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Processo n.º 1184/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto vem reclamar da decisão judicial que indeferiu o seu
requerimento de recurso para este Tribunal ao abrigo do disposto nos artigos
77.º e 78.º-A, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Sustenta a sua reclamação invocando, nomeadamente
“Reclama-se do despacho judicial que indeferiu o requerimento de recurso
oportunamente apresentado pelo Ministério Público, fundamentando que ‘(...),
salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este especifico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional’.
Ousando discordar do teor desta afirmação, quer-nos parecer que tendo o
Ministério Público – na sequência do despacho da Mma. Juiz a quo que ordenou a
conclusão dos autos ao Ministério Público ‘uma vez que no tribunal de turno foi
apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do art°. 387°,
n°2, al. a) do CPP, não tendo sido deduzida acusação’ – reservado para o início
da audiência de julgamento o uso da faculdade concedida pelo artigo 389.° n°2,
do Código de Processo Penal, a posterior decisão judicial que recaiu sobre essa
posição do Ministério Público não só nega a aplicação concreta da disposição
legal por este invocada (melhor, a faculdade que se protestou exercer em devido
tempo ao abrigo dessa disposição legal) como fundamenta essa não aplicação no
facto de que ‘realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por
acusação apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as
garantias de defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele
auto, a totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova’.
Não sendo de exigir fórmulas sacramentais para dizer as coisas, quer-nos parecer
que outra coisa não fez a Mma. Juiz que não tenha sido recusar a aplicação
concreta da norma em que o Ministério Público se baseou para reservar o
exercício da faculdade invocada, fundamentando mesmo essa recusa no facto de que
a aplicação de tal norma não só seria inconstitucional por violar o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal como poria em causa
as garantias de defesa do arguido.
Parece-nos claro que quer pela leitura integral do despacho judicial recorrido,
quer pelos antecedentes que ao mesmo conduziram, será forçoso concluir que, em
rigor, o que a Mma Juiz a quo fez foi declarar que recusava, por
inconstitucional, a aplicação daquela norma quando literalmente interpretada no
sentido de permitir a realização de julgamento em processo sumário nos casos em
que o Ministério Público não tenha deduzido acusação e se reserve para o início
da audiência de julgamento em processo sumário o poder de substituir a acusação
pela leitura do auto de notícia elaborado pelo OPC revelando-se este auto de
notícia insuficiente na medida em que se mostre omisso quanto aos factos
susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime em causa, quanto às
disposições legais aplicáveis e quanto às provas que fundamentam a acusação.
Assim nos parecendo ser, tais são as razões em que fundamentamos a presente
reclamação, a ser decidida em conferência pelo Tribunal Constitucional.”
O arguido A., respondendo à reclamação deduzida, sustenta que por não estar em
causa a recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade, deve a reclamação ser considerada inadmissível.
A decisão judicial que indeferiu o requerimento de recurso para este Tribunal
tem o seguinte teor:
“O Digno Procurador Adjunto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do
despacho de fls. 16 que ordenou a remessa dos presentes autos de processo
sumário ao DIAP do Porto, para tramitação sob outra forma processual, nos termos
do art. 390.º, al. a) do Código de Processo Penal, por se ter entendido que a
acusação por mera remissão para o auto de notícia deveria ser rejeitada, nos
termos dos arts. 283°, n°3, als. b) a d) e 311°, n.ºs 2, al. a) e 3, als. b), c)
e d) do Código de Processo Penal, já que o auto em causa, contendo embora factos
susceptíveis de integrarem o elemento objectivo do crime de condução em estado
de embriaguez, é totalmente omisso quanto aos factos susceptíveis de integrarem
o elemento subjectivo do mesmo crime, às disposições legais aplicáveis e às
provas que fundamentam a acusação.
Cabe a este tribunal, nos termos do art. 76°, n°s 1 e 2 da Lei 28/84, de 15/11,
na sua actual redacção, decidir sobre a admissibilidade do recurso, sendo certo
que este deve ser indeferido quando a decisão o não admita.
O recurso foi interposto nos termos dos arts. 280°, n° 1, al. a) da Constituição
da República Portuguesa e 70 n° 1, al. a) da Lei de organização, funcionamento e
processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15/11, na sua actual
redacção).
De acordo com tais preceitos, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento
em inconstitucionalidade.
Ora, salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, indefiro o requerimento de recurso de fls. 19, nos termos do art.
76°, n° 2 da Lei 28/82, por entender que a decisão em causa o não admite.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal, pronunciou-se sobre o
objecto da presente reclamação para concluir, sustentando que:
“Assim, por se afigurar que o Tribunal ‘a quo’, no despacho recorrido, se
limitou a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais
penais, referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a
possibilidade de mera ‘leitura’ pelo Ministério Público do auto de notícia no
início da audiência em processo sumário, não será a circunstância de se
considerar que a imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais
decorre dos princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa
que traduz a ocorrência de uma verdadeira ‘recusa de aplicação normativa’,
enquadrável no tipo recursório previsto na alínea a) do n° 1 do artigo 70° da
Lei 28/82.”
Decidindo.
II – Fundamentação
2. Sobre esta questão concreta, exarou, recentemente, o Tribunal Constitucional
os Acórdãos n.ºs 8/08 e 16/08 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt),
respectivamente de 10 e 15 de Janeiro.
Consignou-se no segundo aresto citado:
“2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo
objecto era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do
artigo 389.°, n.° 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.° 1
do artigo 70.° da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, ‘sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou ‘natural’, com fundamento na sua inconstitucionalidade’
(JOSÉ MANUEL M. CARDOSO DA COSTA, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público ‘substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção’, prevista no n.° 2 do
artigo 389.° do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.°, n.° 3, alíneas b) a d), e 311.°, n.°s 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam
que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e
que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento,
sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tido como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.°, n.° 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.”
O teor do Acórdão acabado de transcrever é transponível para a situação em
apreço por idênticos serem os pressupostos que conduziram à reclamação em
análise.
III – Decisão
Em face ao exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Janeiro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos