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Processo nº 1138/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorrida B., foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Em 19 de Dezembro de 2007 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do
disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, com os seguintes fundamentos:
«A alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC estabelece, em consonância com o
disposto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da CRP, que cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, sendo o recurso
restrito à questão de inconstitucionalidade suscitada (artigo 71º, nº 1, da
LTC).
O recurso, embora caiba de decisões dos Tribunais, é um recurso normativo, ou
seja, visa a apreciação da conformidade constitucional de normas. Conforme
jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, a este cabe
tomar conhecimento do objecto dos “recursos de decisões dos outros tribunais que
apliquem normas cuja constitucionalidade foi suscitada durante o processo (...),
identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do
objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as
decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (cf. Acórdão nº
361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso presente, resulta do requerimento de interposição de recurso – peça
processual que define o respectivo objecto – que o recorrente pretende que o
Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da norma compreendida no artigo 1793.°
do Código Civil, com a interpretação efectuada pelo Tribunal Judicial de
Barcelos e confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães segundo a qual, será
de atribuir, além do prédio urbano destinado à habitação e que foi casa de
morada de família, outros dois prédios rústicos, ainda que física e
juridicamente autónomos daquele, pese embora se mostrar, necessário, suficiente
e adequado a atribuição apenas do prédio urbano destinado à habitação.
Esta formulação não corresponde ao enunciado de uma norma, ou seja, de um
critério normativo dotado de uma vocação de generalidade e abstracção que
claramente o autonomize da pura actividade subsuntiva, ligada a particularidades
específicas do caso concreto (Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de
fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3,
p. 7). Revela, antes e desde logo, que afinal o recorrente pretende questionar a
decisão de atribuição da casa de morada de família, nos termos em que foi
tomada, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso e justifica a presente
decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. O recorrente vem agora reclamar para a conferência desta decisão (artigo 78º,
nº 3, da LTC), com os seguintes fundamentos:
«Resulta do requerimento de interposição de recurso, que o então recorrente e
ora reclamante, pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1793° do Código Civil, na
interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Judicial de Barcelos e confirmada
pelo Tribunal da Relação de Guimarães;
Segundo tal interpretação, no “conceito de casa de morada de família”, cabe,
para além do prédio urbano destinado a habitação e que foi de facto casa de
morada de família, outros dois prédios rústicos, ainda que física e
juridicamente autónomos daquele, independentemente de a simples atribuição do
prédio urbano, se mostrar suficiente e adequado ás finalidades e interesses
prosseguidos pela norma do art. 1793° do Código Civil;
Refere a Veneranda Relatora, na sua decisão sumária acima referida, que tal
formulação não corresponde ao enunciado de uma norma, ou seja de um critério
normativo dotado de uma vocação de generalidade e abstracção que claramente o
autonomize da pura actividade subsuntiva, ligada a particularidades específicas
do caso concreto;
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos demasiado restritiva esta posição,
porquanto temos para nós, existir uma impossibilidade jurídica e lógica de se
questionar a interpretação de determinada norma efectuada por Tribunal, sem que
se questione a decisão desse mesmo Tribunal;
De facto, o recorrente pretende questionar a decisão do Tribunal em causa, mas
tão somente, na parte em que, aplicando o conceito “casa de morada da família”
constante da norma do Código Civil em causa, entendeu que no mesmo conceito,
caberiam também prédios rústicos, dela contíguos, mas jurídica e fisicamente
dela independentes;
Na realidade, quando um tribunal é confrontado com uma dada situação da vida
cumpre-lhe em primeira linha, determinar o quadro normativo aplicável, através
de uma operação de subsunção dos factos no direito. O Juiz move-se, assim, num
primeiro momento e essencialmente no quadro da lei, embora a escolha da moldura
normativa operante envolva, por força do artigo 204° da Constituição,
concomitantemente uma opção valorativa acerca do próprio direito aplicável,
centrada na sua validade constitucional;
E é exactamente disto que se trata, a decisão do Tribunal, posteriormente
confirmada pela Relação, não efectuou aquela opção valorativa, aplicando assim
norma legal, que nos termos em que foi efectivamente interpretada e aplicada,
infringe o disposto na Constituição;
Esta vinculação do julgador aos critérios da Constituição (seja em relação a
normas seja em relação a princípios, como postula o artigo 204°) será ainda mais
efectiva quando se tratar de julgamentos que envolvam a garantia e protecção de
direitos, liberdades e garantias ou de direitos de natureza análoga;
No caso em concreto, o conceito “casa de morada de família”, constante do artigo
n° 1793 do Código Civil, trata-se, salvo melhor opinião, de um conceito jurídico
facilmente compreensível, que não contém nem permite interpretações como aquelas
que pelo Tribunal Judicial em causa, e pelo Tribunal da Relação respectiva, lhe
foram conferidas;
Efectivamente “casa de morada de família”, só pode comportar a casa em causa e o
logradouro, a existir, nunca prédios rústicos, independentemente da sua
contiguidade e das finalidades socio-económicas que a estes vinham a ser dados
pela família;
Neste contexto, a interpretação da norma questionada (art. 1793º do Código
Civil), tal como foi efectuada pelos Tribunais referidos, é susceptível de
violar o art. 18°, n.° 2 (princípio da proporcionalidade), bem como, o artigo
62°, n.° 1 (direito da propriedade), ambos da Constituição da República
Portuguesa;
Aliás, em sede de decisão judicial, tal segmento da norma, poderia vir a ser
afastado, pelo Tribunal respectivo, com base na sua inconstitucionalidade – por
razões diferentes, evidentemente, desde de fundamentadas -, atendendo a que
devido ao seu carácter restritivo, poderia ser susceptível, atento o caso em
concreto, de não salvaguardar convenientemente as necessidades e interesses,
designadamente socio-económicas, da outra contra-parte;
Por outro lado, é sobejamente conhecida no moderno direito a profunda crise a
que sucessivamente foram votados os critérios tradicionais da generalidade e da
abstracção como definidores do conceito de norma jurídica, tendo aliás esse
Tribunal Constitucional procurado responder a tal problema, através da bem
conseguida construção de um “conceito funcional de norma”;
Decorre assim do exposto que, pese embora se possa admitir não ter sido muito
feliz a redacção do requerimento de recurso interposto, sempre se poderá
entender que decorre do mesmo, que o ora reclamante não põe em causa a decisão
do Tribunal, mas tão somente a interpretação que por este foi efectuada de
determinado segmento de preceito normativo;
Assim sendo, salvo melhor opinião evidentemente, entende o recorrente, ter
solicitado oportuna e pela forma adequada o incidente de inconstitucionalidade
de norma jurídica, vício este oriundo de determinada interpretação de segmento
da mesma norma efectivamente efectuado pelo tribunal de 1ª Instância e
posteriormente confirmada pelo Tribunal de recurso».
4. Notificada, a recorrida pronunciou-se no sentido do indeferimento da presente
reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento dado o carácter
não normativo do recurso interposto. O reclamante sustenta o carácter normativo
do objecto do recurso por si interposto, convocando, para o efeito, a
jurisprudência deste Tribunal relativa ao conceito funcional de norma.
É no requerimento de interposição do recurso que fica delimitado o respectivo
objecto, pelo que não pode atender-se ao que agora consta da reclamação,
designadamente para aferir do carácter normativo ou não normativo do objecto do
recurso.
Sobre o que seja o conceito funcional de norma ou um conceito funcionalmente
adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade, importa retomar o
que se escreveu no Acórdão nº 26/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º
volume, p. 18 e s.):
“Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277º e
seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um
conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da
constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em
vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato
sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que
contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares,
para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo
sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. A ele
escapam, por um lado (e como já a Comissão Constitucional salientara), as
decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos
administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, os «actos políticos» ou
«actos de governo», em sentido estrito (...).
Onde, porém, um acto do poder público for mais do que isso e contiver uma regra
de conduta para os particulares ou para a Administração, ou um critério de
decisão para esta última ou para o juiz, aí estaremos perante um acto
«normativo», cujas injunções ficam sujeitas ao controlo da constitucionalidade”.
À luz desta jurisprudência, continua a ser claro que não é possível descortinar
no enunciado constante do requerimento de interposição de recurso – recorde-se:
a norma compreendida no artigo 1793.° do Código Civil, com a interpretação
segundo a qual, será de atribuir, além do prédio urbano destinado à habitação e
que foi casa de morada de família, outros dois prédios rústicos, ainda que
física e juridicamente autónomos daquele, pese embora se mostrar, necessário,
suficiente e adequado a atribuição apenas do prédio urbano destinado à habitação
– um critério de decisão, ou, como se disse na decisão reclamada, um critério
normativo dotado de uma vocação de generalidade e abstracção.
Para concluir que não é de acompanhar a reclamação, quando sustenta que foi
somente posta em causa a interpretação efectuada pelo tribunal recorrido de
determinado segmento do preceito normativo, bastaria, aliás, atentar que aquele
enunciado contrapõe à decisão de atribuir o prédio urbano destinado à habitação
e outros dois prédios rústicos a decisão de atribuir apenas o prédio urbano
destinado à habitação, propugnada pelo recorrente.
Como aquele enunciado é apenas significativo da divergência do recorrente quanto
ao decidido, resta concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e, em consequência, confirmar a
decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão