reserva abrange todo o domínio legislativo
de cada direito, liberdade e garantia, e não apenas os aspectos relativos aos
seus princípios ou bases gerais, e isso independentemente de se pretender
instituir um regime eventualmente mais restritivo ou ampliativo do que o
preexistente, visto que o que está em causa não é o alcance da lei mas a matéria
sobre a qual ela incide (idem, pág. 535).
Importa, no entanto, efectuar uma precisão.
Conforme se ponderou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 150/85 (publicado
no Diário da República, II, n.º 292, de 19 de Dezembro de 1985, pág. 11976), a
matéria de reserva de lei, para o aludido efeito, não pode entender-se como toda
e qualquer solução jurídica que, de algum modo, possa implicar uma conexão com
um direito, liberdade ou garantia ou possa contender com as condições práticas
do seu exercício. Deverá tratar-se, antes, de aspectos que directamente
interfiram com as condições ou pressupostos jurídicos do direito, liberdade ou
garantia que está em causa.
No que se refere ao direito de acesso à função pública em condições de igualdade
e liberdade, entende-se que ele «consiste principalmente em: (a) não ser
proibido de aceder à função pública em geral, ou a uma determinada função
pública em particular (liberdade de candidatura); (b) poder candidatar-se aos
lugares postos a concurso, desde que preenchidos os requisitos necessários; (c)
não ser preterido por outrem com condições inferiores; (d) não haver escolha
discricionária por parte da Administração» (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição revista, citada,
pág. 660).
O CEAGP, porém, instituído pela referida Portaria, configura-se como uma
estrutura destinada a conferir qualificação especializada e actualização
profissional de nível superior ao pessoal dirigente e técnico superior do sector
público administrativo. Trata-se, por isso, de um instrumento jurídico que se
enquadra numa missão de modernização e de aperfeiçoamento da máquina
administrativa do Estado e que, ainda que possa constituir um mecanismo
diferenciado de recrutamento de pessoal, não pretende regular directamente
quaisquer aspectos atinentes à liberdade de acesso à função pública.
Por outro lado, no que se refere ao regime de admissão ao Curso – único aspecto
que poderia contender com o direito de acesso à função pública -, o artigo 56º,
n.º 1, salvaguarda já a aplicação de critérios legais que garantem a sujeição a
condições de igualdade e liberdade. Na verdade, por efeito da remissão feita, no
segmento inicial desse preceito, para o n.º 1 do precedente artigo 50º, o
recrutamento de pessoal por via do recurso a diplomados pelo CEAGP está
dependente de procedimento concursal (tal como, aliás, se previa no regime
actual - cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 54/2000, de 7 de Abril, e seu
artigo 3º), que, por sua vez, apenas poderá ocorrer desde que observado o
condicionalismo definido nos artigos 6º, n.º 2, e 7º, n.ºs 1, alínea b), e 3 e
4. Assim, essa modalidade de admissão de pessoal na função pública, além de
estar sujeita às regras comuns de selecção de candidatos, está também
subordinada a exigências decorrentes da gestão de recursos humanos e de
aplicação de verbas orçamentais. A iniciativa só pode ter lugar se houver postos
de trabalho vagos (artigo 6º, n.º 2) e desde que o dirigente do serviço não opte
por substituir o recrutamento de novos trabalhadores pela alteração do
posicionamento remuneratório dos trabalhadores já existentes (artigo 7º, n.º 3).
Ressalvada esta questão - que incide propriamente sobre os pressupostos
jurídicos do direito de acesso à função pública - por via da previsão legal
contida no artigo 56º, n.º 1, a remissão de aspectos organizativos do Curso para
regulamento administrativo, não ofende, pelas razões já antes mencionadas, a
reserva relativa da Assembleia da República.
Alega-se, no entanto, complementarmente, que a remissão da regulamentação do
CEAPG para portaria, tal como previsto no n.º 8 do artigo 56.º do Decreto, ainda
que ela não integre a reserva de lei, é inconstitucional por violação do n.º 6
do artigo 112.º da CRP, conjugado com o n.º 7 do mesmo artigo, já que a
disciplina primária de uma matéria desta natureza exigiria um regulamento
independente que nunca poderia assumir a simples forma de portaria.
O artigo 112º, n.º 6, da Constituição estabelece que «[o]s regulamentos do
Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado
pela lei que regulamentam, bem como no caso dos regulamentos independentes»,
acrescentando o n.º 7 que «[o]s regulamentos devem indicar expressamente as leis
que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para
a sua emissão».
O n.º 6 dá assim abertura aos regulamentos independentes, impondo, no entanto,
como pressuposto legal, em aplicação do princípio da precedência de lei, a
existência de uma lei prévia para a actuação do poder regulamentar. Da
conjugação dos citados n.ºs 6 e 7 resulta assim claro que os regulamentos
independentes são aqueles cuja lei habilitante se limita a definir a competência
subjectiva e objectiva para a sua emissão, o que sucede quando a lei é uma pura
lei de reenvio ou remissão para regulamento (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, citada, págs.
513-514). Por outras palavras, regulamentos independentes são os que «pressupõem
sempre uma lei definidora da competência subjectiva (competência de um órgão em
face de outro ou outros órgãos) e da competência objectiva (competência em razão
da matéria) do órgão que os emite» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, tomo II, citada, pág. 277).
Por outro lado, a exigência da forma de decreto regulamentar para os
regulamentos independentes – que estão sujeitos a promulgação do Presidente da
República, nos termos do artigo 134º, alínea d), da Constituição - «justifica-se
pela necessidade de evitar que, sob a capa de regulamento independente, o
Governo faça aquilo que deve fazer sob forma legislativa, fugindo à intervenção
presidencial» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. e loc. cit.); podendo também
entender-se que a imposição da forma mais solene de decreto regulamentar decorre
da circunstância de os regulamentos independentes «criarem disciplina inicial de
relações jurídicas e, em regra, com larga margem de liberdade ou
discricionaridade» (Coutinho de Abreu, Sobre os regulamentos administrativos e o
princípio da legalidade, Coimbra, 1987, pág. 83).
Será então que o regulamento previsto no n.º 8 do artigo 56º do Decreto assume a
caracterização própria de um regulamento independente?
Isso sucederia, na linha do entendimento anteriormente exposto, se o Decreto (ou
um qualquer diploma legal) se tivesse limitado a conferir ao Governo
«competência para emitir normas regulamentares sobre certa matéria, embora sem
estabelecer desde logo qualquer sistema normativo sobre a mesma» (assim, Sérvulo
Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos,
Coimbra, 1987, págs. 204-205).
Mas não é essa a situação vertente.
O Decreto n.º 173/X não se limita a indicar o membro do Governo que deve emitir
o regulamento e o objecto sobre que ele deve incidir. Antes explicita, no
contexto verbal do preceito - como se deixou já esclarecido -, não só as
instituições de ensino nas quais decorre o Curso (em regra, o Instituto Nacional
de Administração, mas sempre uma instituição de ensino superior: cfr. o artigo
56º, n.º s 2, 4 e 7), como também as injunções a que deve obediência o
recrutamento para sua frequência (cfr. o artigo 56º, n.º 5), pelo que não pode
afirmar-se que o diploma é inteiramente omisso acerca da disciplina material que
possa ser objecto de regulamentação.
Por outro lado, o diploma, ao definir esse regime material sobre o CEAGP, não se
limita a emitir algumas directivas sobre o sentido da normação de molde a que se
pudesse considerar que seria o regulamento a proceder, num plano primário, à
fixação das normas directamente aplicáveis a relações sociais - caso em que,
segundo alguma doutrina, ainda se poderia estar perante um regulamento
independente (Sérvulo Correia, ob. cit., págs. 242-243); antes estipula
«normação propriamente dita», «regulando desde logo relações de vida em
sociedade», o que tanto basta para concluir que a portaria para que remete o n.º
8 do artigo 56º não constitui um regulamento independente e não sofre da
apontada inconstitucionalidade.
Fixação dos níveis máximo e mínimo de remuneração admitidos no quadro das
relações de emprego público, em portaria de conteúdo inovatório
11. Em derradeiro termo, coloca-se a questão da inconstitucionalidade da norma
do nº 3 do artigo 68º do Decreto n.º 173/X com os seguintes fundamentos:
a) Por violação do princípio da tipicidade da lei previsto no n.º 5 do artigo
112.º da CRP, conjugado com os n.ºs 6 e 7 do mesmo preceito, atento o facto de
aos regulamentos estar vedada a fixação de opções primárias e juízos de valor
inovatórios próprios dos critérios de decisão legislativos;
b) Por violação das normas constantes dos n.ºs 6 e 7 do artigo 112.º da
Constituição que determinam que os regulamentos relativamente aos quais a lei se
limita a determinar a competência subjectiva e objectiva da sua emissão devem
assumir a forma de decreto regulamentar;
c) Por violação das normas constantes dos nºs 6 e 7 do artigo 112º da
Constituição na medida em que a conjugação do n.º 1 do artigo 68º com o nº 1 do
artigo 69º subverte parcialmente a relação hierárquica ou de precedência entre
decreto regulamentar e portaria, dado que a fixação em concreto dos níveis
remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias das categorias a
constar de decreto regulamentar está limitada e pode ser alterada pela portaria
que define a tabela remuneratória única.
Sustenta-se, por outro lado, que também a norma do nº 5 do artigo 68.º do
diploma, ao remeter para portaria o estabelecimento de parâmetros limitadores da
acção da autonomia colectiva, pode ficar ferida de inconstitucionalidade, por
violação do que prescreve o n.º 4 do artigo 56.º da Constituição, que consagra,
nesta matéria, uma reserva de lei.
O artigo 68º, epigrafado «Tabela remuneratória única», dispõe, na parte que
agora mais interessa considerar, o seguinte:
1- A tabela remuneratória única contém a totalidade dos níveis remuneratórios
susceptíveis de ser utilizados na fixação da remuneração base dos trabalhadores
que exerçam funções ao abrigo de relações jurídicas de emprego público.
2- […]
3- O número de níveis remuneratórios e o montante pecuniário correspondente a
cada um é fixado em portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do membro do
Governo responsável pela área das finanças.
4- A alteração do número de níveis remuneratórios é objecto de negociação
colectiva, nos termos da lei.
5- A alteração do montante pecuniário correspondente a cada nível remuneratório
é objecto de negociação colectiva anual, nos termos da lei, devendo, porém,
manter-se a proporcionalidade relativa entre cada um dos níveis.
Por seu turno, a norma do artigo 69.º, também chamada à colação, sob a epígrafe
«Fixação da remuneração base», tem a seguinte redacção:
1- A identificação dos níveis remuneratórios correspondentes às posições
remuneratórias das categorias, bem como aos cargos exercidos em comissão de
serviço, é efectuada por decreto regulamentar.
2- Na identificação dos níveis remuneratórios correspondentes às posições
remuneratórias das categorias observam-se, tendencialmente, as seguintes regras:
a) Tratando-se de carreiras pluricategoriais, os intervalos entre aqueles níveis
são crescentemente mais pequenos à medida que as correspondentes posições se
tornam superiores;
b) Nenhum nível remuneratório correspondente às posições das várias categorias
da carreira se encontra sobreposto, verificando-se um movimento único crescente
desde o nível correspondente à primeira posição da categoria inferior até ao
correspondente à última posição da categoria superior;
c) Excepcionalmente, o nível correspondente à última posição remuneratória de
uma categoria pode ser idêntico ao da primeira posição da categoria
imediatamente superior;
d) Tratando-se de carreiras unicategoriais, os intervalos entre aqueles níveis
são constantes.
Deve começar por notar-se que a matéria relativa à fixação da remuneração por
referência aos níveis remuneratórios se relaciona com outros aspectos atinentes
à organização das carreiras e, especialmente, com o disposto no artigo 45º, onde
se consignam critérios referentes ao número de posições remuneratórias que
correspondem a cada categoria, que, por sua vez, estão definidas, nos termos do
subsequente artigo 49º, n.º 2, em anexo ao diploma.
Nos termos de todas estas disposições, interpretadas conjugadamente, pode
dizer-se que a estrutura remuneratória prevista no novo diploma é constituída
por uma escala salarial desdobrada em diversas posições remuneratórias
(previstas na lei) a que poderão corresponder vários níveis remuneratórios.
A primeira questão de constitucionalidade que se coloca, neste plano, é a da
violação do princípio da tipicidade da lei previsto no n.º 5 do artigo 112º da
Constituição, que resulta – segundo se afirma - do facto de o citado artigo 68º,
n.º 3, remeter para portaria «decisões de normação primárias no tocante a estas
dimensões fundamentais para a vertebração da escala salarial aplicável às
relações de emprego público». Isso porque permite que, a nível regulamentar, sem
qualquer prévia directriz legal, se estabeleçam o nível máximo e mínimo de
remuneração admitido no quadro das relações de emprego público e se determine a
amplitude do leque salarial e a proporcionalidade relativa entre cada um dos
níveis remuneratórios aplicáveis.
O artigo 112º, n.º 5, da Constituição determina que «[n]enhuma lei pode criar
outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o
poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou
revogar qualquer dos seus preceitos»
Segundo se entende, este preceito tem «dois sentidos primordiais: (a) afirmação
do princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de
actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de
lei; (b) a ideia de que as leis não podem autorizar que a sua própria
interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação seja efectuada
por outro acto que não seja uma outra lei» (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, citada, pág.
510).
Reportando ao caso concreto, considera-se, todavia, que o n.º 3 do artigo 68º do
Decreto n.º 173/X não tem o sentido de atribuir força e valor de lei à portaria
que venha a fixar o «número de níveis remuneratórios e o montante pecuniário
correspondente a cada um», nem o de permitir que essa portaria proceda a uma
qualquer integração da lei.
Por um lado, porque a matéria sobre que versa o n.º 3 do artigo 68º se insere no
domínio regulamentar e não no domínio legislativo, atendendo ao grau de
concretização que implica, à tendencial variabilidade, no tempo, da respectiva
regulação, e à melhor colocação do decisor administrativo face ao legislador
para essa regulação (atendendo à proximidade com as situações da vida que a boa
regulação dessa matéria implica); por outro lado, porque este preceito não
assume a existência de qualquer lacuna de regulação no próprio Decreto, mas,
antes, a existência de um espaço vazio (dir-se-ia, propositadamente vazio) nessa
regulação.
Cabe recordar que a norma do n.º 3 do artigo 68º se limita a remeter para
regulamento a enumeração meramente descritiva dos níveis remuneratórios e do
respectivo montante pecuniário, sem a exigência de qualquer juízo de valor ou de
proporcionalidade sobre a correspondência desses níveis remuneratórios às
diversas categorias ou às posições remuneratórias de cada categoria, e que, além
do mais, essa descrição não pode deixar de respeitar os limites máximos e
mínimos da retribuição do trabalho, que estão legalmente definidos no artigo 3º
da Lei n.º 102/88, de 25 de Agosto, e no Decreto-Lei n.º 2/2007, de 12 de
Janeiro,
Referindo-nos agora a outra das questões suscitadas, pela qual se pretende ver
uma subversão da relação hierárquica ou de precedência entre decreto
regulamentar e portaria (com a consequente violação das normas dos nºs 6 e 7 do
artigo 112º da Constituição) pelo facto de a lei permitir a fixação dos níveis
remuneratórios e respectivos montantes pecuniários através de portaria (artigo
68º, n.º 3) e delegar em decreto regulamentar a identificação dos níveis
remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias das categorias (artigo
69º, n.º 1), convirá referir o seguinte.
A função mais relevante que é deixada à actividade regulamentar, no contexto das
disposições dos artigos 68º e 69º, é justamente aquela que se destina a fixar a
remuneração base dos funcionários e agentes através da identificação dos níveis
remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias das categorias. Porque
é por essa via que se efectua a indexação dos níveis remuneratórios às posições
remuneratórias de cada uma das categorias, permitindo determinar por quantos
níveis salariais se desdobra cada um dos escalões retributivos que estão
previstos (na tabela anexa ao diploma) para cada categoria. Por seu lado, a
portaria conjunta mencionada no artigo 68º, n.º 3, limita-se a estabelecer um
elenco de índices retributivos (que terá de respeitar não só a tabela
remuneratória única prevista no n.º 1 do artigo 68º, como valores máximos e
mínimos de retribuição salarial legalmente fixados), e que, em termos concretos,
não afecta a posição relativa de cada um dos titulares de categorias inseridos
em carreiras da função pública. A distribuição dos níveis remuneratórios por
cada uma das posições remuneratórias de cada categoria é que vai permitir
determinar, concretamente, o posicionamento remuneratório de cada um dos
interessados, e é o decreto regulamentar que pode efectuar essa definição.
Não se vê, por isso, que tenha ocorrido uma qualquer violação da hierarquia
intra-regulamentar.
Em relação ao n.º 3 do artigo 68º do Decreto n.º 173/X, não há também motivo
para considerar verificada a violação do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 112.º
da Constituição com base no entendimento de que se trata de matéria que devesse
ser regulada através de decreto regulamentar.
As considerações há pouco expendidas sobre os regulamentos independentes mantêm
aqui plena validade, pelo que é de reiterar o princípio de que os regulamentos
cuja lei habilitante se limita a atribuir a competência subjectiva e objectiva
para a sua emissão devem revestir a forma de decreto regulamentar.
Como se referiu, o artigo 68º, n.º 3, remete para a elaboração de uma portaria
conjunta do Primeiro-Ministro e do membro do Governo responsável pela área das
finanças a fixação do número de níveis remuneratórios e o montante pecuniário
correspondente a cada um. No entanto, a lei estabelece, a esse propósito, um
regime material mínimo, que o regulamento não poderá deixar de respeitar, e que
resulta quer da exigência do estabelecimento de uma tabela remuneratória única,
a que obriga o n.º 1 desse artigo, quer da aplicação dos limites legais
estabelecidos quanto ao tecto salarial e o salário mínimo nacional, quer ainda
da imposição feita nos n.ºs 4 e 5 do mesmo preceito quanto à sujeição a
negociação colectiva do número de níveis remuneratórios e da alteração do
montante pecuniário.
Nestes termos, a portaria apresenta-se essencialmente como um regulamento de
execução, que não carece de formalidade especial.
Uma última questão diz respeito à possível inconstitucionalidade da norma do nº
5 do artigo 68.º do diploma, ao remeter para portaria o estabelecimento de
parâmetros limitadores da acção da autonomia colectiva, por violação do n.º 4 do
artigo 56.º da Constituição, no ponto em que se estabelece, neste preceito e
quanto a essa matéria, uma reserva de lei.
Recorde-se que o n.º 5 do artigo 68º citado estabelece que «[a] alteração do
montante pecuniário correspondente a cada nível remuneratório é objecto de
negociação colectiva anual, nos termos da lei, devendo, porém, manter-se a
proporcionalidade relativa entre cada um dos níveis»
É a limitação feita, no segmento final do preceito, quanto à possibilidade de se
alterarem os montantes pecuniários através de negociação colectiva que suscita
as dúvidas de constitucionalidade. Mas note-se, antes de mais, que a restrição
resulta directamente da lei, e não de regulamento, visto que este se limita a
fixar os montantes pecuniários e a proceder à sua alteração de acordo com os
resultados atendíveis da negociação colectiva, com a necessária sujeição, nesse
ponto, à directiva legal.
Não tem cabimento, em todo o caso, considerar que existe, nessa imposição
legislativa, uma violação do disposto no artigo 56º, n.º 4, da Constituição.
Este preceito apenas trata de duas matérias: a da legitimidade para a celebração
de convenções colectivas de trabalho e a da eficácia das normas das convenções
colectivas de trabalho, atribuindo à lei a definição dos termos em que, nesses
aspectos, o direito de contratação colectiva pode ser concretizado.
No entanto, o n.º 5 do artigo 68º delimita, em certos termos, o objecto possível
da negociação colectiva, sem pôr em causa qualquer daquelas particularidades do
regime constitucional, pelo que não se vê de que modo possa ter sido ofendido o
princípio constitucional ou a reserva da lei que ele garante.
Poderia entender-se que o artigo 68º, n.º 5, no mencionado segmento, afecta o
direito de contratação colectiva na sua dimensão normativa de direito à
autonomia contratual colectiva, que decorre, não já do n.º 4, mas do nº 3 do
artigo 56º da Constituição. Este direito analisa-se na necessidade de deixar à
disciplina contratual colectiva um espaço abrangente de regulação das relações
de trabalho, que não pode ser aniquilado por via normativo-estadual (assim,
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
vol. I, 4ª edição revista, citada, pág. 745).
Isso apenas significa que o direito à contratação colectiva como direito com a
natureza de direito, liberdade ou garantia, compreende um núcleo essencial, em
termos de se dever reservar para a negociação um conjunto relevante de matérias,
que ficam assim excluídas de uma exclusiva definição por via da lei (idem, pág.
749).
Todavia, não parece que a restrição feita no artigo 68º, n.º 5, ponha em causa
esse critério.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, n.º 3, do
Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, na parte em que se refere aos
juízes dos tribunais judiciais (e, consequencialmente, das normas dos artigos
10º, n.º 2, e 68º, n.º 2), por violação do artigo 215º, n.º 1, da Constituição
da República, e considerar prejudicada a apreciação das normas constantes dos
artigos 80.º, n.º 1, alíneas a) e c), 101.º, nºs 1 e 2, e 112.º, n.º 1;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 36º, n.º 3,
interpretada conjugadamente como os subsequentes n.ºs 4 e 5 (e, a título
consequente, da norma do artigo 94º, n.º 2), por violação do artigo 59º, n.º 1,
alínea a), conjugado com o artigo 18º, n.º 2, da Constituição, e, na parte em
que essa norma permite a adopção de uma medida cautelar administrativa no
momento da instauração de um processo jurisdicional de responsabilidade
financeira, também por violação da reserva de jurisdição prevista no artigo 202º
da Constituição;
c) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das restantes normas
consideradas.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira
João Cura Mariano (com declaração de voto que junto)
Maria Lúcia Amaral (com remissão para a declaração de voto do Conselheiro João
Cura Mariano)
Benjamim Rodrigues (com declaração de voto relativo às pronúncias constantes das
alíneas a) e b) da decisão; com declaração de vencido relativamente às normas
constantes do n.º 2 do artigo 54.º e do n.º 1 do art.º 55.º e, finalmente, com
declaração de voto relativamente à não pronúncia de inconstitucionalidade
relativa às normas do art.º 68.º n.º 3)
Gil Galvão (vencido quanto à pronúncia de inconstitucionalidade efectuada na
alínea a) da decisão e com declaração de voto quanto à alínea b) da mesma
decisão).
Maria João Antunes (vencida quanto à pronúncia de inconstitucionalidade
constante da alínea a) da Decisão e com declaração quanto à alínea b) da
Decisão, nos termos da declaração de voto junta)
Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto à pronúncia de inconstitucionalidade
constante da alínea a) da Decisão; com declaração de voto quanto à alínea b) da
Decisão).
Joaquim Sousa Ribeiro (Vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade
constante da alínea a) da decisão, com declaração quanto à alínea b) da decisão,
nos termos da declaração de voto que junto).
Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à decisão de não pronúncia de
inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 35.º, n.ºs 2, alínea b), e 4,
do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, pelas razões constantes da
declaração de voto junta)
Vítor Gomes (Vencido quanto à decisão de pronúncia de não inconstitucionalidade
das normas constantes do n.º 1 do artigo 55.º do decreto e com declaração de
voto quanto à fundamentação constante do ponto n.º 6 do acórdão, conforme
declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendo que a inconstitucionalidade dos artigo 2.º, n.º 3, 10.º, n.º 2, e 68.º,
n.º 2, do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, não resulta apenas da
violação do disposto no artigo 215.º, n.º 1, da C.R.P., mas também da ofensa ao
disposto nos artigos 2.º, 203.º e 216.º, n.º 1 e 2, da C.R.P..
Conforme se refere na fundamentação deste acórdão, radicando a razão de ser do
artigo 215.º, n.º 1, da C.R.P., “na necessidade de dar cobertura à garantia de
independência dos juízes, em função da sua qualidade de titular de órgão de
soberania encarregado de exercer a função jurisdicional, o estatuto subjectivo
dos magistrados está, pois, indissociavelmente ligado à reserva de jurisdição e
constitui um princípio constitucional material concretizador do Estado de
direito, na medida em que se destina a garantir a independência e imparcialidade
dos juízes no exercício da função jurisdicional”.
Assim, ofendendo a remissão de regime contida no artigo 2.º, n.º 3, do Decreto
da Assembleia da República n.º 173/X, a exigência de um estatuto específico que
determine e conforme o regime jurídico-funcional dos juízes dos Tribunais
Judiciais, necessariamente são também ofendidos os princípios que esta exigência
visa garantir, ou seja o da separação de poderes, como elemento do regime
político do Estado de Direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.), e o da
independência dos tribunais (artigo 213.º, da C.R.P.).
Além disso, o artigo 2.º, n.º 3, do Decreto da Assembleia da República n.º
173/X, ao efectuar uma remissão genérica para o regime geral da função pública,
constante desse diploma, permite que as bases gerais aí enunciadas, assim como
muitas das regras que o integram, que não contrariem o disposto nos Estatutos
dos juízes, se tornem aplicáveis a estes, como lei geral.
Ora, destinando-se esse regime a regular uma relação de trabalho subordinado,
tais bases gerais e muitas dessas regras, pela sua natureza diversa,
necessariamente ofendem não só os princípios da inamovibilidade (artigo 216.º,
nº 1, da C.R.P.) e irresponsabilidade (artigo 217.º, nº 2, da C.R.P.) dos
juízes, os quais visam garantir a sua independência, como também directamente
põem em causa este princípio e, consequentemente, os parâmetros constitucionais
da independência dos tribunais (artigo 213.º, da C.R.P.) e da separação de
poderes, como elemento do Estado de Direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.).
E o “voto pio” contido no referido artigo 2.º, n.º 3, do Decreto da Assembleia
da República n.º 173/X, de que tal remissão é feita “sem prejuízo do disposto na
Constituição da República Portuguesa”, não constitui um salvo-conduto que
permita a esta norma transpor o crivo constitucional, sem qualquer controle,
devendo tal referência ser encarada apenas como uma enunciação, tão
desnecessária, quanto preocupada, da prevalência das normas constitucionais
sobre o direito ordinário.
Apesar de não ter sido suscitada a questão da inconstitucionalidade dos
segmentos da norma em causa, na parte em que a mesma visa os juízes das outras
jurisdições e os Magistrados do Ministério Público, revela-se útil referir que
as razões materiais que valeram para os juízes dos tribunais judiciais também
valem para os juízes de outros tribunais, assim como a remissão genérica para o
regime da função pública, constante da referida norma, igualmente afronta a
exigência constitucional de um Estatuto próprio que conforme o regime
jurídico-funcional dos Magistrados do Ministério Público e o princípio da
autonomia que preside a esta magistratura (artigo 219.º, n.º 2, da C.R.P.), o
qual é inconciliável com a aplicação global do regime previsto para os
funcionários públicos.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Embora votando a declaração de inconstitucionalidade constante
da alínea a) da decisão, considero, ainda, no que importa à sua fundamentação,
que a inadmissibilidade constitucional de o legislador poder assumir, a titulo
de direito subsidiário genérico e globalmente aplicável, uma lei geral sobre os
regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações relativa aos trabalhadores
que exercem funções públicas decorre, também, do facto de a Constituição
conceber o estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, neles incluídos os
Tribunais de quaisquer jurisdições (art. 110.º, n.º 1) como uma matéria própria
da configuração político-constitucional desses órgãos de soberania, e nessa
medida, quando reportada à globalidade do seu regime jurídico, insusceptível de
ser regulada, embora a título subsidiário, por normas vocacionadas
especificamente para regerem as relações dos trabalhadores da função pública que
prestam trabalho dentro de uma relação dependente e hierarquicamente
subordinada.
É tal concepção que ilumina, aliás, a reserva absoluta contemplada na alínea m)
do art. 164.º.
Por seu lado, dado estes preceitos não distinguirem os Tribunais em função da
diferente parcela de jurisdição que exercem e o facto de todos eles cumprirem a
mesma função constitucional, assinalada no art. 202.º, e de estarem os
respectivos titulares enformados das mesmas garantias e incompatibilidades
constitucionais (artºs 216.º, 217.º e 218.º) e de estas constituírem específicos
instrumentos constitucionais vocacionados para salvaguardar o efectivo
cumprimento da respectiva função constitucional (artºs 202.º, 209.º a 214.º),
entendo que a solução proclamada decorre não só do art. 215.º, n.º 1, como
também dos artºs 110.º, n.º 1, 164.º, alínea m), 202.º, 216.º e 217.º, todos os
preceitos referidos da Constituição, e abarca todos os tribunais das diferentes
jurisdições.
A circunstância de os titulares do órgão soberania “tribunais” exercerem essas
funções “a título profissional” não autoriza constitucionalmente que as normas
regentes do regime de trabalho subordinado público tenham aptidão genérica para
funcionarem como normação subsidiária, pois é totalmente estranha ao estatuto do
titular de órgão de soberania qualquer relação de dependência e de subordinação
hierárquica. A aplicação subsidiária de normas regentes de certas matérias aos
magistrados judiciais terá, assim, de corresponder a opções localizadas
tematicamente que deixem salvaguardada a sua posição estatutária de titular de
órgão de soberania ou representem ainda um modo de potenciar o cumprimento da
respectiva função constitucional.
2 – Não acompanhamos igualmente a fundamentação relativa à violação da reserva
de jurisdição – art. 202.º da Constituição –, na qual se abona, também, a
declaração de inconstitucionalidade constante da alínea b) da decisão.
Na verdade, a administração, ao proceder à cativação ope legis de parte do
vencimento do trabalhador da função pública, não age na composição de qualquer
conflito, definindo definitivamente, na Ordem Jurídica, a situação jurídica
pacificante de qualquer litígio entre o Estado-empregador e o trabalhador, antes
se limita a praticar um acto administrativo estritamente vinculado, quer quanto
aos seus pressupostos de facto, quer quanto aos seus pressupostos de direito,
cujos efeitos estão completamente definidos na lei, sendo que esse acto é
directamente impugnável para os tribunais administrativos, passando a valer como
decisão definitiva apenas a pronúncia que sobre essa questão estes órgãos
fizerem.
É também nosso entendimento que quem deve comunicar a instauração do processo,
no caso deste ser jurisdicional, é o próprio tribunal. Tal facto, traduzindo-se
no cumprimento de um mero dever de informação, em nada contende com a reserva de
jurisdição.
É claro que a reserva de jurisdição vale também em relação ao legislador
ordinário.
Mas não foi essa a perspectiva que o acórdão encarou.
Se assim fosse, ele teria também de concluir pela violação da reserva de
jurisdição naquelas situações em que a cativação do vencimento ocorresse por
virtude da instauração de um simples procedimento administrativo, de processo de
inquérito, disciplinar ou de auditoria.
Mas, mesmo nesse domínio, não vemos que esteja vedada ao legislador a atribuição
de efeitos jurídicos predeterminados a situações de nulidade de actos
administrativos como os actos desta natureza, praticados no desempenho de uma
relação laboral, cuja prestação decorre dentro de uma estrita sujeição ao
princípio da legalidade administrativa, procedendo ele directamente à definição
dos efeitos jurídicos decorrentes da verificação de certa situação de facto.
3 – Votei vencido quanto à questão de constitucionalidade reportada à norma
constante do n.º 2 do art.º 54.º do Decreto.
Entendo, na verdade, que a tramitação do procedimento concursal não
pode, no que vai além das regras afirmadas nos artºs 50.º a 54.º do Decreto, ser
regulamentado totalmente apenas por portaria.
E não pode, porque o regulamento a publicar não pode conter normas
que apenas visem 'assegurar a fidelidade ou, digamos, a conformidade à vontade
do legislador [em tais preceitos], na medida em que esta seja relativamente
obscura ou lacunosa” (Afonso Rodrigues Queiró, “Teoria dos regulamentos”, in
Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVII, p. 9), ou a estabelecer os
“pormenores de execução” ou “minúcias” do procedimento concursal, detendo-se
pela aptidão normativa de um mero regulamento de execução, mas, antes, terá de
“integrar a regulamentação, por si estabelecida no essencial, de acordo com o
fim, o sentido e o sistema perfilhado, editando, dentro destes limites, normas
novas, consagradoras de novos direitos e novas obrigações, não previstas na lei
(Afonso Rodrigues Queiró, Lições de direito administrativo, vol. I,
copiografada, Coimbra, 1976, pp. 427-428), assumindo então a natureza de
regulamentos complementares que desenvolvem os princípios gerais afirmados no
Decreto.
E diz-se isto porque a portaria, para além de ter de criar os actos
de tramitação que constituirão e externarão o corpo do procedimento concursal,
terá de estabelecer a regulação primária de várias matérias que hoje constam,
aliás, de diplomas legislativos – Decretos-Leis nºs 498/98, de 30 de Dezembro,
215/95, de 22 de Agosto, e 204/98, de 11 de Julho –, como sejam, por exemplo, a
definição dos valores de ponderação correspondentes aos diferentes métodos de
recrutamento estabelecidos, o sistema de classificação, os critérios de
desempate de candidatos, a obrigatoriedade de apresentação dos documentos
concursais pertinentes, os prazos para a prática dos actos pelos concorrentes e
os efeitos da preclusão dos prazos, etc. – matérias estas que não estão
contempladas nas disposições que o acórdão toma como definindo toda a regulação
primária, constante dos artºs 50.º a 54.º do Decreto.
Ora, estas matérias correspondem indiscutivelmente a uma regulação
primária, constituindo ainda uma densificação de princípios gerais relativos ao
direito fundamental de acesso à função pública: basta notar que o acesso
efectivo à função pública fica inexoravelmente condicionado pela ponderação ou
escala valorativa que o regulamento estabelecer para a prova de conhecimentos e
para a entrevista.
Se admitimos seguramente que o fenómeno da “deslegalização” pode
abranger domínios que antes eram regidos por diploma legislativo, por
considerarmos ser lícito ao legislador “delegar” para regulamento, fora do
âmbito da reserva de lei formal, a regulação “primária” de certas matérias, já
não vemos que seja constitucionalmente tolerável permitir-se que essa regulação
“primária” possa ser feita através de regulamentos integrativos que, apesar de
apelidados de “complementares”, sejam, em substância, meros regulamentos
independentes (cf. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Sobre os Regulamentos
Administrativos e o Princípio da Legalidade, 1987, p. 90).
É que onde não se limitem a “repetir” os preceitos ou regras de
fundo que o legislador edita, enunciando os pormenores e minúcias do regime,
funcionais para a sua aplicação, mas antes desenvolvam os princípios gerais
enunciados, através da criação ou integração de normas novas cujo sentido não
possa ser distraído da “norma habilitante”, os regulamentos passam a conter
normação primária, que apenas é passível de ser efectuada através de actos
legislativos ou de regulamentos independentes.
Digamos que, nesses domínios, a “lei habilitante” se fica pela
definição da competência objectiva e subjectiva.
Como conceito de enunciação de competência objectiva não pode entender-se apenas
uma indicação temática da matéria sobre a qual o regulamento venha a dispor.
Desde que a matéria a regulamentar seja indicada através, apenas, de conceitos
gerais, extremamente vagos ou imprecisos ou da enunciação de meros princípios
gerais, ou seja, em termos tais que muitas e diversas possam ser as soluções
normativas “primárias” que o regulamento fica habilitado a criar, estamos
perante regulamentos independentes, sendo indiferente que sejam designados de
regulamentos “complementares”: regulamentos apelidados de “complementares”
haverá que visam estabelecer apenas os pormenores de execução ou tornar possível
a execução da lei, sendo por natureza regulamentos de execução, e outros
designados pelo mesmo nomen que vêm, ao fim e ao cabo, integrar o regime
jurídico mediante a criação de normas novas que correspondem a critérios de
decisão que jamais se poderão ver-se nas normas regulamentadas, constituindo
verdadeiros regulamentos independentes.
E é o que se passa no caso em apreço, onde os preceitos dos artºs
50.º a 54.º (este mais impressivamente no que tange à definição do regime de
tramitação do concurso de recrutamento) do Decreto se atém à prescrição de meros
“princípios”, como expressamente se afirma no último artigo.
A circunstância de a matéria em causa ter natureza administrativa é
totalmente irrelevante para o caso, salvo se ela se limitar às relações internas
ou esgote o seu âmbito de vinculatividade no seio da organização administrativa:
desde que corresponda a uma opção primária de regime jurídico e valha para
terceiros, a sua regulação apenas pode ser efectuada por acto legislativo ou
decreto-regulamentar.
Desta sorte, o preceito em causa é inconstitucional por violação do
princípio constitucional da tipicidade dos actos normativos, constante dos nºs 6
e 7 do art. 112.º da Constituição.
E este vício não é de somenos importância – pese o facto de o
Governo (mas já não o ministro) poder regular a matéria por decreto regulamentar
– pois este, ao contrário do que sucede com a portaria, está sujeito a
promulgação presidencial e a possibilidade de veto (cf. art.º 136.º, n.º 4, da
CRP), consentindo um controlo democrático de grau mais elevado.
4 – Votámos ainda vencido quanto à norma constante do art. 55.º, n.º
1, do Decreto.
Dados os termos em que se encontra estruturado o sistema
remuneratório para os trabalhadores que estão já no activo da administração e os
termos em que o preceito autoriza a determinação do posicionamento remuneratório
para os trabalhadores que ingressem na administração pública através de
contrato, é inevitável, do ponto de vista do funcionamento estrutural do próprio
sistema, a criação de situações objectivas de desigualdade, violando-se, assim,
o princípio da igualdade, na sua vertente de “trabalho igual salário igual”,
consagrado no art.º 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
Concorda-se com o acórdão quando este sustenta não ocorrer essa
violação entre os concorrentes do mesmo procedimento concursal. Os mecanismos
instituídos garantem que a remuneração “oferecida” a candidato menos graduado
não seja superior à “oferecida” a candidato mais graduado. Por outro lado,
também não se rejeita – antes se louva – a possibilidade de adequar a
remuneração de quem acede ao emprego público através de contrato ao mérito
revelado no concurso, através da possibilidade de posicionar o candidato em
escalões superiores dentre aqueles que estão previstos para a categoria para a
qual se realizou o concurso e se é contratado.
A questão coloca-se na relação de comparação entre o trabalhador que
vê determinada a sua remuneração com base neste preceito do art.º 55.º, n.º 1,
do Decreto, e aqueles trabalhadores que já estão no activo e que desempenhem
exactamente o mesmo tipo de trabalho, na mesma categoria profissional, com a
mesma quantidade e a mesma qualidade ou até superiores e com habilitações iguais
ou até superiores.
Não se desconhece – e, repete-se, até se apoia – que o novo sistema
retributivo seja construído estruturalmente com base na consideração de
categorias profissionais e do mérito do trabalhador da função pública. Trata-se
de um novo paradigma axiológico que acaba – e bem – com o “igualitarismo”
profissional, potenciando a produtividade e a qualidade da prestação laboral.
Segundo decorre do disposto nos artºs 45.º e 69.º do Decreto, as
remunerações correspondem aos valores das posições remuneratórias. Por seu lado,
estas posições remuneratórias são uma resultante dos factores “categoria” e
“níveis identificados” para essas categorias, sendo que o número destes e o
montante pecuniário que lhes corresponde é fixado por portaria conjunta do
Primeiro-Ministro e do membro do Governo responsável pela área das finanças.
Pois bem: o trabalhador que está no activo apenas tem o direito a
ver (obrigatoriamente) alterada a sua posição remuneratória – e mesmo assim,
segundo o princípio geral assumido, para a posição remuneratória imediatamente
seguinte àquela em que se encontre -, independentemente das opções gestionárias
do dirigente máximo do órgão ou serviço, nos casos do n.º 6 do art.º 47.º do
Decreto, ou seja, quando “tenha acumulado 10 pontos nas avaliações do seu
desempenho referido às funções exercidas durante o posicionamento remuneratório
em que se encontra, contados nos seguintes termos: a) Três pontos por cada
menção máxima; b) Dois pontos por cada menção imediatamente inferior à máxima;
c) Um ponto por cada menção imediatamente inferior à referida na alínea
anterior, desde que consubstancie desempenho positivo; d) Um ponto negativo por
cada menção imediatamente inferior ao mais baixo nível de avaliação”.
Se se tiver, por outro lado, em conta que as menções máximas estão
legalmente contingentadas, não podendo o número de trabalhadores que delas
beneficiem ser superior, em cada ano, a 25% do respectivo serviço, logo se verá
quão difícil, e até desproporcionado, é satisfazer uma pontuação de mérito que
obrigue à alteração da posição remuneratória, sendo que, no mínimo, essa
obtenção exigirá a permanência de quatro anos na mesma posição remuneratória
(10=3+3+3+1)!
Fora de tais situações, a alteração do posicionamento remuneratório
para os trabalhadores do activo – e apenas possível, por regra, para a posição
remuneratória seguinte (art.º 47.º, n.º 3) – constitui um resultado cuja
ocorrência só pode verificar-se através da concorrência efectiva de dois
factores totalmente independentes entre si: de um lado, as avaliações de
desempenho referidas às funções exercidas durante o posicionamento em que os
trabalhadores se encontram (art.º 47.º, n.º 1), que traduzem, ao fim e ao cabo,
o mérito do trabalhador; do outro lado, a existência de uma opção gestionária
discricionária nesse sentido por parte do dirigente máximo do órgão ou serviço
que tenha adequada expressão orçamental (cf. artºs 4.º, n.º 1, 7.º, 46.º, 47.º,
nºs 1 a 5, e 48.º, do Decreto).
Ora, esta opção gestionária pode passar não só por afectar as verbas
orçamentais apenas ao recrutamento de novos trabalhadores necessários à ocupação
de postos de trabalho, como a alterações de posicionamento remuneratório, como a
ambos os objectivos, como, ainda, a alterações de posicionamento remuneratório
apenas em certos universos de carreiras, categorias, titulares de certas
categorias ou até de certa área de formação académica ou profissional (art.º
47.º, nºs 1 a 5), seja por escolhas iniciais seja por procedimentos subsequentes
de desagregação de verbas, podendo não terem lugar em todas as carreiras,
categorias da mesma carreira, todos os trabalhadores integrados em determinada
carreira ou titulares de determinada categoria, sendo que esgotado que esteja
esgotado o montante máximo dos encargos fixados para o universo deixa de haver
lugar à alteração de posicionamento remuneratório (art.º 47.º, n.º 4).
No limite, até uma errada ou má gestão dos dinheiros públicos
destinados às despesas com o pessoal poderá ser, tendo em conta o sistema
instituído, causa próxima de não alteração de posicionamento remuneratório e de
violação do princípio da igualdade!
Deve anotar-se, ainda, que a alteração do posicionamento
remuneratório fora do cumprimento dos requisitos-regra só pode acontecer a
título de opção gestionária excepcional, nos termos do art.º 48.º do Decreto,
caso em que ela poderá verificar-se para “qualquer outra posição remuneratória
seguinte àquela em que [o trabalhador] se encontre”.
Mas, para além de excepcional, essa opção está dependente, apenas,
ainda, da discricionariedade de avaliação e ponderação da administração (do
dirigente máximo do órgão ou serviço, ouvido o Conselho Coordenador da Avaliação
ou órgão com competência equiparada), não se vendo como possa o erro dessa
ponderação ser sindicado contenciosamente, em concreto, fora dos casos-limite de
erro grosseiro, o mesmo se dizendo do erro relativo às outras opções atrás
referidas.
Do exposto resulta que, independentemente da forte possibilidade de
ocorrência factual de situações de desigualdade entre os próprios trabalhadores
que estão integrados no mesmo órgão ou serviço, decorrentes da opção gestionária
de se poder restringir o âmbito da alteração de posicionamento remuneratório
apenas a certos universos de carreiras, categorias e titulares de categorias e
de certas qualificações e habilitações profissionais que o legislador faculta
com a conformação do sistema (questão esta que não vem posta), o posicionamento
remuneratório a que alude o art.º 55.º, n.º 1, pode acontecer, por força do
sistema legal, para posições remuneratórias bem superiores às dos trabalhadores
que, estando no activo, desempenham funções da mesma natureza e no mesmo ou até
superiores graus de qualidade e de quantidade.
A possibilidade de verificação de um tal resultado é patente e mais
impressiva, pelo menos, nas situações em que, por exemplo, de um lado, estejam
trabalhadores cujas remunerações sejam fixadas nos termos da norma questionada
constitucionalmente (caso em que podem situar-se em escalões superiores da
categoria) e, do outro lado trabalhadores que tenham frequentado o Curso de
Estudos Avançados em Gestão Pública (CEAGP) que exerçam as mesmas funções e na
mesma categoria, pois que quanto a estes o posicionamento é feito, nos termos do
n.º 6 do art.º 56.º, obrigatoriamente para a primeira posição remuneratória ou
para a imediatamente superior à detida.
Tratando-se de situações cuja verificação decorre directamente do
funcionamento do próprio sistema legal opcionário instituído, não podem elas ser
havidas como correspondendo a simples aplicações erradas da lei por parte dos
agentes administrativos, para daí concluir que podem obter remédio no
contencioso administrativo de impugnação.
E não podem, porque elas se baseiam precisamente na relevância
decisiva das opções de mérito de gestão criadas pelo legislador e na quase
impossibilidade legal de sindicar contenciosamente a sua bondade por parte dos
trabalhadores atingidos.
Só cláusulas de salvaguarda que conectivamente conciliassem as duas
vias de determinação das posições remuneratórias referentes aos trabalhadores
que estão no activo e àqueles que são contratados permitiriam obviar à criação
de situações de desigualdade.
Ora, o diploma em análise não as prevê e não as prevendo, o Decreto
arrisca-se, também, a ser uma fonte de frequente litigiosidade jurídica.
5 – Votámos, igualmente, a decisão na parte relativa à questão de
constitucionalidade conhecida no ponto 11 do acórdão, por interpretarmos – o que
não vemos que conste claramente do discurso verbal do acórdão – os artºs 68.º e
69.º do Decreto no sentido de que apenas o Decreto Regulamentar é que pode
identificar ou definir quais são as categorias e quais são os níveis
remuneratórios de que cada uma é passível e que a portaria do Primeiro-Ministro
e do membro do Governo responsável pela área das finanças se queda por fixar
quais os níveis dentro de cada categoria, dentro dos previstos, é que são tidos
em conta para o efeito da remuneração dos trabalhadores e qual o montante
pecuniário que corresponde a cada um.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido quanto à pronúncia de inconstitucionalidade efectuada na alínea
a) da decisão, no essencial pelas razões que, sumariamente, passo a expor:
1. 1. Antes, porém, de explicitar os pontos de divergência, diga-se desde já,
que, não obstante ter votado vencido, estou de acordo com a solução decorrente
do acórdão de que não são directamente postas em causa, por nenhuma das normas
agora tidas por inconstitucionais, as garantias constitucionais previstas nos
artigos 203º e 216º, n.ºs 1 e 2. Isto é, de que não são infringidas as regras
constitucionais que prescrevem a independência, a inamovibilidade e a
irresponsabilidade dos juízes. Nem, de modo algum, os princípios do estado de
direito democrático e da separação de poderes.
1. 2. Onde, porém, a divergência se afirma é na solução que a posição que fez
maioria faz decorrer do disposto no n.º 1 do artigo 215º da Constituição. Com
efeito, o acórdão, pressupondo que o diploma “ao estender o âmbito subjectivo da
sua aplicação, ainda que com a já apontada ressalva do estabelecido na
Constituição e em leis especiais, aos juízes de qualquer jurisdição, [] parece
pretender erigir-se em direito subsidiário relativamente ao Estatuto dos
Magistrados Judiciais”, encontra aí uma violação da norma constitucional que
exige unicidade de estatuto, entendida, por um lado, como necessidade de
estatuto unificado e, por outro, como necessidade de estatuto específico,
decorrentes, em última instância, da reserva de jurisdição. E fá-lo, aliás, de
algum modo desconsiderando a aludida ressalva, contida em preceitos agora
considerados inconstitucionais, sendo certo que se poderia desde logo
questionar, a bondade de uma solução que considera violadora da Constituição uma
norma que, no seu próprio texto, contém a salvaguarda o disposto nessa mesma
Constituição. Mas vejamos melhor.
1.2.1. O n.º 1 do artigo 215º da Constituição estatui, na verdade, que “os
juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só
estatuto”. A interpretação do que constitui esta exigência constitucional é
pertinente. Do meu ponto de vista, funcionando os tribunais judiciais como
tribunais comuns em matéria cível e criminal e existindo uma pluralidade de
tribunais judiciais em termos hierárquicos, a exigência de um só estatuto
significa que não é admissível que os juízes dos diferentes tribunais judiciais
venham a ter estatutos diferentes – tenham uma disciplina jurídica materialmente
diversa - consoante, por exemplo, estejam colocados na primeira instância, nos
tribunais da relação ou no Supremo Tribunal de Justiça. Mas isto não impede que,
sendo o estatuto único para todos os juízes dos tribunais judiciais, esse mesmo
estatuto – materialmente respeitador de todas as garantias constitucionais -
possa constar de mais do que um diploma legislativo; ou seja, estatuto único não
significa Código ou diploma único.
1.2.2. Por outro lado, a Constituição não prevê nem procedimento específico nem
forma especial para o referido estatuto único,. De facto, quer se entenda que,
no estatuto único, se trata de matéria respeitante ao “estatuto dos titulares
dos órgãos de soberania”, quer se considere que se trata de matéria relativa à
“organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e ao estatuto
dos respectivos magistrados”, como tem acontecido quando se legisla sobre o
estatuto dos magistrados judiciais, sempre será suficiente uma lei da Assembleia
da República para regular tal matéria.
1.2.3. Importa ainda considerar, uma vez que o acórdão a invoca para, de algum
modo, fundar a decisão, a reserva de jurisdição. De acordo com o disposto no n.º
1 do artigo 202º da Constituição, “os tribunais são órgãos de soberania com
competência para administrar a justiça em nome do povo”. Ora, que a função
jurisdicional – isto é, a administração da justiça, assegurando a defesa dos
direitos e interesses legitimamente protegidos, reprimindo a violação da
legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e
privados - está reservada aos órgãos de soberania tribunais é algo de óbvio. Mas
o facto de a função jurisdicional estar reservada aos tribunais significa que
não é constitucionalmente aceitável a invasão ou usurpação dessa função por
outros órgãos de soberania. Não significa, de modo algum, que o legislador
democraticamente legitimado esteja inibido de regular, legislando com
salvaguarda das normas e princípios constitucionais, o estatuto daqueles que
exercem a função jurisdicional.
1.2.4. Finalmente, se bem que se não conteste a especificidade do exercício da
função jurisdicional, importa ter presente o que tal significa. Ora, tal
especificidade resulta, de um lado, do facto de, em relação, por exemplo, a
outros órgãos de soberania, o estatuto dos juízes ser diferente, já que estes
são os únicos titulares desses órgãos que exercem as suas funções a título
profissional, tendo uma inclusivamente uma carreira profissional definida. E,
por outro lado, nos termos do artigo 215º da Constituição, significa a
especificidade dos juízes dos tribunais judiciais em relação a juízes de outros
tribunais. Mas o facto de existir uma tal especificidade não impede que já hoje
o estatuto dos juízes seja regulado, em diversas matérias, pelo regime geral da
função pública. Assim acontece, por exemplo, em tudo o que não esteja
expressamente previsto no Estatuto dos Magistrados Judiciais, pelo menos quanto
ao regime do bolseiro, à matéria de deveres, incompatibilidades e direitos –
incluindo os relativos, por exemplo, ao número de dias de férias -, à
aposentação e à matéria disciplinar. Além de que, como é conhecido, existe uma
associação sindical dos juízes portugueses.
1.3. Ora, o que a posição que fez vencimento, em rigor, vem sustentar, fazendo
uma distinção, a meu ver não constitucionalmente fundada, entre legislador do
regime geral da função pública e legislador do estatuto dos juízes dos tribunais
judiciais, é que o legislador democraticamente legitimado não pode, usando a
forma constitucionalmente exigida, introduzir, na legislação da função pública,
uma norma (fazer uma ingerência) que considere supletivamente aplicável, no que
não estiver já regulado pela Constituição e pelas leis especiais e com
salvaguarda do disposto nessa mesma Constituição e no Estatuto dos Magistrados
Judiciais – incluindo as remissões nele já contidas para o regime geral da
função pública -, este regime geral da função pública, com as necessárias
adaptações para salvaguardar a especificidade desse estatuto dos juízes.
Mas, sendo assim, como inegavelmente me parece que é, pelo que atrás foi aduzido
nos pontos 1.2. a 1.2.4., não se me afigura possível considerar violadora de
qualquer norma ou princípio constitucional o disposto nos artigos agora em
causa.
1.4. Aliás, se acaso a Constituição impedisse a aplicação das questionadas
normas aos juízes dos tribunais judiciais, então a solução poderia ser
encontrada na própria salvaguarda nestas contida e algo desconsiderada na
posição que fez vencimento. Na verdade, se assim fosse, os preceitos seriam,
porventura, como este Tribunal já decidiu noutros contextos, inúteis (quanto aos
juízes dos tribunais judiciais), mas nem por isso inconstitucionais.
2. Nestas circunstâncias, pronunciei-me pela não declaração de
inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 2º do Decreto n.º 173/X da Assembleia
da República, bem como, consequentemente, pela não declaração de
inconstitucionalidade das normas do n.º 2 do artigo 10º e do n.º 2 do artigo 68º
do mesmo diploma.
3. Por outro lado, votei a alínea b) da decisão única e exclusivamente por
considerar violado a alínea a) do n.º 1 do artigo 59º, conjugada com o n.º 2 do
artigo 18º, ambos da Constituição, não acompanhando a fundamentação constante do
ponto 6. do acórdão.
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida, quanto à pronúncia de inconstitucionalidade constante da
alínea a) da Decisão, por entender que o artigo 2.º, n.º 3, do Decreto da
Assembleia da República n.º 173/X, na parte em que se refere aos juízes dos
tribunais judiciais, não viola o n.º 1 do artigo 215.º da Constituição da
República Portuguesa, quando dispõe que os juízes dos tribunais judiciais se
regem por um só estatuto.
Diferentemente do entendimento que fez vencimento, considero que a unicidade de
estatuto, tal como está constitucionalmente consagrada, não pressupõe um
estatuto específico, “no sentido de que são as suas disposições, ainda que de
natureza remissiva, que determinam e conformam o respectivo regime
jurídico-funcional”.
À luz do que dispõe o artigo 215.º, n.º 1, da Constituição, estatuto específico
significa apenas “especificidade estatutária face aos juízes dos restantes
tribunais” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 217.º, ponto III.).
Do n.º 1 do artigo 215.º, na parte em que dispõe que os juízes dos tribunais
judiciais se regem por um só estatuto, decorre que, apesar da existência de
“três categorias de juízes, de acordo com o nível dos respectivos tribunais na
estrutura dos tribunais judiciais” (artigos 209.º, n.º 1, alínea a) e 210.º da
Constituição), “não podem existir distinções de estatuto para cada uma das
categorias” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 217.º,
ponto III.). A unidade estatutária dos juízes dos tribunais judiciais significa
que “apesar de legal e constitucionalmente (cfr. artigo 210.º da CRP) existir
uma hierarquia de tribunais judiciais e diferentes categorias de juízes, todos
eles estão sujeitos ao mesmo estatuto” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, anotação ao artigo 215.º, ponto
IV).
O que se dispõe hoje no n.º 1 do artigo 215.º constava já do artigo 220.º
(Unidade da magistratura) da versão primitiva da Constituição. Com este preceito
dava-se expressão ao princípio da unidade da magistratura judicial, num texto
constitucional que previa como uma categoria de tribunais os tribunais judiciais
de primeira instância, de segunda instância e o Supremo Tribunal de Justiça, que
poderiam funcionar segundo uma regra de especialização (artigos 212.º, n.º 1,
213.º e 214.º). Para além de outras categorias – os tribunais militares e o
Tribunal de Contas (artigos 212.º, n.º 2, 218.º e 219.º) e os tribunais
administrativos e fiscais, cuja existência era configurada como uma mera
possibilidade (artigo 212.º, n.º 3) –, relativamente às quais não havia aquelas
explicitações.
Do enquadramento jurídico-constitucional da função jurisdicional – artigos
110.º, 111.º, 202.º e 203.º – resulta que os juízes se devem reger por um
estatuto próprio, separado, do dos titulares de outros órgãos de soberania, do
dos magistrados do Ministério Público e do dos trabalhadores que exercem funções
públicas. Estatuto conformado pelos princípios da inamovibilidade, da
irresponsabilidade e do autogoverno e pelo estabelecimento de incompatibilidades
de cargo (artigos 216.º, 217.º e 218.º da Constituição), previstos no Capítulo
III (Estatuto dos juízes), do Título V (Tribunais), da Parte III (Organização do
poder político) da Constituição. Estatuto que, em relação aos juízes dos
tribunais judiciais, é específico face aos juízes dos restantes tribunais
(artigo 215.º da Constituição).
O artigo 2.º, n.º 3, na parte em que se refere aos juízes dos tribunais
judiciais, não viola aquelas disposições conformadoras, mantendo a separação,
constitucionalmente imposta, entre o estatuto dos juízes e o estatuto dos
trabalhadores que exercem funções públicas. Por um lado, o n.º 3 do artigo 2.º
limita-se a estender a aplicação do regime de vinculação, de carreiras e de
remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas aos juízes dos
tribunais judiciais (cf. o n.º 1 do artigo 2.º com o n.º 3 do mesmo artigo); por
outro, tratar-se-á sempre de uma aplicação subsidiária – uma aplicação sem
prejuízo do disposto na Constituição e em leis especiais e com as necessárias
adaptações.
Consequentemente, entendo também que as normas dos artigos 10.º, n.º 2, e 68.º,
n.º 2, não são inconstitucionais.
2. Votei a alínea b) da Decisão, sem prejuízo de ulterior ponderação quanto à
violação da reserva de jurisdição prevista no artigo 202.º da Constituição.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
A) Quanto à alínea a) da Decisão
Votei vencida a alínea a) da Decisão na parte respeitante à pronúncia de
inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, nº 3, do Decreto da Assembleia da
República nº 173/X, por entender que o estatuto material dos juízes que resulta
da Constituição não se opõe à inclusão de uma norma com esse teor num diploma
que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos
trabalhadores que exercem funções públicas.
A nossa Lei Fundamental considera os tribunais como órgãos de soberania (artigos
110º e 202º, nº 1, CRP) e consagra expressamente o princípio da independência
dos tribunais e da sua sujeição apenas à lei (artigo 203º da CRP). Como diz
Gomes Canotilho, «os tribunais são órgãos constitucionais aos quais é
especialmente confiada a função jurisdicional exercida por juízes» (JOSÉ JOAQUIM
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
Almedina, 2003, p. 657).
Tendo em conta que uma das funções do Estado é exercida por juízes, é natural
que a Constituição lhes atribua um conjunto de direitos, garantias e
poderes-deveres, com o objectivo de assegurar a compatibilidade do seu estatuto
com a sua função de titulares de órgãos de soberania (artigos 215º e seguintes
da CRP). Nos termos da Constituição, o estatuto dos juízes inclui a
independência, a inamovibilidade e a irresponsabilidade (artigo 216º, nºs 1 e 2,
CRP), bem como as incompatibilidades (artigo 216º, nºs 3, 4, e 5).
Relativamente aos juízes dos tribunais judiciais – que, segundo a Constituição
são os tribunais comuns em matéria cível e criminal (artigo 211º CRP) – e,
sublinhe-se, somente em relação a estes, a Constituição acrescenta ainda que
formam um corpo único e que se regem por um estatuto único (artigo 215º, nº 1,
CRP), o que significa que existe uma unidade orgânica dos juízes dos tribunais
judiciais, (repita-se: só destes) e que, do ponto de vista material, existe uma
unidade de estatuto, ou seja, estes juízes dispõem dos mesmos direitos,
garantias e poderes-deveres entre si.
Porém, ao contrário da tese vencedora no Acórdão, considero que esta unidade
material de estatuto não implica, de modo algum, a unidade formal do mesmo, isto
é, não se afigura como exigência constitucional que, do ponto de vista formal,
todos os direitos, garantias e poderes-deveres destes juízes se encontrem
consignados num único diploma, como acontece actualmente em Portugal com o
Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Na minha opinião, uma norma com a redacção do artigo 2º, nº 3, do Decreto da
Assembleia da República nº 173/X, que aplica a lei que estabelece os regimes de
vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções
públicas aos juízes de qualquer jurisdição e aos magistrados do Ministério
Público, mas com ressalva expressa do disposto na Constituição, em leis
especiais e exigindo ainda que essa eventual aplicação se faça com as
necessárias adaptações, não viola, à partida, qualquer direito ou garantia dos
juízes constitucionalmente consagrados e, muito menos, põe em causa a reserva de
jurisdição, que inclui a reserva de juiz, ou os princípios da interdependência e
da separação de poderes e do Estado de Direito. Aliás, o próprio Acórdão acaba
por admitir que não se pode afirmar uma afronta directa às garantias
constitucionais dos artigos 203º e 216º, nºs 1 e 2, CRP.
Como afirma GOMES CANOTILHO, a independência dos tribunais como dimensão do
Estado de Direito significa que se reserva aos juízes e aos tribunais a função
de julgar e implica «necessariamente a separação da função de julgar (função
jurisdicional) num sentido positivo e num sentido negativo. Num sentido positivo
a função jurisdicional é atribuída exclusivamente a juízes; em sentido negativo
proíbe-se o exercício da função jurisdicional por outros órgãos ou poderes que
não sejam jurisdicionais» (JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2003, p. 660).
Ora, nada na norma sub judice é susceptível de pôr em causa a exclusividade da
função de julgar dos juízes nem se verifica qualquer intrusão de outro poder do
Estado no poder jurisdicional. Em suma, considero que o poder jurisdicional e a
correspondente função de julgar, tal como resultam da Constituição, não seriam
minimamente beliscados pela norma do artigo 2º, nº 3, do Decreto da Assembleia
da República nº 173/X sub judice.
Sublinhe-se ainda que, em alguns Estados-Membros da União Europeia, onde ninguém
duvida que os princípios, acima mencionados, da separação de poderes e do Estado
de Direito são respeitados, como é o caso da Áustria, da Finlândia, da Suécia e
da França, aos juízes é atribuído o estatuto de funcionários públicos, e nem por
isso deixam de lhes ser asseguradas todas as garantias inerentes ao poder
jurisdicional e à função de julgar, como sejam a independência, a
irresponsabilidade e a inamovibilidade. Quer dizer, no Direito Comparado
encontramos até casos extremos em que o estatuto de juiz coexiste pacificamente
com o estatuto de funcionário público, sem que isso ponha em causa a função
jurisdicional nem o poder jurisdicional como poder do Estado separado dos outros
poderes (informação disponível no sítio
http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof).
Não seria esse, porém, nunca o efeito que produziria a norma em análise. Ao
contrário do que se afirma no Acórdão, não haveria qualquer tendencial
equiparação dos juízes aos demais trabalhadores da Administração Pública nem
qualquer assimilação do estatuto de juiz ao estatuto do funcionário público. Por
força desta norma a eventual aplicação do diploma aos juízes de qualquer
jurisdição e aos magistrados do Ministério Público restringir-se-ia a casos
lacunares muito pontuais, periféricos e até marginais.
Em conclusão, considero que a norma do artigo 2º, nº 3, do Decreto da Assembleia
da República nº 173/X não contraria qualquer preceito constitucional. Em
consequência, também me afasto da Decisão de pronúncia de inconstitucionalidade
dos artigos 10º, nº 2, e 68º, nº 2 do mesmo diploma.
B) Quanto à alínea b) da Decisão
Quanto à alínea b) da Decisão de pronúncia pela inconstitucionalidade da norma
do artigo 36º, nº 3, conjugada com os nºs 4 e 5 e, consequentemente, da norma do
artigo 94º, nº 2, não acompanho a parte da Decisão relativa à violação da
reserva de jurisdição nem a fundamentação constante do ponto 6 que a suporta,
porque considero que a cativação das remunerações opera ope legis, pelo que, em
meu entender, estes preceitos são inconstitucionais apenas por violação do
artigo 59º, nº 1, alínea a), conjugado com o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
Ana Maria Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, na parte referente à declaração de inconstitucionalidade da
norma do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto n.º 73/X, pelas razões que passo a
enunciar sucintamente.
A especificidade de estatuto dos juízes dos tribunais judiciais decorre da
natureza da função jurisdicional, substancialmente definida na própria
Constituição. Enquanto titulares dos órgãos de soberania – os tribunais − a quem
cabe o exercício dessa função, esses magistrados devem estar sujeitos a um
estatuto conformador da sua posição em termos claramente diferenciados, quer do
estatuto dos funcionários públicos, quer do estatuto dos titulares dos restantes
órgãos de soberania. A esse estatuto cabe concretizar e promover as garantias
que assegurem a plena autonomia do exercício da jurisdição, em obediência aos
imperativos constitucionais.
É também indiscutível que a plena autonomia no acto de julgar reclama uma
absoluta independência operacional, o que, por sua vez, apela a um conjunto de
apropriadas condições organizativas e funcionais de enquadramento. A
especificidade do estatuto deverá, pois, estender-se a aspectos externos à
actividade jurisdicional, em si mesma, mas que nela, de forma directa ou
indirecta, acabam por se repercutir.
Mas a razão de ser da especificidade de estatuto é também o seu limite. Na
verdade, importa reconhecer que o estatuto profissional dos magistrados é
susceptível de abranger, em zonas periféricas, matérias que não contendem com o
exercício da jurisdição, por não estarem com ele de qualquer forma conexionadas.
No que respeita a essas matérias, os magistrados estão numa situação que não
apresenta, do ponto de vista material-valorativo, qualquer especificidade em
relação aos profissionais de um emprego público, pelo que não é de rejeitar, à
partida, um tratamento não diferenciado desses aspectos.
Esse tratamento não diferenciado pode resultar da aplicação supletiva, a essas
matérias, da lei estatutária dos funcionários públicos. O ponto está em saber −
e é essa a questão de constitucionalidade que aqui basicamente se suscitou − se
essa aplicação tem que se fundar numa remissão determinada pela lei reguladora
do estatuto privativo dos magistrados judiciais, a eles exclusivamente
aplicável, ou se pode decorrer de outro diploma, designadamente do que tem por
objecto o regime de vínculos, carreiras e remunerações dos funcionários
públicos.
Contrariamente à posição que fez vencimento, entendo que o princípio da
unicidade de estatuto dos magistrados dos tribunais judiciais, consagrado no
artigo 215.º, n.º 1, da CRP não impõe a primeira solução. Esse princípio não tem
o alcance que se lhe pretende atribuir, não podendo, designadamente, o conceito
de “estatuto específico” ser interpretado “no sentido de que são as suas
disposições, ainda que de natureza remissiva, que determinam e conformam o
respectivo regime jurídico-funcional”. Se assim fosse, ficaria, aliás, por
explicar o âmbito restrito da sua aplicação aos juízes dos tribunais judiciais,
pois não se vê que os magistrados de outras jurisdições não merecessem idêntico
tratamento…
A exigência da unidade de estatuto contenta-se com a aplicação de um único
regime a todos os juízes dos tribunais judiciais. Não há qualquer fundamento
para interpretar a disposição – no que seria um alcance puramente formalista −
no sentido de que todo o regime estatutário deve ser recondutível a um único
diploma, que o tenha exclusivamente por objecto. Estatuto único não é o mesmo do
que fonte normativa única.
Não podendo fundar-se numa violação do artigo 215.º, mesmo quando lido em
articulação com as garantias da função jurisdicional, uma razão substantiva para
a inconstitucionalidade material do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto n.º 173/X só
podia sustentar-se na demonstração de que essas garantias resultam directamente
afectadas pelo simples facto de a determinação da lei supletiva aplicável não
constar da lei que especialmente regula o estatuto privativo dos magistrados
judiciais. Esta é, aliás, uma questão de constitucionalidade constante do pedido
(alínea b) do art. 10.º) e a que o acórdão expressamente responde pela negativa,
no que o acompanho.
Mas, sendo assim, nada autoriza a que simultaneamente se conclua por uma
“equiparação dos juízes aos demais trabalhadores da Administração, por efeito de
assimilação do seu estatuto pelo regime geral da função pública (…)”. Garantida
a prevalência aplicativa do regime específico dos magistrados – no que o
enunciado normativo do artigo 2.º, n.º 3, é particularmente cuidadoso −, este
permanece intocado, sem qualquer imposição de conformação às normas atinentes
aos funcionários públicos.
Nada muda, substancialmente, no processo de determinação do direito aplicável:
primeiro recorremos à Constituição, depois à lei que especificamente regula os
direitos e deveres dos magistrados e, por último, “com as necessárias
adaptações”, ao regime da função pública.
É certo que a aplicação supletiva deste regime passa a ter carácter genérico,
não ficando circunscrito aos pontos para que a Lei n.º 21/85, de 30 de Julho,
pontualmente remete.
Não custa admitir que essa não é a solução mais adequada, quer porque, no plano
simbólico (de relevo nada despiciendo, nesta matéria), pode gerar uma “imagem”
desfocada dos magistrados e da sua função, mas também porque abre campo para
incertezas e dúvidas aplicativas inconvenientes, de todos os pontos de vista.
Mas essa não é, consabidamente, uma razão bastante para fundamentar um juízo de
inconstitucionalidade.
2. Votei a decisão de inconstitucionalidade da
norma do artigo 36.º, n.º 3. Mas não acompanho inteiramente o fundamento
invocado na 2.ª parte da alínea b) da decisão, respeitante à violação da reserva
de jurisdição.
Na verdade, não faço uma leitura do disposto nos n.ºs 3 e 5 do artigo 36.º
correspondente à do acórdão. Instaurado um processo de responsabilidade
financeira no Tribunal de Contas, o juiz tem que informar a unidade orgânica
competente para o processamento e pagamento das remunerações desse facto e esta,
uma vez recebida essa informação, tem que cativar automaticamente, a partir do
mês seguinte, àquele em que tenha sido instaurado o procedimento jurisdicional.
Nem o juiz, nem a entidade administrativa, têm qualquer poder decisório nesta
matéria. O que significa que não é a intermediação de uma actuação
administrativa que afecta a reserva de jurisdição, pois o órgão judicial já vira
a sua competência de apreciação e decisão, no que respeita à medida cautelar de
cativação de metade da retribuição, antecipadamente subtraída pelo automatismo
da conformação legal. É este o vício que verdadeiramente funda a
inconstitucionalidade da solução constante do Decreto.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2007
Joaquim Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a totalidade das pronúncias emitidas no precedente
acórdão (e a integralidade das respectivas fundamentações), com excepção da não
pronúncia de inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 35.º, n.ºs 2,
alínea b), e 4, do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, a qual, como
bem se salienta no acórdão, confere uma prevalência às pessoas colectivas, em
detrimento das pessoas singulares, na celebração de contratos de prestação de
serviços, nas modalidades de contratos de tarefa e de avença.
Considero que não se justifica, no controlo
jurisdicional da violação do princípio da igualdade, enquanto proibição de
arbítrio, qualquer auto‑restrição do poder do Tribunal (que se confinaria ao
controlo das evidências), mas antes uma autocontenção, respeitadora da liberdade
de conformação do legislador.
Neste entendimento, é suficiente para a emissão de um
juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade a
constatação de que o tratamento legal diferenciado não assenta em fundamento
racional bastante, de acordo com os valores constitucionalmente relevantes na
situação.
Ora, visando os contratos em causa a realização de
trabalho não subordinado, prestado naturalmente por pessoas singulares, embora
com autonomia, sem sujeição à disciplina e à direcção do órgão ou serviço
contratante nem ao cumprimento de horário de trabalho, entendo que nenhuma
razão constitucionalmente relevante justifica o tratamento privilegiado
concedido às pessoas colectivas.
O acórdão avança uma justificação – evitar o risco de,
pelo expediente da celebração de “falsos” contratos de tarefa e de avença com
pessoas singulares, se virem a gerar novas situações de disfuncionalidade que,
no passado, têm propiciado a conversão desses contratos em vinculações
definitivas à Administração, com o consequente sobredimensionamento dos seus
quadros de pessoal – que, salvo o devido respeito, surge como insuficiente para
justificar o tratamento discriminatório constatado.
Entendo não ser admissível invocar a pretérita
incapacidade de autocontrolo e de conformação à lei por parte da Administração
para justificar tratamentos discriminatórios, quando é certo que o próprio
diploma ora em apreço já insere disposições que surgem como suficientes para
esconjurar o risco que pretensamente se quis evitar. Na verdade, a peremptória
proibição, constante do n.º 5 deste artigo 35.º, de qualquer contrato de tarefa
exceder o termo do prazo contratual inicialmente estabelecido, e o regime a que
o subsequente n.º 6 sujeita o contrato de avença (que tem por objecto prestações
sucessivas no exercício de profissão liberal, podendo ser feito cessar a todo
o tempo, por qualquer das partes, mesmo quando celebrado com cláusula de
prorrogação tácita, com aviso prévio de 60 dias e sem obrigação de indemnizar),
são, à partida, estatuições adequadas e suficientes para acautelar eficazmente o
fim, constitucionalmente atendível, da boa gestão dos recursos públicos. Não se
vislumbra, com efeito, qualquer razão materialmente fundada para, por exemplo,
pretendendo a Administração celebrar um contrato de avença para prestação de
serviços forenses, tenha forçosamente de contratar com um sociedade de
advogados, em detrimento da contratação de um advogado individual.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão nos pontos e pelas razões que sumariamente
passo a enunciar:
A) Votei vencido quanto à decisão de pronúncia pela não
inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 55.º do Decreto em apreciação.
Mesmo abstraindo de comparações transversais, esta norma comporta a
possibilidade real de gerar situações em que, no mesmo órgão ou serviço,
trabalhadores recém-ingressados em dada categoria da mesma carreira passem a
ocupar uma posição na respectiva tabela remuneratória superior ao de
trabalhadores no activo dessa categoria, portanto nela mais antigos, com
idênticas ou superiores qualificações habilitacionais ou profissionais, o que,
de acordo com a jurisprudência consolidada do Tribunal, é susceptível de violar
artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição, enquanto corolário do princípio
constitucional da igualdade consagrado no seu artigo 13.º. Admito, aqui com o
acórdão, que o princípio “para trabalho igual, salário igual” não proíbe que o
trabalhador que esteja provido há menos tempo numa dada categoria aufira uma
remuneração superior àquela que é percebida por quem dispõe de maior
antiguidade, desde que essa diferenciação esteja fundamentada num motivo
objectivo, racionalmente comprovável como revelador de efectiva ou potencial
disponibilização ao empregador público de superior qualidade ou quantidade do
trabalho prestado (para efeito da trilogia constitucional da justa retribuição
do trabalho, a identidade de natureza é, num sistema estruturado como o dos
'trabalhadores que exercem funções públicas', dada pela similitude do conteúdo
funcional inerente à categoria, que é o elemento central do primeiro termo
daquele binómio). O que não me parece possível é considerar a 'fundada
expectativa quanto ao nível qualitativo da prestação laboral', resultante das
provas do concurso, um critério objectivo para a diferenciação. Pelo menos, não
é um critério susceptível de justificar a solução normativa sem uma cláusula de
salvaguarda que impeça a 'ultrapassagem' de trabalhadores no activo, menos
antigos na categoria, com avaliação de desempenho de nível correspondente.
Enquanto o posicionamento do recém-recrutado poderá, na latitude da norma em
apreço, ocorrer em qualquer das posições remuneratórias da categoria, os
trabalhadores no activo tem o seu nível remuneratório condicionado pelas regras
de alteração do posicionamento remuneratório previstas nos artigos 47.º e 48.º
do Decreto. Recorrendo – em método que o Tribunal tem considerado adequado ao
sistema de fiscalização abstracta em casos do género (cfr. acórdão n.º 323/2005,
publicado no Diário da República, I Série-A, de 14 de Outubro de 2005) – ao mais
despojado dos exemplos: um técnico superior integrado na primeira posição
remuneratória (por hipótese oriundo do CEAGP, obrigatoriamente integrado na
primeira posição remuneratória, por força do n.º 6 do artigo 56.º do Decreto,
apesar de o curso e o seu sistema de avaliação ser bem mais revelador das
potencialidades dos candidatos do que a frágil prognose quanto a desempenhos
futuros com base nos elementos do processo concursal), com uma menção máxima em
avaliação do desempenho (artigo 47.º, n.º 1, alínea a) do Decreto), auferirá
inelutavelmente remuneração inferior a um novo trabalhador relativamente ao qual
o posicionamento negociado ao abrigo da norma em causa produza o mínimo dos
efeitos, ou seja, em que este trabalhador obtenha a segunda posição da estrutura
remuneratória da carreira.
Na falta de uma cláusula de salvaguarda (que, aliás, o legislador
adoptou em casos paralelos, por exemplo, no n.º 3 do artigo 48.º do Decreto),
não vejo como as cautelas gestionárias que o acórdão invoca e os princípios
gerais da actividade administrativa possam evitar a inversão das posições
remuneratórias, que não são consequência do mau uso do mecanismo legal, mas uma
consequência inevitável do seu funcionamento e que não é temerário prever que
serão frequentes num empregador com a dimensão e a complexidade organizativa da
Administração Pública.
B) Não acompanho a fundamentação do acórdão na parte em que,
relativamente à norma do n.º 3 do artigo 36.º e, a título consequente, do n.º 2
do artigo 94.º do Decreto, considera violada reserva de jurisdição prevista no
artigo 202.º da Constituição (n.º 6 do acórdão) e o consequente reflexo na
alínea b) da decisão.
Desde logo, estou em divergência com a interpretação das disposições
conjugadas dos n.ºs 3 e 5 do artigo 36.º do Decreto que conduziram a maioria a
ver na cativação das remunerações, quando conexa com a instauração de um
processo para efectivação da responsabilidade financeira perante o Tribunal de
Contas, um acto de definição inovatória da situação do funcionário da autoria da
entidade processadora do vencimento. A referência do n.º 5 do artigo 36.º à
“entidade competente pela instrução do procedimento” tem de ser entendida em
conformidade com a natureza administrativa ou jurisdicional do procedimento cuja
instauração motiva a cativação de metade da remuneração do “indiciado
responsável” contra o qual o procedimento se dirige. Neste caso, será o Tribunal
de Contas, quando e se o processo de efectivação de responsabilidade financeira
for requerido pelo Ministério Público, e não a entidade que lhe endereça o
relatório da auditoria ou inspecção, que perde sobre ele o controlo. Estamos,
portanto, perante um efeito ope legis da instauração de um determinado
procedimento jurisdicional, à semelhança de vários outros que o sistema jurídico
conhece, nuns casos de sentido favorável, noutros desfavorável ao administrado
(cfr. por exemplo n.º 2 do artigo 69.º do Regime Jurídico da Urbanização e da
Edificação). Nestas circunstâncias, a entidade processadora dos vencimentos não
define inovatoriamente a situação do particular; executa a comunicação do
tribunal garantindo o efeito que automaticamente decorre da lei, pelo que não
pode a medida ser concebida, neste caso diversamente do que sucede quando o
procedimento para efectivação da responsabilidade tem natureza administrativa,
como uma medida cautelar resultante de acto administrativo.
Acresce que, mesmo que assim não fosse, me sobram dúvidas – que a
discordância com o ponto de partida do acórdão me dispensa de resolver – quanto
a, de um modo geral, configurar a previsão legislativa que, em abstracto,
conceda à Administração a possibilidade de tomar determinada medida que
normalmente caberia no âmbito dos seus poderes através de um procedimento
administrativo (em que, portanto, não haja reserva de primeira palavra), como
invadindo ou permitindo invadir a reserva de juiz (é nesta acepção que a censura
à norma por violar a reserva de jurisdição é tomada no acórdão), só porque o
mesmo efeito era alcançável mediante um procedimento jurisdicional instrumental
de um processo pendente no tribunal. Esta circunstância da pendência de um
processo jurisdicional para a resolução final do conflito não confere à medida
administrativa um conteúdo materialmente jurisdicional que, na sua essência, não
teria necessariamente.
Acompanho, todavia, os demais fundamentos pelos quais o acórdão
decide pela pronúncia de inconstitucionalidade quanto a esta norma, que valem
indiferentemente para os termos em que a cativação do vencimento é estabelecida,
seja administrativo ou jurisdicional o processo de cuja resolução final é
instrumento.
Vítor Gomes