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Processo n.º 1092/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O Representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou reclamação para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra a decisão
sumária do relator, de 10 de Dezembro de 2007, que decidiu, no uso da
faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não tomar conhecimento do
recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte
fundamentação:
“1. O representante do Ministério Público no Tribunal Judicial da
Comarca de Santo Tirso interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o despacho de 8 de Outubro de 2007 da Juíza do
respectivo 2.º Juízo Criminal, que declarou extinto, por prescrição, o
procedimento criminal contra o arguido A., tendo, para o efeito, recusado a
aplicação da norma contida no artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, com
a interpretação que lhe foi dada pelo Assento n.º 10/2000, com fundamento em
inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido por despacho de 12 de Novembro de 2007 da
Juíza do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso, decisão que,
como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da
LTC).
2. Entende‑se que, no caso, o recurso é inadmissível, por força do
disposto no artigo 70.º, n.º 5, da LTC («Não é admitido recurso para o Tribunal
Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos
termos da respectiva lei processual»), uma vez que, por um lado, a decisão
recorrida explicitamente decidiu não seguir a jurisprudência fixada pelo
Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se, no domínio da vigência
do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de
contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento
criminal, o que torna obrigatória a interposição, pelo Ministério Público, de
recurso dessa decisão, por imposição do artigo 446.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, e que, por outro lado, apesar de este preceito estar inserido
em título epigrafado de «Dos recursos extraordinários», valem aqui inteiramente
as razões que estão na base da regra do n.º 5 do artigo 70.º da LTC: a natureza
necessariamente precária das decisões judiciais sujeitas a recurso obrigatório e
a inconveniência de o tribunal superior, na respectiva ordem jurisdicional,
ficar tolhido na sua liberdade de decisão pela circunstância de ter de
respeitar o caso julgado entretanto formado, no concreto processo em causa, pela
decisão do recurso de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
Trata‑se de entendimento reiteradamente afirmado pelo Tribunal
Constitucional em casos idênticos ao presente (cf. Acórdãos n.ºs 281/2001,
282/2001, 412/2003, 470/2003, 480/2003, 503/2003, 545/2003, 558/2003, 559/2003,
3/2004, 17/2004, 28/2004, 31/2004, 49/2004, 57/2004, 58/2004, 73/2004, 309/2004,
506/2004 e 688/2004 e Decisões Sumárias n.ºs 571/2007, 573/2007, 574/2007 e
575/2007), e que não é afectado pela circunstância de, sobre a questão objecto
do presente recurso, já terem sido proferidas, noutros processos, decisões
deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da interpretação normativa
em causa (Acórdão n.º 110/2007 e Decisão Sumária n.º 379/2007, ambos proferidos
em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC).
3. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do artigo 78.º‑A, n.º 1,
da LTC, não conhecer do presente recurso.”
1.2. A reclamação para a conferência apresentada pelo
recorrente é do seguinte teor:
“1.º – O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público da
decisão proferida já após a vigência da actual versão do Código de Processo
Penal.
2.º – Face ao disposto no artigo 446.º do Código de Processo Penal,
na sua actual redacção, o recurso obrigatório do Ministério Público, a interpor
da decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de
Justiça, é expressamente delineado como recurso extraordinário, já que tem de
ser interposto «no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão
recorrida».
3.º – Não cabendo, deste modo, no âmbito do disposto no artigo 70.º,
n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, que apenas exclui a admissibilidade
dos recursos de fiscalização concreta relativamente a decisões sujeitas a
«recurso ordinário obrigatório», nos termos da respectiva lei de processo.
4.º – Afigurando‑se, deste modo, que – face à alteração introduzida
expressamente pela actual versão do Código de Processo Penal no artigo 446.º do
Código de Processo Penal, perspectivando tal recurso como «extraordinário» –
terá de ser reponderada a corrente jurisprudencial que outorgava efectivamente
prioridade à interposição do recurso destinado a fazer acatar a jurisprudência
uniformizada pelo Supremo, relativamente ao recurso para o Tribunal
Constitucional que se fundasse na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82 (vejam‑se, no mesmo sentido, as reclamações deduzidas nos Processos n.ºs
941/07 e 1004/07, da 1.ª Secção).
5.º – Devendo, em consequência, ser admitido tal recurso, interposto
pelo Ministério Público junto do tribunal recorrido.”
1.3. O recorrido, notificado da reclamação deduzida, não
apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.1. A corrente jurisprudencial em que se inseriu a
decisão sumária ora reclamada assenta na fundamentação desenvolvida no Acórdão
n.º 281/2001 (posteriormente reproduzida ou seguida nos Acórdãos n.ºs 282/2001,
322/2001, 323/2001, 334/2001, 335/2001, 93/2002, 412/2003, 470/2003, 480/2003,
503/2003, 545/2003, 558/2003, 559/2003, 3/2004, 17/2004, 28/2004, 31/2004,
49/2004, 57/2004, 58/2004, 73/2004, 309/2004, 506/2004 e 688/2004), também num
caso de recurso interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, contra despacho judicial de tribunal de 1.ª
instância, que declarara prescrito o procedimento criminal, tendo para o efeito
julgado inconstitucionais os artigos 119.º do Código Penal de 1982 e 336.º, n.º
1, do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação, feita pelo “Assento
n.º 10/2000” do Supremo Tribunal de Justiça, de que no domínio de vigência
daqueles Códigos a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do
procedimento criminal.
Lê‑se nesse Acórdão n.º 281/2001:
“4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70.º citado, «não é
admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso
ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual».
Ora, no presente recurso, a decisão recorrida, afastando a aplicação
do Assento n.º 10/2000 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto
no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso
obrigatório por parte do Ministério Público.
Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso
como um recurso extraordinário (no sentido de que é interposto após o trânsito
em julgado da decisão recorrida); assim, coloca‑se a questão de saber se este
caso está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime
previsto neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da
decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a
causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer não
obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto
na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um
recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias
de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas alíneas
b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de
decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi
suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o
Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de
recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como
é o caso presente.
Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente
o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a
causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa
exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema
põe‑se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446.º do Código de
Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso
extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito.
A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal
Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade,
subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de
Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser
interposto.
Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo
Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no
processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1
do artigo 80.º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que
definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a
decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto
de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o
Tribunal Constitucional, há‑de concordar‑se não ser esta a melhor solução.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o
intérprete há‑de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador
consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva‑nos a não distinguir,
para efeitos de aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446.º do Código de
Processo Penal.”
Conforme consignado na passagem das alegações do
Ministério Público transcrita no Acórdão n.º 93/2002:
“Orientando‑se, deste modo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional para a
elaboração de um específico conceito de recurso «ordinário», teleológica e
funcionalmente orientado em torno das relações – e dos poderes cognitivos – do
Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, autónomo e
diferenciado relativamente à natureza que tal recurso detém face à lei adjectiva
que rege o «processo‑pretexto» – e sendo, nesta perspectiva, irrelevante a
existência ou inexistência de normais vias impugnatórias para pôr em crise a
decisão recorrida, dentro do ordenamento jurisdicional comum – cumpriria
«esgotar» previamente o recurso tipificado no citado artigo 446.º, o que conduz
a que se não deva, neste momento, conhecer do recurso interposto para o Tribunal
Constitucional.”
As alterações introduzidas no artigo 446.º do CPP pela
recente Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, imporão a revisão da apontada
jurisprudência, como sustenta o reclamante?
2.2. A esta questão, este Tribunal já respondeu
negativamente, ao apreciar reclamações idênticas à ora em causa, através dos
Acórdãos n.ºs 621/2007 e 622/2007, com a seguinte fundamentação:
“1. A presente reclamação levanta a questão de saber se é de manter
ou não a corrente jurisprudencial que outorgava prioridade à interposição do
recurso destinado a fazer acatar a jurisprudência uniformizada pelo Supremo,
relativamente ao recurso para o Tribunal Constitucional que se fundasse na
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, considerando o que agora
dispõe o artigo 446.º do Código de Processo Penal:
«1 – É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de
Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a
interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão
recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente
capítulo.
2 – O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou
pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
3 – (…).»
Numa primeira aproximação, a questão é pertinente, tendo em conta a
regra da aplicação imediata da lei processual penal que alterou o Código de
Processo Penal (artigo 5.º, n.º 1, deste Código), já que a Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, entrada em vigor no dia 15 de Setembro do mesmo ano, modificou a
redacção do artigo 446.º
Na redacção anterior, o artigo 446.º do Código de Processo Penal
dispunha o seguinte:
«1 – O Ministério Público recorre obrigatoriamente de quaisquer
decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de
Justiça, sendo o recurso sempre admissível.
2 – (…).
3 – (…).»
2. Face a esta redacção, o Tribunal Constitucional foi entendendo,
de forma reiterada, que não podia tomar conhecimento do objecto do recurso
interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada, se não tivesse
sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do
Código de Processo Penal (…).
O entendimento de que o recurso previsto no artigo 446.º do Código
de Processo Penal tinha precedência sobre o recurso de constitucionalidade
fundava‑se no artigo 70.º, n.º 5, da LTC – não é admitido recurso para o
Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório,
nos termos da respectiva lei processual –, independentemente da qualificação de
tal impugnação obrigatória como recurso ordinário ou recurso extraordinário. No
primeiro caso, aplicava‑se directamente o disposto no n.º 5 do artigo 70.º, face
à letra deste preceito (neste sentido, cf. Acórdão n.º 506/2004); no segundo,
aplicava‑se o estabelecido no n.º 5 do artigo 70.º, por deverem valer também
quanto ao recurso extraordinário obrigatório as razões que justificam a regra da
precedência do recurso ordinário obrigatório sobre o recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC (neste sentido, cf. Acórdão n.º 281/2001).
3. As dúvidas levantadas pela redacção anterior do artigo 446º do
Código de Processo Penal foram agora resolvidas no sentido de configurar a
impugnação obrigatória de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo
Supremo Tribunal de Justiça como recurso extraordinário, já que o prazo para a
respectiva interposição é contado do trânsito em julgado da decisão recorrida
(…).
Face ao teor literal do n.º 5 do artigo 70.º da LTC, subsiste,
assim, a questão da precedência (ou não) do recurso obrigatório previsto no
artigo 446.º sobre o recurso de constitucionalidade interposto de decisão que
recuse a aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade. Subsiste a
questão, não havendo, contudo, qualquer motivo para divergir do entendimento
jurisprudencial, entretanto firmado neste Tribunal, de que a razão
justificativa do regime previsto naquele n.º 5 também ocorre nos casos em que
há, por um lado, a interposição do recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC e, por outro, a previsão de um recurso extraordinário
obrigatório (no sentido da manutenção da jurisprudência anterior, cf. Decisão
Sumária n.º 575/2007, proferida por referência à redacção vigente do artigo
446.º do Código de Processo Penal). De resto, uma tal posição fundava‑se já no
carácter extraordinário do recurso de decisão proferida contra jurisprudência
fixada, expressamente assumido na redacção vigente do artigo 446.º do Código de
Processo Penal.”
2.3. Face à anterior redacção do artigo 446.º do CPP
poderia efectivamente questionar‑se a sua qualificação como recurso
extraordinário, não sendo decisiva, para esse efeito, a sua inserção em título
epigrafado Dos Recursos Extraordinários. Na verdade, poderia sustentar‑se que
verdadeiramente extraordinário seria o recurso para fixação de jurisprudência,
regulado nos artigos 437.º a 445.º do CPP, já que se revestiria das duas notas
que a doutrina associa a esse tipo de recursos: ser interponível após o trânsito
em julgado da decisão recorrida e ser endereçado (no caso de oposição de
acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça) ao próprio tribunal que proferiu a
decisão recorrida [Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2.ª
edição, Lisboa, 1994, p. 136: “Ao passo que os recursos ordinários são vistos
como meios de impugnação de decisões judiciais que visam a sua reforma, através
de um «novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente
superior» (Alberto dos Reis), os recursos extraordinários são julgados pelo
próprio tribunal que proferiu a sentença ou pelo próprio tribunal que proferiu
o acórdão impugnado, já transitado em julgado”; Fernando Amâncio Ferreira,
Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª edição, Coimbra, 2003, p. 75: “Face
ao critério seguido pelo nosso legislador (…), os recursos ordinários só são
admissíveis para reapreciação de uma decisão ainda não transitada em julgado,
enquanto os recursos extraordinários só podem ser implementados depois do
trânsito em julgado da sentença ou acórdão. (…) os recursos ordinários visam um
novo exame da decisão impugnada por parte do órgão jurisdicional
hierarquicamente superior, configurando‑se assim como recursos devolutivos,
enquanto os recursos extraordinários são julgados pelo mesmo órgão
jurisdicional que proferiu a decisão impugnada, caracterizando‑se,
consequentemente, como recursos não devolutivos”]. Nesta compreensão das coisas,
a inserção da norma do artigo 446.º no referido Título justificar‑se‑ia por
óbvias razões de proximidade temática, como meio de assegurar eficácia às
decisões de fixação de jurisprudência, sem que daí necessariamente decorresse
que esses recursos de decisões proferidas contra jurisprudência fixada fossem
de qualificar, também eles, como recursos extraordinários.
E, na verdade, como informam Simas Santos e
Leal‑Henriques (Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Lisboa, 2007, p. 195),
foram objecto de controvérsia jurisprudencial as questões de saber se se
impunha a interposição do recurso ordinário que no caso coubesse contra as
decisões em causa e qual o termo a quo do prazo da sua interposição (15 dias a
contar da notificação da decisão contrária a jurisprudência fixada, de acordo
com o artigo 411.º, aplicável por força do artigo 448.º, ou 30 dias a contar do
trânsito dessa decisão, por força do n.º 1 do artigo 438.º, aplicável ex vi
artigo 446.º, n.º 2, todos do CPP). A jurisprudência do STJ orientou‑se
dominantemente no sentido da necessidade de interposição de recursos ordinários
que coubessem contra a decisão contrária a jurisprudência fixada (cf. acórdãos
de 18 de Maio de 2006, proc. n.º 1387/06, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º
2258/07, de 21 de Junho de 2007, proc. n.º 2259/07, de 12 de Julho de 2007,
procs. n.ºs 2423/07 e 2573/07, de 20 de Setembro de 2007, proc. n.º 2574/07, e
de 22 de Novembro de 2007, proc. n.º 3492/07), mas, no caso de não ser cabível
recurso ordinário dessa decisão, apenas após o trânsito em julgado da mesma (cf.
acórdão do STJ de 27 de Novembro de 2007, proc. n.º 3871/07, este, como os
anteriormente citados, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
A nova redacção do artigo 446.º do CPP dada pela Lei n.º
48/2007 veio esclarecer esses dois pontos controversos e, por isso, é hoje mais
sustentável a sua classificação, no âmbito do processo penal, como recurso
extraordinário.
Mas daqui não se segue, contrariamente ao defendido pelo
reclamante, a necessidade de revisão da anterior jurisprudência deste Tribunal,
já que – como atrás se assinalou e resulta expressamente da sua fundamentação –
no Acórdão n.º 281/2001 se aceitou estar em causa um recurso obrigatório
qualificável como extraordinário, o que não se considerou impeditivo de, por
identidade de razão, lhe tornar extensivo o regime do n.º 5 do artigo 70.º da
LTC.
Na verdade, cumpre adoptar, como já se assinalava nas
citadas alegações do Ministério Público transcritas no Acórdão n.º 93/2002, “um
específico conceito de recurso «ordinário», teleológica e funcionalmente
orientado em torno das relações – e dos poderes cognitivos – do Tribunal
Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, autónomo e diferenciado
relativamente à natureza que tal recurso detém face à lei adjectiva que rege o
processo pretexto”. Do que se trata é de não condicionar – porque tal seria
manifestamente desrazoável – a admissibilidade de recursos para o Tribunal
Constitucional (quer no âmbito do n.º 2, quer do n.º 5 do artigo 70.º da LTC) à
exaustão de “verdadeiros recursos extraordinários”, cuja admissibilidade, por
natureza, é sempre problemática e muitas vezes dependente da verificação de
factos futuros e incertos. Mas essa razão já não vale quando é seguro, em face
dos próprios termos do processo onde foi proferida a decisão recorrida, que o
apelidado “recurso extraordinário” é, no caso, claramente admissível, como
ocorre quando a decisão recorrida surge em patente oposição a jurisprudência
fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Seja como for, mesmo que se considere hoje mais
inequívoca a classificação do recurso do artigo 446.º do CPP como recurso
extraordinário, o certo é que continuam a valer as razões, expendidas no Acórdão
n.º 281/2001 e posteriormente reiteradas, no sentido de se dever atribuir
prioridade a esse recurso, em detrimento do recurso da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC.
3. Em face do exposto, acorda‑se em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos