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Processo n.º 1015/07
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por decisão instrutória de 5 de Fevereiro de 2007, a fls. 4 e seguintes, o
juiz do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra decidiu,
entre o mais, pronunciar os arguidos A. e B. pela prática, em co-autoria, dos
crimes de tráfico de produto estupefaciente agravado, previstos e puníveis pelos
artigos 21º, n.º 1, e 24º, alíneas b), c) e j) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22
de Janeiro, de três crimes de receptação dolosa, previstos e puníveis pelo
artigo 231º do Código Penal, de três crimes de falsificação de documento
agravada, previstos e puníveis pelos artigos 256º, n.º s 1, alíneas a) e c), e
3, com referência ao artigo 255º, alínea a), do mesmo diploma legal, e de um
crime de associação criminosa, previsto e punível pelo artigo 28º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Inconformados com a parte da decisão instrutória que lhes indeferira a arguição
de nulidade de certas intercepções telefónicas, dela interpuseram A. e B.
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 247 e seguintes, tendo nas
conclusões da motivação respectiva sustentado nomeadamente que, conforme se
entendeu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2006, “é
inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 e n.º 5, da Constituição, a
norma do artigo 188º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação dada
pelo tribunal segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de
instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa
pronunciar sobre a sua relevância” (cfr. conclusão 45ª; cfr., ainda, a conclusão
46ª).
O Ministério Público respondeu, a fls. 269 e seguintes, sustentando que se não
verificava a referida inconstitucionalidade (cfr. conclusões 25 a 28), e, no
parecer que emitiu, no tribunal de recurso, perfilhou idêntico entendimento
(fls. 313).
Por acórdão de 11 de Setembro de 2007, a fls. 324 e seguintes, o Tribunal da
Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, podendo ler-se no texto
respectivo, entre o mais, o seguinte:
[…]
6. – Por último, consideram os recorrentes que a ordem de desmagnetização de
parte do material gravado coloca o arguido na impossibilidade de se pronunciar
sobre a relevância das conversas, o que violaria o direito ao contraditório.
De acordo com o que o regime legal em vigor estipula de forma clara, tudo o que
não for considerado relevante para a prova é destruído (artigo 188º, n.º 3). O
objectivo desta disposição parece ser o de adquirir para o processo como prova o
que seja pertinente e evitar, na medida do possível, que a invasão da vida
privada das pessoas alvo de escuta alastre para lá do estritamente necessário.
Foi esse, de resto, o entendimento que a Prof. Fernanda Palma fez consignar na
sua Declaração de Voto lavrada no Ac. Tribunal Constitucional n.º 660/06 que os
recorrentes referem (indicando por lapso o n.º 660/07): «Em minha opinião, tal
norma consagra, em termos constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de
correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva da
intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26º, n.º 2 da
Constituição)». É, aliás, à posição tomada nessa esclarecida declaração de voto
que integralmente se adere, para ela se remetendo. Quer no que toca à questão da
preponderância da defesa da reserva da intimidade da vida privada como valor
contra a sua superação por um hipotético interesse do arguido em benefício da
sua defesa [com a transfiguração de actos ilegítimos a priori em actos legítimos
a posteriori, como com clareza se explica na citada declaração de voto] quer
ainda à interpretação ali feita da “extensão” do princípio do contraditório.
Também no sentido de considerar inadmissível a subalternização da protecção dos
direitos de terceiros com a pretendida manutenção das gravações decidiu o supra
citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Fevereito de 2007.
O controlo judicial das escutas foi feito de acordo com o regime legal em vigor
e a ordem de destruição do material gravado foi dada em conformidade com esse
regime legal e em conformidade com a mais adequada interpretação dos preceitos
constitucionais.
Nessa medida improcedem as conclusões 42ª a 46ª da motivação dos recorrentes.
[…].
Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 344 e seguinte):
O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado do Acórdão
de 11 de Setembro de 2007, proferido nos autos supra referenciados e limitado
apenas ao segmento do decidido que julgou, no domínio da vigência do Código de
Processo Penal de 1987, na versão anterior à entrada em vigor da Lei n.º
48/2007, de 29/8, não ser inconstitucional a norma do artigo 188°, n.° 3, do
Código de Processo Penal (na versão referida), na interpretação segundo a qual
permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de
telecomunicações que o órgão de Polícia Criminal e o Ministério Público
conheceram e que são considerados irrelevantes pelo Juiz de Instrução, sem que o
arguido deles tenha conhecimento e sem que possa pronunciar sobre a sua
relevância, dimensão normativa que foi julgada inconstitucional, por violação do
artigo 32°, n.°. 1, da Constituição, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.°
660/2006, publicado no D.R. — II Série, n.° 7, de 10/1/2007,
Vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, nos termos das
disposições combinadas dos artigos 70°, n.º 1, alínea g), 75°-A, n.°s 1 e 3, e
72°, n.º 1, alínea a), e n.° 3, da Lei n.° 28/82, de 15/11, e 280°, n.° 5, da
Constituição da República Portuguesa”.
O recurso do Ministério Público foi admitido por despacho de fls. 367.
Os arguidos A. e B. interpuseram também recurso para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional e versando idêntica questão de inconstitucionalidade (fls. 349 e
seguintes), o qual foi admitido por despacho de fls. 382 v.º
Foi determinada a intervenção do plenário, por determinação do Presidente do
Tribunal (fls. 385).
No seguimento do processo, o representante do Ministério Público junto do
Tribunal Constitucional sustentou, nas alegações (fls. 389 e seguinte), o
seguinte:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
Foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, nos termos do artigo
70º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, da decisão do
Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que aplicou a norma do artigo 188º,
n.º 3, do Código de Processo Penal (na versão anterior à actualmente vigente),
na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova
obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de Polícia
Criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes
pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se
possa pronunciar sobre a sua relevância, dimensão normativa que foi julgada
inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, pelo
acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2006, publicado no Diário da
República, II Série, de 10 de Janeiro de 2007.
Mais recentemente, também os acórdãos n.ºs 450/07 e 451/07, ambos de 18 de
Setembro de 2007, se pronunciaram no mesmo sentido –
www.tribunalconstitucional.pt.
Em todos os processos em que foram produzidos os aludidos Acórdãos foi defendida
pelo Ministério Público a conformidade constitucional da norma do artigo 188º,
n.º 3 do Código de Processo Penal, no segmento em apreciação.
Com os argumentos que constam das respectivas declarações de voto e para os
quais remetemos, igualmente os Senhores Conselheiros Fernanda Palma, Benjamim
Rodrigues, Fernandes Cadilha e Vítor Gomes sustentaram a não
inconstitucionalidade da interpretação normativa em apreciação.
2. Conclusão
1. Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 188º do Código de Processo
Penal (na redacção anterior à que lhe foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto) na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos
de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de
Polícia Criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados não
relevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tome conhecimento e
sem que se possa pronunciar pela sua relevância.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso, confirmando-se o juízo
de conformidade constitucional da decisão recorrida.
Notificados para alegar e contra-alegar, os arguidos A. e B. fizeram-no nos
seguintes termos (fls. 392 e seguintes):
Pendem nos presentes autos os recursos interpostos pelos arguidos e pelo
Digníssimo Representante do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa,
sendo certo que, em ambos se discute a mesma questão, pelo que, os argumentos
que fundamentam o nosso entendimento de inconstitucionalidade (da interpretação
da norma constante do artigo 188°, n.° 3 do Código de Processo Penal — sempre
por referência à sua versão anterior), são precisamente aqueles que dão resposta
aos apresentados nas alegações do Ilustre Procurador-Geral Adjunto nesse
tribunal.
É pois sem qualquer prejuízo de sentido que nos permitimos condensar nesta peça
as nossas alegações e contra-alegações.
O douto acórdão recorrido, interpretou a norma do artigo 188°, n.º 3, do CPP,
aplicando-a, sendo certo que, quanto a nós, o caso em análise não difere de
outros em que a mesma, com esse sentido, foi julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta.
Nesses casos como no presente, o Meretíssimo Juiz de Instrução Criminal ordenou
a destruição de parte das conversas telefónicas interceptadas (as que não foram
transcritas), sem que ao arguido tivesse sido concedida possibilidade de aceder
às mesmas.
E na verdade, em abono deste entendimento, não deixaremos de aqui apontar o
douto acórdão deste Tribunal, n.° 660/06, publicado no Diário da República, 2ª
série, parte D, de 10/01/2007, que decidiu nos seguintes termos:
[…]
b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32°, n.º 1, da Constituição,
a norma do artigo 188°, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação
segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante
intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério
Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução,
sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a
sua relevância;(...)
O douto acórdão recorrido, no entanto, perfilhou precisamente a posição que
ficou expressa em voto de vencido, da Ilustre Conselheira, Professora Fernanda
Palma.
Porém, mais recentemente, o Tribunal Constitucional voltou a reiterar as razões
constantes do acórdão n.º 660/06, através da decisão sumária n.° 454/07, de 9 de
Agosto de 2007 (no âmbito do processo n.º 831/07 da 2ª secção, onde, concluindo
pela inconstitucionalidade daquela interpretação do artigo 188° n.° 3 do CPP,
considera que:
[…]
2. [...]
Assim, pelas razões constantes do Acórdão n.° 660/2006 (publicado no Diário da
República, II Série-A, n.° 7, de 10 de Janeiro de 2007, p. 145, e com texto
integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que subscrevemos,
impõe-se o provimento do recurso, com a consequente reformulação da decisão
recorrida.
Saliente-se que, no presente caso, a ordem judicial de destruição das gravações
em causa se fundou exclusivamente no entendimento de que tais gravações não
tinham interesse para a investigação (cf. fls. 207), pelo que surgem como de
todo irrelevantes e impertinentes as considerações tecidas no acórdão recorrido
para as hipóteses — que não se verificam no presente caso — de a ordem de
destruição se basear em se tratar de escutas ilegítimas de terceiros ou conterem
matéria coberta pelo segredo de Estado ou pelo segredo profissional. O que no
aludido Acórdão n.º 660/2006 — a cuja doutrina convictamente aderimos e que,
aliás, segue firme jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem — se
sustentou foi que é constitucionalmente intolerável, na perspectiva das
garantias de defesa, a absoluta insindicabilidade do juízo judicial sobre a
relevância processual das escutas, privando o arguido da possibilidade — de que
beneficiaram o órgão de polícia criminal e o Ministério Público — de requerer (e
não directamente de determinar, como erradamente parece supor o acórdão
recorrido) a aquisição processual de provas obtidas através das escutas, que, na
sua perspectiva, surgem como relevantes para a descoberta da verdade.
Trata-se, aliás, de solução que acaba de ser acolhida na revisão do Código de
Processo Penal levada a cabo pelo Decreto n.° 149/X da Assembleia da República
(Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.° 123, de 1 de Agosto de
2007), que, na nova redacção dada ao n.º 6 do artigo 188º, limita a
possibilidade de destruição imediata dos suportes técnicos às hipóteses de os
mesmos dizerem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas
no n.º 4 do artigo anterior, abrangerem matérias cobertas pelo segredo
profissional, de funcionário ou de Estado, ou cuja divulgação seja susceptível
de afectar gravemente direitos, liberdades e garantias. Isto é: deixa de ser
admissível a destruição imediata dos suportes técnicos das gravações das escutas
pelo simples facto de serem tidas por irrelevantes pelo juiz. (…)“
E ainda mais recentemente, proferiu o Tribunal Constitucional os Acórdãos n.°s
450/07 e 451/07, da sua 3ª Secção, nos quais se confirma o mesmo juízo de
inconstitucionalidade.
Aliás, parece-nos mesmo que o douto Acórdão 450/07 veio acrescentar novos e
valorosos argumentos a esse juízo de inconstitucionalidade:
[...]
Com efeito, para além das razões apresentadas pelo Tribunal naquele mesmo
Acórdão, outras há, que decorrem do que ficou dito na resposta dada à primeira
questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca.
Antes do mais, do que ficou dito quanto ao direito consagrado no n.° 5 do artigo
188° do CPP.
Afirmou-se acima (ponto 9.2.) que a possibilidade de exercício de um tal direito
— que, recorde-se, confere ao arguido o poder de examinar o auto de transcrição
[a que se refere o n.° 3 do artigo 188°] para se inteirar da conformidade das
transcrições — prevenia que a não assinatura, por parte do juiz de instrução,
daquele auto (ou a não certificação, pelo mesmo juiz, da conformidade entre o
que havia sido transcrito e o que havia sido gravado) se traduzisse, por si só,
numa «intervenção restritiva», constitucionalmente inaceitável, dos direitos de
defesa do arguido. No entanto, para que tal suceda, necessário é que o arguido
possa ter acesso à integralidade das gravações que foram efectuadas, para que —
como já disse o Tribunal no Acórdão n.° 426/2005 (DR II série, n.° 232, p.
17006) — «seja facultada à defesa (e também à acusação) a possibilidade de
requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas
pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria quer por
se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens
anteriormente seleccionadas.» Foi aliás este dito (citado pelo Acórdão n.°
660/2006) que justificou a decisão tomada (e a nosso ver bem) pelo Tribunal no
já referido Acórdão n.° 426/2005. Para que esta ‘arquitectura’ jurisprudencial
mantenha coerência, necessário é que se entenda que o exercício do direito que é
conferido ao arguido no n.° 5 do artigo 188° do Código de Processo Penal
pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à integralidade das gravações
efectuadas no decurso das intercepções telefónicas.
Mas, para além disso, uma outra razão há para que se entenda que tal acesso é
constitucionalmente imposto, não dependendo da livre disposição do legislador
ordinário facultá-lo, ou não, à defesa. Disse-se atrás que o regime fixado nos
artigos 187° e 188° do CPP decorria de uma autorização constitucional expressa —
conferida ao legislador — para restringir «em matéria de processo criminal», o
direito ‘inviolável’ do sigilo dos meios de comunicação privada (artigo 34°, n.°
4 e n.° 1). Disse-se também que o bem jurídico protegido por tal direito era
refracção de outros bens jurídicos, nomeadamente dos protegidos pelo «direito à
palavra» e pelo direito à «reserva de intimidade da vida privada» (artigo 26° da
CRP). A este último direito — e ao bem que ele protege — se voltará adiante. Por
agora, atenhamo-nos apenas às implicações que decorrem da garantia
constitucional de um «direito à palavra».
O direito à palavra a que se refere o artigo 26° da CRP — próximo do direito à
imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente distinto do direito
à liberdade de expressão (artigo 31°) — pressupõe a existência de uma «liberdade
de disposição na área da comunicação não pública», em que o que é dito —
justamente por ser dito fora do espaço público ou seja, não com o intuito de ser
escutado — faz parte da «acção comunicativa» espontânea, «inocente e autêntica,
(veja-se Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em Processo
Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A esta esfera da comunicação
humana pertencem os discursos fragmentários, a «expressão não reflectida nem
contida», ou a «formulação apenas compreensível no contexto de uma situação
especial» (Tribunal Constitucional Federal Alemão, apud Manuel Costa Andrade,
ob. e loc. cit.). Quem «escuta» um discurso assim, feito para não ser escutado,
infere sentidos. A decisão unilateral e externa (isto é, tomada sem o
conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e ao modo da
descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido iniciais se
venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de redução da
compreensibilidade do que foi dito.
Um «processo devido em direito» — ou, como diz a Constituição no n.° 1 do artigo
32°, um processo que «assegura todas as garantias de defesa» —, não pode ignorar
que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe-se porque tal já
foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável que a acusação,
que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações, sugira ao juiz quais
as ‘partes’ das gravações a transcrever, por serem essas as partes consideradas
relevantes para a prova (artigo 188°, n.° 1, in fine do CPP), e que a sugestão
seja acolhida «não com base em prévia audição das mesmas [por parte do JIC mas
por leitura de textos contendo a sua reprodução...acompanhados das fitas
gravadas ou elementos análogas» (fórmula decisória do Acórdão n.° 426/2005).
Sabendo-se tudo isto, difícil é não concluir que, no âmbito de todas as
garantias de defesa a que se refere o n.° 1 do artigo 32° da CRP, se conta
também a possibilidade de acesso do arguido à integralidade das gravações
efectuadas no decurso de operações de «escutas telefónicas», antes que seja dada
a ordem da sua destruição parcial.
Sustentar-se-á em contrário que uma tal leitura das coisas desconhece que, nos
termos do n.° 5 do artigo 32° da Constituição, o princípio do contraditório vale
apenas para as fases de audiência de julgamento e para os «actos instrutórios
que a lei determinar», pelo que argumentar como se argumentou implicaria uma
visão radicalmente acusatória de todo o processo penal, em que o princípio do
contraditório dominaria, também, todo o inquérito — visão essa que, como se
sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note-se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para a fase do
inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração da prova —
princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à fase de
audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata-se apenas de
garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve cumprir, ou
seja, «de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da
defesa» (assim mesmo, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974,
reimp. 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p. 150), de tal forma que o arguido tenha
uma posição processual equiparada quanto possível à do acusador (ibidem p. 149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar um processo
penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura radicalmente
acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao princípio contido no
n.° 1 do artigo 32° da Constituição, pois que, « [e]m todas as garantias de
defesa engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários
para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical
desigualdade material de partida entre acusação (normalmente apoiada pelo poder
institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante
especificas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.” (J.J. Comes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição do República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516
[…].
Deverá pois, ser mantida a jurisprudência dos acórdãos citados, por aplicável ao
caso em análise, e em consequência, deve o presente recurso obter provimento.
CONCLUSÕES:
1. O Tribunal da Relação interpretou e aplicou a norma constante do artigo 188°
n.° 3 do CPP (versão anterior), como não sendo inconstitucional, com o sentido
de que o juiz de instrução pode destruir todo o material gravado sem que ao
arguido seja concedida a possibilidade de o conhecer e sobre o mesmo se
pronunciar;
2. Tal ocorreu nos presentes autos, em que os arguidos foram escutados, tendo
sido destruído todo o material que não foi considerado relevante para a
investigação, sem que aos arguidos fosse concedido acesso para o utilizar em sua
defesa, e eliminando-se a possibilidade de contextualizar as conversas que foram
consideradas relevantes.
3. A norma constante do artigo 188°, n.° 3, está ferida de inconstitucionalidade
se entendida com o sentido de que todo o material gravado pode ser destruído sem
que aos arguidos seja dado acesso ao mesmo, por violação das garantias de defesa
consagradas do artigo 32°, n° 1, da CRP. Por isso,
4. Deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 188°, n.° 3, do CPP,
por violação do artigo 32°, n.° 1, da CRP, com a interpretação de que se permite
a destruição dos elementos de prova obtidos com as escutas telefónicas, que o
OPC e o MP conheceram e o Meritíssimo Juiz de Instrução julgou irrelevante para
a investigação, sem que ao arguido seja dado conhecimento dos mesmos e se possa
pronunciar sobre a relevância deles.
Nestes termos se requer a Vs. Exas. que, conhecendo o presente recurso, venham a
declará-lo procedente, e em conformidade, a declarar inconstitucional a norma
constante do artigo 188º, n.° 3, do CPP (anterior versão), quando interpretada
com o sentido conferido na decisão recorrida.
Notificado da apresentação das alegações dos recorrentes A. e B., o
representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio dizer
que nada mais tinha a acrescentar às alegações que produzira (fls. 399).
II. Fundamentação
2. A questão que vem discutida é a de saber se é inconstitucional, por violação
das garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal quando
interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material
coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem
que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o
eventual interesse para a sua defesa.
Sobre essa mesma matéria já se pronunciou especificamente o citado acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 660/06, de 28 de Novembro de 2006, que decidiu
“julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a
norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação
segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante
intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério
Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução,
sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a
sua relevância”.
No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos n.ºs 450/07 e 451/07, ambos de 18
de Setembro de 2007.
É, aliás, na explanação seguida nesses arestos que os recorrentes A. e B. se
apoiam para defender idêntica solução, no caso vertente, ao passo que o
magistrado do Ministério Público, aqui também na posição de recorrente, se
baseia, para concluir no sentido oposto, nas considerações que foram aduzidas
nos votos de vencido que acompanham esses acórdãos.
Importará, por isso, começar por expor, em termos argumentativos, as posições
que se encontram em confronto, para daí partir para o entendimento que, no
presente, melhor se considera ajustado ao caso.
Na verdade, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06 excluiu que, em caso
de intercepção e gravação de conversações telefónicas, e para efeito da
eliminação dos conteúdos das comunicações interceptadas, as garantias de defesa
do arguido se bastem com o controlo da relevância dos elementos de prova, por
parte do juiz de instrução.
Para assim concluir, o Tribunal ponderou que a destruição, apenas por decisão do
juiz de instrução, sem conhecimento pelo arguido, dos elementos de prova obtidos
por intermédio da intercepção de telecomunicações, constitui, só por si, uma
compressão inaceitável e desnecessária das garantias de defesa e que é
particularmente notória na comparação da sua posição com a da acusação. Isso
porque o arguido, que sofreu uma intervenção restritiva nos seus direitos
fundamentais ao ser objecto de escutas telefónicas, acaba por ver eliminados os
registos dessas comunicações, sem poder tomar conhecimento do seu conteúdo e
sobre eles se pronunciar, enquanto que a acusação (rectius, o órgão de polícia
criminal e o Ministério Público) tem acesso ao conteúdo integral e completo das
comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes que considera
relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma intervenção substancial
anterior à apreciação do juiz e podendo influenciar a sua decisão sobre a
relevância dos elementos coligidos.
O acórdão entende, por outro lado, que não é possível contrapor, como
justificação para a destruição dos registos tidos como irrelevantes, a ideia de
que essa operação visa a própria protecção de direitos fundamentais de terceiros
ou do próprio arguido, por se tratar de dados que, resultando da intercepção de
comunicações, representam em si uma devassa da intimidade da vida privada. Neste
plano de consideração, o tribunal chama a atenção para a circunstância de a
destruição dos registos, com fundamento no disposto no artigo 188º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, ter por base exclusivamente a apreciação da relevância
das conversações para efeito de prova, por parte do juiz, e não a ilegalidade
das escutas ou a protecção dos direitos de terceiros ou do arguido. E, assim, a
invocação da protecção de terceiros contra intromissão na vida privada só
poderia colocar-se no plano abstracto, da presunção de que todas e quaisquer
escutas podem pôr em causa esses direitos de terceiros.
A estas razões acrescenta o acórdão n.º 450/07 (e, na sua esteira, o acórdão n.º
451/07) outras que se julga apontarem também no sentido da inconstitucionalidade
da solução legislativa contida no citado artigo 188º, n.º 3. Por um lado, a
consideração de que o exercício do direito de o arguido examinar o auto de
transcrição para se inteirar da conformidade entre o que havia sido transcrito
e o que havia sido gravado as transcrições [a que se refere o nº 5 desse
artigo] tem como pressuposto necessário que o arguido possa ter acesso à
integralidade das gravações que foram efectuadas. Por outro lado, a ideia de que
o direito à palavra, como refracção do direito à reserva de intimidade da vida
privada, pressupõe a existência de uma liberdade de comunicação espontânea, que
pode gerar inferências de sentido que reduzem a compreensibilidade do que foi
dito, quando interceptadas por decisão unilateral e externa de terceiros.
As posições expressas nos votos de vencido que acompanham o acórdão n.º 660/06
situam-se, por sua vez, num plano de análise diametralmente oposto.
Aí entende-se que a argumentação do acórdão parte da ideia de que, uma vez
realizada a intercepção, se tornará secundário assegurar os valores e interesses
cuja restrição foi afectada, por as garantias de defesa e o contraditório
consagradas no artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição se terem tornado
prevalecentes relativamente à reserva da intimidade da vida privada do próprio
arguido ou de terceiro.
No entanto – como se explicita -, o facto de uma intercepção ter sido já
realizada e de a correspondente conversação ter sido ouvida por órgãos de
polícia criminal e autoridades judiciárias não torna irrelevante o prejuízo para
a reserva da intimidade da vida privada que pode advir da conservação dos
respectivos suportes, visto que essa conservação gera sempre um perigo acrescido
de reprodução e de devassa.
O juiz de instrução tem precisamente por função assegurar os direitos,
liberdades e garantias – do arguido, de outros sujeitos processuais e de
quaisquer terceiros - , como decorre do nº 4 do artigo 32º da Constituição, pelo
que entender que esse órgão judiciário está proibido de ordenar a destruição de
quaisquer gravações de escutas que considere, segundo a sua análise e
ponderação, manifestamente irrelevantes constitui uma interpretação
desproporcionada das exigências constitucionais no processo penal. Se assim
sucedesse, estaria aberto o caminho para que todas as violações de direitos
fundamentais (mesmo envolvendo só terceiros) e as correspondentes actividades de
investigação e de obtenção de prova (intercepção de comunicações e até outras)
se viessem a consolidar na ordem jurídica para ulterior satisfação de uma
arbitrária vontade do arguido.
Neste contexto – conclui-se - , a norma do artigo 188º, n.º 3, do Código de
Processo Penal o que faz é consagrar, em termos constitucionalmente admissíveis,
a possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na
reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26º, nº
2, da Constituição).
3. Sendo estes os termos em que a questão se coloca, tal como é apresentada
pelas partes, que se arrimam, nas suas peças processuais, em cada uma das
posições contrastantes acabadas de referir, cabe efectuar o necessário
enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação do juízo
de constitucionalidade.
No plano da lei geral, a confidencialidade das telecomunicações é expressamente
garantida pela Lei de Tratamento de Dados Pessoais e Protecção da Privacidade no
Sector das Comunicações Electrónicas (Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto) e,
particularmente, pelo artigo 4º desta Lei, que assegura a inviolabilidade das
comunicações e respectivos dados de tráfego no domínio das redes públicas de
comunicações e dos serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público,
proibindo a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento e
outros meios de intercepção ou vigilância de comunicações sem o consentimento
prévio e expresso dos utilizadores, com excepção apenas dos casos previstos na
lei.
O sigilo das telecomunicações merece, porém, garantias inscritas logo ao nível
fundamental da Constituição, dispondo o seu artigo 34º, nos nºs 1 e 4, que “o
domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação
privada são invioláveis”, e que “é proibida toda a ingerência das autoridades
públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de
comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”
(veja-se, quanto a estes aspectos, o Parecer da PGR n.º 21/2000, publicado no
Diário da República, II Série, de 28 de Agosto de 2000, que se acompanhará por
alguns momentos).
Por força do estatuído neste nº 4, o direito ao sigilo das telecomunicações
implica a proibição de devassa do seu conteúdo e da sua divulgação por quem a
elas tenha acesso, designadamente os empregados dos serviços de telecomunicações
para quem decorre o dever de sigilo profissional. E, correspondentemente,
traduzindo o relevo e protecção na conformação de valores fundamentais, o Código
Penal incriminou condutas violadoras do direito dos cidadãos à comunicação
reservada através dos artigos 192º, nº 1, alínea a), e 194º, que têm o
respectivo âmbito de protecção definido para a intromissão na vida privada
mediante acesso às comunicações telefónicas e a violação da correspondência e
das telecomunicações.
A inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação está, por
seu turno, relacionada com a reserva de intimidade da vida privada a que se
reporta o artigo 26º da Constituição da República. O direito à intimidade da
vida privada, como garantia de resguardo, de reserva, de protecção, supõe a
faculdade de impedir a revelação de factos relativos à vida íntima e familiar,
de requerer a cessação de algum eventual abuso e o ressarcimento dos danos
derivados da divulgação de um facto respeitante à vida privada.
Só no domínio do processo penal é que a lei ordinária pode prever restrições à
referida garantia contida no artigo 34º, nº 4. As necessidades de perseguição
penal e de obtenção de provas justificam a compressão do direito individual à
comunicação reservada, mas carecem de ser avaliadas pelas autoridades
judiciárias em termos de necessidade, adequação e proporcionalidade, de tal modo
que violado que seja o princípio da menor intervenção possível e da
proporcionalidade, há-de a prova assim obtida ser considerada nula (artigos 32º,
n.º 8, da Constituição e 189º do Código de Processo Penal).
É neste plano que se compreendem as limitações que são impostas pelo Código de
Processo Penal no tocante à obtenção de prova através de escutas telefónicas, e
que resultam do disposto nos artigos 187º a 190º (tendo em consideração a
redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, aplicável ao caso).
O primeiro desses preceitos define as condições em que é admissível a
intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas,
especificando que elas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do
juiz, relativamente aos crimes que aí são identificados e apenas “se houver
razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a
descoberta da verdade ou para a prova”.
Por sua vez, o artigo 188.º, com a redacção resultante da Lei n.º 59/98, de 5 de
Agosto, e do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, providencia sobre as
“formalidades das operações”, dispondo o seguinte:
«1 – Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto,
o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente
levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações,
com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados
relevantes para a prova.
2 – O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que
proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação
interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes
para assegurar os meios de prova.
3 – Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes
para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso
contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações
ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado
conhecimento.
4 – Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado,
quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se
necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações,
o disposto no artigo 101.º, n.ºs 2 e 3.
5 – O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem
sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição a que se refere o n.º 3
para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias
dos elementos naquele referidos.»
Como o regime processual claramente pressupõe, a admissibilidade da intercepção
e gravação de conversações e comunicações telefónicas ou transmitidas por outro
meio técnico está conformada pelo princípio da proporcionalidade: não só pela
especial gravidade dos casos em que é admitida (os chamados “crimes de
catálogo”), mas também pela exigência de um juízo da necessidade e do grande
interesse para a descoberta da verdade. De tal modo que, pelos termos da
revelação processual do regime de intromissão nas comunicações e das respectivas
garantias de que está rodeado, poder-se-á dizer que o sigilo das comunicações é
tendencialmente absoluto (neste sentido, o Parecer da PGR n.º
16/94/Complementar, de 2 de Maio de 1996, publicado em Pareceres, vol. VI, pág.
535).
O carácter restritivo da utilização desse meio de prova é também evidenciado
pelo regime procedimental que lhe é aplicável e que expressamente decorre do
transcrito artigo 188º.
Um dos aspectos que tem sido enfatizado e sobre o qual existe uma consistente
jurisprudência constitucional – amplamente analisada no citado acórdão n.º
660/2006 -, é o do imediatismo da intervenção do juiz de instrução em relação à
actividade de recolha da prova por parte dos órgãos de polícia criminal.
Como se refere no acórdão n.º 407/97 aí mencionado, segundo uma interpretação
constitucionalmente conforme do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, a expressão
«imediatamente», no contexto normativo em que se insere, terá de pressupor um
efectivo acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado,
enquanto as operações em que esta se materializa decorrerem, e de forma alguma
poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e
controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa actividade do
juiz não resulte do processo.
Assim, como se conclui nesse aresto, “tendo em vista os interesses acautelados
pela exigência de conhecimento imediato pelo juiz, deve considerar‑se
inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32.º da Constituição, uma
interpretação do n.º 1 do artigo 188.º do CPP que não imponha que o auto de
intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de
imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir
atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos
recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a decidir,
antes da junção ao processo de novo auto de escutas posteriormente efectuadas,
sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas” (a mesma
orientação foi retomada nos acórdãos n.ºs 347/2001, 528/2003, 379/2004 e
223/2005).
É, por outro lado, esta mesma concepção que parece estar presente na norma do
n.º 3 do artigo 188º, que aqui está especialmente em foco.
O auto, juntamente com as fitas magnéticas, é imediatamente levado ao
conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado a intercepção e gravação
das operações, com a indicação das passagens das gravações ou elementos
considerados relevantes para a prova (n.º 1). Ao que se segue a intervenção
jurisdicional que se traduz justamente, como explicita o subsequente n.º 3, na
verificação da relevância para efeitos de prova dos elementos recolhidos, ou de
alguns deles, e na ordem da sua transcrição em auto (para ser junto ao
processo) e ou da sua destruição.
Ou seja, o juiz de intrução averigua imediatamente (no sentido que o Tribunal
Constitucional confere a esta expressão) se a diligência, que foi ordenada ou
autorizada na perspectiva de possuir um “grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova”, tem efectivo relevo probatório, para efeito de, desde
logo, ordenar a transcrição dos elementos coligidos que se mostrem relevantes e
a destruição daqueles outros que não possuam qualquer utilidade para a
finalidade que justificou a utilização do meio de prova.
Só uma tal interpretação permite conferir à intervenção do juiz a função
convalidante (dita de acompanhamento e controlo) dos actos da polícia criminal,
sendo que essa é também a interpretação que melhor preserva a garantia
constitucional da intimidade da vida privada.
Neste enquadramento, não se impõe que o juiz, depois de ter ordenado ou
autorizado certos actos de intercepção e gravação de comunicações na suposição
de eles poderiam ter interesse para a prova, venha a manter os elementos
recolhidos no processo, apesar de não terem qualquer efeito útil e representarem
objectivamente uma violação do princípio constitucional da proibição da devassa
da vida privada.
E, assim, o sentido lógico que é possível atribuir às disposições conjugadas dos
n.ºs 1 e 3, numa interpretação conforme à Constituição (que tenha presente o
carácter excepcional dos meios de obtenção de prova que envolvam a violação de
direitos fundamentais dos cidadãos), é aquele que entrevê o procedimento
judiciário aí previsto, nas suas diversas fases, como finalisticamente dirigido
à obtenção de elementos relevantes para a investigação (e apenas desses), com a
salvaguarda possível da protecção da intimidade da vida privada. Assim se
compreende que a diligência seja ordenada ou autorizada por um juiz, que os seus
resultados lhe sejam imediatamente comunicados e que este desde logo possa
efectuar o controlo da relevância probatória dos elementos recolhidos.
Neste contexto, a faculdade processual que é atribuída ao arguido no n.º 5 do
mesmo artigo 188º, não poderá deixar de ser entendida em sintonia com o que
prevê o n.º 3 desse preceito. O arguido e o assistente, bem como as pessoas
cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição
para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem cópia desses
elementos. Mas naturalmente que o exame apenas incide sobre os elementos
transcritos, isto é, aqueles que, nos termos do n.º 3, foram, considerados úteis
para a investigação e que poderão ser avaliados pelos interessados (incluindo o
arguido) para exercerem os direitos processuais que lhe correspondem.
A consulta não abrange os elementos não transcritos pela linear razão de que
esses elementos, em ordem ao princípio da menor intervenção possível e da
proporcionalidade, deverão ser destruídos, por determinação do juiz, como impõe
o n.º 3 desse artigo, por não terem qualquer interesse para o processo e não
justificarem de per si qualquer reacção defensiva por parte de quem tenha sido
objecto de escuta.
4. Coloca-se então a questão de saber se a interpretação que se mostra ser mais
conforme com o sentido literal e teleológico da norma, nos termos que se deixam
expostos, se poderá encontrar ferida de inconstitucionalidade por violação do
artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Esse preceito, consignando que “o processo criminal assegura todas as garantias
de defesa, incluindo o recurso”, encerra uma claúsula geral englobadora de todas
as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de
decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos do arguido.
Todas as garantias de defesa inclui “todos os direitos e instrumentos
necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a
acusação”, o que implica a possibilidade de utilização de “todos os meios que em
concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre
as provas e as razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é
movida” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, 4ª edição revista, pág. 516; Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 354).
É, por sua vez, a qualidade de arguido que legitima a implementação das
garantias de defesa, assim se justificando que a lei processual penal determine
a obrigatoriedade da constituição do arguido, para além dos casos em que seja
deduzida acusação ou requerida instrução (artigo 57º do CPP), sempre que corra
inquérito contra pessoa determinada e esta for chamada a prestar declarações
perante qualquer autoridade judiciária, for aplicada uma medida de coacção ou de
garantia patrimonial, o suspeito for detido em flagrante delito ou em
consequência de mandados de detenção, ou for levantado auto de notícia que dá
uma pessoa como agente de um crime e este lhe for comunicado (artigo 58º do
CPP), ou se deva proceder ao primeiro interrogatório do arguido, nos termos do
artigo 272º do CPP .
Uma das componentes específicas das garantias de defesa, aliás, também
expressamente reconhecida na Lei Fundamental, é o princípio do contraditório
(artigo 32º, n.º 5).
Este princípio abrange, como esclarecem Gomes Canotilho/Vital Moreira, (a) o
dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa)
em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) o
direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser
afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no
desenvolvimento do processo; (c) em particular, o direito do arguido de intervir
no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos
ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que
impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; (d) a
proibição de ser condenado por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter
podido contraditar os respectivos fundamentos (ob. cit., pág. 523).
É necessário, no entanto, configurar o princípio do contraditório à luz da
estrutura acusatória do processo penal que a Constituição também elege como um
dos princípios estruturantes da constituição processual penal. O princípio da
acusação enquanto caracteristica da estrutura acusatória significa, no
essencial, que uma pessoa apenas pode ser julgada por um crime desde que seja
feita a investigação e deduzida acusação por parte de um órgão diverso daquele a
quem incumbe o julgamento, o que pressupõe uma distinção entre as diversas fases
processuais (instrução, acusação e julgamento) e entre os diversos órgãos
intervenientes (Ministério Público, juiz de instrução e juiz julgador) (idem,
pág. 522).
Como logo se antevê, o sistema acusatório não é incompatível com a existência de
uma fase de investigação pré-acusatória. O que sucede é que a actividades de
investigação devem ser justificadas pela procura da verdade (e por isso as
diligências a realizar poderão destinar-se a corrobar ou infirmar a suspeita de
prática de crime) e estão submetidas a um dever de lealdade, que impede a
utilização de meios de prova não legalmente admissíveis ou com preterição do
formalismo legalmente estabelecido (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., pág.
359).
É justamente essa fase processual que é preenchida pelo inquérito, que a lei
define como o «conjunto de diligências que visam investigar a existência de um
crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e
recolher provas, em ordem à decisão da acusação» (artigo 262º do CPP).
Por outro lado, o inquérito encontra-se subordinado a um princípio do
inquisitório no sentido de que está sujeito ao segredo de justiça e é dominado
por uma forte vertente de unilateralidade (artigos 263º e 267º do CPP). Isso
porque as diligências de investigação a praticar no seu decurso são apenas
aquelas que o Ministério Público considerar necessárias e convenientes para a
descoberta da verdade, enquanto que o direito do arguido de nele intervir,
oferecendo provas e requerendo as diligências que julgue necessárias (como prevê
o artigo 61º, n.º 1, alínea f), do CPP) tem um escasso alcance prático, em razão
do desconhecimento do estádio de investigação e dos elementos de indiciação
entretanto recolhidos (neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de
Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Lisboa, págs. 91 e 100).
Assim se compreende que a estrutura acusatória do processo, tal como está
consagrada na Constituição, tenha sobretudo o significado de efectuar a
parificação do posicionamento jurídico da defesa em relação à acusação,
assegurando a aplicação do princípio da igualdade de armas mediante a
possibilidade conferida ao arguido (e ao seu defensor), não só de participar no
esclarecimento dos factos na fase de instrução, como também de intervir
activamente na preparação e discussão da causa, com liberdade de investigação
extraprocessual.
Neste contexto, como explicitamente decorre do disposto no artigo 32º, n.º 5, da
Constituição, o princípio do contraditório traduz-se na estruturação da
«audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar» em
termos de assegurar um debate entre a acusação e a defesa. Subsiste, no entanto,
aqui uma diferença de grau. O princípio do contraditório na audiência de
julgamento pressupõe que as partes sejam chamadas a deduzir as suas razões de
facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas contra si
oferecidas e a discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras
(Germano Marques da Silva, Princípios Gerais do Processo Penal e Constituição da
República Portuguesa, in “Direito e Justiça”, Vol. III, 1987-1988, pág. 175). Na
fase de instrução, o mesmo princípio representa a possibilidade de o arguido
indicar novas diligências ou novos meios de prova que não tenham sido ainda
considerados e/ou a realização de um debate instrutório que permita a discussão
perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do
inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito
suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento (artigos 287º,
n.º 2, e 298º do CPP). Relativamente a qualquer actividade que se desenrole
ainda na fase do inquérito, o contraditório concretiza-se pela presença do
arguido nos actos que directamente lhe disserem respeito e de ser ouvido sempre
que se deva tomar qualquer decisão que o afecte pessoalmente, e, bem assim, no
direito de não responder a perguntas, de escolher ou solicitar que lhe seja
nomeado um defensor e de ser informado sobre os direitos que lhe assistem
(artigo 61º do CPP) (Cunha Rodrigues, Sobre o Princípio da Igualdade das Armas,
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, Fas. 1, Janeiro-Março de 1991,
pág. 99).
Os actos instrutórios cobertos pelo princípio do contraditório, nos termos
constitucionalmente exigíveis, quando produzidos na fase de inquérito, são, por
conseguinte, aqueles que possam afectar directamente a estatuto jurídico do
arguido, e, especificadamente, o interrogatório de arguido (artigos 141º e 143º
do CPP), a aplicação de medidas de coacção (artigo 194º) e quaisquer diligências
que visem, desde logo, a recolha de declarações para memória futura de modo a
serem consideradas em julgamento (artigo 271º) (sobre estes apectos, em termos
gerais, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., pág. 360).
O quadro de referência do legislador do Código de Processo Penal é também
elucidativo quanto ao âmbito de aplicação do princípio do contraditório na fase
de inquérito. A Lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de
Setembro) define como linha de orientação a «garantia efectiva da liberdade da
actuação do defensor em todos os actos do processo, sem prejuízo do carácter não
contraditório da fase de inquérito», o que permite sustentar a ideia de que o
princípio da igualdade das armas se aplica a todos os actos de processo com as
limitações resultantes da estrutura não-contraditória do inquérito,
reconhecendo-se assim que «nesta fase está ausente uma exigência de
reciprocidade dialéctica» (Cunha Rodrigues, ob. cit., pág. 97).
Como observa o mesmo autor, o Código aplica o princípio da igualdade de armas a
todos os actos do processo, efectuando, no entanto, uma nítida demarcação entre
a fase de inquérito e as fases subsequentes, ao não confundir posição jurídica
com meios jurídicos (armas). «No inquérito, por se tratar de uma fase não
contraditória, a igualdade de armas é colocada ao serviço das garantias de
defesa». O princípio instala-se nessa fase do processo sempre que seja
necessário efectivar a posição jurídica dos intervenientes, nomeadamente quanto
à constituição de arguido (artigos 58° e 59°), à definição da posição processual
e dos direitos e deveres do arguido (artigos 60° e 61°), às regras sobre o
defensor (artigos 62° e seguintes), à proibição de métodos de prova (artigo
126°) e a todos os actos em que, pela natureza dos valores em causa, é mister
introduzir uma função contraditória arbitrada pelo juiz. Pelo contrário, «na
instrução e no julgamento, o princípio adquire uma função estruturante»,
colocando ao dispor dos intervenientes todos os meios e recursos jurídicos
destinados a permitir a defesa das suas posições (ob. cit., pág. 98)
Como é de concluir, a acusação, por si e através dos órgãos de polícia criminal,
tem uma função pré-processual em que a defesa, pela natureza das coisas, não
participa ou não participa em termos de contraditório, o que torna igualmente
incomportável, para as finalidades do processo, o reconhecimento de um pretenso
direito de a defesa investigar autonomamente nessa fase pré-acusatória (idem,
págs. 89-90).
Por isso, também, a faculdade de intervir no inquérito, oferecendo provas e
requerendo as diligências que se afigurem necessárias – que é reconhecida ao
arguido através do artigo 61º, n.º1, alínea f), do CPP - , não tem a função de
contraditar as provas coligidas nessa fase processual (que o arguido desconhece
ou a que não teve acesso), mas corresponde antes a um direito de iniciativa que
visa salvaguardar a sua posição jurídica e que, nesse plano, tem o mesmo valor
de qualquer das demais garantias de defesa que o artigo 61º do CPP consagra.
5. No caso vertente, ao pretender-se demonstrar a inconstitucionalidade da norma
contida no artigo 188º, n.º 3, do CPP na interpretação que lhe foi dada pela
decisão recorrida, pode colocar-se a tónica no facto de as escutas telefónicas
serem efectuadas para os fins que mais interessam à investigação, com tendência
para a desvalorização de conversações que, sendo aparentemente irrelevantes,
poderiam, todavia, servir para justificar certos factos, na perspectiva da
defesa. Seria, assim, a eventual relevância de todo o material que fosse objecto
de gravação que tornava conveniente a não eliminação dos registos sem antes ser
dada oportunidade às partes de tomarem conhecimento dos elementos de prova
recolhidos e exercerem o contraditório.
Como se deixou entrever, não é essa, no entanto, a lógica da actividade de
investigação que se inicia e desenvolve com o inquérito criminal.
Embora o Ministério Público e as autoridades de polícia criminal devam actuar
com imparcialidade, o certo é que o inquérito está sujeito a um princípio de
averiguação pré-acusatória e não existe qualquer obrigatoriedade de assegurar a
contraditoriedade relativamente às diligências que nessa fase processual venham
a ser efectuadas. Essa característica do processo de inquérito determina que ele
possa ser desenvolvido sobre uma estratégia de investigação que venha a
revelar-se falível ou que necessite de ser corrigida em função de novos
elementos. Como refere um autor, compreende-se que “perante os primeiros
indícios, o investigador formule as hipóteses de um ou vários comportamentos
criminosos e procure as provas que os confirmem ou desmintam. A interpretação
das provas recolhidas é feita à luz das hipóteses anteriormente formuladas e a
própria investigação é por elas condicionada. Podem até surgir no decurso da
investigação provas fundamentais para a verdade histórica e que sejam
desprezadas porque o investigador as considera irrelevantes” (Germano Marques da
Silva, ob. cit., pág. 92).
Tratando-se de escutas telefónicas, para referir um meio de obtenção de prova
que está aqui particularmente em causa, a relevância probatória dos registos
recolhidos pode depender dos alvos que tiverem sido seleccionados ou da
oportunidade em que se realizou a intercepção das comunicações. Do mesmo modo
que a investigação pode ter sido dirigida erroneamente para a averiguação de
determinados elementos que não tinham pertinência para o caso.
A questão não é essencialmente diversa quando a autoridade de investigação, ao
levar ao conhecimento do juiz os resultados das operações de intercepção de
comunicações telefónicas, com a indicação das passagens das gravações
relevantes, tal como prevê o n.º 1 do artigo 188º do CPP, acaba por fazer menção
de elementos que não tenham relevo para o caso, desperdiçando porventura outros
que poderiam ter preponderância.
A única consequência, numa tal circunstância, é a completa ineficiência dos
actos de investigação que tenham sido realizados em face dos objectivos de
sustentação de um libelo acusatório, e que poderá vir a culminar, por ausência
de prova bastante da verificação do ilícito criminal, com o arquivamento do
inquérito pelo Ministério Público (artigo 277º), com o despacho de não pronúncia
pelo juiz de instrução (artigo 308º) ou pela absolvição do arguido em sede de
julgamento (artigo 376º).
A questão coloca-se nos mesmos termos nas situações em que o arguido venha a
sustentar uma necessidade concreta de contextualização ou de narrativa para a
qual se tornaria necessário examinar as escutas que foram consideradas
irrelevantes e entretanto destruídas. Como se observou num dos votos de vencido
que acompanha o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06, estaremos, neste
caso, perante um erro do juiz de instrução quanto à extensão da relevância dos
elementos recolhidos através das escutas telefónicas e que poderá conduzir à
insuficiência probatória por falta de adequada contextualização dos suportes não
destruídos, que necessariamente determinará, do mesmo modo, a inaptidão do meio
de prova para o pretendido efeito de indiciação da prática do crime.
Em qualquer caso, é de considerar que não existe uma qualquer violação do
princípio do contraditório, no âmbito do processo de inquérito, pelo facto de o
juiz de instrução, no exercício do poder processual que lhe confere a citada
norma do artigo 188º, n.º 3, do CPP, vir a ordenar a eliminação dos conteúdos
das comunicações interceptadas ou de uma parte deles sem prévia audição do
arguido.
Face à própria natureza essencialmente investigatória do processo de inquérito –
como há pouco se deixou explanado -, o arguido não tem de se pronunciar sobre a
relevância dos registos das escutas telefónicas, como não tem de tomar posição
sobre o modo e o lugar da intercepção ou o circunstancialismo temporal em que
ela deve ocorrer, aspectos que naturalmente relevam de critérios de oportunidade
que só ao Ministério Público, sob pena de frustrarem os objectivos da
investigação, cabe definir. E o arguido não tem de se pronunciar sobre essa
matéria como não tem de o fazer relativamente a qualquer outro resultado
probatório que tenha sido obtido através de um outro meio de prova. As escutas
telefónicas, nesse plano, distinguem-se de qualquer outro método de recolha de
elementos de indiciação da prática de crime apenas pelo seu carácter restritivo,
quer no que concerne ao âmbito de admissibilidade, quer ao respectivo formalismo
procedimental, e que é justificado pela apontada circunstância de representar
objectivamente uma forma de violação da intimidade da vida privada.
Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido – e, especialmente, por
referência ao princípio do contraditório -, as escutas telefónicas, ressalvadas
as limitações que decorrem da lei processual, estão sujeitas ao mesmo regime de
qualquer outro meio de prova legalmente admissível, e terão de ser também
encaradas de acordo com os princípios gerais que regulam o processo de
inquérito.
Em especial, a destruição de elementos recolhidos por irrelevância probatória
não colide com o princípio do contraditório, que, tal como está
constitucionalmente consagrado, apenas se torna aplicável nas fases subsequentes
do processo penal, com excepção apenas de actos instrutórios que, praticados no
âmbito do inquérito, possam pôr em causa directamente direitos do arguido, e
cuja amplitude se circunscreve, como ficou dito, aos actos relativos à aplicação
de medidas de coacção e às inquirições que devam ser feitas no inquérito para
serem tomadas em conta no julgamento.
6. Certo é que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06, que preconiza
uma solução contrária, para além de interpretar a intervenção do juiz de
instrução, quando desacompanhada de prévia audição do arguido, como um mecanismo
susceptível de instituir um desequilibrio entre a posição da acusação e da
defesa (representando assim uma forma de compressão das garantias de defesa do
arguido), apoia a sua posição em diversos dados que resultam quer de iniciativas
legislativas apresentadas na anterior legislatura, quer da jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quer ainda do direito comparado, que
apontam no sentido da conservação das gravações não transcritas até ao trânsito
em julgado da decisão.
Para além de ser esse o sentido da alteração proposta no Projecto de Lei n.º
424/IX, apresentado na anterior legislatura pelo Bloco de Esquerda, tem
particular relevância, na economia do acórdão, a chamada da atenção por parte do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para a necessidade de as legislações
nacionais poderem assegurar «a comunicação intacta e completa das gravações
efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela defesa» e estabelecerem as
circunstâncias em que se pode operar o apagamento ou a destruição das gravações,
designadamente após o arquivamento definitivo do processo ou o trânsito em
julgado da condenação final, indicação que resulta especialmente dos acórdãos
Huvig, de 24 de Abril de 1990 (considerando n.º 34), Kruslin, da mesma data
(considerando n.º 35), Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998
(considerandos n.ºs 46, IV, e 59), e Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003
(considerando n.º 30).
O acórdão n.º 660/06 também valorizou o facto de a nossa legislação, quanto à
possibilidade de destruição imediata dos suportes das escutas com base na
apreciação da sua relevância pelo juiz, se encontrar isolada relativamente ao
regime vigente noutras ordens jurídicas europeias mais próximas, que prevêem
diversos mecanismos de preservação das gravações, ou permitindo que estas sejam
mantidas intactas a fim de as partes as poderem consultar e requerer a
transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes (Bélgica), ou
diferindo a sua destruição para um momento ulterior que não inviabilize a
audição das gravações pela defesa (França, Itália e Espanha).
Resta agora acrescentar que a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na sequência da
Proposta de Lei n.º 140/X, apresentada já na actual legislatura, pretendendo
alterar substancialmente o regime do artigo 188º do CPP, preconiza a preservação
dos suportes técnicos que tenham resultado da intercepção de comunicações,
permitindo, a partir do encerramento do inquérito, que o assistente e o arguido
possam examinar os registos para requerer a abertura da instrução ou apresentar
a contestação, e o tribunal possa proceder à audição das gravações para
determinar a correcção das transcrições já efectuadas ou a junção aos autos de
novas transcrições, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade e à
boa decisão da causa (n.ºs 8 e 10). Cominando, por sua vez, a destruição
imediata dos registos ou relatórios apenas nos casos em que, sendo
manifestamente estranhos ao processo, disserem respeito a conversações em que
não intervenham pessoas directamente interessadas (o suspeito ou arguido, a
pessoa que sirva de intermediário e a vítima do crime), que abranjam matérias
cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado ou cuja
divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias (n.º 6).
Há, portanto, novos elementos que apontam no sentido de uma tendencial
manutenção, para efeitos processuais, dos registos efectuados através de
intercepção e gravação de comunicações.
Importa em todo o caso notar que a verificação da conveniência de preservar os
registos das conversações telefónicas que digam directamente respeito ao
intervenientes, para efeito de assegurar o direito de exame e de contradição
por parte do arguido ou outros interessados e permitir o controlo das
transcrições que tiverem sido efectuadas para uma boa decisão da causa,
constitui uma medida de política legislativa que não implica necessariamente o
reconhecimento da existência de um direito ao contraditório no âmbito do
processo de inquérito.
Na verdade, uma coisa é considerar que há vantagem, em termos processuais, na
conservação dos registos (desde que salvaguardado o carácter sigiloso dos
conteúdos); outra coisa é dizer que a destruição desses registos, na fase do
inquérito, sem prévia audição do arguido, afronta a garantia do princípio do
contraditório.
Nem a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nem o direito
comparado, nem a recente alteração legislativa relativa ao actual artigo 188º do
CPP, apontam no sentido de assegurar ao arguido o direito de contraditório
relativamente às diligências de investigação realizadas no âmbito do inquérito e
que envolvam a intercepção e gravação de comunicações telefónicas. O que se
reconhece é o interesse em manter intactas e completas as gravações para efeito
de ulterior controlo quer pelo tribunal quer pela defesa.
Entretanto, o regime que decorre do artigo 188º, n.º 3, na sua anterior
redacção, assente num critério mais apertado de limitação dos efeitos negativos
que a intercepção de comunicações sempre representa, sendo tributário de uma
concepção legislativa que valoriza a protecção da intimidade da vida privada no
confronto com os possíveis interesses da justiça material do caso concreto, não
impõe, em todo o caso, uma diminuição intolerável dos direitos do arguido.
Já vimos que as garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional, não
vão além, na parte que agora mais interessa considerar, da previsão de um
processo criminal com estrutura acusatória em que apenas a audiência de
julgamento e certos actos instrutórios especialmente previstos na lei é que
estão subordinados ao princípio do contraditório.
O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem,
pois – como já foi amplamente exposto -, um sentido inteiramente diverso, que é
o de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores do processo,
contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele coligidas e tomar
também iniciativas instrutórias e de realização de prova que considerar
pertinentes.
No entanto, como é bem de ver, esse direito de contraditório existe em relação
às provas em que se funda a acusação, as mesmas que serão ponderadas pelo juiz
de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a
julgamento, para efeito a condenação do réu.
É só em relação a essas provas – e não a quaisquer outras que os investigadores
tenham considerado irrelevantes ou tenham abandonado por considerarem (bem ou
mal) imprestáveis para os fins de indiciação da prática de ilícito -, que o
arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados
probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar
esses resultados.
É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação,
que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à
acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E é esse – e
apenas esse – o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no
artigo 32º, n.º 5, da Constituição.
É essa também a essência do processo equitativo ou do due process of law, que
justamente envolve como um dos seus aspectos fundamentais (para além da
independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a
consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as
possibilidades de contrariar a acusação.
Todavia, o arguido não tem o direito nem interesse processual a contraditar as
provas produzidas no inquérito que foram consideradas irrelevantes (e que não
servem de fundamento à acusação), como não tem direito nem interesse processual
em conhecer todos os expedientes ou diligências de que os órgãos de polícia
criminal se serviram, segundo as estratégias de investigação que consideraram em
cada momento adequadas ao caso e que podem, entretanto, ter sido abandonadas.
Acresce que a não audição do arguido relativamente à relevância das provas
recolhidas não obsta a que ele possa pôr em causa, em sede de julgamento, os
correspondentes resultados probatórios. E assim, as deficiências que puderem ser
apontadas à investigação, assim como a insuficiência ou a descontextualização
das passagens das gravações, na medida em que dificultam ou impedem a prova dos
factos que constam da acusação relevam a favor do arguido, que poderá justamente
utilizar a fase de instrução e de audiência de julgamento para fazer valer, em
contraditório, as imprecisões e fragilidades das provas em que se funda a
acusação.
O que tem também plena aplicação quando se pretenda ver (como nos acórdãos n.ºs
450/07 e 451/07) como fundamento da inconstitucionalidade da norma do artigo
188º, n.º 3, o risco que a não preservação integral dos registos possa
representar para a verificação da conformidade do auto de transcrição ou para a
compreensibilidade do discurso fragmentário.
Como se impõe concluir, ainda que possa considerar-se aconselhável de jure
condendo assegurar a integralidade das conversações telefónicas interceptadas,
por razões de política legislativa que considerem prevalecentes as vantagens daí
advenientes para a justiça do caso concreto (como veio a entender-se com a
publicação da Lei n.º 48/2007), tais considerações não justificam um juízo de
inconstitucionalidade relativo à norma do artigo 188º, n.º 3, do CPP (na versão
anterior a essa Lei), que, por tudo o que foi dito, não representa uma violação
das garantias de defesa do arguido.
Ou seja, tendo em conta o sentido jurídico-constitucional do princípio
acusatório e a possibilidade de colisão entre o interesse processual em manter
intactas as provas coligidas através de intercepção e gravação de comunicações e
o correspondente risco de devassa da reserva de intimidade da vida privada, cabe
na liberdade de conformação legislativa adoptar um critério mais ou menos
restritivo no que se refere ao momento em que, no decurso do processo penal,
deverá efectuar-se a destruição dos elementos de prova considerados
irrelevantes.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 188º, n°
3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir
o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não
relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se
sobre o eventual interesse para a sua defesa, e, consequentemente, negar
provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes que interpuseram recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1
do artigo 70º da LTC, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria João Antunes (com declaração)
Carlos Pamplona de Oliveira
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Maria Lúcia Amaral (vencida, pelas razões no essencial expressas na declaração
de voto do Sr. Conselheiro Mário Torres)
Gil Galvão (Vencido, no essencial, pelas razões
constantes do acórdão N.º 450/2007, que subscrevi (sendo certo que o preceito
constitucional aí considerado violado foi o artigo 32.º N.º 1 do CRP)).
Ana Guerra Martins (vencida, no essencial, com
base na fundamentação constante dos acórdãos n.º s 660/06, 450/07 e 451/07
(de que sou relatora).
Mário José de Araújo Torres (Vencido, nos termos
da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão de não julgar inconstitucional a norma do artigo 188º, nº 3, do
Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei nº 48/2007, de 29 de
Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir
o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não
relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se
sobre o eventual interesse para a sua defesa.
Trata-se de norma que “consagra, em termos constitucionalmente admissíveis, a
possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na
reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros” (cf.
declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma no Acórdão nº 660/2006). Com
efeito, “as escutas telefónicas são (…) portadoras de uma danosidade social
polimórfica e pluiridimensional que, em geral, não é possível conter nos
limites, em concreto e à partida, tidos como acertados” (Costa Andrade, Sobre as
proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 283).
A norma em apreciação, quando confrontada com a estrutura processual onde se
insere – estrutura acusatória integrada por um princípio subsidiário de
investigação judicial – não contende com as garantias do processo criminal
constitucionalmente consagradas (artigo 32º). Quer numa consideração estática, a
partir do estatuto processual do arguido e do Ministério Público, quer numa
consideração dinâmica, por referência às diferentes fases do processo e à
interacção entre os diversos participantes processuais.
Uma das dimensões fundamentais do estatuto processual do arguido é o direito de
defesa, entendido este como uma categoria aberta à qual devem ser imputados os
direitos processuais que fazem dele um sujeito processual, titular de direitos
autónomos de conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em
vista da sua decisão final. O direito de defesa supõe, nomeadamente, uma
prossecução processual que faça ressaltar quer as razões da acusação quer as da
defesa, o que equivale à consagração do princípio do contraditório (artigos 32º,
nº 5, da Constituição). No processo penal português o arguido é titular de
direitos autónomos daquele tipo, apesar de a fase de inquérito ocorrer com
exclusão da publicidade (cf., especialmente, alíneas a), b) e f) do nº 1 do
artigo 60º do Código de Processo Penal e artigo 86, nº 1, deste Código, na
versão anterior à agora vigente). Ainda que de forma limitada, o princípio do
contraditório estende-se também à fase de inquérito, afastando-se de uma
concepção marcadamente inquisitória desta fase de investigação, em resultado da
harmonização de finalidades processuais e de direitos conflituantes: as
finalidades de realização da justiça e de descoberta da verdade material, por um
lado, e a protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos, por outro; os
direitos fundamentais do arguido, por um lado, e os direitos fundamentais de
terceiros, por outro.
No processo penal, em consonância com o estatuto que a Constituição lhe atribui
(artigo 219º), o Ministério Público é um órgão de administração da justiça com a
particular função de, nas palavras do artigo 53º, nº 1, do Código de Processo
Penal, 'colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do
direito, obedecendo em todas as intervenções a critérios de estrita
objectividade'. Uma actuação norteada por critérios estritos de legalidade e
objectividade, tornando-se desta forma bem claro que a atitude desta
magistratura no decurso do processo penal não é, propriamente, a de interessada
na acusação, mas sim a de um órgão que acusa ou arquiva depois de ter
investigado à charge et à decharge, o que afasta irremediavelmente a
caracterização do processo penal português como um “processo de partes” e
prejudica o apelo, sem mais, ao princípio da igualdade de armas entre a acusação
e a defesa.
Na fase de inquérito, fase de investigação da notícia do crime, cabe ao
Ministério Público descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a
acusação, constituindo objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes
para a existência ou inexistência do crime e para a punibilidade ou não
punibilidade do arguido (artigos 53º, nº 1, 124º, nº 1, e 262º, nº 1, do Código
de Processo Penal). De acordo com a lei, a ordem judicial de destruição de
elementos irrelevantes para a prova, obtidos através de escutas telefónicas, não
pode abranger elementos relevantes para a prova da inexistência do crime ou para
a não punibilidade do arguido. Não pode abranger elementos relevantes para a
prova que interessa à defesa, cabendo ao juiz assegurar que assim é feito,
exercendo a função de tutela das garantias de defesa do arguido que é própria da
reserva de juiz (artigo 32º, nºs 1 e 4, da Constituição). Por outro lado, o
arguido pode examinar o auto de transcrição para se inteirar da conformidade das
gravações (artigo 188º, nº 3, do Código de Processo Penal) e contraditar os
meios de prova obtidos através da escuta telefónica, fazendo ressaltar as razões
da defesa.
Deduzida acusação, confrontado com os meios de prova que a sustentam,
designadamente os obtidos através de escuta telefónica, ao arguido é dada a
possibilidade de requerer a abertura da instrução para o efeito de ser
comprovada judicialmente a decisão do Ministério Público de submeter a causa a
julgamento (artigos 286º, 287º, nº 2, e 61º, nº 1, especialmente alínea f), do
Código de Processo Penal), enquanto titular de um direito autónomo de
conformação da concreta tramitação do processo como um todo.
Submetida a causa a julgamento, para o efeito de formação da convicção do juiz,
são valoradas apenas as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em
audiência, estando os meios de prova aqui apresentados submetidos ao princípio
do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal
em nome da descoberta da verdade e da boa decisão da causa (artigos 327º, nº 2,
340º, nº 1, e 355º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei no sentido de que o Tribunal Constitucional
julgasse inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição
da República Portuguesa, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo
Penal, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro,
interpretado no sentido de o juiz dever ordenar a destruição imediata das fitas
gravadas e elementos análogos relativos a gravações de conversações telefónicas
feitas durante o inquérito, que não foram consideradas relevantes para a prova,
assim afectando irremediavelmente a possibilidade de o arguido, findo o
inquérito, a elas ter acesso, para eventualmente sugerir a transcrição de novas
passagens, por ele tidas como relevantes para a descoberta da verdade.
As razões essenciais deste juízo de
inconstitucionalidade – que já haviam sido avançadas no Acórdão n.º 4/2006, de
que fui relator – constam do Acórdão n.º 660/2006, da 2.ª Secção, que subscrevi,
e dos Acórdãos n.ºs 450/2007 e 451/2007, ambos da 3.ª Secção.
2. Importará, no entanto, começar por salientar que,
apesar da determinação, feita ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º‑A da Lei do
Tribunal Constitucional, da intervenção do Plenário do Tribunal Constitucional
no julgamento do presente recurso, não deixa o Tribunal de se mover no domínio
da fiscalização concreta da constitucionalidade, pelo que tem de atender ao
critério normativo concretamente aplicado na decisão recorrida, consideradas as
especificidades do caso sub judice, e não à norma contida no preceito legal em
causa, abstractamente considerada.
2.1. Daqui decorre, em primeiro lugar, que não se trata
de apurar da constitucionalidade da norma em causa enquanto determinaria a
imediata destruição dos suportes de gravações de conversações telefónicas em
casos em que as intercepções fossem de considerar legalmente proibidas ou
gravemente ofensivas de direitos, liberdades e garantias de terceiros, mas
tão‑só da constitucionalidade da mesma norma enquanto determina a imediata
destruição desses suportes por não se haver considerado que as gravações em
causa tivessem relevância para a prova, pois foi com este último alcance que a
norma foi aplicada na decisão recorrida.
2.2. Por outro lado, como resulta dos autos e da
fundamentação expressa da decisão instrutória de 5 de Fevereiro de 2007,
confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Setembro de
2007, ora recorrido, no presente caso, o juiz de instrução limitou‑se a ouvir as
gravações que o órgão de polícia criminal sinalizou como contendo elementos
relevantes para a prova.
Na verdade, do teor dos despachos judiciais proferidos
na sequência da apresentação de relatórios do órgão de polícia criminal (cf.
fls. 174‑175, 186‑187, 193‑195, 204‑205, 207‑209, 218‑219, 220‑221, 223‑224 e
225‑226) resulta que apenas foram ouvidas pelo juiz de instrução as sessões
referenciadas nesses relatórios como contendo elementos relevantes para a prova,
sendo a identificação dos suportes que deveriam ser destruídos feita por
exclusão de partes (todas as sessões não referidas na parte do despacho que
determina as transcrições propostas pelo órgão de polícia criminal), sem
qualquer referência a terem tais sessões sido ouvidas pelo juiz de instrução.
Na aludida decisão instrutória de 5 de Fevereiro de
2007, perante a arguição, feita pelos arguidos, da nulidade derivada de o juiz
de instrução “não ter tomado conhecimento de todo o material gravado, seja por
audição, seja por resumo, tendo sempre optado apenas por ouvir as sessões
indicadas pelo OPC, sem ter conhecimento por qualquer meio do teor ou resumos
das consideradas não relevantes pela polícia”, foi decidido desatender tal
arguição, por se considerar não existir “qualquer obrigatoriedade no sentido de
ser a audição, pelo próprio juiz, da integralidade das gravações efectuadas,
designadamente daquelas que o órgão de polícia criminal reputa de não
relevantes, a única forma de este exercitar tal função de acompanhamento” (fls.
16‑17).
Critério este que foi reiterado no acórdão ora
recorrido, onde se lê:
“5 – Colocam ainda os recorrentes a questão de o Sr. juiz de
instrução não ter tomado conhecimento das sessões gravadas na totalidade mas
apenas daquelas que lhe foram indicadas como relevantes pelo OPC. Segundo
afirmam, a lei imporia que a autoridade judiciária efectuasse o controle de
todas as comunicações respeitantes aos postos escutados.
Como já referido o que a lei determina é que o OPC leve ao juiz o
material gravado com a indicação das passagens das gravações ou elementos
análogos considerados relevantes para a prova. E também já se deixou expresso o
entendimento seguido pela jurisprudência relativamente à finalidade da
intervenção do juiz.
De acordo com a interpretação dominante da jurisprudência do
Tribunal da Relação de Lisboa, designadamente do acórdão de 3 de Março de 2005,
citado supra, e ainda dos acórdãos de 12 de Outubro de 2005, no proc. n.º
6814/05, de 8 de Fevereiro de 2006, no proc. n.º 12075/05, ambos da 3.ª Secção,
e de 27 de Fevereiro de 2007, no proc. n.º 610/07, da 5.ª Secção, não é
exigível que a audição do material gravado seja integral.
Como se deixou dito, com pertinência, neste último aresto:
«De facto, razões de eficiência e de racionalização dos meios
disponíveis, permitem compreender que não seja exigível ao JIC a audição
integral das gravações, o que em relação a muitos processos pressuporia a sua
exclusiva disponibilidade para essa questão concreta. (…) as referências, por
transcrição ou por resumo, das passagens das conversações que o órgão de polícia
criminal considera relevantes, são suficientes para que o juiz possa de imediato
determinar a interrupção da intercepção revelada desnecessária, ou formule um
juízo próprio sobre a admissibilidade e a relevância dos elementos a
transcrever. Na verdade, indo essas referências acompanhadas pelas fitas
gravadas ou elementos análogos, tem o juiz todas as possibilidades de reduzir
ou ampliar as passagens consideradas relevantes, nada impedindo que aceite as
indicações recebidas, se com elas concordar. No fundo, a apresentação das
gravações já com indicação de passagens consideradas como relevantes, é uma
forma do juiz beneficiar de coadjuvação, expressamente admitida pelo n.º 4 do
artigo 188.º, que em nada belisca o dever de acompanhamento próximo, temporal e
materialmente, das escutas, pois tem a possibilidade real de ter acesso directo
às gravações, emitindo, assim, um juízo autónomo sobre a relevância dos
elementos recolhidos, mesmo que seja coincidente com as indicações que
acompanhavam as gravações.»”
Daqui resulta, e contrariamente ao que é sugerido por
diversas passagens do precedente acórdão, que não integra o critério normativo
aplicado pelas instâncias e cuja constitucionalidade cumpria apreciar a
existência de um juízo positivo de irrelevância dos elementos cuja destruição
imediata é determinada, juízo esse pessoal e directamente formulado pelo juiz
de instrução. Do que desse critério normativo resulta é que é lícita (e
legalmente imposta) a destruição imediata dos elementos de gravação que o órgão
de polícia criminal não considerou relevantes para a prova, juízo com o qual o
juiz de instrução se conformou, sem ter procedido pessoalmente à audição dessas
gravações. É este, efectivamente, o critério legal que se entende ter sido
querido pelo legislador, com as alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei n.º
320‑C/2000, de 15 de Dezembro, que veio impor que o auto a apresentar ao juiz
passasse a conter “a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos
considerados relevantes para a prova”, em execução do sentido da correspondente
autorização legislativa (artigo 4.º da Lei n.º 27‑A/2000, de 17 de Novembro:
“Permite‑se que o juiz possa limitar a audição das gravações às passagens
indicadas como relevantes para a prova, sem prejuízo de as gravações efectuadas
lhe serem integralmente remetidas”) – cf. n.º 2.7. do Acórdão n.º 426/2005.
2.3. Integrando o critério normativo aplicado na decisão
recorrida, e que constitui o objecto do presente recurso de
constitucionalidade, estes dois elementos – (i) fundar‑se a determinação da
destruição imediata dos elementos de gravação na irrelevância das intercepções
para a prova (e não no carácter proibido das escutas ou na grave lesão de
direitos fundamentais de terceiros), e (ii) não existir um juízo positivo de
irrelevância formulado pessoalmente pelo juiz de instrução após audição
integral das gravações, mas uma mera aceitação do juízo negativo de relevância
formulado pelo órgão de polícia criminal –, surge como desadequada a
argumentação desenvolvida no precedente acórdão fundada em considerações
atinentes, por um lado, aos objectivos de pôr cobro rapidamente a intromissões
abusivas na intimidade da vida privada ou à continuação de escutas proibidas, e,
por outro lado, ao dever de acatamento de um pretenso juízo próprio emitido por
um juiz sobre a irrelevância de gravações fundado no prévio conhecimento
pessoal das mesmas, que, como se viu, não existiu neste processo, nem é
legalmente exigido.
Por outro lado, ainda quanto a este último aspecto, o
precedente acórdão incorre, salvo o devido respeito, em manifesta petição de
princípio, quando, no último parágrafo do n.º 3 da parte II – Fundamentação,
refere que “a consulta [pelo arguido] não abrange os elementos não transcritos
pela linear razão de que esses elementos, em ordem ao princípio da menor
intervenção possível e da proporcionalidade, deverão ser destruídos, por
determinação do juiz, como impõe o n.º 3 deste artigo, por não terem qualquer
interesse para o processo e não justificarem de per si qualquer reacção
defensiva por parte de quem tenha sido objecto de escuta”. Isto é: o acórdão dá
como assente (que os elementos são irrelevantes) justamente aquilo que o arguido
pretende discutir (a relevância dos elementos), discussão essa que lhe é
definitivamente recusada com a imediata (e irrecuperável) destruição desses
elementos.
3. O precedente acórdão parte de uma leitura
“menorizadora” da posição do arguido na fase do inquérito (n.ºs 4 e 5 da
“Fundamentação”), cuja correcção, em termos da estrutura do actual processo
penal, não interessará discutir aqui, pois nunca nos acórdãos que concluíram
pela inconstitucionalidade da norma ora em causa se sustentou a admissibilidade
do imediato acesso do arguido à integralidade das gravações ainda na fase do
inquérito. O que sempre se sustentou foi que, nas fases posteriores em que o
arguido tem acesso aos autos, era constitucionalmente imposto que tivesse acesso
aos elementos das gravações que foram tidas como não relevantes, para lhe
possibilitar, nessas fases (instrução e julgamento), identificar eventuais
gravações cuja transcrição reputasse relevante para a descoberta da verdade, e
isto não só para permitir contextualizar (e atribuir diferente sentido)
conversações anteriormente transcritas, como também para sugerir a transcrição
de diferentes passagens para prova de novos factos, por ele tidos por relevantes
para a definição da sua responsabilidade.
E também sempre se reconheceu que era necessária a
intervenção do juiz para a aquisição processual dos elementos derivados das
novas transcrições sugeridas ou propostas pelo arguido. Isto é: não basta a
indicação pelo arguido de que pretende a transcrição de determinadas gravações
para que de imediato se proceda a essa transcrição. Também aqui – como
relativamente às transcrições propostas pelo órgão de polícia criminal – se
impõe a interposição do crivo do critério do juiz, em ordem a aferir da efectiva
relevância desses elementos para a descoberta da verdade e da não lesão de
direitos fundamentais de terceiros.
4. Feitas estas precisões, continuo a considerar
inteiramente convincente a argumentação desenvolvida no Acórdão n.º 660/2006 no
sentido da inconstitucionalidade da norma, e que se recorda:
“11 – Adiantando a resposta à questão de constitucionalidade em
causa no presente recurso, entende‑se resultar destes arestos (cf., sobre eles,
José Manuel Damião da Cunha, «A mais recente jurisprudência constitucional em
matéria de escutas telefónicas – mero aprofundamento de jurisprudência? Anotação
aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 426/2005 e 4/2006», in
Jurisprudência Constitucional, n.º 8, 2005, pp. 46‑55) que a dimensão normativa
em causa nos presentes autos não pode deixar de ser considerada
inconstitucional. É logo o que decorre da afirmação, contida no Acórdão n.º
426/2005 para justificar a possibilidade de a selecção das passagens a
transcrever ser determinada pelo juiz de instrução com base, não em prévia
audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução
que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária, de que se
trata apenas de uma «primeira selecção, dotada de provisoriedade, podendo vir a
ser reduzida ou ampliada», pois deve «ser facultado à defesa (e também à
acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as
inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem
relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou
contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas». Mas é também
o que se disse – embora sem tomar posição definitiva, pois era outra a questão
que havia então que decidir – no citado Acórdão n.º 4/2006, com apoio em
abundante fundamentação na qual já se notou, designadamente: que se exige, de
acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a lei
que prevê a possibilidade de realização de escutas telefónicas deve definir «as
precauções a tomar para comunicar, intactos e completos, os registos
realizados, para o controlo do juiz e da defesa», possibilitando às pessoas
colocadas sob escuta o direito de acesso às gravações e respectivas
transcrições, e «as circunstâncias nas quais pode e deve proceder‑se ao
apagamento ou destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após uma absolvição
ou o arquivamento do processo»; e que o nosso sistema, na medida em que permite
a destruição dos registos das comunicações sem conhecimento da defesa, mas
apenas do Ministério Público, e segundo a apreciação da sua relevância pelo
juiz, se encontra isolado no contexto das ordens jurídicas mais próximas.
Vejamos estes dois pontos mais em pormenor.
12 – A afirmação de que as legislações nacionais devem tomar
precauções para assegurar «a comunicação intacta e completa das gravações
efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela defesa» e estabelecerem as
circunstâncias em que se pode operar o apagamento ou a destruição das
gravações, designadamente após o arquivamento definitivo do processo ou o
trânsito em julgado da condenação final, encontra‑se em várias decisões do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Assim, esse Tribunal disse nos n.ºs 34 e 35 dos Acórdãos Huvig e
Kruslin, de 24 de Abril de 1990, sobre legislação francesa em matéria de
escutas, que «o sistema não oferece de momento as garantias adequadas contra
diversos abusos a recear. Por exemplo, nada define as categorias de pessoas
susceptíveis de serem colocadas sob escuta judiciária, nem a natureza das
infracções que podem dar lugar a elas; nada vincula o juiz a fixar um limite à
duração da execução da medida; e também nada precisa as condições de realização
de procedimentos verbais de síntese consignando as conversações interceptadas,
nem as precauções a tomar para comunicar intactas e completas as gravações
realizadas, com o fim de controlo eventual pelo juiz – que não pode de todo
deslocar‑se ao local para verificar o número e a duração das fitas magnéticas
originais – e pela defesa, nem as circunstâncias em que pode ou deve
realizar‑se o apagamento ou a destruição das ditas fitas», designadamente após
absolvição ou trânsito em julgado.» (itálico aditado).
Tais «garantias mínimas, necessárias para evitar abusos, que devem
figurar na lei», mencionadas no Acórdãos Kruslin e Huvig e que incluem as
«precauções a tomar para comunicar, intactas e completas, as gravações
realizadas, com o fim de controlo eventual pelo juiz e pela defesa», foram
recordadas também no Acórdão Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998 (n.ºs
46, IV, e 59) e no Acórdão Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003. Neste
último pode ler‑se, a propósito de legislação espanhola sobre escutas
telefónicas, que o Tribunal entende «que a garantias introduzidas pela lei de
1988 não respondem a todas as condições exigidas pela jurisprudência do
Tribunal, nomeadamente nos acórdãos Kruslin c. França e Huvig c. França, para
evitar os abusos. É o caso da natureza das infracções que podem dar lugar às
escutas, da fixação de um limite para a duração da execução da medida e das
condições de realização dos procedimentos verbais de síntese consignando as
conversações interceptadas, tarefa que é deixada à competência exclusiva do
funcionário do tribunal. Estas insuficiências dizem igualmente respeito às
precauções a tomar para comunicar intactas e completas as gravações realizadas,
com o fim de um controlo eventual pelo juiz e pela defesa. A lei não contém
qualquer disposição a este respeito.» (itálico aditado).
Resulta desta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, referida já nos Acórdãos n.ºs 528/2003, 426/2005 e 4/2006, que a
privação da possibilidade, pela imediata destruição da gravação que o juiz
entende irrelevante (aliás, segundo o referido Acórdão n.º 426/2005,
possivelmente sem a ouvir, e apenas com base em transcrições), de a defesa
requerer a transcrição de passagens não seleccionadas pelo juiz, e que não foram
objecto de uma comunicação intacta e completa para controlo pela defesa,
corresponde a uma diminuição das garantias da defesa – o que também já se
consignou nos referidos Acórdãos n.º 426/2005 e 4/2006. Também por isso (como
se nota neste último aresto) se disse no citado Acórdão n.º 426/2005 que «deve
ser facultado à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a
transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz,
quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer por se
revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens
anteriormente seleccionadas».
13 – Quanto à comparação da solução que está em apreciação –
repete‑se: a da destruição imediata dos suportes das escutas com base na
apreciação da sua relevância pelo juiz, sem que o arguido se possa pronunciar
sobre ela – com o regime vigente em outras ordens jurídicas europeias mais
próximas da nossa, pode igualmente remeter‑se para o Acórdão n.º 4/2006 (n.º
2.8), para se verificar que aquela solução se encontra isolada (v. também, para
o que se segue, Mireille Delmas-Marty e Mário Chiavario, Procedure penali
d’Europa, 2.ª ed., CEDAM, Padova, 2001).
Assim, recorde‑se que, como se disse no Acórdão n.º 4/2006, na
Bélgica, as gravações são mantidas intactas a fim de as partes as poderem
consultar e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por
irrelevantes; em França, as gravações só são destruídas no termo do prazo de
prescrição do procedimento criminal; em Itália, só após audição das gravações
(cuja guarda compete ao Ministério Público) pela defesa e pronúncia dos diversos
intervenientes é que o juiz manda suprimir os registos cuja utilização é
legalmente vedada e admite os que não são manifestamente irrelevantes (artigo
268.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), sendo os registos conservados até ao
trânsito em julgado da sentença final, a menos que, a requerimento dos
interessados, com fundamento em tutela da privacidade, o juiz autorize a
destruição antecipada (artigo 269.º, n.º 2, do mesmo Código); em Espanha,
atenta a exiguidade da regulamentação legal, a jurisprudência do Tribunal
Constitucional e do Tribunal Supremo têm insistido na necessidade de serem os
originais das fitas de gravação ou elementos análogos a serem remetidos ao
tribunal, ficando à guarda do secretário judicial, que facultará o seu acesso às
partes (e ao Ministério Público) e dirigirá a tarefa de transcrição das partes
tidas por relevantes.
Também na Alemanha os limites da possibilidade da destruição são
discutidos, apesar de o § 100b, n.º 6, da Strafprozessordnung mandar destruir
imediatamente, sob fiscalização do Ministério Público, os elementos
[Unterlagen] que já não sejam necessários para a perseguição penal (v. Gerhard
Schäfer, em Löwe/Rosenberg, Die Strafprozessordnung und das
Gerichtsverfassungsgesetz – Grosskommentar, 25.ª ed., Berlin, W. de Gruyter,
2003, anot. 38 ao §100b e anots. 103 e seg. ao § 100c, dizendo que só pode
destruir‑se o material de prova seguramente já desnecessário, porque o seu
conteúdo está entretanto confirmado por outros meios de prova, pelo que se o
material for ainda possivelmente utilizado como meio de prova na audiência de
julgamento nunca é de considerar uma destruição, antes deve ser guardado
juntamente com os meios de prova). O Tribunal Constitucional Federal alemão já
declarou, mesmo (na decisão de 3 de Março de 2004, in Entscheidungen des
Bundesverfassungsgerichts, vol. 109, pp. 279 e ss.), a inconstitucionalidade
desse § 100b, n.º 6, embora apenas em conjugação com a remissão que para ele
fazia o § 100d, n.º 4, frase 3, que o mandava aplicar à destruição dos registos
de vigilância acústica em espaços habitacionais (o chamado «grosser
Lauschangriff»), por violação da garantia do acesso à via judiciária, que a
destruição dificultava ou tornava mesmo impossível. Salientou‑se, nessa
decisão, que «pode surgir uma situação específica de conflito por, de uma
parte, corresponder à protecção de dados o apagamento de dados já não
necessários, e, por outra, com o apagamento se dificultar, quando não mesmo
impossibilitar, uma protecção jurídica efectiva, porque um controlo dos actos
só é em limitada medida possível depois do apagamento dos elementos» (v. também,
já antes, a decisão de 14 de Julho de 1999, in Entscheidungen…, cit., vol. 100,
pp. 313 e ss., 400, onde se considerou condição do respeito pela garantia do
acesso à via judiciária o facto de os registos serem conservados até seis meses
depois da notificação dos actos ao atingido). Na sequência da citada decisão de
2004, foi aprovada uma «Lei de Aplicação da Decisão do Tribunal Constitucional
Federal de 3 de Março de 2004», que alterou o referido §100d, passando a
prever que os dados são destruídos se não forem necessários «para a prossecução
da acção penal e para uma eventual comprovação judicial», e que, na medida em
que a destruição seja adiada por esta última razão, «os dados devem ser
encerrados e só podem ser utilizados para esse fim».
Aliás, também entre nós têm sido propostas várias soluções no
sentido de evitar que os registos das conversações possam ser logo destruídos,
antes sendo assegurada a possibilidade de controlo (incluindo a
«contextualização» e a descoberta de novos elementos) também pela defesa (cf. as
propostas legislativas referidas no n.º 2.6 do citado Acórdão n.º 4/2006). E
refira-se, aliás, como mera nota marginal, que é também diferente da que está em
apreciação a solução prevista no anteprojecto de revisão do Código de Processo
Penal que foi tornado público pelo Ministério da Justiça já em 2006. Segundo o
seu artigo 188.º, n.º 6, a destruição imediata apenas é determinada pelo juiz em
relação a «suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo»
e que: disserem respeito a conversações em que não intervenham o suspeito ou
arguido, pessoa «relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe
ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido ou
vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido»;
abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de
Estado; ou cuja «divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e
garantias». Fora desses casos, prevê‑se que, a partir do encerramento do
inquérito, o assistente e o arguido possam «examinar os suportes técnicos das
conversações ou comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que
pretendam transcrever para juntar ao processo», sendo os suportes técnicos
referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para
servirem como meio de prova «guardados em envelope lacrado, à ordem do
tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao
processo» (artigo 188.º, n.ºs 8 e 12, do citado anteprojecto).
14 – Poderia – é certo – defender‑se que estas soluções legislativas
se enquadram dentro da liberdade de conformação do legislador, sendo possíveis
várias soluções no plano infra‑constitucional. Dir‑se‑ia, neste sentido, que
bastaria o controlo da relevância dos elementos de prova pelo juiz de
instrução, procedendo ao controlo da legalidade, da necessidade e da relevância
desses elementos.
Estes argumentos não podem, porém, considerar‑se procedentes.
Na verdade, a destruição (permitida pela norma em apreço) de
elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o
arguido poderia pretender utilizar em seu benefício e que apenas foram
conhecidos pelo órgão de polícia criminal e pelo Ministério Público, com base na
apreciação da sua relevância, e na consequente ordem de destruição, apenas pelo
juiz de instrução, sem conhecimento pelo arguido, constitui logo, só por si,
uma compressão inaceitável, e desnecessária, das garantias de defesa do
arguido, particularmente notória na comparação da sua posição com a da
acusação. Com efeito, o arguido, que já sofreu uma intervenção restritiva –
determinada e justificada apenas por razões de necessidade – nos seus direitos
fundamentais ao ser objecto de escutas telefónicas, vê destruídos os registos
dessas comunicações, de cujo conteúdo não chega a tomar conhecimento, e não pode
sequer pronunciar‑se sobre a sua relevância, enquanto a acusação (rectius, o
órgão de polícia criminal e o Ministério Público) teve acesso ao conteúdo
integral e completo das comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar
as partes que considera relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma
intervenção substancial anterior à apreciação do juiz e à sua decisão sobre a
relevância, que pode influenciar.
Contra isto não basta argumentar, nem com o facto de a destruição
dos registos inúteis visar ela própria a protecção de direitos fundamentais de
terceiros ou do próprio arguido, nem com as garantias resultantes da
intervenção do juiz de instrução, como «juiz das garantias» do arguido, ou com
uma alegada possibilidade de contraditar a prova no momento do julgamento.
Quanto a esta última possibilidade, ela torna‑se evidentemente
ilusória, quanto ao que pudesse depender das conversações cujo conteúdo o
arguido não conheceu, a partir do momento da destruição dos respectivos
registos. Aliás, repete‑se que não está apenas em causa a utilização das
comunicações para enquadrar os elementos transcritos, mas igualmente com relevo
autónomo.
Quanto ao primeiro ponto, recorda‑se que está apenas em causa, na
dimensão normativa em apreço, a ordem de destruição dos registos com base
exclusivamente na apreciação da relevância das conversações para a prova, por
parte do juiz, e não na ilegalidade das escutas ou na protecção dos direitos de
terceiros ou do arguido (aliás, quanto a este último, sempre poderia duvidar‑se
da indisponibilidade de uma tal «protecção contra si próprio»). A invocação da
protecção de terceiros – aliás, não concretizada no caso em apreço – contra
intromissão na vida privada apenas poderia, pois, situar‑se no plano abstracto,
da presunção de que todas e quaisquer escutas podem (criam o risco de) pôr em
causa esses direitos de terceiros. Sem deixar de sublinhar a importância das
garantias contra a indevida circulação do conteúdo das conversações
interceptadas, ou, até, do estabelecimento de mecanismos que tutelem o risco da
violação de direitos fundamentais como o segredo das comunicações, a alegação
de um tal risco não pode, porém, sobrepor‑se aos concretos direitos do arguido,
de organizar a sua defesa controlando o conteúdo das conversações e
utilizando‑as em sua defesa, seja enquadrando as transcrições existentes, seja
com relevância autónoma.
15 – No que toca à intervenção do juiz, para apreciar a relevância
das comunicações interceptadas «em lugar» da apreciação que o arguido poderia
pretender efectuar, é certo que ela representa uma garantia suplementar em
relação a um sistema que deixasse a apreciação da relevância e a selecção
exclusivamente na dependência da acusação (cf., aliás, concedendo especial
importância ao parâmetro da «reserva do juiz», e ao artigo 32.º, n.º 4, da
Constituição no regime das escutas telefónicas, J. M. Damião da Cunha, «A mais
recente jurisprudência…», cit., pp. 51 e ss.).
Todavia, tal garantia não pode considerar‑se suficiente sob dois
pontos de vista: por um lado, e como se referiu, enquanto o órgão de polícia
criminal e o Ministério Público podem influenciar a decisão do juiz sobre a
relevância, devendo mesmo indicar as passagens das comunicações que consideram
relevantes antes de aquele tomar uma decisão (que, recorda‑se, pode, sem
inconstitucionalidade, ser tomada sem audição da integralidade das
conversações, e apenas com base em partes transcritas que lhe são facultadas,
como se decidiu no Acórdão n.º 426/2005), o arguido não chega sequer a ter
conhecimento do conteúdo das comunicações antes da sua destruição, muito menos
podendo fazer valer, ou fundamentar, a sua apreciação sobre a sua relevância,
ficando, por isso, colocado numa posição de inferioridade, ou desigualdade, que
objectivamente põe em causa as suas garantias de defesa; por outro lado, sendo
ao arguido que compete organizar a sua defesa, contraditando os elementos
invocados pela acusação e utilizando‑os para se defender, tem de lhe ser
deixada a possibilidade de ser ele a ajuizar, com base no conteúdo das
conversações em causa, sobre a sua relevância, para, pelo menos, a poder
justificar (por exemplo, porque entende que dela resulta um atenuação da sua
culpa, ou até uma causa de justificação), sem que esse juízo possa ser
antecipadamente inviabilizado pela destruição dos suportes magnéticos com base
numa apreciação alheia (ainda que do juiz de instrução). Aliás, não está apenas
em causa a possibilidade de conhecimento pelo arguido do conteúdo das
comunicações, para efectuar e fundamentar a sua apreciação sobre a sua
relevância, mas também a própria possibilidade de um controlo judicial da
decisão de destruir os registos das conversações, ou, mesmo, da própria
realização das escutas (em relação ao material destruído).
Sob este aspecto, a consideração de que a norma em causa apenas faz
sentido no pressuposto de uma total irrelevância dos registos, com
possibilidade (ou mesmo dever) de o juiz realizar esta avaliação, falha o alvo,
justamente porque o que está em causa é esta possibilidade de avaliação e a
intervenção nela do arguido – ou seja, saber se o arguido também há‑de poder,
pelo menos, influenciar com devido conhecimento a apreciação da relevância das
conversações.
Não pode, aliás, excluir‑se em absoluto que a apreciação pelo juiz
de instrução, na sequência dos elementos que lhe são facultados pelo órgão de
polícia criminal, e ainda que apenas de uma irrelevância clara, ou manifesta,
dos elementos em questão, possa não estar objectivamente correcta, podendo vir a
ser posta em causa pelo desenrolar futuro do processo ou por outros
acontecimentos (sendo que a destruição dos registos inviabiliza, porém, a
comprovação). E, de todo o modo, pelo menos quando não estejam em causa
situações de ilegalidade das escutas ou de outras qualificadas afectações de
direitos fundamentais justificadas em concreto, é ao arguido que tem de competir
a possibilidade de controlar essa correcção e de fundamentar a sua própria
apreciação sobre a relevância dos elementos em causa, o que só pode ser
conseguido, como tem salientado o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,
mediante precauções no sentido da comunicação integral e completa das
conversações interceptadas ao arguido, as quais são radicalmente postergadas
pela imediata destruição dos registos.
16 – Em suma, conclui‑se que é inconstitucional, por violação das
garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, e em particular da garantia de um processo leal e do princípio do
contraditório, a interpretação do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo
Penal que permite que sejam destruídos elementos de prova obtidos mediante
intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal conheceu, com
base na apreciação da sua relevância efectuada e na consequente ordem dada pelo
juiz de instrução, e de cujo conteúdo o arguido não chega a tomar conhecimento,
sem poder, pois, pronunciar‑se sobre a sua relevância.
Há, assim, que conceder provimento ao presente recurso,
determinando‑se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente
juízo de inconstitucionalidade. Sublinhar‑se‑á apenas, como nota final, que as
consequências a retirar do presente juízo de inconstitucionalidade para os
elementos de prova constantes dos autos, incluindo as comunicações interceptadas
aí transcritas, se encontram já fora do âmbito da intervenção do Tribunal
Constitucional, situando‑se claramente no domínio de intervenção do Tribunal
recorrido.”
5. A argumentação desenvolvida no parcialmente
transcrito Acórdão n.º 660/2006 foi posteriormente enriquecida nos já citados
Acórdãos n.ºs 450/2007 e 451/2007.
No Acórdão n.º 450/2007, após sumariar‑se a
fundamentação do Acórdão n.º 660/2006, acrescentou‑se (considerações que foram
retomadas no Acórdão n.º 451/2007):
“10.2. Todos estes argumentos mantêm, no presente caso, inteira
validade.
Não se vê por isso como contrariar a conclusão obtida pelo Tribunal
no Acórdão n.º 660/2006, segundo a qual a ordem de destruição, pelo juiz de
instrução, de parte das gravações efectuadas no decurso da intercepção das
telecomunicações, dada sem que o arguido tenha tido possibilidade de acesso à
integralidade das mesmas, ‘comprime’ de forma ‘desnecessária e inaceitável’ as
garantias de defesa do arguido, consagradas em geral no artigo 32.º, n.º 1, da
CRP.
Com efeito, para além das razões apresentadas pelo Tribunal naquele
mesmo Acórdão, outras há, que decorrem do que ficou dito na resposta dada à
primeira questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca [relativa
à assinatura e certificação dos autos de transcrição de escutas telefónicas].
Antes do mais, do que ficou dito quanto ao direito consagrado no n.º
5 do artigo 188.º do CPP.
Afirmou-se acima (ponto 9.2.) que a possibilidade de exercício de um
tal direito – que, recorde‑se, confere ao arguido o poder de examinar o auto de
transcrição (a que se refere o n.º 3 do artigo 188.º) para se inteirar da
conformidade das transcrições – prevenia que a não assinatura, por parte do
juiz de instrução, daquele auto (ou a não certificação, pelo mesmo juiz, da
conformidade entre o que havia sido transcrito e o que havia sido gravado) se
traduzisse, por si só, numa «intervenção restritiva», constitucionalmente
inaceitável, dos direitos de defesa do arguido. No entanto, para que tal suceda,
necessário é que o arguido possa ter acesso à integralidade das gravações que
foram efectuadas, para que – como já disse o Tribunal no Acórdão n.º 426/2005
(DR, II série, n.º 232, p. 17 006) – «seja facultada à defesa (e também à
acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as
inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem
relevância própria quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar
o sentido das passagens anteriormente seleccionadas». Foi aliás este dito
(citado pelo Acórdão n.º 660/2006) que justificou a decisão tomada (e a nosso
ver bem) pelo Tribunal no já referido Acórdão n.º 426/2005. Para que esta
‘arquitectura’ jurisprudencial mantenha coerência, necessário é que se entenda
que o exercício do direito que é conferido ao arguido no n.º 5 do artigo 188.º
do Código de Processo Penal pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à
integralidade das gravações efectuadas no decurso das intercepções telefónicas.
Mas, para além disso, uma outra razão há para que se entenda que tal
acesso é constitucionalmente imposto, não dependendo da livre disposição do
legislador ordinário facultá‑lo, ou não, à defesa.
Disse‑se atrás que o regime fixado nos artigos 187.º e 188.º do CPP
decorria de uma autorização constitucional expressa – conferida ao legislador –
para restringir, «em matéria de processo criminal», o direito ‘inviolável’ do
sigilo dos meios de comunicação privada (artigo 34.º, n.º 4 e n.º 1). Disse‑se
também que o bem jurídico protegido por tal direito era refracção de outros bens
jurídicos, nomeadamente dos protegidos pelo «direito à palavra» e pelo direito à
«reserva de intimidade da vida privada» (artigo 26.º da CRP). A este último
direito – e ao bem que ele protege – se voltará adiante. Por agora,
atenhamo‑nos apenas às implicações que decorrem da garantia constitucional de
um «direito à palavra».
O direito à palavra a que se refere o artigo 26.º da CRP – próximo
do direito à imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente
distinto do direito à liberdade de expressão (artigo 37.º) – pressupõe a
existência de uma «liberdade de disposição na área da comunicação não pública»,
em que o que é dito – justamente por ser dito fora do espaço público, ou seja,
não com o intuito de ser escutado – faz parte da «acção comunicativa»
espontânea, «inocente e autêntica» (veja-se Manuel da Costa Andrade, Sobre as
proibições de prova em Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A
esta esfera da comunicação humana pertencem os discursos fragmentários, a
«expressão não reflectida nem contida», ou a «formulação apenas compreensível
no contexto de uma situação especial» (Tribunal Constitucional Federal Alemão,
apud Manuel Costa Andrade, ob. e loc. cit.). Quem «escuta» um discurso assim,
feito para não ser escutado, infere sentidos. A decisão unilateral e externa
(isto é, tomada sem o conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e
ao modo da descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido
iniciais se venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de
redução da compreensibilidade do que foi dito.
Um «processo devido em direito» – ou, como diz a Constituição no n.º
1 do artigo 32.º, um processo que «assegura todas as garantias de defesa» –, não
pode ignorar que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe‑se
porque tal já foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável
que a acusação, que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações,
sugira ao juiz quais as ‘partes’ das gravações a transcrever, por serem essas as
partes consideradas relevantes para a prova (artigo 188.º, n.º 1, in fine, do
CPP), e que a sugestão seja acolhida «não com base em prévia audição das mesmas
[por parte do JIC] mas por leitura de textos contendo a sua reprodução …
acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogas» (Fórmula decisória do
Acórdão nº 426/2005). Sabendo‑se tudo isto, difícil é não concluir que, no
âmbito de ‘todas as garantias de defesa’ a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º
da CRP, se conta também a possibilidade de acesso do arguido à integralidade das
gravações efectuadas no decurso de operações de «escutas telefónicas», antes que
seja dada a ordem da sua destruição parcial.
Sustentar‑se‑á em contrário que uma tal leitura das coisas
desconhece que, nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, o princípio
do contraditório vale apenas para as fases de audiência de julgamento e para os
«actos instrutórios que a lei determinar», pelo que argumentar como se
argumentou implicaria uma visão radicalmente acusatória de todo o processo
penal, em que o princípio do contraditório dominaria, também, todo o inquérito –
visão essa que, como se sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note‑se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para
a fase do inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração
da prova – princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à
fase de audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata‑se
apenas de garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve
cumprir, ou seja, «de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas
também as da defesa» (assim mesmo, Jorge de Figueiredo Dias, Direito
Processual Penal, 1.ª ed., 1974, reimp., 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p.
150), de tal forma que o arguido tenha uma posição processual equiparada quanto
possível à do acusador (ibidem, p.149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar
um processo penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura
radicalmente acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao
princípio contido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, pois que, «[e]m todas
as garantias de defesa engloba‑se indubitavelmente todos os direitos e
instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a
acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre acusação
(normalmente apoiada pelo poder institucional do Estado) e a defesa, só a
compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa
desigualdade de armas.» (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., 2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516).
10.3. Decorre dos presentes autos que a ordem dada, in casu, pelo
juiz de instrução – de destruição ‘definitiva’ e ‘irremediável’ de parte das
gravações efectuadas – o foi por razões apenas atinentes ao juízo, que ele
próprio fizera, de valoração das «escutas» como meios de prova. É aliás assim,
ou a partir deste pressuposto, que é colocada ao Tribunal a questão de
constitucionalidade (fls. 4612 dos autos).
Deve no entanto considerar‑se que a ordem de destruição parcial das
escutas pode ainda ser justificada por outra razão, atinente à protecção da
reserva da intimidade da vida privada do próprio arguido e de terceiros.
Colocar‑se‑á então o problema de saber se, nesses casos, não será (precisamente
ao contrário do que até agora se tem vindo a defender) constitucionalmente
devida a ordem do JIC de destruição de parte das gravações efectuadas, por
corresponder ela «à possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão
injustificada na reserva de intimidade da vida privada do arguido ou de
terceiros (artigo 26.º, n.º 2, da Constituição).» (DR, II série, n.º 7,
10/1/2007, p. 757. Itálico aditado)
Não existem dúvidas quanto à inevitabilidade da colocação do
problema.
Por serem expressão da «liberdade de disposição da comunicação não
pública», inscrita no exercício do «direito à palavra», as comunicações
privadas que são interceptadas pelas «escutas» não contêm só discursos
potencialmente fragmentários, cujo sentido só pode ser, para quem «escuta»,
apenas inferido. Faz parte também da especial estrutura comunicativa deste tipo
de discurso, com as suas fronteiras fluidas, que ele raramente se restrinja à
esfera pessoal daqueles que nele participam. Enquanto devassa da privacidade –
na sua esfera mais íntima – as «escutas» são por isso, frequentemente, manchas
que alastram: muitas vezes e por seu intermédio, «a revelação do segredo só se
torna possível com a revelação de segredos de terceiros.» (Manuel da Costa
Andrade, ob. cit. p. 50).
Deve por isso ter‑se em conta que o problema que nos ocupa – ou
seja, a questão de saber se será constitucionalmente admissível que o Juiz de
Instrução ordene a destruição de parte do material gravado, sem que dessa parte
tenha conhecimento o arguido – poderá em certos casos (que não seguramente o
agora em juízo) ser equacionado como um problema de colisão de direitos: o
direito do arguido a um processo equitativo, com todas as garantias de defesa, e
que inclui, como já vimos, a faculdade de acesso à integralidade das gravações
efectuadas, pode conflituar, no modo concreto do seu exercício, com direito ou
direitos de outrem, afectando os bens jurídicos por estes últimos protegidos.
(Sobre a colisão de direitos, em geral, J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p.
1270). No entanto, tal em nada legitima que se conclua que a ordem judicial de
destruição de parte das gravações efectuadas será sempre constitucionalmente
devida, por corresponder à correcção, feita pelo tribunal, da devassa da
intimidade de terceiros. Uma tal conclusão só seria sustentável se os problemas
de colisão de direitos pudessem ser resolvidos através do sacrifício unilateral
de um deles – como se tivera o juiz constitucional uma habilitação genérica para
declarar, em situações de conflito, qual o direito a sacrificar e qual o direito
a tutelar. Nada permite sustentar que assim seja. O que não é de excluir é que,
nas circunstâncias em que a colisão ocorra, se deva fazer a ponderação entre o
direito do arguido a um processo devido e os direitos de terceiros ao segredo e
à reserva, podendo por isso vir a ser constitucionalmente permitida a
destruição, sem a audição do arguido, daquela parte das gravações que lesem
especialmente o segredo ou a intimidade de terceiros. Em última análise, porém,
caberá ao legislador ordinário identificar os casos em que deva ser feita a
ponderação.
Face ao regime legal vigente – e tendo em conta que ele obriga que
todos os participantes nas operações de «escutas» fiquem «ligados ao dever de
segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento» (n.º 3, in fine,
do artigo 188.º do Código de Processo Penal) – não pode deixar de se julgar
inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma
contida na primeira parte do referido preceito, quando entendida no sentido de
permitir que o juiz de instrução ordene, por considerar relevantes para a prova,
a transcrição parcial das gravações de conversas telefónicas interceptadas, e
prescreva a destruição das partes restantes, antes de o arguido as ter ouvido e
controlado.”
6. Pelas razões expendidas nos Acórdãos n.ºs 660/2006,
450/2007 e 451/2007 e pelas inicialmente expostas nesta declaração de voto,
sustentei que devia ser concedido provimento ao recurso, julgando‑se
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo
Penal, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro,
interpretado no sentido de o juiz dever ordenar a destruição imediata das fitas
gravadas e elementos análogos relativos a gravações de conversações telefónicas
feitas durante o inquérito, que não foram consideradas relevantes para a prova,
assim afectando irremediavelmente a possibilidade de o arguido, findo o
inquérito, a elas ter acesso, para eventualmente sugerir a transcrição de novas
passagens, por ele tidas como relevantes para a descoberta da verdade.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da presente decisão pelas razões constantes dos acórdãos nº 660/2006
(que subscrevi), 450/07 e 451/07, todos deste Tribunal, que se pronunciaram pela
inconstitucionalidade da dimensão normativa ora em apreciação. Aos fundamentos
aduzidos nestes arestos, assim como à síntese e explicitação que deles nos
oferece a declaração de voto do Conselheiro Mário Torres (que acompanho na
integra), importa apenas acrescentar o seguinte.
Subjacente à tese que fez vencimento parece estar a ideia de que a intervenção
do arguido antecedendo a destruição das escutas tem de estar proscrita uma vez
que tal destruição tende a ser decidida na fase de inquérito, momento em que o
contraditório se encontra naturalmente excluído.
É certo que nesta fase o contraditório não pode existir. Mas daí decorre apenas
que a destruição destes especiais meios de prova (as escutas) não possa ser
decidida nesta fase. O que só é confirmado pela circunstância de as conversações
objecto de aquisição processual em inquérito não terem a sua eficácia probatória
a ele confinada, antes se encontrado preordenadas a integrar o conjunto dos
elementos sobre os quais incidirá a final o juízo de valoração judicial, aí
necessariamente precedido do contraditório. Para a plena realização deste, nas
fases do processo (instrução e julgamento) em que o mesmo se encontra
constitucionalmente garantido, deve ser assegurada ao arguido a possibilidade de
aceder à integralidade do material probatório recolhido a fim de, com o
conhecimento daí resultante, poder não só discutir o alcance probatório de
conversações já ordenadas transcrever como ainda estabelecer a relevância para a
decisão da causa de outras conversações que até àquele momento não foram objecto
de aquisição processual. O que implica naturalmente a regra da sua conservação.
E torna por outro lado claro que essa conservação constitui uma exigência a
montante da plena realização do contraditório mas fases em que, também no
discurso argumentativo do acórdão de que dissentimos, ele tem de ser
constitucionalmente garantido.
Rui Manuel Moura Ramos