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Processo n.º 1084/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 22 de Novembro de 2007, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não tomar
conhecimento do recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Outubro de
2007, que negou provimento ao recurso por ele deduzido contra o acórdão do
Tribunal Colectivo do Círculo Judicial do Barreiro, de 25 de Junho de 2007, que
o condenou, como co‑autor material de um crime de tráfico de estupefacientes,
previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
No requerimento de interposição de recurso, refere o recorrente:
«1. O recurso interposto está em tempo, não é manifestamente
infundado e o recorrente tem legitimidade, razão porque, preenchidos que estão
os requisitos legais, requer a Vossa Excelência se digne considerar admitido o
recurso, com efeito suspensivo, prosseguindo os mais termos até final.
2. As questões colocadas na decisão ora recorrida são, em resumo, as
seguintes:
a) Foi aplicada pena inadequada e desproporcionada (conclusão
18.ª);
b) Fazendo o acórdão recorrido do Tribunal Colectivo interpretação
materialmente inconstitucional por na aplicação do artigo 21.º da Lei n.º
15/93, de 15 de Dezembro, infringir a regra do artigo 18.º, n.º 2, da CRP
(conclusão 19.ª);
c) A utilização de meios ilícitos de prova viola o artigo 125.º do
Código [de Processo] Penal, infringindo‑se esta norma por desrespeitar o artigo
32.º, n.º 6, da CRP (conclusão 20.ª);
d) Tais meios ilícitos de prova são os seguintes:
– A declaração da co‑arguida B. não foi confirmada pela C. nem por
outro meio de prova (conclusão 2.ª);
– A C. nem conhecia bem o A. (conclusão 3.ª);
– As transcrições de conversações telefónicas invocadas limitam‑se a
fazer uma remissão genérica para as mesmas e não para recorte específico de
frase que evidencie uma operação de droga (conclusão 6.ª);
– O invocado senso comum não serve como meio de prova desde que não
haja objectividade e a conduta do arguido deverá ser examinada por integração
na conduta do consumo e sempre no quadro, relativamente ao MDMA, do tráfico de
menor gravidade previsto no artigo 25.º da lei da droga (conclusão 16.ª).
3. As conclusões referidas anteriormente dizem respeito à motivação
de recurso apresentada para decisão no Tribunal da Relação.
4. Os fundamentos da decisão recorrida – acórdão do Tribunal da
Relação – são em resumo e no que respeita à matéria de inconstitucionalidade,
os seguintes:
a) A prova produzida assenta em 1.º lugar nas declarações das
arguidas B. e C., em audiência de julgamento;
b) Esta prova foi depois complementada por um conjunto considerável
de prova circunstancial;
c) Relativamente às transcrições das conversações telefónicas
feitas pelo arguido A., ficou demonstrado que ele usava o telefone número
919812627, não transcrevendo o texto da decisão recorrida excertos dessas
transcrições para não tornar o acórdão enfadonho, estando as mesmas apensas aos
autos, referindo, a título exemplificativo, as que constam no anexo 4, sessões
606, 560, 709 e 13 737;
d) O senso comum – diz o texto da decisão recorrida – diz que não
faz qualquer sentido pagar quantias daquela dimensão em notas (…);
e) O facto de se ter dado como provado que o arguido A. também
consumia os mesmos produtos que vendia em nada altera o enquadramento global
dos factos que lhe foram imputados;
f) O arguido A. não tinha outra fonte regular de rendimentos que
não fosse o tráfico de estupefacientes, pois as festas e eventos eram
esporádicos e não davam lucro ou, se o davam, era negligenciável;
g) O objecto do recurso é restrito à matéria de direito, embora a
Relação pudesse conhecer de facto desde que o recorrente tivesse observado o
chamado ónus de impugnação especificada;
h) A decisão recorrida afasta o erro notório na decisão da prova e a
insuficiência para a decisão da matéria provada, considerando que o recorrente
se limita a discordar da matéria dada como provada;
i) As declarações do co‑arguido são meios de prova, a apreciar
livremente pelo Tribunal;
j) O recorrente teve a possibilidade efectiva de contraditar os
depoimentos prestados em audiência pelas co‑arguidas;
k) O acórdão recorrido complementou as declarações prestadas pelas
co‑arguidas com outros meios de provas, respeitando o artigo 127.º do CPP e
cumprindo o artigo 374.º, n.º 2, do mesmo Código, ficando por entender as
referências ao artigo 125.º daquele Código e ao n.º 6 do artigo 32.º da CRP;
l) Não se justifica a abordagem ao tráfico de menor gravidade,
relativamente à substância MDMA;
m) Nenhuma censura há a fazer à medida da pena encontrada.
5. As críticas aos fundamentos da decisão recorrida são do seguinte
teor:
a) A base do texto do acórdão recorrido assenta num erro de direito,
que consiste em considerar que o tribunal da primeira instância é livre para
avaliar a declaração dos co‑arguidos;
b) Na verdade, tal entendimento afasta‑se da doutrina mais
importante sobre o valor de prova do co‑arguido, quando esta declaração é
desfavorável a outro co‑arguido;
c) Quando se diz que o valor de prova do co‑arguido é válido quando
acompanhado de outros meios de prova, trata‑se de meios de prova de maior
intensidade que tal declaração, não bastando meras transcrições de conversações
telefónicas;
d) No caso em apreço, tais transcrições terão de ser específicas
sobre o momento da conversação que é relevante para a prova e não uma remissão
global, como é feito no texto da decisão recorrida;
e) Em rigor, a decisão recorrida assenta numa falácia, porquanto ao
considerar válida a prova de uma co‑arguida – a B. – limita‑se a acrescentar a
declaração da outra co‑arguida – a C. – mais as conversações telefónicas, a
droga que foi encontrada e o senso comum;
f) Se o senso comum não requeresse exigências de grande
objectividade estaria destruída a legalidade do processo penal, pois bastaria
uma concepção subjectivista de bom senso, fosse a fornecida pelo jornalista,
pela opinião pública ou por um juiz;
g) A lei não quis esse critério sem rigor técnico e científico,
como decorre de toda a concepção legal da prova e da factualidade típica e
ainda da teoria das provas ilícitas;
h) Quando se julga um crime de tráfico de droga não se pode perder
de vista a tecnicidade e a cientificidade da interpretação e da aplicação das
normas penais incriminadoras, sob pena de o direito penal da droga se tomar
excepcional e fora do sistema e se transformar numa mera técnica repressiva;
i) Por isso, se não entende que o texto recorrido não discuta nem
queira discutir o trafico de menor gravidade, subestime o consumo do arguido e
não queira reapreciar a matéria de facto, invocando, sem razão, falta de clareza
das conclusões e apenas um objectivo num recurso, o direito e não os factos;
j) O facto de o recorrente qualificar determinados vícios como erro
notório na apreciação da prova e como insuficiência para a decisão da matéria
de facto, é a prova provada de que pretendeu discutir a matéria de facto;
k) Também é claro que o recorrente pretendeu discutir a medida da
pena e que a proporção desta e a sua adequação são valores constitucionais como
decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP e não valores meramente legais como
entende a orientação mais pobre sobre a filosofia da pena, infelizmente ainda
existente em Portugal e na cifras negras que tal problema ocupa no quadro dos
países europeus.
6. O artigo 32.º, n.º 6, da CRP contém uma teoria constitucional
das provas ilícitas que está bem citado e constitui um quadro normativo que é
decisivo para a interpretação de tal problemática.
7. A norma constitucional citada é inseparável do principio da
legalidade das provas constante do artigo 125.º do CPP, também correctamente
citado e cujo desenvolvimento vem no artigo 126.º do mesmo Código.
8. Assim, as citações feitas pelo recorrente são exactas e foram
deturpadas na sua interpretação pela decisão recorrida que não quis afastar as
inconstitucionalidades e ilegalidades manifestadas pelo texto recorrido, antes
fez um esforço interpretativo para sustentar a bondade do acórdão recorrido da
primeira instância.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e prosseguir até
final, declarando‑se inconstitucionais as interpretações materiais que são
feitas dos artigos 21.º e 25.º, ambos da Lei da Droga e 125.º do Código [de
Processo] Penal por infringirem as regras inscritas nos artigos 18.º, n.º 2, e
32.º, n.º 6, ambas da CRP.»
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator do
Tribunal da Relação de Lisboa, apesar de considerar que o recorrente não havia
suscitado a inconstitucionalidade das normas que refere, decisão que, como é
sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC); e,
de facto, no presente caso, o recurso surge como inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento do objecto do
recurso, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. Na verdade, a admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa
dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada
«durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito
aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de
inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da
questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de
proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações
especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder
jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas
situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de
oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade
antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não
lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. Do critério exposto resulta que o local adequado para o
recorrente suscitar as questões de inconstitucionalidade, em termos de
assegurar a posterior abertura de via de recurso para o Tribunal
Constitucional, era a motivação do recurso endereçada ao Tribunal da Relação de
Lisboa, mas nessa peça o recorrente não suscitou, em termos adequados, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de vir a ser apreciada
pelo Tribunal Constitucional, designadamente reportada a «interpretações» (que
não identifica minimamente) que terão sido feitas dos artigos 21.º e 25.º do
Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 125.º do Código de Processo Penal.
Na verdade, não constitui modo adequado de suscitar questões de
inconstitucionalidade normativa alegar que a pena aplicada foi «inadequada» e
«desproporcionada» (conclusão 18.ª), «fazendo o acórdão recorrido
interpretação materialmente inconstitucional por na aplicação do artigo 21.º
infringir a regra do artigo 18.º, n.º 2, da CRP» (conclusão 19.ª), e que «a
utilização de meios ilícitos de prova, anteriormente indicada, viola o artigo
125.º do Código [de Processo] Penal, infringindo a interpretação do acórdão
recorrido esta norma por desrespeitar o artigo 32.º, n.º 6, da CRP» (conclusão
20.ª). Na verdade, nestes locais o recorrente imputa a violação de preceitos
legais e constitucionais directamente ao acórdão recorrido, em si mesmo
considerado (na actividade jurisdicional de fixação da pena e de valoração da
prova), e não a qualquer norma ou interpretação normativa minimamente
identificada, como seria necessário para abrir via de recurso de
constitucionalidade.
Por falta de adequada suscitação, perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, das questões de constitucionalidade que se pretendia ver
apreciadas, o presente recurso é inadmissível, o que determina o não
conhecimento do seu objecto.
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do presente recurso.”
1.2. A reclamação para a conferência apresentada pelo
recorrente é do seguinte teor:
“1. Não é verdade que o recorrente não tenha suscitado, no decurso
do processo e designadamente na motivação do recurso para o Tribunal da
Relação, as inconstitucionalidades que ora veio a submeter na sua petição do
recurso.
Assim:
1. Na conclusão 19.ª daquela motivação afirmou expressamente que o
acórdão recorrido fez interpretação inconstitucional por na aplicação do artigo
21.º infringir a regra do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
2. Na conclusão 20.ª da mesma motivação o recorrente afirmou que a
utilização de meios ilícitos de prova, anteriormente indicada, viola o artigo
125.º do Código Penal infringindo a interpretação do acórdão recorrido a esta
norma por desrespeitar o artigo 32.º, n.º 6, da CRP.
3. Tais conclusões são desenvolvimento de argumentos da exposição
constante da motivação e foram objecto de discussão do próprio acórdão
recorrido.
Assim,
4. Quer a medida concreta da pena quer os meios ilícitos de prova,
elementos que constituem as bases da condenação, são sindicáveis em sede de
inconstitucionalidades de normas.
Assim, requer a V. Ex.ª se digne submeter a decisão sumária a
conferência de modo a que o Tribunal Constitucional examine as matérias.
1.3. O representante do Ministério Público junto deste
Tribunal, notificado da reclamação deduzida, apresentou resposta considerando a
reclamação “manifestamente improcedente”, pois, “na verdade – e como se
demonstra cabalmente na decisão reclamada – o ora reclamante não suscitou, em
termos processualmente adequados, qualquer questão de constitucionalidade
normativa, susceptível de servir de base ao recurso interposto para este
Tribunal Constitucional”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como se refere na resposta do Ministério Público, a
presente reclamação surge como manifestamente improcedente, pois, como se
evidenciou na decisão sumária ora reclamada, nos locais indicados pelo
recorrente não foi suscitada nenhuma questão de inconstitucionalidade
normativa, sendo imputada directamente a decisões judiciais, em si mesmas
consideradas, a violação de preceitos de direito ordinário e, concomitantemente,
de normas constitucionais.
A isto acresce que nunca o recorrente identificou, com o
mínimo de precisão, as interpretações que teriam sido feitas pelo acórdão
recorrido e que ele reputa inconstitucionais.
Finalmente, reitera‑se – contra o sustentado pelo
recorrente – que a actividade jurisdicional de fixação concreta da pena e de
valoração da prova não é, em si mesma, susceptível de integrar o objecto da
fiscalização da constitucionalidade confiada ao Tribunal Constitucional, a qual,
repete‑se, se cinge ao controlo da conformidade com a Constituição de normas de
direito ordinário.
3. Em face do exposto, acorda‑se em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos