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Processo n.º 651/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de
Évora, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP), contra o
despacho do Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, de 6 de Outubro de
2006, que não admitiu recurso por ele interposto de despacho do mesmo Juiz, de 8
de Setembro de 2006, que indeferiu impugnação da deliberação do Instituto de
Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, que lhe havia negado a concessão de
apoio judiciário, por ele peticionada nas modalidades de dispensa de taxa de
justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de honorários
de patrono, tendo em vista a sua constituição como assistente em processo penal
pendente no DIAP de Évora (Proc. n.º 348/05.8TAEVR).
A reclamação foi deferida por despacho do
Vice‑Presidente do Tribunal da Relação de Évora, de 31 de Outubro de 2006, com a
fundamentação seguinte:
“A questão que se coloca na presente reclamação consiste em saber se
a tramitação da impugnação da decisão administrativa proferida sobre o pedido de
apoio judiciário, formulado ao abrigo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, admite
recurso para o Tribunal da Relação.
O regime de acesso ao direito e aos tribunais consagrado na Lei n.º
30‑E/2000, de 20 de Dezembro, ao regular a tramitação da impugnação da decisão
administrativa proferida sobre o pedido de apoio judiciário, dispunha no seu
artigo 29.º, n.º 1, que «é competente para conhecer e decidir o recurso em
última instância o tribunal da comarca em que está sediado o serviço de
segurança social que apreciou o pedido de apoio judiciário, ou, caso o pedido
tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontre
pendente».
Nos termos deste regime, não havia dúvida que a tramitação da
impugnação judicial da decisão sobre o pedido de apoio judiciário era decidida,
em última instância, pelo tribunal de comarca, não cabendo recurso da decisão
deste tribunal para o Tribunal da Relação.
Entretanto, o regime consagrado na Lei n.º 30‑E/2000, de 20 de
Dezembro, foi revogado pela Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que estabeleceu
novo regime, transpondo para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º
2003/8/CE, do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à
justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras
mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.
Este diploma legal, no seu artigo 28.º, n.º 1, estatui que «é
competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em que
está sediado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção
jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o
tribunal em que esta se encontre pendente».
Por seu turno, o artigo 29.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, sob a
epígrafe «Alcance da decisão final», refere que «a decisão que defira o pedido
de protecção jurídica especifica as modalidades e a concreta medida do apoio
concedido».
Conjugando estas duas disposições legais temos, pelo menos, uma
decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Maio de 2006, in
www.dgsi.pt/jtrc, proferida em sede de reclamação, que concluiu:
«A tramitação desta impugnação, a processar nos termos dos artigos
27.º e 28.º da Lei n.º 34/2004, contempla apenas a intervenção do tribunal da
comarca, isto é, da decisão deste tribunal não cabe já novo recurso para o
Tribunal da Relação.
A referência a ‘decisão final’, constante do artigo 29.º da Lei n.º
34/2004, reforça a ideia de que o tribunal de comarca tem a última palavra em
matéria de apoio judiciário, a menos que se suscite alguma
inconstitucionalidade.»
Nós próprios, ao decidir a Reclamação n.º 1542/06‑1, na linha desta
decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, concluímos que a tramitação da
impugnação judicial da decisão sobre o apoio judiciário, descrita nos artigos
27.º e 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, admitia apenas recurso para o
Tribunal de Comarca que decidia em última instância.
Entretanto, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu várias
decisões, em sede de reclamação, nas quais, embora reconhecendo que a questão é
duvidosa, abre a possibilidade de admissão de recurso para o Tribunal da
Relação [cf. decisão das Reclamações n.º 2606/06‑3, 2378/06‑9, 3103/06‑9 e
2137/06‑9].
Esta posição escora-se nos seguintes argumentos:
– No artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, não está
expressamente prevista a irrecorribilidade da decisão proferida pelo tribunal
de 1.ª instância sobre o pedido de apoio judiciário;
– Esta disposição legal apenas regula a atribuição da competência
para conhecimento de recursos das decisões administrativas e regras de definição
de competência entre tribunais duma mesma comarca, mas não se pretende
estabelecer uma regra de irrecorribilidade;
– A Lei n.º 30/2000, de 20 de Dezembro, no seu artigo 29.º, previa
apenas uma instância de recurso, pelo que o respectivo desaparecimento expresso
a tal limitação na Lei n.º 34/2004 parece levar à conclusão da admissibilidade
de recurso para o Tribunal da Relação.
Ponderando sobre estes argumentos, parece‑nos que a questão não é
linear, o que é, desde logo, motivo para que se admita a reclamação.
Na verdade, a eliminação do segmento que constava no artigo 29.º,
n.º 1, da Lei n.º 30‑E/2000, de 20 de Dezembro, «em última instância», poderá
significar que o legislador, na Lei em vigor, terá optado por seguir a regra
geral de recorribilidade em dois graus de recurso, aplicando‑se as regras gerais
constantes nos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, julga‑se procedente a reclamação e revoga‑se o
despacho impugnado, ordenando‑se a sua substituição por outro que admita o
recurso.”
Na sequência deste despacho, o recurso foi admitido no
Tribunal de Instrução Criminal de Évora e remetido ao Tribunal da Relação de
Évora, mas, aí, o representante do Ministério Público suscitou a questão prévia
da inadmissibilidade do recurso, porquanto, “de acordo com a melhor
interpretação do disposto nos artigos 26.º, 27.º e 28.º da Lei n.º 34/2004, de
29 de Julho, só existe uma instância de recurso da decisão sobre o pedido de
protecção jurídica”.
Notificado deste parecer, nos termos e para os efeitos
do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente apresentou resposta, na qual
defende como mais correcta a interpretação dos artigos 26.º a 28.º da Lei n.º
34/2004 no sentido da admissibilidade de recurso para a Relação, até porque, “na
falta de norma expressa na lei em vigor aplica‑se, sem sombra de maior dúvida, a
regra geral dos artigos 399.º e 400.º da lei adjectiva penal”, suscitando desde
logo a questão da inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1,
4 e 5, 32.º, n.ºs 1 e 7, 202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP), de interpretação diversa daquelas normas, isto é, de
interpretação que considerasse incabível recurso para a Relação das decisões dos
tribunais de comarca que neguem provimento a impugnação judicial da decisão
administrativa que indeferiu a concessão do benefício de apoio judiciário.
Por acórdão de 17 de Abril de 2007, o Tribunal da
Relação de Évora rejeitou o recurso, por manifesta improcedência, nos termos do
artigo 420.º, n.º 1, do CPP, com base na seguinte argumentação:
“No actual regime de apoio judiciário, decorrente da Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, à semelhança, aliás, do que sucedia no âmbito da Lei
n.º 30‑E/2000, de 20 de Dezembro, a decisão proferida sobre tal matéria pelo
máximo dirigente dos Serviços da Segurança Social está sujeita a impugnação
judicial – v. artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
Invoca o recorrente que a referência a última instância feita no
artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 30‑E/2000 já não consta do correspondente
preceito da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, ou seja, do artigo 28.º, n.º 1,
desta Lei.
Por tal facto, o certo é que a tramitação actual da impugnação
judicial da decisão proferida no procedimento administrativo que decidiu o apoio
judiciário prevê tão‑somente a intervenção do Tribunal de Comarca e, logo, de
um só grau de jurisdição em matéria de recurso.
Se tivesse havido o propósito de ser fixado um duplo grau de
jurisdição, com recurso para o Tribunal da Relação, isso não teria deixado de
estar expressamente consagrado no texto da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
Conforme salienta o Ex.mo Presidente do Tribunal da Relação de
Coimbra, na decisão da Reclamação n.º 61/2005, datada de 24 de Maio de 2006, «a
referência a decisão final constante do artigo 29.º da Lei n.º 34/2004, reforça
a ideia de que o Tribunal de Comarca tem a última palavra em matéria de apoio
judiciário, a menos que se suscite alguma inconstitucionalidade».
No mesmo sentido se pronunciou o Ex.mo Presidente do Tribunal da
Relação do Porto, na decisão da Reclamação n.º 0612090, datada de 2 de Abril de
2006, ao escrever taxativamente: «Não há, segundo a lei, recurso para o Tribunal
da Relação, em matéria de apoio judiciário, conforme se infere de todo o regime
actual, apenas se prevendo a ‘impugnação’ que é para o Tribunal de Comarca».
Atenta a natureza da matéria em causa, aliás, sempre seria
incompreensível a fixação de um duplo grau de jurisdição, devendo manter‑se, à
luz do actual quadro legal (Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), o entendimento
existente, de uma forma inquestionável, ao abrigo da anterior Lei n.º 30‑E/2000,
de 20 de Dezembro.”
É contra este acórdão que pelo recorrente vem interposto
o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade, por violação dos “princípios do acesso ao direito e aos
tribunais e do direito ao recurso, imperativos dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 20.º,
n.ºs 1 e 7 do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º e artigo 203.º, in fine,
todos da Constituição da República Portuguesa”, da interpretação, feita no
acórdão recorrido, “das normas contidas nos artigos 399.º do Código de Processo
Penal e no n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugada
concomitantemente com o artigo 9.º do Código Civil, (…) no sentido de que não é
admissível recurso da decisão judicial tirada sobre impugnação da decisão
administrativa que indefere o requerimento de protecção jurídica”.
No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª – A apreciação de petição do instituto de protecção jurídica
não configura bagatela jurídica, antes se apresenta como questão essencial,
por, a montante da questão principal trazida a juízo, poder cercear ou impedir o
acesso ao direito e aos tribunais pelo cidadão economicamente carenciado.
2.ª – O recurso da decisão judicial tirada sobre a impugnação do
acto administrativo que tenha indeferido a concessão desse instituto é, na
realidade, o primeiro e único recurso jurisdicional.
3.ª – A sua admissibilidade não está vedada por lei, nem nas
excepções previstas no artigo 400.º do Código de Processo Penal, nem no n.º 1 do
artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, não podendo existir qualquer
razão para interpretar esta norma de modo diverso do que a sua letra expressa,
por absoluta omissão.
4.ª – Sendo a regra geral, a do artigo 399.º da aludida lei
adjectiva penal, a aplicável, pois que a irrecorribilidade tem de estar expressa
taxativamente.
5.ª – Sem que sequer se possam esgrimir quaisquer outros motivos,
designadamente de índole histórica ou de celeridade, que obstem a esta
interpretação.
6.ª – Muito menos a expressão «Alcance da decisão final», plasmada
no artigo 29.º da mesma Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, pode ser entendida
noutro sentido que não como sendo a definitiva, a que já não tem recurso
judicial, a transitada em julgado.
7.ª – É, pois, recorrível, por nada estar expresso nessas normas
legais em sentido contrário, devendo estar se o não fosse, segundo a regra do
citado artigo 399.º do Código de Processo Penal.
8.ª – A interpretação legislativa das normas arguidas plasmada pelo
Tribunal a quo viola o direito do cidadão carenciado a aceder de forma célere e
equitativa ao direito e aos tribunais, sindicando as decisões judiciais que se
lhe afigurem de erradas e/ou ilegais, competindo aos tribunais, em primeira
linha, tutelar tais direitos, assegurando o seu exercício, em submissão à lei e
à Constituição, seja qual for a posição desse cidadão na acção a dirimir.
9.ª – Devendo, em conformidade, ser declarada a
inconstitucionalidade das normas dos artigos 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de
29 de Julho, e dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na
interpretação dada, contrária ao sentido emergente da norma do n.º 2 do artigo
9.º do Código Civil, de que a decisão judicial tirada da impugnação do acto
administrativo é irrecorrível, por violar capitalmente os imperativos dos
artigos 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.ºs 1 e 7, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º da
Constituição da República Portuguesa.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
contra‑alegou, concluindo:
“1.º – A norma constante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004,
interpretada em termos de consagrar a irrecorribilidade da decisão, proferida
pelo tribunal de 1.ª instância, que haja julgado improcedente a impugnação
deduzida pelo interessado em obter o apoio judiciário, não viola qualquer
preceito ou princípio constitucional.
2.º – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Na evolução recente do sistema de protecção aos
cidadãos que, por insuficiência de meios económicos, não estão em condições de
custear as despesas normais de um pleito judicial (incluindo os honorários dos
profissionais forenses devidos por efeito da prestação dos seus serviços) a que
pretendem aceder para fazer valer ou defender os seus direitos ou interesses
legalmente tutelados, a alteração mais relevante consistiu na
“administrativização” desse sistema, operada pela Lei n.º 30‑E/2000, de 20 de
Dezembro.
Com efeito, no regime anterior a esse diploma, a decisão
de concessão da “assistência judiciária” ou de “apoio judiciário”,
designadamente nas modalidades de dispensa, total ou parcial, de preparos e do
prévio pagamento de custas, ou o seu diferimento, e de patrocínio oficioso,
competia, em regra, “ao juiz da causa para a qual é solicitada, constituindo um
incidente do respectivo processo e admitindo oposição da parte contrária” (n.º 1
da Base VII da Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, e artigo 21.º do Decreto‑Lei n.º
387‑B/87, de 29 de Dezembro).
Estes dois diplomas inseriam disposições específicas
quanto à recorribilidade das decisões judiciais sobre pedidos de assistência ou
apoio judiciários. O n.º 4 da citada Base VII dispunha que “Da decisão que
concede a assistência não há recurso; da que a nega cabe agravo, em um só grau,
com efeito suspensivo”, isto é: estabelecia‑se a regra da irrecorribilidade das
decisões positivas e da recorribilidade, num único grau, independentemente do
valor da causa ou do incidente, das decisões negativas de assistência.
Diversamente, o artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87, na sua redacção
originária, dispunha: “Das decisões proferidas sobre apoio judiciário cabe
sempre agravo, independentemente do valor, com efeito suspensivo, quando o
recurso for interposto pelo requerente, e com efeito meramente devolutivo nos
demais casos”, isto é: consagrou‑se a regra da recorribilidade de todas as
decisões judiciais sobre concessão de apoio judiciário, passando o sentido
dessas decisões a relevar, já não para a admissibilidade ou inadmissibilidade do
recurso, mas apenas para a determinação do respectivo efeito – suspensivo nos
recursos das decisões que negassem a concessão, meramente devolutivo nos
recursos das decisões que concedessem o apoio requerido.
Relativamente a pedidos deduzidos em processos pendentes
em tribunais superiores, o Regulamento da Assistência Judiciária nos Tribunais
Ordinários, aprovado pelo Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro, dispunha, no
seu artigo 25.º, que as atribuições cometidas ao juiz da causa seriam
desempenhadas pelo relator no tribunal superior (n.º 1) e que “das decisões
finais do relator cabe apenas reclamação para a conferência” (n.º 2). Já o
Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 se limitava a prever, no artigo 41.º, que “as
competências neste diploma cometidas ao juiz da causa são, nos tribunais
superiores, desempenhadas pelo relator”, nada dizendo sobre os modos de
impugnação das respectivas decisões, tendo sido defendido na doutrina que “da
decisão do relator sobre o apoio judiciário em tribunal superior (…) cabe
reclamação para a conferência”, que “a decisão da conferência sobre a
reclamação da do relator, no tribunal da Relação, sobre o apoio judiciário é
recorrível, sob agravo, para o Supremo Tribunal de Justiça”, mas que “a decisão
do relator no Supremo Tribunal de Justiça sobre o apoio judiciário apenas é
reclamável para a conferência” (Salvador da Costa, Apoio Judiciário, ed. Rei dos
Livros, Lisboa, 1990, pp. 99‑100). Este último diploma, confrontado com a
criação do ilícito de mera ordenação social, instituído pelo Decreto‑Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro, veio estender “o regime de apoio judiciário (…), com
as devidas adaptações, aos processos das contra‑ordenações” (artigo 16.º, n.º
2), tendo o seu diploma regulamentar – o Decreto‑Lei n.º 391/88, de 26 de
Outubro – explicitado, no seu artigo 2.º, que “nos processos de contra‑ordenação
a entidade competente para decidir o pedido de apoio judiciário é a que
superintende no processo no momento em que aquele é apresentado” (n.º 1) e que
“da decisão proferida por entidade administrativa que indeferir, total ou
parcialmente, o apoio judiciário cabe recurso para o tribunal de comarca, nos
termos previstos no artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87” (n.º 2). Anotando
esta última disposição, referia Salvador da Costa (obra citada, p. 139) que,
sendo “o relevo do apoio judiciário no processo de contra‑ordenação (…), pela
natureza do respectivo objecto, insignificante”, se justificava a limitação, em
sede de recurso, constante do preceito em causa, que não permitia recurso da
decisão da autoridade administrativa que concedesse o apoio judiciário ou
nomeasse defensor ao arguido em processo de contra‑ordenação, pelo que só da
decisão que o denegasse total ou parcialmente ou que recusasse a nomeação de
defensor oficioso é que cabia “recurso, em apenas um grau, para o tribunal
competente, com subida diferida e efeito suspensivo da consequência jurídica da
decisão (artigos 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 e 55.º, n.º 3, do Decreto‑Lei
n.º 433/82)”.
Foi na vigência da redacção originária do artigo 39.º do
Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 que o Tribunal Constitucional foi chamado a
pronunciar‑se, pela primeira vez, sobre questões de constitucionalidade
reportadas ao regime de recursos jurisdicionais das decisões sobre concessão de
apoio judiciário, embora o que então se discutiu fosse, não a forçosa existência
de um grau de recurso (que resultava claramente da letra da lei), mas antes a
existência de um duplo grau de recurso (questão que foi potenciada pela
circunstância de o referido artigo 39.º ter omitido a clara restrição a “um só
grau” do recurso contra a decisão que negasse a assistência, constante do n.º 4
da Base VII da Lei n.º 7/70).
Assim, o Acórdão n.º 489/95 pronunciou‑se sobre a
questão de constitucionalidade da interpretação do artigo 39.º do Decreto‑Lei
n.º 387‑B/87 segundo a qual, apesar de em processo civil a decisão da 1.ª
instância que negasse a concessão de apoio judiciário beneficiar de um duplo
grau de recurso, o mesmo não suceder relativamente a idêntica decisão proferida
no âmbito de processo penal, onde estava apenas assegurado um grau de recurso. A
tese de inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente foi rejeitada pelo
Tribunal Constitucional, com a seguinte fundamentação:
“Como se viu, o despacho impugnado interpretou o preceito em causa
[o artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87] de jeito a que a forma de recurso
por ele consagrada – o agravo – haveria de se pautar de harmonia com as regras
normais e com os princípios fundamentais regentes dos recursos gizados para a
natureza do processo em que se tenha de decidir o incidente de apoio judiciário.
Assim, segundo o despacho em questão, se a decisão nesse incidente foi proferida
num processo de natureza criminal, haverá que interpretar a norma constante do
artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 de molde a que não se admita a
possibilidade de existência de dois graus de jurisdição como forma de impugnação
dessa decisão, e isso, justamente, pela circunstância de, de acordo com o regime
de recursos ordinários vigente para o processo criminal, as decisões judiciais
proferidas em 1.ª instância, em regra, comportam unicamente um grau de recurso
– ou para o Supremo Tribunal de Justiça [nos casos previstos no artigo 432.º do
Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro
(…)], ou para a Relação [nos casos a que se refere o artigo 427.º (…)].
Na senda do raciocínio que subjaz a tal despacho, ser‑se‑á conduzido
a entender que, postando‑nos perante decisões proferidas em 1.ª instância e
prolatadas em processos de natureza cível – onde, em regra, existe a
possibilidade de haver três graus de jurisdição, assim o valor da causa tal
comporte ou, excepcionalmente, caso se deparem as hipóteses, legalmente
previstas, em que é sempre de admitir recurso independentemente do valor da
causa (cf. artigo 678.º do Código de Processo Civil) – é admissível a respectiva
impugnação através de agravo para a Relação e, do aqui decidido, agravo para o
Supremo Tribunal de Justiça, e isto pela razão segundo a qual, por força da
disposição em apreço, não relevam o valor da causa e da sucumbência como
condicionantes do recurso.
O entendimento perfilhado no despacho sub judicio é, pelo ora
recorrente, perspectivado como feridente dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º e 20.º
da Constituição, pois que a interpretação adoptada cerceia «um dos mais
sagrados e indisponíveis direitos dos cidadãos, que é o de conhecer, fazer valer
ou defender os seus direitos» e «[r]estringe os direitos, liberdades e
garantias do cidadão».
2 – Tem este Tribunal dito e redito, apoiando‑se na doutrina e na
sua já vasta jurisprudência a propósito tirada, que o direito de acesso aos
tribunais postulado pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental não garante,
necessariamente, em todos os casos e por si só, o direito a um duplo ou a um
triplo grau de jurisdição, sendo que a garantia de um duplo grau de jurisdição
referentemente a réus condenados em processo criminal não é imposta por aquele
normativo constitucional, antes decorrendo do que se preceitua no n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição.
E, igualmente, tem defendido que o Diploma Básico não consagra um
direito geral de recurso das decisões judiciais (afora aquelas de natureza
criminal e condenatória, recurso esse, porém, que deflui da necessidade de
previsão de um segundo grau de jurisdição, necessidade essa, repete‑se, imposta
pelo n.º 1 do artigo 32.º), mormente para o Supremo Tribunal de Justiça.
Acrescenta, todavia, com suporte na própria doutrina, que, uma vez que a
Constituição prevê «a existência de tribunais de recurso na ordem dos tribunais
judiciais» e que lei infraconstitucional, designadamente os diplomas adjectivos
fundamentais e os que regem a organização judiciária, também prevêem esses
órgãos de administração de justiça funcionando como tribunais vocacionados para
decidir em sede de impugnação das decisões emanadas de tribunais de hierarquia
inferior, então não será lícito ao legislador ordinário «suprimir em bloco os
tribunais de recurso e os próprios recursos» ou «ir até ao ponto de limitar de
tal modo o direito de recorrer, que, na prática, se tivesse de concluir que os
recursos tinham sido suprimidos» (as expressões em itálico são extraídas da obra
Recursos em Processo Civil, de Armindo Ribeiro Mendes, Lisboa, 1992, pp. 100,
101 e 102; cf., como exemplo da jurisprudência do Tribunal, e com mais recente
publicação, quanto ao tema em análise, o Acórdão n.º 447/93, no Diário da
República, II Série, de 23 de Abril de 1994).
A norma em questão, seguramente, não vem prescrever aquela
supressão em bloco ou uma solução de onde decorra que, na prática, ficaram, com
o sistema por ela estabelecido, suprimidos os recursos no que tange às decisões
proferidas em incidentes de apoio judiciário. Daí que, havendo‑se de reconhecer
ao legislador uma liberdade de conformação quanto ao estabelecimento de
requisitos condicionadores dos recursos ou para «alterar pontualmente as regras
sobre a recorribilidade das decisões», ampliando ou restringindo,
designadamente, os recursos civis, «e a existência de recursos», respeitados que
sejam os limites acima focados, ter‑se‑á de concluir que a interpretação
conferida à norma do artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 pelo despacho em
crise não viola o disposto no artigo 20.º da Constituição.
A estas considerações há igualmente que aditar que, conforme não
deixa de ser focado no despacho recorrido e na alegação do Ex.mo
Procurador‑Geral Adjunto, seria verdadeiramente incoerente que se consagrasse
no sistema processual penal, como forma de reapreciação das decisões judiciais,
maxime as condenatórias, um só grau de jurisdição, enquanto que para uma questão
incidental referente a apoio judiciário suscitada em processo criminal se abria
a possibilidade de recurso em dois graus, quando é certo que os interesses em
jogo no processo criminal, de todo em todo, não podem ser perspectivados como
de menor relevância confrontadamente com os conexionados com as questões de
apoio judiciário.
3 – Num outro enfoque, não divisa o Tribunal que tal norma,
interpretada do modo como o foi, postergue o princípio da igualdade que deflui
do artigo 13.º do Diploma Fundamental.
É bem sabido que aquele princípio não aponta no sentido de que
igualdade corresponda a igualitarismo, antes correspondendo a uma igualdade
proporcional, ou seja, exige que se tratem por igual situações substancialmente
iguais, e que situações substancialmente dissemelhantes sofram diverso
tratamento, embora proporcionadamente diferente.
Poder‑se‑ia argumentar que a interpretação dada à norma sub specie
pelo despacho em recurso levaria a que houvesse, quanto às formas de impugnação
de decisões judiciais proferidas nos incidentes de apoio judiciário, uma
diferenciação de tratamento, conforme a sua prolação ocorresse em processos de
natureza cível ou de natureza penal, por isso que seria permitida, nos
primeiros e em regra, a existência de três graus de jurisdição, enquanto que
nos segundos só seriam permitidos dois.
A um tal argumento responder‑se‑á que, ao fim e ao resto, a
detectada diferenciação resulta, em direitas contas, não da norma em apreciação
em si (e na interpretação a ela conferida), pois que essa diferenciação não é
uma peculiaridade da mesma, mas sim das características gerais dos recursos
consagrados para o processo civil e para o processo criminal (um comportando,
em regra, três graus de jurisdição, e outro somente dois).
Ora, neste particular, há que ponderar, de um lado, que todas as
«partes» intervenientes em processos de natureza criminal, requerentes da
concessão de apoio judiciário, obviamente que, quanto à forma de impugnação das
decisões tomadas em relação a tal incidente, são tratados de maneira igual e,
por outro lado, que, tratando‑se de diferentes realidades os processos daquela
natureza e os de natureza cível – sendo que o processamento mais célere dos
primeiros foi um dos desideratos do legislador ao estruturar o Código de
Processo Penal de 1987 – o tratamento diferenciado quanto à não
admissibilidade, em regra, de mais do que um grau de recurso é justificado e
proporcionado se se tiver em conta o modo como o processo criminal se encontra
estruturado a nível de censura das decisões tomadas na 1.ª instância e os
motivos que conduziram a essa opção.
Não se divisa, em consequência, que a interpretação normativa que
serviu de base à decisão constante do despacho recorrido enferme de qualquer
contraditoriedade com a Constituição.”
A não inconstitucionalidade da inexistência de um duplo
grau de recurso da decisão judicial que indeferisse pedido de apoio judiciário
foi reafirmada no Acórdão n.º 1124/96, proferido em recurso interposto de
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitira recurso do acórdão do
Tribunal da Relação, confirmativo do despacho de indeferimento do apoio
judiciário, por inexistir um terceiro grau de jurisdição na matéria,
entendimento este alicerçado em três argumentos, extraídos da comparação com o
anterior regime, do símile da jurisdição voluntária e da inexigência
constitucional: (i) “no domínio da Lei n.º 7/70, (…) não havia recurso da
decisão da 1.ª instância que concedia a então chamada assistência judiciária e
da decisão que a negava cabia agravo, em um só grau, com efeito suspensivo (…),
sendo certo que, nos tribunais superiores, competia ao relator decidir sobre o
pedido, não havendo recurso mas tão‑só reclamação para a conferência”; (ii)
“revestia‑se o incidente das características próprias de um processo de
jurisdição voluntária, parecendo, assim, natural, dada a similitude, não serem
as decisões nele proferidas passíveis de recurso em dois graus”; (iii)
“finalmente, constituía pacífica e impressiva corrente jurisprudencial a que
entendia o apoio judiciário não coadunável, na sua natureza específica, com a
referência ao valor processual da acção em que é suscitado, determinante da
alçada, e muito menos com a medida de uma mera sucumbência as mais das vezes
difícil de quantificar, não existindo o propósito de tipificar um regime pelo
qual se conseguiria discutir o apoio em dois graus de recurso, sem se conhecer
do mérito da causa em nenhum”.
No aludido Acórdão n.º 1124/96, o Tribunal
Constitucional não julgou inconstitucional a interpretação normativa acolhida
no acórdão recorrido, ponderando:
“Não está agora em causa – é necessário salientar – o acerto de
semelhante decisão numa perspectiva crítica que extravasaria obviamente a
competência do Tribunal Constitucional, tão‑só interessando apurar se essa
interpretação se mostra constitucionalmente adequada – o que não sucederá se o
duplo grau de recurso for garantido constitucionalmente em situações como a
presente.
Nesta matéria, e como se observou no Acórdão n.º 447/93, publicado
no Diário da República, II Série, de 23 de Abril de 1994, «o Tribunal
Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme, que remonta a 1985, e que
fora antecedida já por uma orientação idêntica da Comissão Constitucional.
Assim, no domínio do processo criminal, essa jurisprudência reconhece que, por
força dos artigos 27.º, 28.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, se acha
constitucionalmente assegurado o duplo grau de recurso quanto às decisões
condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação
ou restrição de liberdade ou a qualquer outros direitos fundamentais (v., por
todos, os Acórdãos n.ºs 31/87, 178/88, 340/90 e 401/91, o primeiro publicado nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., pp. 463 e seguintes, e os outros
no Diário da República, II Série, n.º 277, de 30 de Novembro de 1988, n.º 65, de
19 de Março de 1991, e I Série‑A, n.º 6, de 8 de Janeiro de 1992,
respectivamente). Mas tal garantia de duplo grau de recurso não abrange outras
decisões proferidas em processo penal (o Tribunal tem sustentado em sucessivas
decisões que não sofre de inconstitucionalidade o artigo 390.º, n.º 2, do Código
de Processo Penal de 1929).
No domínio dos outros ramos de direito processual, o Tribunal
Constitucional tem entendido que o duplo grau de recurso não se acha
constitucionalmente garantido, reconhecendo‑se ampla liberdade de conformação
ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos,
nomeadamente em função do valor da causa. Assim, no Acórdão n.º 859/86
considerou‑se que a Constituição não garantia em todos os casos o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça (triplo grau de jurisdição), muito embora o
princípio da igualdade vedasse qualquer discriminação no acesso ao Supremo
Tribunal de Justiça em função da natureza sindical de uma associação, face ao
regime aplicável às outras associações (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
8.º vol., pp. 605 e seguintes). E em numerosos arestos posteriores
reconheceu‑se que o n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil não está
afectado de inconstitucionalidade (v. os Acórdãos n.ºs 163/90 e 210/92, in
Diário da República, II Série, n.º 240, de 18 de Outubro de 1991, e n.º 211, de
12 de Setembro de 1992).»
De um modo geral, pode afirmar‑se que, fora do domínio penal, o
princípio da efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de
recurso, não constitui garantia constitucional, tendo apenas, como se observou
noutro Acórdão deste Tribunal – o n.º 310/94, publicado no Diário da República,
II Série, de 29 de Agosto de 1994 – «o alcance de uma proibição ao legislador de
eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou
de a inviabilizar na prática».
Não se vê razão válida para alterar semelhante entendimento.
Por sua vez, de igual modo não se vislumbra em que medida uma norma
como a ora questionada viola o princípio constitucional da igualdade. De resto,
nas respectivas alegações, também a recorrente não o diz, limitando‑se a
considerar como lesante daquele princípio a interpretação da norma em referência
que a limite a um único grau de recurso.
Ora, o princípio da igualdade não proíbe o legislador de estabelecer
regimes diferenciados de recurso, o que impõe é que se dê tratamento igual ao
que for necessariamente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Só
as diferenciações de tratamento carecidas de fundamento material bastante –
logo, arbitrárias ou irrazoáveis – podem ser constitucionalmente censuráveis,
por esta via: o princípio da igualdade identifica‑se com uma proibição de
medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas à ordem constitucional
de valores, por um lado, e, por outro, à situação fáctica que se pretende
regulamentar ou ao problema que se deseja decidir, como se exprimiu este
Tribunal, no Acórdão n.º 523/95, publicado no Diário da República, II Série, de
14 de Novembro de 1995, entre outros.
Não se surpreende, no caso concreto, violação a esse princípio.”
Firmou‑se, assim, jurisprudência no sentido da não
inconstitucionalidade da interpretação que, apesar de a letra da primitiva
redacção do artigo 39.º do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87 o não explicitar, entendia
inexistir duplo grau de recurso das decisões denegatórias de apoio judiciário.
Interpretação essa que veio a ser consagrada na nova redacção dada a esse artigo
39.º pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, passando a dispor que “as decisões
proferidas em qualquer tipo de processo ou jurisdição que concedam ou deneguem
o apoio judiciário admitem recurso de agravo, em um só grau, independentemente
do valor do incidente” (n.º 1), recurso este que, “quando interposto pelo
requerente, tem efeito suspensivo da eficácia da decisão, subindo imediatamente
e em separado, sendo o seu efeito meramente devolutivo nos demais casos” (n.º
2). Mas prevendo a lei, de forma explícita, a existência de recurso da decisão
judicial sobre o pedido de assistência ou apoio judiciário (apenas da que
negasse, na vigência da Lei n.º 7/70; quer da que negasse, quer da que
concedesse, na vigência do Decreto‑Lei n.º 387‑B/87), compreende‑se que o
Tribunal Constitucional jamais tenha sido confrontado, então, com a questão da
inconstitucionalidade da inexistência de um grau de recurso.
2.2. Como se referiu no início do ponto anterior, o
descrito sistema foi profundamente alterado pela Lei n.º 30‑E/2000, que afastou
a regra da competência do juiz da causa para decidir do pedido de apoio
judiciário, para atribuir tal competência, com possibilidade de delegação, “ao
dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência do
requerente” (artigo 21.º, n.º 1). Da decisão sobre o pedido de apoio judiciário
não cabia reclamação, nem recurso hierárquico ou tutelar, mas tão‑só impugnação
judicial (artigo 27.º, n.º 3), para a qual tinham legitimidade, consoante o
sentido da decisão, o requerente do apoio negado ou a parte contrária na acção
judicial para que tivesse sido concedido o apoio judiciário (artigo 27.º, n.º
4), sendo “competente para conhecer e decidir o recurso em última instância o
tribunal da comarca em que está sediado o serviço de segurança social que
apreciou o pedido de apoio judiciário, ou, caso o pedido tenha sido formulado
na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente” (artigo
29.º, n.º 1). A expressa referência legal a que a decisão da impugnação judicial
da decisão administrativa sobre pedido de apoio judiciário, quer pelo tribunal
de comarca da sede do serviço de segurança social, quer pelo tribunal onde
pendesse a acção para a qual o apoio era pedido, sempre o seria “em última
instância”, não permitia dúvidas sobre a inexistência de um duplo grau de
recurso na matéria, não se tendo registado nenhum recurso para este Tribunal
quanto à constitucionalidade dessa restrição.
As dúvidas interpretativas só começaram a surgir, a
nível dor tribunais ordinários, por causa da não reprodução, no artigo 28.º,
n.º 1, da Lei n.º 34/2004, da expressão “última instância” constante do
correspondente n.º 1 do artigo 29.º da Lei n.º 30‑E/2000. Não compete obviamente
ao Tribunal Constitucional, no âmbito do presente recurso, pronunciar‑se sobre
qual a interpretação da lei ordinária que se deve considerar mais correcta
[Refira‑se que a Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que procedeu à primeira
alteração à Lei n.º 34/2004 – alterações que se aplicam apenas aos pedidos de
protecção jurídica apresentados após a sua entrada em vigor (artigo 6.º),
marcada para 1 de Janeiro de 2008 (artigo 8.º) –, aditou um n.º 5 ao artigo 28.º
estatuindo que “A decisão proferida nos termos do número anterior (decisão da
impugnação judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção
jurídica) é irrecorrível”].
O que ao Tribunal Constitucional compete, neste âmbito,
é apurar se a interpretação normativa acolhida na decisão ora recorrida,
segundo a qual não cabe recurso para a Relação da decisão do tribunal de 1.ª
instância que negou provimento à impugnação judicial da decisão administrativa
que denegou a concessão de protecção jurídica – interpretação que constitui um
dado da questão de constitucionalidade a apreciar –, viola, ou não, normas ou
princípios constitucionais, designadamente os invocados pelo recorrente.
2.3. Tal como o recorrente consubstancia a questão de
constitucionalidade que pretende ver apreciada – existência de um duplo grau de
jurisdição em matéria de concessão de apoio judiciário –, ela prende‑se
fundamentalmente com o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo
20.º, n.º 1, da CRP, surgindo como desajustada a invocação dos n.ºs 4 e 5 desse
preceito (direito a decisão em prazo razoável mediante processo equitativo), dos
n.ºs 1 e 7 do artigo 32.º (garantias de defesa em processo criminal, incluindo o
recurso, e direito de o ofendido intervir no processo), dos n.ºs 1 e 2 do artigo
202.º (reserva da função judicial) ou do artigo 203.º (independência dos
tribunais) da CRP.
Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais,
constitui reiterado entendimento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1,
da CRP não decorre um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se
explicitou nos atrás parcialmente transcritos Acórdãos n.ºs 489/95 e 1124/96.
Como se referiu no Acórdão n.º 638/98 (na senda do já exposto, entre outros, nos
Acórdãos n.ºs 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 715/96,
328/97, 234/98 e 276/98, e explicitando orientação posteriormente reiterada em
numerosos arestos, designadamente nos Acórdãos n.ºs 202/99, 373/99, 415/2001,
261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007):
“7. O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição assegura a todos «o acesso
ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos,
segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e
independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena
igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista
(designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal
possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral
de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição,
incluindo‑se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de
jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito
ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em
processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional
(constante da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir,
no artigo 32.º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa,
assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta
revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em
matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra
esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32.º
Para além disso, algumas vozes têm considerado como
constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o
direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este
respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António
Vitorino, respectivamente no Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no Acórdão n.º 202/90, id., vol. 16.º, p.
505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não
poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com
A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III – Recursos, AAFDL, Lisboa,
1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais
judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da
competência própria do Tribunal Constitucional – artigo 210.º), terá de
admitir‑se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais
de recurso e os próprios recursos» (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol.
17.º, p. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso,
pode concluir‑se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente
a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na
prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de
liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os
citados Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol.. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional,
ainda Acórdãos n.º 359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p.
605), n.º 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º
450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das
decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer
decisões que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla
margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não
suprima em globo a faculdade de recorrer.”
2.4. A referência à existência de uma tese segundo a
qual estaria “constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito
democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e
garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal”,
reportado às citadas declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e
António Vitorino, feita no Acórdão acabado de referir, veio a ser repetida em
diversas decisões deste Tribunal, mas sem que passasse a ser perfilhada, pelo
menos de forma explícita, pelo próprio Tribunal, não se conhecendo, aliás,
nenhum juízo de inconstitucionalidade emitido pelo Tribunal Constitucional,
fora dos casos em que tradicionalmente reconhecia haver direito a recurso de
decisões judiciais, juízo esse estribado directa e exclusivamente na referida
tese.
O próprio Acórdão n.º 638/98 (que não julgou
inconstitucional a norma do § único do artigo 15.º do Decreto n.º 37 021, de 21
de Agosto de 1948, interpretado no sentido de não caber recurso para o Tribunal
da Relação da decisão do tribunal de comarca sobre recurso interposto da
comissão fiscal de avaliação, em matéria de fixação de rendas), parcialmente
transcrito no ponto anterior, enfrentou essa questão, nos seguintes termos:
“10. Pretende o recorrente, todavia, que está em causa um direito
fundamental – o direito de propriedade –, pelo que se imporia a observância
daquele princípio do duplo grau de jurisdição também nesta matéria.
No fundo, o que o recorrente pretende é que, por um lado, devendo
estar necessariamente sujeitas a recurso as decisões de 1.ª instância que
afectem direitos, liberdades e garantias, e, por outro lado, sendo aplicável ao
direito de propriedade o regime desses mesmos direitos, liberdades e garantias,
se há‑de reconhecer, in casu, o duplo grau de jurisdição.
Ora, mesmo aceitando‑se a já referida tese segundo a qual o duplo
grau de jurisdição é assegurado em matéria de direitos, liberdades e garantias,
daí não resulta a consequência pretendida pelo recorrente.
É bem verdade que ao direito de propriedade se há‑de reconhecer,
numa certa dimensão, uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e
garantias, pelo que lhe há‑de ser aplicável, nos termos do artigo 17.º da CRP, o
regime para aqueles previsto, apesar de se não encontrar enunciado no título II
da Parte I.
Só que essa dimensão, a merecer tratamento idêntico ao que está
definido para os direitos, liberdades e garantias, é a que corresponde ao
direito de ninguém ser privado da sua propriedade, designadamente garantindo‑se
que a expropriação só poderá ocorrer com base na lei e mediante o pagamento de
uma justa indemnização (n.º 2 do artigo 62.º).
Ora, desde logo, a matéria em causa, a que se reporta a norma
questionada, refere‑se a um aspecto particular, o da alteração do valor das
rendas, insusceptível de afectar esse núcleo essencial do direito de
propriedade.
A este propósito, afirmou‑se no citado Acórdão n.º 270/95:
«Está em causa um processo de tipo particular, basicamente de
natureza administrativa (processo de avaliação fiscal extraordinária),
envolvendo matéria de natureza essencialmente técnica (avaliação de prédios
urbanos para efeitos fiscais e de definição do valor da renda dos arrendamentos
não habitacionais), que ocorre nas repartições de finanças (cf. artigos 5.º e
10.º do Decreto n.º 37 021) e que culmina com uma decisão do chefe da repartição
de finanças ou do presidente da comissão de avaliação ou com uma deliberação
dessa comissão (cf. artigo 14.º do Decreto n.º 37 021). Só em fase posterior (e
eventual) vem a ter lugar uma intervenção judicial, no caso de qualquer dos
interessados não se conformar com a decisão daquela entidade, e mediante a
interposição de um ‘recurso’ para o tribunal da comarca (cf. artigos 14.º e 15.º
do Decreto n.º 37 021). Ou seja, o tribunal de 1.ª instância funciona já como
uma instância de recurso. O que sugere que o legislador, devido ao carácter
técnico dos critérios das avaliações vinculativos para a entidade
administrativa a quem compete a decisão, ao instituir a possibilidade de
recurso para um tribunal judicial, pretendeu assegurar uma garantia de defesa de
direitos idêntica materialmente à garantia de um ‘duplo grau de jurisdição’
relativamente a matérias em que a primeira decisão é estritamente jurídica.
Deste modo, surge como inadequada e excessiva a exigência de um
segundo recurso para uma outra instância judicial. Diga‑se ainda que não se
vislumbram situações legais de tratamento processual diferente relativamente a
interesses idênticos aos que estão envolvidos nos processos de avaliação fiscal
extraordinária.»
É esse raciocínio que, em geral, aqui se prossegue. Nem está
verdadeiramente em causa o direito de propriedade, na dimensão em que é análogo
aos direitos, liberdades e garantias, nem a Lei Fundamental impõe, nessa
matéria, a exigência de um duplo grau de jurisdição.
Não se verifica, assim, qualquer violação do direito de acesso aos
tribunais, na vertente do duplo grau de jurisdição.”
Mais recentemente, o Acórdão n.º 302/2005 (que não
julgou inconstitucional a norma do artigo 24.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 129/84, de 27 de Abril,
na redacção do Decreto‑Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, quando interpretado no
sentido de não admitir recurso para o Pleno da Secção de Contencioso
Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida por uma
das suas Subsecções, na parte em que, pela primeira vez, condena uma das partes
como litigante de má fé), após reiterar a tese da inexistência de uma imposição
constitucional de consagração de um direito geral ao recurso das decisões
judiciais, com excepção, em processo penal, das decisões condenatórias e das que
afectem a liberdade do arguido ou outros seus direitos fundamentais, prosseguiu
a sua análise face à tese que considerava constitucionalmente imposta a
consagração de recurso das decisões judiciais que afectassem direitos,
liberdades e garantias, e, evitando aderir explicitamente a esta concepção,
considerou que, no caso, improcedia essa argumentação do recorrente, aduzindo o
seguinte:
“9.5. Alega, porém, o recorrente que «alguns autores perfilham
entendimento diverso, segundo o qual se deve ter por constitucionalmente
garantido, pelo menos, o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais
que afectem direitos fundamentais constitucionalmente consagrados». Cita, a
propósito, a posição de Vital Moreira, aposta na declaração de voto de vencido
ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 65/88, segundo o qual:
«(...) há‑de considerar-se constitucionalmente garantido – ao menos
por decurso do princípio do Estado de direito democrático – o direito à
reapreciação judicial das decisões que afectem direitos fundamentais, o que
abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal – como se
reconhece no acórdão – mas também todas as decisões judiciais que afectem
direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria
constitucional dos ‘direitos, liberdades e garantias’ (...).»
Partindo desta posição doutrinal – a de que a Constituição impõe o
duplo grau de jurisdição em relação a «decisões judiciais que afectem direitos
fundamentais constitucionais, pelo menos as que integram a categoria
constitucional dos ‘direitos, liberdades e garantias’» – conclui o recorrente
pela inconstitucionalidade da norma que agora está em causa, uma vez que,
segundo afirma (conclusão 5.ª da sua alegação), «uma pronúncia condenatória
desta natureza afecta direitos fundamentais, consagrados na categoria
constitucional dos direitos, liberdades e garantias, in casu, os direitos ao
bom nome e reputação do mandatário». (…). Em suma: na perspectiva do recorrente,
o recurso, em um grau, da decisão que condena uma das partes como litigante de
má fé seria constitucionalmente imposto, ao menos quando determina a
responsabilidade pessoal e directa do mandatário, na medida em que, nesse caso,
essa decisão é susceptível de afectar direitos constitucionalmente consagrados,
designadamente no artigo 26.º da Constituição, como sejam o direito ao bom nome
e reputação do mandatário.
Mas, como é evidente, não tem razão. É que – independentemente de se
saber se é correcto o pressuposto de que parte o recorrente – isto é, o de que a
Constituição impõe o duplo grau de jurisdição em relação a «decisões judiciais
que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a
categoria constitucional dos ‘direitos, liberdades e garantias’» – a verdade é
que não estamos perante uma decisão dessa natureza. Não só porque a decisão que
vem questionada não sanciona o advogado mandatário, limitando‑se apenas, em
cumprimento do preceituado no artigo 459.º do CPC, a comunicar os factos à Ordem
dos Advogados, para que esta, se assim o entender, possa, então sim, «aplicar as
sanções respectivas e condenar o mandatário na quota‑parte das custas, multas e
indemnização que lhe parecer justa», mas também porque, com esse fundamento –
afectação do bom nome e reputação do mandatário –, apenas poderia questionar‑se
a não recorribilidade da decisão por parte do próprio mandatário – ou seja, do
próprio titular do direito fundamental alegadamente afectado com a decisão
recorrida – e não, como é o caso, pela parte que ele representa no processo.”
2.5. Como se referiu, a tese da imposição constitucional
da recorribilidade das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais
constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos
“direitos, liberdades e garantias”, foi inicialmente desenvolvida na declaração
de voto do Conselheiro Vital Moreira, aposta ao Acórdão n.º 65/88, do seguinte
teor:
“Votei a conclusão do acórdão, mas não acompanho em tudo a
respectiva fundamentação. Com efeito, penso que há‑de considerar‑se
constitucionalmente garantido – ao menos por decurso do princípio do Estado de
direito democrático – o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais
que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões
condenatórias em matéria penal – como se reconhece no acórdão – mas também todas
as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo
menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e
garantias» (artigos 25.º e seguintes da CRP).
É neste entendimento que continuo a sustentar o que noutro lugar
subscrevi (Constituição da República Portuguesa Anotada, de que sou co‑autor,
juntamente com J. J. Gomes Canotilho), no sentido de que «o direito de recurso
para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes
garantias constitucionais», naturalmente quando se trata da «defesa de direitos
fundamentais» (ob. cit., 2.ª ed., vol. 1.º, p. 181, nota III ao artigo 20.º).
De resto, não é por acaso que em alguns ordenamentos constitucionais
estrangeiros existem específicos recursos de defesa de direitos fundamentais
(«recurso de amparo», «Verfassungsbeschwerde»), inclusive contra decisões
judiciais, recurso normalmente destinado aos tribunais constitucionais, ou com
funções de jurisdição constitucional. Entre nós, não existindo tal figura (cf.
ob. cit., ibidem), penso que não pode deixar de considerar‑se necessária ao
menos a garantia de um grau de recurso (e portanto de um «duplo grau de
jurisdição») como componente inerente ao regime constitucional das garantias dos
direitos fundamentais constitucionais.
Recorde‑se, de resto, que uma tal ideia de reapreciação
jurisdicional das decisões (inclusive as judiciais) que afectem direitos
fundamentais encontra eco mesmo no plano de direito internacional, no âmbito da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, através da queixa dos particulares à
Comissão Europeia dos Direitos do Homem, com eventual submissão de tal queixa ao
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.”
A esta posição veio aderir o Conselheiro António
Vitorino, na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 202/90.
Reapreciando esta problemática, afigura‑se que – para
além dos casos em que este Tribunal tem tradicionalmente afirmado a imposição
constitucional de um direito ao recurso jurisdicional (ou direito a um duplo
grau de jurisdição), a saber: as decisões condenatórias em processo penal ou
que impliquem a adopção de medidas restritivas da liberdade ou de outros
direitos fundamentais do arguido (orientação reafirmada, por último, nos
Acórdãos n.ºs 500/2007 e 588/2007, que justamente julgaram não inconstitucional
a norma constante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho,
quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso da decisão
judicial tirada sobre impugnação de decisão administrativa que indefere
requerimento de apoio judiciário) – é sustentável que, sendo
constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos
lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias),
sejam esses actos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, forçoso
é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam
eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira
e directa da afectação de tais direitos. Considera‑se, pois, que quando uma
actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito
fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deve ser
reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a
afectação do direito fundamental do cidadão teve origem numa actuação da
Administração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo
jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação
judicial dessa decisão.
O direito ora em causa – o direito ao apoio judiciário
como condição de exercício efectivo do direito de acesso aos tribunais –
comunga da fundamentalidade deste último direito (“o direito de acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efectiva (…) é, ele mesmo, um direito
fundamental, constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos
fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito” – J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 408), salientando estes comentadores que
“o facto de serem hoje os serviços de segurança social as entidades competentes
para a apreciação de concessão de apoio judiciário não significa que estejamos
aqui perante uma dimensão do direito à segurança social, mas sim perante uma
dimensão prestacional de um direito, liberdade e garantia” (obra citada, p.
411). Esta relação de instrumentalidade justificou que o legislador tenha
atribuído relevância à natureza do direito para cujo exercício o apoio
judiciário é pedido para determinar o tribunal materialmente competente para
conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa que haja denegado esse
apoio (cf. n.ºs 1 e 2 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004). No presente caso,
visando o pedido de apoio a constituição do requerente como assistente em
inquérito criminal, a decisão da impugnação judicial coube, em primeira
instância, ao juiz de instrução criminal e o recurso intentado interpor da
decisão judicial dessa impugnação foi apreciado (para não ser admitido) pela
Secção Criminal do Tribunal da Relação, tomando em linha de conta, a par do
citado artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, o artigo 399.º do CPP.
De acordo com o entendimento atrás exposto,
compreende‑se que quando a concessão do apoio (ou assistência) judiciário
competia, em primeira linha, aos tribunais, o legislador tenha sempre assegurado
recurso da decisão judicial que negasse essa concessão (cf. supra, 2.1.), porque
então a afectação do direito de acesso aos tribunais era directamente imputável
à actuação do tribunal.
Diferentemente, após a Lei n.º 30‑E/2000, a afectação do
direito de acesso aos tribunais deriva da prolação de um acto administrativo,
contra o qual foi assegurado o acesso aos tribunais, através da possibilidade de
impugnação judicial da decisão da Segurança Social. Não se trata de ressuscitar
a concepção monista do contencioso administrativo, que via na fase judicial um
mero prolongamento da fase graciosa e equiparava a decisão administrativa a uma
decisão judicial. Do que se trata é de reconhecer que, neste contexto, mesmo que
essa impugnação venha a ser julgada improcedente, a afectação do direito do
cidadão de acesso aos tribunais não é directamente imputável à decisão
judicial que julgue a impugnação, e o direito de reapreciação judicial das
decisões (ou condutas) jurisdicionais só se deve considerar constitucionalmente
imposto, de acordo com a tese avançada, se a afectação de direitos fundamentais
tiver tido origem na actuação do tribunal.
E mesmo para quem entenda que determinados direitos
fundamentais, pela sua relevância, justificariam a consagração de um duplo grau
de jurisdição, é seguro que o direito para cujo exercício o apoio judiciário foi
requerido, no presente caso (constituição de assistente em processo penal) não
se integraria nessa exigente categoria.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 28.º,
n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, interpretado no sentido de que não é
admissível recurso da decisão judicial que julgue improcedente a impugnação da
decisão administrativa que indeferiu pedido de concessão de apoio judiciário; e,
consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos