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Processo n.º 1222/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
1. O representante do Ministério Público junto do 2.º Juízo do Tribunal de
Pequena Instância Criminal do Porto reclama para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o
recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional, de um anterior
despacho do mesmo Tribunal, que determinou a remessa dos autos, processados até
então como processo sumário, ao DIAP do Porto para tramitação sob outra forma
processual.
2. Compulsados os autos, apura-se o seguinte:
− A presente reclamação emerge de processo iniciado em “auto de notícia por
detenção”, instaurado, por agente da PSP, a A., por, em determinada data, hora e
local, conduzir veículo automóvel e, ao ser submetido ao controlo de alcoolémia,
ter acusado uma TAS de 1,24 g/l, o que integraria “crime contra a segurança das
comunicações”.
− Em 19.10.2007, o referido condutor foi constituído arguido e notificado, nos
termos do n.º 3 do artigo 385.º do CPP, para comparecer perante o Ministério
Público do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, para ser submetido a
audiência de julgamento em processo sumário.
− Na mesma data, o Juiz do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal
do Porto exarou o seguinte despacho:
«A acusação deverá fixar o objecto do processo, a Digna Magistrada do M.P.,
limita-se a remeter para o auto de notícia, nos termos do art°. 389° nº2 do
C.P.P.. No auto de notícia não existe qualquer referência ao crime de que o
arguido vem acusado, faltando assim a respectiva qualificação jurídica, e
igualmente o elemento subjectivo do tipo.
Desta feita, entende o tribunal, nos termos do art° 390º, ali, a) do C.P.P.,
remeter os autos para outra forma processual.
Notifique.
Transitado, remeta os autos ao DIAP.»
− O representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, interpôs recurso
deste despacho para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«Por douto/a despacho/decisão, proferido/a no p. p. dia 19 do corrente mês de
Outubro do corrente ano 2007 e exarado/a a fls. 11, dos autos à margem
identificados, o/a Mmo/a Juiz, nos termos e com os fundamentos de facto e de
direito daquele/a constantes, tendo consignado, além do mais, “…/… a Digna
Magistrada do MP., limita-se a remeter para o auto de notícia, nos termos do
art.389° n° 2 do C.P.P..” (sic), entendeu, “.../..., nos termos do art°. 390°,
ali., a) do C.P.P., remeter os autos para outra forma processual.” (sic),
recusando, dessa forma, a aplicação da norma constante do citado art°. 389°, nº.
2, do CPP, por reputar a mesma inconstitucional e/ou ilegal.
Tendo sido, nos termos supra expostos, a aplicação da norma em referência, n°.
2, do ar°. 389°, do CPP, constante de acto legislativo - L. 48/2007, de 29 de
Agosto – 15ª. Alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei
n°. 78/87, de 17 de Fevereiro -, recusada, por inconstitucionalidade e/ou
ilegalidade - vem o MP, nos termos das disposições conjugadas dos art°.s 280°,
n°.s 1, al. a), 2, al. a) e 3, da CRP, 70°, n°. 1, al.s a) e/ou c), 71°, n°. 1,
72°, n°.s 1, al. a) e 3, 75°, n°. 1, 75°-A, n°. 1 e 78°, no. 4, da Lei 28/82, de
15 de Novembro - Organização, funcionamento e processo do Tribunal
Constitucional -, ao abrigo das citadas al.s a) e/ou c), do n°. 1, do respectivo
art°. 70°, interpor recurso, obrigatório, para o Tribunal Constitucional, - a
subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto no
citado art°. 78°, n°. 4, da Lei em referência -, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n°. 2 do art°. 389°, do
CPP.
Tendo legitimidade para o efeito - citado art°. 72°, n°. 1, al. a), da Lei
28/82, de 15 de Novembro -, requer a V./s Excia/s, se digne/m admitir o presente
recurso, interposto, nos termos p. no n°. 5, art°. 145°, do CPC, aplicável ex vi
art°. 69°, da citada Lei 28/82, de 15 de Novembro, no segundo dia útil
subsequente ao termo do prazo legal para a respectiva interposição (art°. 75°,
n°. 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro), estando o MP, nos termos do disposto no
n°. 1, do art°. 522°, do CPP, isento do pagamento da multa p. no citado preceito
legal.»
− Por despacho de 05.11.2007, o recurso não foi admitido, nos termos seguintes:
«Cumpre neste momento, nos termos do art° 76° da Lei 28/82 de 15 de Novembro,
apreciar a admissão do recurso interposto pela Digna Magistrada do M.P.
Estabelece o art° 76°, n° 1 da Lei 28/82 de 15 de Novembro “Compete ao Tribunal
que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo
recurso; estabelece igualmente o n° 2 do mesmo art° “O requerimento de recurso
deve ser indeferido quando a decisão o não admita, quando haja sido interposto
fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos
recursos previstos nas alíneas b) e e) do n° 1 do art° 70, quando forem
manifestamente infundados”.
Ora a Digna Magistrada do M.P. vem recorrer da decisão proferida a fls.11 destes
autos, em que o tribunal, nos termos do art° 390º ali. a) do C.P.P. remete os
autos para outra forma processual, atendendo a que entendeu não ter sido fixado
o objecto do processo, não podendo assim realizar-se o julgamento sob a forma
sumária.
Estabelece o art° 70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro: (Decisões de que pode
recorrer-se): n° 1 – Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das
decisões dos Tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo;
c) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional, com
fundamento na sua ilegalidade, violação do estatuto da região autónoma ou de lei
geral da República:
d) Que recusem a aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, com
fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma;
e) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo,
com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c) e d);
f) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo
próprio Tribunal Constitucional;
g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pela Comissão
Constitucional, nos termos em que seja requerida a sua apreciação ao tribunal
constitucional.
n° 2 - Os recursos previstos nas alíneas b) e e) do número anterior apenas cabem
de decisões que admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já
haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra que a decisão em causa
nos autos, admita recurso para o tribunal Constitucional, atendendo a que não se
subsume a qualquer das alíneas supra referidas. Requisito de admissibilidade do
recurso, nos termos do art° 70º ali a), é a existência da recusa de aplicação de
uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece,
nem explicita nem implicitamente no despacho em causa nos autos, no mesmo
sentido Acórdãos do Tribunal Constitucional disponíveis na página/site do
Tribunal Constitucional, com o n° convencional ACTC00000118, ACTC00004871 e
ACTC00000019.
Assim sendo, indefiro o requerimento de recurso, por entender que a decisão o
não admite.»
3. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, invocando o
magistrado reclamante o seguinte:
«[…] Alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, por referência
ao anteriormente citado art°. 70°, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, além do mais
que infra se analisará “Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra
que a decisão em causa nos autos, admita recurso para o Tribunal Constitucional,
atendendo a que não se subsume a qualquer das alíneas supra referidas.” (sic).
Salvo o devido respeito, conforme aliás expressamente consta do requerimento de
interposição de recurso ora indeferido, a situação sub judice subsume-se à
previsão das al.s a) e/ou c), do citado art°. 70°, se bem que nas respectivas
actuais redacções e não nas citadas pelo/a Mmo/a Juiz a quo, sendo a redacção
actual daquela al. c) “Que recusem a aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado”.
Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da
respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à
prolacção do mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a
recusa de aplicação da norma constante do n°. 2, do ar°. 389°, do CPP, -
constante de acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto – 15ª Alteração ao
Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 78/87, de 17 de
Fevereiro) -, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 2, verificados
que se mostravam os pressupostos dos art°.s 381°, n°. 1, al. a), e 387°, nº. 1,
do CPP, determinado, nos termos do disposto na 2ª parte, do n°. 2, do art°.
382°, do CPP, a apresentação do expediente e do/a arguido/a, ao/à Mmo/a Juiz de
turno, em processo sumário, para “realização do julgamento de imediato nos
termos dos arts 381° e seg.s do C.P.P. (maxime art°. 389°, n°. 2, do C.P.P.)”
(sic) e, nessa conformidade, reservado para o início da audiência de discussão e
julgamento, o uso da faculdade prevista no citado preceito legal (n°. 2, do
art°. 389°, ‘do CPP), a decisão judicial entretanto recorrida, ao “.../...,
remeter os autos para outra forma processual” (sic), não só nega a aplicação
daquela disposição legal, expressamente invocada pelo MP, (ou antes, a
possibilidade do exercício, pelo MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta
tal posição com a alegação, ainda que sumária, de que “A acusação deverá fixar o
objecto do processo, a Digna Magistrada do MP., limita-se a remeter para o auto
de notícia, nos termos do art389° n°2 do C.P..P.. No auto de notícia não existe
qualquer referência ao crime de que o arguido vem acusado, faltando assim a
respectiva qualificação jurídica, e igualmente o elemento subjectivo do tipo.”
(sic).
Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar
princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mrno/a Juiz a quo que não
tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente invocada
pelo MP, (n°. 2, do art°. 389°, do CPP), por entender que tal aplicação,
faltando no auto de notícia, “a respectiva qualificação jurídica” e “o elemento
subjectivo do tipo”, seria inconstitucional, por violação dos assim
implicitamente invocados, princípios constitucionais das garantias de defesa do
arguido e da estrutura acusatória do processo penal - art°. 32°, n°.s 1 e 5, da
CRP - e/ou ilegal, por violação do, da mesma forma implícita, mas contudo mais
inequívoca, invocado princípio da vinculação temática do tribunal - - art°.s
358°, 359° e 379°, n°. 1, al. b), do CPP.
Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, “Requisito de
admissibilidade do recurso, nos termos do art° 70° ali a), é a da existência da
recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente, no despacho em causa
nos autos,.../... .”.
De facto, nos termos da citada al. a), do nº. 1, do art°. 70º, da Lei 28/82, de
15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso
ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a
existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade.
Contudo, nos termos da al. c), do n°. 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da
qual foi ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do
recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.
Ora, se a invocação implícita, no despacho recorrido, dos supra referenciados
princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido e da estrutura
acusatória do processo penal poderá eventualmente, o que contudo se não concede,
ser posta em causa, já o evidente, ainda que implícito, apelo ao princípio legal
da vinculação temática do tribunal, resulta inegavelmente do respectivo texto,
mormente do supra citado segmento da respectiva parte final, quando realça a
ausência da “respectiva qualificação jurídica” (cfr. art°. 359°, n°. 3, do CPP).
Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com a infundamentada
conclusão constante do despacho em reclamação, no sentido de que, no mesmo
“.../... não acontece, nem explicita nem implicitamente. .../ /...” (sic) a
recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade,
pois que, manifestamente tal acontece, relativamente à norma constante do n°. 2,
do art°. 389°, do CPP, com fundamento, implícito, mas claro e inegável, na
respectiva inconstitucionalidade e/ou, na respectiva ilegalidade, o que, sendo
certo que a norma em referência consta de acto legislativo, também pode
fundamentar a admissibilidade do recurso, ora indeferido.
Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só
admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas
al.s a) e/ou c), do nº. 1, do artº. 70º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, como é
o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n°. 3, do art°. 72°, da citada
Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, constar de
acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já referido).
Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a,
ao “.../... remeter os autos para outra forma processual.” (sic), não realizando
o requerido pelo MP, nos termos legais, julgamento do/a arguido/a, em processo
sumário e nem sequer iniciando a audiência, foi manifestamente recusar a
aplicação da norma constante do n°. 2, do art°. 389°, do CPP, com fundamento em
inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por permitir a realização do
julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP, não tendo deduzido
acusação, reserva para o início da audiência, a faculdade de substituir a
apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver
procedido à detenção, quando neste “.../... não existe qualquer referência ao
crime de que o arguido vem acusado, faltando assim a respectiva qualificação
jurídica, e igualmente o elemento subjectivo do tipo.” (sic).
Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n°. 2 do art°. 389°, do
CPP, deveria ter sido admitido, pelo que, não o tendo sido, o MP apresenta a
presente reclamação, sendo as ora expostas, as razões que justificam a admissão
daquele.»
4. Neste Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu o seguinte
parecer:
«Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal “a quo”, – exclusivamente fundado na alínea a)
do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70º, nº 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma “verdadeira” recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389º, nº 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz “a quo” de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer “aditamento”, num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389º, nº 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a “substituição” da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389º, nº 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigo 283º, nº 3, e 311º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal) para concluir
que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da audiência,
pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas por aqueles
preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa “linha de fronteira” entre a verdadeira
“recusa de aplicação” normativa, enquadrável na alínea a) do nº 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos legais
“em conformidade com a Constituição” (cf., v.g., os Acórdãos nºs 170/85, 425/89,
137/89, 636/94 e 1020/96) afigura-se que – no caso dos autos – o juízo de
inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou “única ou primacialmente”
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros – A Decisão de Inconstitucionalidade,
pg. 331 e segs) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental, mas
não desempenhando “o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação”
(cf. ainda o Acórdão nº 285/02).
Assim, por se afigurar que o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se limitou
a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera “leitura” pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira “recusa de aplicação normativa”, enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82.»
Cumpre apreciar e decidir.
5. O reclamante pretende interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo das
alíneas «a) e/ou c)» do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
É pressuposto deste recurso que a decisão recorrida tenha rejeitado, explícita
ou implicitamente, a aplicação ao caso concreto de uma norma, com fundamento em
inconstitucionalidade (no caso do recurso da alínea a)), ou na sua ilegalidade,
por violação de lei com valor reforçado, no caso da alínea c) daquele preceito)
e que esse juízo de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) constitua uma
verdadeira ratio decidendi da decisão recorrida.
No caso em apreço, o despacho de que se pretende recorrer determina a remessa
dos autos para outra forma processual, por se ter entendido que a substituição
da apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia, nos termos do
artigo 389.º, n.º 2, do CPP, não era possível, na medida em que «no auto de
notícia não existe qualquer referência ao crime de que o arguido vem acusado,
faltando assim a respectiva qualificação jurídica e, igualmente o elemento
subjectivo do tipo».
Ao decidir assim, o despacho tem implícita uma interpretação do n.º 2 do artigo
389.º do CPP que apela ao elemento sistemático (nomeadamente, aos princípios da
Constituição e às normas do Código de Processo Penal que estabelecem os
requisitos da acusação), dele extraindo a regra de que apenas será admissível a
substituição da acusação pela leitura do auto de notícia quando este auto
contenha todos os elementos legalmente exigíveis para a validade de qualquer
acusação. E concluindo, com base nessa regra, que, naquele caso concreto, tais
elementos não constavam do auto de notícia.
Ora, esta actividade interpretativa do n.º 2 do artigo 389.º do CPP, ainda que
implicitamente convoque princípios constitucionais, não se confunde com uma
recusa de aplicação daquela norma, com fundamento em inconstitucionalidade (ou
ilegalidade por violação de lei com valor reforçado), que aqui não existiu.
Pelo exposto, o presente recurso revela-se inadmissível (no mesmo sentido,
versando despachos idênticos ao que aqui está em causa, vejam-se os Acórdãos
n.ºs 8/2008 e 12/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
6. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos