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Processo n.º 1060/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto dos Juízos de Execução do
Porto, na sequência de decisão proferida pelos mesmos Juízos em processo de
impugnação judicial de apoio judiciário, a qual, dando razão à Recorrente A.,
recusou a aplicação das normas constantes do Anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, e da Portaria n.º 1085-A/2004, com fundamento em inconstitucionalidade,
interpôs recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional.
Transcreve-se, seguidamente, o excerto da decisão recorrida na parte que ora
releva:
“Cumpre nesta altura proferir decisão quanto ao recurso relativo à decisão do
pedido de apoio Judiciário.
Remeteu o CRSS o processo relativo ao apoio judiciário nos termos do artigo 27°
e 28° da LEI n° 34/2004, de 29/7.
Pelo CRSS foi dado cumprimento ao n° 3, do artigo 27° da citada Lei, tendo
declarado que mantém a decisão sobre o apoio uma vez que entende nada foi
alegado no sentido de alterar a decisão.
O recorrente recorreu da douta decisão do CRSS que decidiu conceder-lhe o
benefício de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos do processo.
Alega em resumo que aufere 788 Euros de vencimento líquido e que a sua filha que
se encontra a seu cargo gasta por mês em propinas 260 Euros decorrentes da mesma
frequentar o ensino universitário e que tem uma penhora mensal de 300 Euros.
A CRSS manteve a sua decisão.
Nos termos do artigo 28°, n° 4, da Lei n° 34/2004, de 29-7, cumpre decidir o
recurso interposto.
A questão a decidir prende-se com a questão de saber se o requerente tem ou não
capacidade financeira, sendo que resulta dos autos que o alegado pela recorrente
está demonstrado documentalmente.
Cumpre referir que realizando os cálculos de acordo com o simulador que existe
no site da CRSS, se obtém a decisão dada pela CRSS, ou seja, de acordo com a
fórmula de cálculo prevista na lei actual do apoio Judiciários, a requerente
apenas teria direito ao pagamento faseado tal como foi decidido.
Como é sabido a nova Lei do Apoio Judiciário decidiu, para se apreciar a
insuficiência económica, estabelecer uma fórmula de cálculo rígida, que permite
determinar de forma matemática se uma dada família ou um agregado familiar tem
direito à protecção jurídica.
Tal fórmula consta dos artigos 6°, 7°, 8° e 9° da Portaria n° 1085/2004 de 31/8
que concretiza o que se deve entender por rendimento relevante e explicita a
fórmula de calcular esse rendimento.
Portanto a Lei 34/2004 veio implementar uma reforma profunda no que respeita à
concretização do que é a insuficiência económica para efeitos de apoio
judiciário, atento o artigo 8°. O n° 5 desse artigo estabelece que a prova e a
apreciação da insuficiência económica devem ser feitas de acordo com os
critérios estabelecidos e publicados em anexo à presente lei.
Tal como ensina Salvador da Costa na apreciação do pedido de protecção deve-se
atender aos rendimentos do requerente, ao valor do património, à potencialidade
deste para os produzir, aos seus encargos e impostos.
Resulta que da aplicação da formula legal que de facto o requerente não
beneficia do apoio mas sim da modalidade de pagamento fraccionado uma vez que os
cálculos da CRSS atendem ao valor do seu salário e não deduzem as despesas
referidas com o ensino e a penhora que pende sobre o salário da executado(a)(s).
E por outro lado, as despesas relevantes nos termos da Lei do apoio são os
encargos com necessidades básicas e habitação.
Mas no caso trata-se de uma despesa decorrente da educação e de uma penhora que
reduz consideravelmente o salário da executado(a)(s) – ficando a mesma com um
remanesceste muito inferior ao salário mínimo. E o direito ao ensino tem
protecção constitucional nos termos do artigo 73 da CRP.
De resto, entende-se que a Portaria deveria ter em conta despesas atinentes à
educação visto que essa é uma necessidade básica e nuclear de qualquer família,
sob pena de se não se atender a essa situação se estar a violar o princípio do
acesso ao direito e aos tribunais.
Sobre tal matéria foi já proferido douto Acórdão do Tribunal Constitucional n°
654/2006, publicado no D.R. II Série, de 19/1/2007, que decidiu: ‘Julga
inconstitucional por violação do n° 1 do artigo 20° da constituição da República
Portuguesa, o anexo à Lei 34/2004 de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6° a
10° da Portaria n° 1085-A/2004 de 3 1/8, na parte em que impõe que o rendimento
relevante para efeitos de concessão de apoio Judiciário seja necessariamente
determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o
requerente de protecção usufruir de tal rendimento.’
Refere o citado Acórdão, que vamos seguir de perto, que o n° 5 do artigo 8° da
lei em análise delimita o direito ao acesso ao direito e aos tribunais, por
critérios de apreciação tabelados e fixados, por recurso a uma fórmula
matemática. Nesta altura, e ao contrário da anterior lei do apoio judiciário,
deixou de se atender ao caso concreto e passou a ter-se uma norma fechada e a
pondera-se critérios estritos económico-financeiros.
Entende o citado Tribunal que o uso de uma fórmula matemática para se apreciar a
situação de insuficiência económica nos termos dos artigos 6° a 10° da citada
Portaria, traduz-se numa delimitação do direito de aceder aos tribunais.
Mas a aplicação desta fórmula no caso conduz a um resultado que, salvo o devido
respeito por melhor entendimento, não se mostra conforme o direito fundamental
de acesso ao direito e aos tribunais porque implica uma restrição desse direito
e numa violação do princípio da igualdade.
Portanto, entende o tribunal não aplicar a norma acima mencionada por se
entender que se viola o artigo 20°, n° 1 da CRP que estabelece que a todos é
assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus interesses e
direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência económica.
Actualmente a apreciação em concreto da insuficiência económica do requerente
passou a ter lugar a título excepcional (artigo 20°, n° 2 da Lei e 2° da
Portaria), ao contrário do que ocorria na lei anterior. A fórmula considera
todos os rendimentos do agregado familiar do interessado, isto é, todas as
pessoas que vivam em economia comum com o requente, sendo que tal valoração é
feita de maneira rígida e tabelar através de uma ‘fórmula matemática.’ (artigos
6° a 10° da Portaria citada).
A aplicação do anexo e destes artigos não garante o acesso ao direito e aos
tribunais, dado que o valor do rendimento relevante é determinado pelo do
agregado familiar independentemente de o requerente fruir ou não desse
rendimento do terceiro que integra a economia comum (mas tal poderá não ser
assim, poderão existir conflitos). Tal como se refere no citado Acórdão o dever
de alimentos não compreende as despesas relativas à taxa de justiça, e como tal
não se pode dar como assente que o requerente dispõe do valor da pensão da
esposa (cfr. Lei n° 6/2001, de 11/5).
No caso sub judice resulta que se entende que se tem de conceder o apoio na
modalidade de isenção total visto que tem de se valorar os gastos com a educação
e a penhora porque resulta de forma clara que essas de pesas denotam uma
manifesta insuficiência económica (de resto a causa presente tento o seu valor
representa um elevado encargo em termos de custas e taxas), visto que fica livre
um valor inferior ao salário mínimo. Por outras palavras, não se pode aplicar
rigidamente a formula matemática visando respeitar o acesso ao direito e aos
tribunais.
Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, e revoga-se a douta decisão
recorrida, e em conformidade é concedido o benefício de apoio judiciário à
requerente na modalidade peticionada.”
2. O Ministério Público veio interpor recurso, para este Tribunal, invocando
que:
“O Ministério Público junto dos Juízos de Execução do Porto, não se conformando
com a decisão proferida nos presentes autos que apreciou o recurso de impugnação
judicial de apoio judiciário e que decidiu recusar a aplicação das normas
constantes do Anexo da Lei 34/2004 e da Portaria n.° 1085-A/2004, publicada no
D.R. I-B de 31 de Agosto de 2004, por serem inconstitucionais e violarem o
disposto no art° 20.°, n.° 1, da Constituição da Republica Portuguesa, na parte
em que impõem que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício
do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do
agregado familiar independentemente de o requerente fruir esse rendimento, vem
interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da referida decisão, para
apreciação da alegada inconstitucionalidade das normas constantes do Anexo da
Lei 34/2004 e da Portaria n.° 1085-A/2004, publicada no D.R. I-B de 31 de Agosto
de 2004, na parte em que impõem que o rendimento relevante para efeitos de
concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar independentemente de o requerente
fruir esse rendimento.”
A fls. 86 dos autos, o Relator proferiu o seguinte despacho:
“Notifique-se o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto para, em 10 dias, dizer o que se
lhe oferecer, face à eventualidade de o Tribunal vir a não conhecer do objecto
do recurso, porquanto o critério normativo pressuposto na decisão recorrida não
coincidir com a decisão normativa em causa no presente recurso - ali partia-se
do princípio de que 'o rendimento relevante' deveria ser determinado a partir do
rendimento global, auferido por todos os membros do agregado familiar,
independentemente de o requerente fruir tal rendimento; aqui, a mencionada
dimensão normativa aponta para que todo o rendimento do respectivo agregado seja
auferido pelo próprio requerente.”
Na sequência do mesmo, respondeu o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nos termos que
se transcrevem:
“l.º
A estrutura lógico-argumentativa da decisão recorrida pode efectivamente
propiciar algum equívoco sobre a interpretação normativa dos preceitos em causa
efectivamente desaplicada.
2.º
Na verdade – começando por aderir inteiramente ao entendimento consubstanciado
no Acórdão n° 654/06, que versa sobre realidade fáctica diversa da dos presentes
autos – acaba por marcar tal distinção, a p. 61, ao imputar a
inconstitucionalidade à rígida aplicação da fórmula matemática, normativamente
prevista, sem atender às especificidades do caso concreto e ao facto de o
requerente – embora único titular dos rendimentos auferidos – ficar com
disponibilidade de verba inferior ao salário mínimo.
3.º
Foi precisamente a esta ‘correcção’, baseada na interpretação dos termos da
sentença recorrida, a que se procedeu na alegação, por se considerar que não
faria sentido este Tribunal Constitucional ir pronunciar-se sobre critério
normativo estranho à realidade processual versada nos autos – afigurando-se que,
nesta perspectiva, não ocorrerá obstáculo ao conhecimento do recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Analisado o critério decisório que fundamentou a decisão recorrida e o
sentido normativo constante do requerimento de interposição de recurso – o qual,
relembra-se, delimita o objecto do recurso – verifica-se que este não coincide
com o sentido normativo invocado no aludido requerimento de interposição.
Na verdade, o primeiro, em concreto, parte do princípio que o “rendimento
relevante” deve ser determinado a partir do rendimento global, auferido por
todos os membros do agregado familiar, independentemente do requerente fruir tal
rendimento; o segundo pressupõe que todo o rendimento do respectivo agregado
seja auferido pelo próprio requerente.
Assim, não existindo coincidência entre a dimensão normativa questionada no
requerimento de interposição de recurso e o juízo de inconstitucionalidade
proferido nos autos, conclui-se pela impossibilidade de tomar conhecimento do
recurso.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, não
conhecer do objecto do recurso.
Lisboa, 17 de Abril de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos