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Processo n.º 645/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A.,
o primeiro vem interpor recurso para si obrigatório, ao abrigo da alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, da decisão do Tribunal do Comércio de Lisboa (cfr. fls. 83 a 87
dos autos) que recusou a aplicação da norma constante da alínea a) do nº 1 do
artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (de ora
em diante, LOTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro), na redacção dada
pelo artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, bem como da norma
constante do mesmo preceito legal, desta feita, com a redacção dada pelo artigo
14º do Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165º, nº 1, al. p) da CRP
(cfr. fls. 91 dos autos).
2. O requerimento de recurso do Ministério Público para este
Tribunal diz o seguinte:
“A Magistrada do Ministério Público, notificada da decisão proferida a fls 87 a
89 dos autos referenciados em epígrafe a qual não aplicou com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica a alteração da alínea a) do Art° 89° da Lei
Orgânica dos Tribunais efectuada pelo Decr. Lei 76-A/2006 de 29 por violação do
Art° 165 nº 1 al. p) da Constituição da República Portuguesa, vem do mesmo
interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional ao abrigo do
disposto nos Art° 70º, n°1, al. a) e 72°, n°1 al. a) da Lei nº 28/82 de 15/11
(Lei de Organização funcionamento e processo do Tribunal Constitucional).
3. Notificado para alegar, o Ministério Público expôs o seguinte:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade
suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida pelo Tribunal do Comércio de Lisboa, em processo de
insolvência de pessoa singular, que julgou organicamente inconstitucionais as
normas constantes das sucessivas versões do artigo 89º, nº 1, alínea a) da Lei
de Organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais, resultantes do artigo
29° do Decreto-Lei nº 76-A/2006 e do artigo 14º do Decreto-Lei nº 8/2007, de 17
de Janeiro.
Relativamente à primeira versão ou dimensão normativa, a jurisprudência do
Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que efectivamente o regime
normativo introduzido em 2006 padece de evidente inconstitucionalidade orgânica
(cf. entre muitos outros, os acórdãos 690/06, 692/06, 47/07, 161/07) — cumprindo
apenas aplicar, mais uma vez, tal entendimento uniforme do Tribunal
Constitucional.
Quanto à segunda questão de constitucionalidade, é a nosso ver improcedente a
argumentação expendida na decisão recorrida, que não tem na devida conta a
natureza não inovatória da alteração da competência dos tribunais de comércio,
decorrente do Decreto-Lei nº 8/07: na verdade, e como ali expressamente se
refere, tal alteração legislativa limitou-se a voltar a dar ao preceito em causa
a redacção que lhe havia sido conferida pelo Decreto-Lei nº 53/04; ora, perante
tal carácter manifestamente não inovatória (e podendo, aliás, tal versão
normativa ter-se por “repristinada” face ao reiterado julgamento de
inconstitucionalidade da redacção resultante do Decreto-Lei nº 76-A/O6) toma-se
irrelevante a ausência de credencial parlamentar que suportasse a edição do
artigo 14° do citado Decreto-Lei nº 8/07.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
É organicamente inconstitucional a norma constante do artigo 29º do Decreto-Lei
nº 76-A/06, na parte em que conferiu nova redacção à alínea a) do nº 1 do artigo
89º da Lei nº 3/99, de 13/01, conforme este Tribunal Constitucional vem
reiteradamente julgando.
2º
Não é inconstitucional a versão de tal preceito legal, decorrente do artigo 14º
do Decreto-Lei nº 8/07, de 17/01, já que a nova redacção da citada alínea se
limita, sem qualquer carácter inovatório a “repristinam”, nos seus precisos
termos, a versão normativa que já decorria do Decreto-Lei nº 53/04, sem inovar,
consequentemente, na definição do âmbito da competência dos tribunais do
comércio, em matéria de insolvência.
3º
Termos em que deverá proceder o presente recurso quanto à questão de
constitucionalidade suscitada quanto à versão normativa, decorrente do referido
artigo 14º do Decreto-Lei nº 8/2007.” (fls 99 a 101).
Apesar de notificado para tal, o recorrido deixou expirar o
respectivo prazo sem que tenha apresentado quaisquer contra-alegações.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Sendo o objecto do recurso fixado pelo requerimento de interposição de
recurso, e não sendo admissível o seu alargamento nas alegações, a questão de
inconstitucionalidade colocada, nos presentes autos, diz respeito à norma
resultante do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/06, na parte em que conferiu a
seguinte redacção à alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro:
“1 – Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
(…).”
Ora, a referida dimensão normativa já foi julgada inconstitucional por este
Tribunal em diversas ocasiões (ver, a título de exemplo, os Acórdãos n.º 690/06,
de 19 de Dezembro de 2006; n.º 692/06, de 19 de Dezembro de 2006; n.º 43/07, de
23 de Janeiro de 2007; n.º 85/07, de 06 de Fevereiro de 2007; n.º 88/07, de 06
de Fevereiro de 2007; n.º 130/07, de 27 de Fevereiro de 2007; n.º 131/07, de 27
de Fevereiro de 2007; 482/07, de 26 de Setembro de 2007; n.º 483/07, de 26 de
Setembro de 2007; n.º 485/07, de 26 de Setembro de 2007; n.º 493/07, de 08 de
Outubro de 2007; e n.º 531/07, de 30 de Outubro de 2007).
No Acórdão nº 690/2006, publicado in «Diário da República, 2ª Série n.º 22, de
31 de Janeiro de 2007, pp. 2649 e segs. – pode ler-se:
«(…)
2. Por intermédio do artº 8º do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, diploma
editado ao abrigo da Lei nº 39/2003, de 22 de Agosto, e na sequência do que se
prescreveu no artº 11º desta última, foi alterada a redacção da alínea a) do
artº 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais), vindo a ser conferida aos tribunais de comércio
competência para o processo de insolvência se o devedor for uma sociedade
comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
Em 30 de Dezembro de 2005 foi editada a Lei nº 60-A/2005 (Lei do
Orçamento de Estado para 2006), a qual, no que ora interessa, dispôs no seu artº
95º: –
Artigo 95.0
Dissolução e liquidação de entidades comerciais
1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para
que possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através
de um procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo artigo
95.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (cfr. palavras finais do seu
exórdio), foi, em 29 de Março de 2006, publicado o Decreto-Lei nº 76-A/2006, o
qual, no seu artº 29º, veio a dispor: –
Artigo 29.º
Alteração à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
O artigo 89. ° da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.º 101/99,
de 26 de Julho, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de Dezembro, e 38/2003,
de 8 de Março, pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de Março, e pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto, passa a ter a
seguinte redacção:
«Artigo 89.º
[...]
1 - Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
b) ……………………………………………………………………………………
c) ………………………………………………………………………………………
d) ………………………………………………………………………………………
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) ……………………………………………………………………………………….
g) ………………………………………………………………………………………
h) ………………………………………………………………………………………
2 – Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a) ………………………………………………………………………………………
b) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem
como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos
procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades
comerciais;
c) ……………………………………………………………………………………..
3……………………………………………………………………………………….»
Com a alteração de redacção dada à alínea a) do nº 1 do artº 89º da
Lei nº 3/99 ficou, pois, cometida aos tribunais de comércio competência para, na
área da respectiva jurisdição, curarem dos processos de insolvência,
«alargando-se», desta sorte, a competência de que, no domínio daquela Lei,
anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006 e posteriormente à
vigência do Decreto-Lei nº 53/2004, e para os processos em causa, desfrutavam. E
isso, justamente, porque, com a referência esses processos, aquela espécie de
tribunais tão só era competente para curar daqueles em que o devedor fosse uma
sociedade comercial ou a massa insolvente integrasse uma empresa. O mesmo é
dizer que, se em causa se postasse a insolvência de uma pessoa singular e em que
a massa insolvente não fosse considerada como integrando uma empresa, a
competência para a preparação e julgamento do respectivo processo era cometida
ao tribunal de competência genérica [cfr. alínea a) do nº 1 do artº 77º da Lei
nº 3/99], ainda que de competência específica, e não a um dado tribunal de
competência especializada.
A questão que se coloca reside, consequentemente, em saber, em
primeiro lugar, se dispunha o Governo, desacompanhado de credencial parlamentar,
de competência para editar uma norma tal como a ínsita no artº 29º do
Decreto-Lei nº 76-A/2006, e, em segundo, caso se confira resposta negativa à
primeira questão, se a autorização concedida pelo artº 95º da Lei nº 60-A/2005
pode ser considerada como abarcando a devida autorização para uma tal edição.
2.1. Como resulta evidente, a alteração de redacção introduzida na
alínea a) do nº 1 do artº 89º da Lei nº 3/89 pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006
consequenciou uma «inovação» na competência material dos tribunais de comércio
relativamente à que detinham antes de se operar a vigência deste último diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva relativa de
competência da Assembleia da República [nos termos da alínea p) do nº 1 do
artigo 165º da Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente desde a Lei
Constitucional nº 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma em causa] a
edição de legislação sobre a competência material dos tribunais, onde se inclui,
“para além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais
judiciais e a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e
fiscais – … a distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais
pelos diferentes tribunais de competência genérica e de competência
especializada ou específica” (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números 36/87,
356/89, 72/90, 271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados, respectivamente, no
Diário da República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de
Abril de 1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de Novembro de 1992, 8 de
Junho de 1992, 22 de Junho de 1995 e 22 de Maio de 1997). Ou, como se referiu no
Acórdão nº 476/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “inclui-se na
reserva parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione
materiae – ou seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de
tribunais dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles,
intercedam relações de supra-ordenação e de subordinação”.
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei nº 76-A/2006 veio invocar
o uso da autorização legislativa concedido pelo artº 95º da Lei nº 60-A/2005,
claramente que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de enfrentar a
questão de saber se, ponderando o que se prescreve no nº 2 do artigo 165º da Lei
Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para 2006 (acima
transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para habilitar o Governo
a emitir a norma ínsita no artº 29º do mencionado Decreto-Lei nº 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que,
como sabido é, para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in
Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a
concretização do “objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer
a condensação dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo
decreto-lei”) da autorização legislativa constante do aludido artº 95º e
enunciados no seu nº 2, não podem comportar um entendimento que conduza a
considerar que nela foi delineado, por entre o mais, um programa legislativo que
implicasse a atribuição de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o
caso, afectando-a a determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de
um programa legislativo que consubstanciasse uma real «desjudicialização» do
regime de dissolução e liquidação das entidades comerciais – a operar por via
administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do nº 2 do citado artigo, torna-se
patente que a autorização para o editando diploma governamental estabelecer as
situações em que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais
pode ter lugar não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a
atribuição de competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o
«estabelecimento das situações» significa, inequivocamente, a definição dos
casos e condicionalismos em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por
via jurisdicional e não a definição do órgão judicial que vai aferir deles.
Neste contexto, o normativo em apreço, ao ser editado pelo Governo a
descoberto de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula,
enferma do vício de inconstitucionalidade orgânica.
3. Pelo que se deixa dito, o Tribunal decide: –
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do
nº 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artº 29º do
Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio conferir nova
redacção à alínea a) do nº 1 do artº 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.»
Esta jurisprudência foi, como se disse, reiterada nos Acórdãos supra
mencionados, pelo que, sendo inteiramente aplicável ao caso sub judice se decide
mantê-la integralmente.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na
alínea p) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artigo
29º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, na parte em que veio conferir nova redacção à
alínea a) do nº 1 do artigo 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro;
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão