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Processo n.º 1042/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza
obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da CRP e dos
artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, ambos da LTC, do despacho proferido
pelo Ex.mo Juiz da 8ª Vara Criminal de Lisboa, em 08 de Outubro de 2007 (fls.
225 a 231) que recusou a aplicação do disposto no art. 371.º-A do Código de
Processo Penal, na interpretação segundo a qual pode o condenado requerer a
abertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para
ponderação da natureza ou medida da pena que não viola o limite máximo
abstractamente fixado para a incriminação, por violação do princípio
constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos arts. 2º, 111º, nº 1, e
205º, nº 2, e 282º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa” (fls. 231).
Entre outras considerações, a decisão recorrida entendeu que:
“Por isso, quanto a tais limites, se aceita que atinjam o caso julgado, em
salvaguarda a liberdade das pessoas e da igualdade da sua situação face aos
demais cidadãos que praticaram idênticas condutas posteriormente (ou que são
julgados posteriormente).
Mas este raciocínio já não pode ser aceite sem restrições quanto aos restantes
casos que já resultaram em condenação com trânsito em julgado.
Numa primeira linha de argumentação, é verdade que, como se afirma, novamente,
no Acórdão n.º 644/98 do Tribunal Constitucional, «a superveniência de uma lei
penal cujo conteúdo pudesse, num juízo prospectivo, apontar para a possibilidade
de, em concreto, ser mais favorável ao arguido, não obstante este já ter sido
condenado por decisão judicial transitada, iria criar uma enormíssima
perturbação na ordem dos tribunais judiciais».
Como explica aquele Alto Tribunal (contra o entendimento expresso em alguns
votos de vencido), a aplicação de um novo regime penal não é algo de aplicação
automática, matemática ou aritmética; implica, isso sim, a realização de um
efectivo novo julgamento, ainda que parcial.
Por um lado, o tribunal da condenação não tem de ter a mesma composição (parece
mesmo que actualmente nenhum dos juízes do anterior julgamento pode intervir na
reapreciação da causa face ao impedimento criado pela revisão do Código de
Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, quanto ao art.
40°, c), desse Código).
Ainda que se defendesse que o tribunal da condenação tinha de ser o mesmo,
quando tal já não pudesse acontecer (designadamente em caso de cessação de
funções ou morte), apenas a integral repetição do julgamento permitiria a
aplicação do novo regime.
Ainda que esteja em causa “apenas” a aplicação de um novo regime penal nenhuma
vinculação pode existir para o tribunal quanto ao anterior juízo de culpa, à sua
medida ou à consideração dos fins das penas.
No limite estará o tribunal impedido de alterar os factos provados (mesmo a
situação pessoal do arguido não poderá ser revista, pois apenas se prevê uma
aplicação de um novo regime penal).
Não tendo o caso julgado protecção face a qualquer mudança da lei penal (só se
conhecerá do seu carácter mais favorável em concreto depois da aplicação),
estar-se-á a obrigar à repetida realização de um juízo sobre a tipicidade dos
factos, grau de culpa, fins de prevenção que se faziam sentir, medida e espécie
da pena concreta.
Nada obriga à manutenção de tais juízos, que serão feitos por diferentes
aplicadores, a menos que o regime jurídico aplicável em concreto se mantenha
absolutamente imodificado.
Por exemplo, com a introdução em lei nova de uma alteração na medida abstracta
da pena correspondente a uma incriminação não se impõe a correspondente
proporcionalidade na medida concreta; como, a propósito da ponderação de uma
medida substitutiva de pena anterior, nada obriga ao respeito das considerações
adoptadas na anterior condenação.
Mesmo nos casos em que o Tribunal da Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça
modificaram a decisão da 1ª instância, é duvidoso que este tribunal esteja
vinculado a superiores considerandos.
Em síntese, aplicar um novo regime jurídico não consiste em mera aplicação de
aritmética, neutra, mas sempre na realização de um novo julgamento (através da
realização de um juízo de culpa, do seu grau, da ponderação humana sobre os fins
das penas e da ponderação sobre o valor dos factos).
As razões expostas em primeira linha não se referem, em rigor, a questões de
difícil praticabilidade (que são muitas), mas à inaceitabilidade da repetição de
um juízo de culpa a propósito de qualquer mudança quantitativa ou qualitativa
das penas abstractamente aplicáveis em cada caso concreto.
Não é que se esteja a pretender aplicar a esta situação o disposto no art. 29.
°, n.° 5, da Constituição, mas a verdade é que a certeza e segurança jurídicas
próprias de um Estado de Direito Democrático impõem que, mesmo a favor de um
condenado, não se possa determinar constantemente a reapreciação de uma
condenação (note-se o número de alterações só do actual Código Penal, sem
ponderação de outra legislação penal).
De outra forma também não se compreende a restrição dos casos em que é possível
a revisão das sentenças penais, até porque essa revisão poderia trazer para o
condenado mais benefícios do que a aplicação de uma nova lei penal.
É verdade que por esta via existirá alguma diferença entre os condenados, com
condenação transitada em julgado, antes e depois da entrada em vigor de uma nova
lei penal.
Mas essa desigualdade é, por vezes, inultrapassável, justifica-se pela
necessidade social da segurança e certeza jurídicas e tem como limite o que se
entende ser, em cada momento, como necessário para um tipo de situação (a
desigualdade é inultrapassável nos casos em que a pena cominada na nova lei
apenas poderia ser aplicada retroactivamente; os casos mais comuns são, como o
dos autos, os dos condenados a pena superiores entre 3 e 5 anos de prisão, cuja
suspensão da execução se poderia equacionar face ao estipulado no art. 50. ° do
Código Penal, mas em que, a ser concedida tal suspensão, nos termos do disposto
no art. 51.°, do Código Penal, os condenados ficariam obrigatoriamente sujeitos
a regime de prova com a mesma duração da pena, mas esse período já decorreu em
boa parte).
Numa outra linha de argumentação, também sustentada no Acórdão n.º 644/98, não é
verdade que as leis de amnistia e os perdões (genéricos ou não) também violem o
caso julgado; e a referência a essas figuras é útil precisamente porque permitem
compreender o argumento anterior.
Para além do pensamento constante do mencionado aresto, e afastando os perdões
singulares, porque esses, sim, põem em causa o princípio da igualdade sem
qualquer fundamento de idêntico valor, é fácil verificar que as amnistias e
perdões genéricos afectam o conteúdo de uma decisão já transitada em julgado,
mas não afectam qualquer juízo concretizado a propósito da condenação e, dessa
forma, não violam a protecção do caso julgado.
Ou seja, as amnistias e os perdões genéricos incidem directamente sobre o
dispositivo de uma condenação e não sobre a ponderação judicial que levou a esse
dispositivo.
Perdoar uma pena de prisão ou amnistiar uma infracção não exige a repetição de
um qualquer juízo concreto de culpa e ponderação dos fins concretos das penas
próprios de uma condenação, tão-só uma decisão genérica relativa ao resultado da
condenação já transitada em julgado.
Pode uma lei nova, ao fazer variar os limites das penalidades correspondentes a
uma incriminação, determinar a mesma variação (desde que seja favorável) para
todos os condenados com decisão transitada em julgado, sem violação do princípio
do caso julgado; e isto ocorre, precisamente, porque não se repete o julgamento
ou a condenação (pode, por exemplo, uma lei alterar a pena que consta de uma
incriminação que variava entre 30 dias e 5 anos de prisão e passou a variar
entre 30 dias e 4 anos de prisão, e determinar que todos os condenados segundo
essa incriminação vejam perdoado um quinto da sua pena de prisão).”
2. Perante esta decisão, o Ministério Público fixou o objecto do recurso, para
si obrigatório, nos seguintes termos:
“(…) notificado do despacho de V. Exa., com data de 08.10.2007, exarado a fls.
225 dos autos supra referenciados, no qual se recusa a aplicação do disposto no
art. 371-A do Código de Processo Penal, com fundamento na sua
inconstitucionalidade enquanto interpretado no sentido de que o condenado pode
requerer a reabertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável
apenas para ponderação da natureza ou medida da pena que não viola o limite
máximo abstractamente fixado para a incriminação, por violação do caso julgado,
ínsito nos artºs 2º, 111º, nº 1, 205º nº 2 e 282º nº 3 da Constituição da
República Portuguesa, dele vem interpor recurso” (fls. 239).
3. Notificado para alegar, o Ministério Público apresentou as suas
alegações, cujo teor ora se reproduz:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
1.1. Foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, nos termos dos
artigos 70°, nº 1, alínea a) e 72°, nº 1, alínea e), e nº 3, ambos da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciação da conformidade
constitucional da norma do artigo 371°-A do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da
audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação
da natureza ou medida da pena, que não viola o limite máximo abstractamente
fixado para a incriminação, a que a decisão recorrida recusou aplicação por
entender verificar-se violação do princípio constitucional de respeito pelo caso
julgado, ínsito nos artigos 2°, 111°, nº 1, 205°, nº 2 e 282, nº 3 da
Constituição.
1.2. Vai a decisão recorrida buscar o essencial da sua fundamentação à tese que
fez vencimento no Acórdão nº 644/98, do Tribunal Constitucional, onde se conclui
não ser inconstitucional uma interpretação da norma do artigo 2°, nº 4 do Código
Penal (na redacção então vigente), segundo a qual o trânsito em julgado da
decisão condenatória impediria a aplicação da lei penal posterior mais
favorável.
Dir-se-á, desde já, que a não produção de um juízo de inconstitucionalidade de
uma determinada norma com apelo ao respeito pelo trânsito em julgado da decisão
condenatória não conduz necessariamente à afirmação da tese da desconformidade
constitucional se, perante um igual quadro de leis penais que se sucedem no
tempo, sendo a nova mais favorável, se concluir pelo não respeito pelo caso
julgado, que, de nenhum modo, pode, ou deve, ser erigido como valor absoluto, ou
mesmo como algo tendencialmente intocável do ponto de vista da Lei Fundamental.
Na apreciação do caso concreto, assume quanto a nós, especial relevância o teor
das declarações de votos de vencido que constam do citado Acórdão nº 644/98 e,
bem assim, a jurisprudência expressa nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº
677/98 e 572/03, não se olvidando, também aqui, o teor das declarações de voto
que foram produzidas no primeiro.
1.3. A norma em apreço do artigo 371°-A do Código de Processo Penal, ao referir
a entrada em vigor da lei penal mais favorável, necessariamente inclui a
situação da arguida, que vê contemplada na lei nova regime mais favorável, face
ao que lhe foi aplicado, já que passa agora a ser possível a suspensão da
execução de pena, onde antes tal estava vedado.
Não se descortinam razões para que esta situação seja tratada de maneira
diferente daquela em que ocorre uma diminuição do limite máximo abstractamente
fixado.
Na declaração de voto que o Sr. Conselheiro Sousa e Brito exarou no Acórdão nº
644/98, pode ler-se: “(...) o fundamento constitucional da retroactividade da
lei penal mais favorável é o princípio da necessidade das penas e esse
fundamento vale igualmente para as hipóteses de descriminalização e para as de
atenuação da pena. Se ele deve prevalecer sobre o caso julgado nas primeiras
hipóteses também deverá prevalecer nas segundas, se não houver razões em
contrário especificas destas últimas que mereçam relevância constitucional “.
Separando culpa de punibilidade, na mesma declaração de voto refere que “o caso
julgado, portanto, em face da lei mais favorável, apenas pode pretender ser
respeitado quanto à decisão sobre a culpa”.
Por seu lado, na declaração de voto da Senhora Conselheira Pizarro Beleza vê-se
que são colocadas a par e no mesmo plano a alteração da pena aplicável e a
alteração das condições da suspensão de execução de pena, aí se referindo com
relevância para a decisão sobre o objecto do presente recurso, designadamente, o
seguinte:
“A aplicação retroactiva da nova lei não determina a invalidade da sentença
judicial anterior, mas tão só a cessação (ou alteração) da produção dos seus
efeitos, sem questionar os seus pressupostos.
Diga-se ainda que se é admissível que certos que actos de diversa natureza (nova
lei que despenaliza; amnistia; perdão; indulto), ulteriores ao caso julgado,
venham fazer cessar o cumprimento da pena, por maioria de razão terá de
aceitar-se a aplicação à parte da pena que falta executar de uma lei nova que
tenha por efeito tão só uma atenuação de responsabilidade penal. Deve ainda
atender-se à circunstância de que a lei penal mais favorável tem as
características de generalidade e abstracção, pelo que não afecta o princípio da
separação de poderes.
Pode assim reafirmar-se que o valor constitucional do caso julgado não constitui
fundamento para restringir a garantia da aplicação retroactiva da lei penal mais
favorável”.
Conclui, finalmente, tal declaração de voto, referindo que: “Por último, a não
aplicação da lei mais favorável às penas em execução por força de decisão
transitada em julgado lesaria ainda o princípio da igualdade.
(...) A aplicação da lei mais favorável, sem o limite dos casos julgados, vem
precisamente afastar a desigualdade que resultaria da solução contrária: a
execução da pena, ou da pena mais grave, dependeria da circunstância, meramente
fortuita, de trânsito em julgado da decisão condenatória ocorrer antes ou depois
de entrada em vigor da lei mais favorável”
1.4. É também de trazer à colação a posição assumida pelo Ministério Público nas
contra-alegações que proferiu no processo nº 194/97 — 2ª secção, em que foi
produzido o também aludido Acórdão nº 677/98.
Aí se referiu, com efeito, na 4ª conclusão que: “Assim sendo, por ser inegável
que a lei que permite a desistência da queixa é mais favorável ao arguido do que
aquela que não permite, e porque o princípio da aplicação retrospectiva da lei
penal de conteúdo mais favorável garante valores constitucionais superiores aos
que os que são acautelados pelo principio da intangibilidade do caso julgado,
deve aquele princípio prevalecer sobre este”.
Viria o Acórdão nº 677/98 a dar razão à tese defendida pelo Ministério Público,
tendo decidido “julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio
da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no artigo 29°
da Constituição, a norma constante do n°4 do artigo 2° do Código Penal, na parte
em que vede a aplicação da lei nova que transforma em crime semi-público um
crime público, quando tenha havido desistência de queixa apresentada e trânsito
em julgado da sentença condenatória”.
1.5. Noutra ordem de considerações, há que uma vez mais realçar que ao recurso
de constitucionalidade, em fiscalização concreta, como o presente, cumpre tão só
apreciar a conformidade à Lei Fundamental e não a bondade das soluções
encontradas pelo legislador ordinário, à luz de outros crivos para além do
assinalado.
O argumento utilizado na decisão recorrida relativo à “enormíssima perturbação
na ordem dos tribunais judiciais” que já havia sido utilizado pelo Acórdão nº
644/98 do Tribunal Constitucional, não pode constituir argumento decisivo para o
juízo de conformidade constitucional, tanto mais que se adere, como se
assinalou, à tese de que o que está em causa é uma reapreciação da punibilidade
e não da culpa, daí decorrendo a desnecessidade da integral repetição do
julgamento efectuado.
Ao contrário do afirmado na decisão recorrida não se está a determinar
constantemente a reapreciação de uma condenação.
No caso em apreço, a condenação não se reaprecia nem sequer se discute, apenas
estando em causa a eventual suspensão de uma pena, ainda em fase de execução,
faculdade que passou a ser permitida pela nova lei vigente à data do julgamento.
A segurança jurídica própria do Estado de direito democrático não é posta em
causa pela aplicação da norma recusada, quando não se questiona a culpa mas tão
só a punibilidade, em virtude da entrada em vigor da lei nova mais favorável.
Confrontamo-nos pois com uma situação em que o respeito pelo caso julgado,
enquanto instituto criado para garantir a segurança jurídica, continua a não ter
que ceder face a nenhuma determinação de lei nova, no que tange ao sentido da
condenação que tem que ver com a culpa, afigurando-se-nos totalmente como
impensável, que por virtude de aplicação do estatuído no artigo 371°-A do Código
de Processo Penal, o que foi condenado pudesse vir a ser absolvido, quando o que
está em causa é tão só a aplicação de um regime novo mais favorável a um
condenado, que nunca o deixará de ser.
É apenas a nova possibilidade de suspensão da execução da pena que está em causa
e só nesta medida não pode o caso julgado opor-se à aplicação do novo regime.
2. Conclusão
Nesta conformidade a face ao exposto, conclui-se:
1. O princípio da aplicação retroactiva do regime penal de conteúdo mais
favorável, no caso de sucessão de leis no tempo, consagra valores
constitucionais superiores aos que são garantidos pelo princípio da
intangibilidade do caso julgado, que deverá ceder perante aquele.
2. Não é inconstitucional a norma do artigo 371°-A do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que o condenado pode requerer a abertura de audiência
para a aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da
natureza ou medida da pena, que não viola o limite máximo abstractamente fixado
para a incriminação.
3. Tendo a lei nova alargado a possibilidade da suspensão da execução da pena
aplicada de medida não superior a três para cinco anos de prisão, nada obsta, do
ponto de vista da constitucionalidade que se procede à abertura de audiência
para a eventual aplicação de uma faculdade antes não permitida, não estando em
causa a culpa, mas tão só a punibilidade, apenas nesta medida devendo ceder a
protecção do caso julgado.
4. Termos em que deverá proceder o presente recurso, não se confirmando o juízo
de inconstitucionalidade, da decisão recorrida.” (fls. 245 a 250)
4. Por sua vez, notificada das alegações, a recorrida deixou expirar
o prazo de resposta, sem contra-alegar.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Delimitação do objecto do recurso
5. Em primeiro lugar, impõe-se precisar o objecto do presente recurso, uma vez
que, ainda que limitando-se a reproduzir o “dictum” da decisão recorrida, o
Ministério Público optou por interpor recurso para julgamento da
constitucionalidade das normas extraídas do “art. 371-A do Código de Processo
Penal, com fundamento na sua inconstitucionalidade enquanto interpretado no
sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da audiência para
aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da natureza ou
medida da pena que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a
incriminação” (fls. 239).
Sucede que, conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, apenas pode
conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas ou desaplicadas –
como é o caso – por parte do tribunal “a quo”. É certo que, a fls. 231, a
decisão recorrida utiliza, textualmente, aquela interpretação normativa do
artigo 371º-A do CPP. Contudo, da análise cuidada de toda a fundamentação da
decisão recorrida resulta que a única questão normativa que foi apreciada pelo
tribunal “a quo” foi precisamente a que consiste em verificar a
constitucionalidade de norma que determina a reabertura de audiência para
aplicação de um novo regime penal, quando este passa a permitir a suspensão da
execução de pena de prisão no caso de crimes com pena concretamente aplicada não
superior a cinco anos, quando anteriormente apenas era permitida a suspensão da
execução de pena quanto a crimes com pena não superior a três anos.
Ou seja, a formulação interpretativa textualmente adoptada pela decisão
recorrida – e, consequentemente, impugnada pelo Ministério Público – é mais
extensa do que a realidade que pretende efectivamente abarcar. No caso em apreço
nos autos recorridos, apenas foi requerida a reabertura da audiência de
julgamento “com o propósito de avaliar a possibilidade de aplicação do regime da
suspensão da execução da pena de prisão aplicada, nos termos do disposto no
artigo 50.º, nº. 1 do Código Penal” (fls. 224) e não com qualquer outro
fundamento. Assim, a decisão recorrida só desaplicou efectivamente o artigo
371º-A do CPP quando interpretado no sentido de permitir a reabertura de
audiência para aplicação de um novo regime de suspensão da execução de pena
privativa de liberdade que abrange não só as penas concretamente não inferiores
a três anos, como ainda, por força de lei nova, as não inferiores a cinco anos.
Assim, e em suma, o presente Acórdão não apreciará, em abstracto, todas as
situações justificativas da reabertura de audiência que se fundamentem na
aplicação de lei nova mais favorável, ainda que aquelas visem a “ponderação da
natureza ou medida da pena” (fls. 239). Pelo contrário, tendo em conta a
situação concreta em apreço nos autos, este Tribunal passará apenas a aferir a
interpretação normativa acolhida nos autos, segundo a qual o artigo 371º-A do
CPP seria inconstitucional, por ofensa à força de caso julgado, quando
interpretado no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de
nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar,
para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade, pois só
esta interpretação normativa foi efectivamente aplicada ao caso concreto ora em
apreço.
Feita esta prevenção, passemos então à ponderação, em concreto, da
questão de constitucionalidade suscitada pelos presentes autos de recurso.
B) A questão de constitucionalidade do artigo 371º-A CPP
6. Em 27 de Novembro de 2006, A., foi detida no Aeroporto Internacional de
Lisboa, por, segundo a própria, transportar no organismo cento e vinte
embalagens contendo cocaína, com destino a Madrid. No mesmo dia, foi presente ao
Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, tendo-lhe sido aplicada a medida de
prisão preventiva (fls. 35 a 40).
Em 19 de Abril de 2007, por acórdão proferido pela 8ª Vara Criminal de Lisboa,
A., foi condenada a uma pena de quatro anos e três meses de prisão, pela prática
do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1
do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Para efeitos de aferição da medida
da culpa e, consequentemente, da medida concreta da pena a aplicar, foi dado por
provado por aquele acórdão que:
“(…)
9. A arguida é natural do Brasil e não possui residência nem
qualquer ligação profissional no nosso país onde apenas se deslocou em trânsito
para Madrid.
10. A arguida confessou integralmente os factos que lhe são
imputados e mostrou arrependimento pela sua prática, procurando justificar o seu
comportamento com dificuldades de ordem financeira e a necessidade de angariar
dinheiro para poder prestar uma melhor assistência ao seu filho menor que, como
sequela de paralisia cerebral, padece de deficit de marcha e atraso no
desenvolvimento neuromotor.
11. Não tem antecedentes criminais registados.
12. A arguida tem como habilitações o ensino médio.
13. Vivia com o seu filho na casa dos pais que, no momento, cuidam
daquele.
14. O pai da arguida está aposentado e a sua mãe é doméstica.
15. A arguida tem mais oito irmãos, todos eles mais velhos.
16. O pai do seu filho não contribui com qualquer pensão de alimentos.” (fls.
152 e 153)
À data da decisão condenatória, vigorava a seguinte redacção do
artigo 50º do Código Penal:
“Artigo 50º
(Pressupostos e duração)
1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não
superior a 3 anos, se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua
vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste,
concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma
adequada as finalidades da punição.
2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades
da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos
artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de
conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 – Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos
cumulativamente.
4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e as
suas condições.
5 – O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em
julgado da decisão.” (com sublinhado nosso)
Durante a execução da pena privativa de liberdade, entrou em vigor a
Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que introduziu a seguinte redacção ao
referido artigo 50º do Código Penal:
“Artigo 50º
(Pressupostos e duração)
1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não
superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da
sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste,
concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma
mais adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – (…)
3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos
cumulativamente.
4 – (…)
5 – O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão
determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, contado do trânsito em
julgado da decisão.” (com sublinhado nosso)
Por força mesma Lei n.º 59/2007, foi profundamente alterado o n.º 4
do artigo 2º do Código Penal, que passou a determinar que:
“Artigo 2º
(Aplicação no tempo)
(…)
4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível
forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o
regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente; se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos
penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo
da pena prevista na lei posterior”
Consequentemente, o legislador viria ainda a aditar um novo artigo 371º-A ao
Código de Processo Penal, através da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que
estabelece o seguinte:
“Artigo 371º-A
(Abertura da audiência para aplicação retroactiva
da lei penal mais favorável)
Se, após trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução
da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a
reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”
É, pois, este preceito legal, quando interpretado no sentido de permitir a
reabertura de audiência para que seja aplicado o novo regime de suspensão da
execução de pena, que passou a abranger os condenados a pena privativa de
liberdade não inferior a cinco anos de prisão que veio a ser desaplicado pela
decisão recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do caso
julgado.
7. Para boa decisão da causa, justifica-se uma ponderação sobre a
génese e fundamento do mecanismo de reabertura de audiência, previsto no artigo
371º-A do CPP. Na sequência de um intenso debate doutrinário – não só sobre a
constitucionalidade, mas sobretudo – sobre a justificação político-legislativa
da ressalva do caso julgado face ao princípio da aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável, o legislador ordinário optou por abandonar a anterior
redacção do n.º 4 do artigo 2º do CP, através da Lei n.º 59/2007, que alterou o
Código Penal português.
Em traços largos, e tendo em consideração a diferença de redacção do
n.º 4 do artigo 2º do CP, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007,
parece que o legislador quis deixar bem claro que o princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável ocorre “sempre”, haja ou não condenação
com força de caso julgado formado sobre a questão jurídico-penal controvertida.
Posto isto, no que diz respeito às acções penais em que já exista
condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e
articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da “lex
mitior”, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de
liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido
uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstracta, o agente já tenha
cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2º, n.º 4, “in fine”,
do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos
restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais
favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena
de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371º-A do CPP).
8. Importa, portanto, aferir do fundamento do princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável e ponderar se aquele deve ceder,
obrigatoriamente, face a uma eventual necessidade de salvaguarda do caso julgado
penal.
Para melhor compreender o acolhimento constitucional do princípio da
aplicação retroactiva da “lex mitior” (cfr. n.º 4 do artigo 29º da CRP),
recordam-se os ensinamentos de Levy Maria Jordão (“Commentario ao Codigo Penal
Portuguez”, Tomo I, 1853, Lisboa, p. 170-1) segundo os quais “Quando o poder
social julga que as penas da lei são nimiamente severas, e que a conservação da
ordem social não interessa na sua manutenção, e estabelece por isso uma nova
penalidade, não poderia permitir que a factos, ainda mesmo anteriores às suas
novas leis, fossem applicadas as penas da antiga legislação, sem uma injustiça
flagrante, sem um contradição manifesta. Além disso cominando uma pena mais
suave o Legislador renunciou ao direito que tinha de requerer a applicação da
pena mais forte…”.
A actualidade destas palavras empresta maior ênfase à exigência
constitucional de aplicação retroactiva da “lex mitior”. A ideia de restrição
mínima do direito à liberdade pessoal, ínsita no n.º 2 do artigo 18º da Lei
Fundamental, já justificaria, por si só, a aplicação obrigatória da lei penal
mais favorável. Isto porque, quando o legislador passa a entender que
determinado bem jurídico, constitucionalmente protegido, pode ser
suficientemente protegido através de outras medidas que não a sanção penal (ou
quando abranda a severidade da respectiva punição) não seria justificável a
persistência na aplicação da lei antiga. Se admitíssemos a aplicação de lei
penal que, à data da respectiva aplicação, já não preenche a sua função de
prevenção geral e de prevenção especial, estaríamos a legitimar uma restrição
desproporcionada do direito fundamental do condenado à liberdade, na medida em
que foi o próprio Estado quem reconheceu a desnecessidade da lei penal antiga
(assim, ver, entre outros, Taipa de Carvalho, “Sucessão de Leis Penais”, 2ª
edição revista, Coimbra, 1997, pp. 103 e 104).
Sucede que, a acrescer a esta proibição de restrição
desproporcionada do direito à liberdade, a Constituição da República Portuguesa
tomou uma opção incontestável pela aplicação retroactiva da “lex mitior”, sem
que sujeitasse essa retroactividade a qualquer restrição explícita ou implícita
(cfr. n.º 4 do artigo 29º da CRP). Conforme sustentado por Gomes Canotilho /
Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra,
2007, pág. 496):
“Não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da
lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer,
pelo menos em princípio, mesmo para os «casos julgados», com a consequente
reapreciação da questão, devendo notar-se que, quando a Constituição manda
respeitar os casos julgados nos casos de declaração de inconstitucionalidade com
efeitos «ex tunc», admite uma excepção exactamente para a lei penal (ou
equiparada) mais favorável (cfr. art. 282º-3 e respectiva anotação). De facto,
não faz sentido que alguém continue a cumprir uma pena por um crime que,
entretanto, deixou de o ser ou que passou a ser punido com pena mais leve”.
O principio do tratamento mais favorável encontra respaldo em diversos textos de
Direito Internacional que protegem os direitos fundamentais do indivíduo e que,
por força do n.º 1 do artigo 16º da Constituição Portuguesa, constituem fonte de
direitos fundamentais reconhecidos pelo próprio Direito Constitucional
português. É o caso do artigo 15º, n.º 1, “in fine”, do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos (a saber: “Se posteriormente a essa infracção a
lei previr a aplicação de uma pena mais ligeira, o delinquente deve beneficiar
da alteração”). Além disso, é de mencionar ainda o artigo 49º, n.º 1, “in fine”,
da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o qual diz o seguinte:
“Se, posteriormente à infracção, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa
a pena aplicada”.
É tendo em consideração o enquadramento constitucional que importa, agora,
aferir da constitucionalidade da norma consagrada no artigo 371º-A do CPP, na
sequência da entrada em vigor da Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, e que foi alvo
de desaplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, pela decisão
recorrida.
9. De modo abreviado, a decisão recorrida procede a uma ponderação
entre aquele direito constitucionalmente consagrado e a garantia da força do
caso julgado penal, optando por sobrevalorizar este último em detrimento
daquele. Louvando-se no Acórdão n.º 644/98, proferido em 17 de Novembro de 1998,
pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional, a decisão recorrida entende que a
protecção constitucional do caso julgado penal impediria a aplicação da lei
penal mais favorável – v.g., a nova redacção do n.º 1 do artigo 50º do CP –, por
via do mecanismo de reabertura de audiência, previsto no artigo 371º-A do CPP.
Porém, o suposto argumento de “autorictas” em que a decisão recorrida se funda
não procede, uma vez que, naquele aresto, o Tribunal Constitucional frisou, para
que dúvidas não restassem, que apenas estava a apreciar um caso de sucessão de
leis penais no tempo que envolvia um aumento da moldura penal abstractamente
aplicável e não um caso que envolvesse uma nova lei penal que alterasse os
pressupostos da punição ou a natureza ou o tipo da pena, como sucede na situação
controvertida em apreço nos presentes autos:
“Porém, é ela própria, naquele n.º 3 do artigo 282.º, que vem estabelecer
situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se
concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou
inultrapassável.
(…)
Sublinhe-se que, na impostação deste problema, não serão colocadas as situações
conexionadas com a aplicação da lei penal posterior mais favorável quando desta
resulte uma mudança «qualitativa» da pena, mas tão-só quando resulte uma mera
mudança «quantitativa», como se trata no vertente caso.
E, outrossim, não se debruçará este aresto sobre os casos em que da lei
superveniente possa resultar alteração dos pressupostos, quer do procedimento,
quer da punição.” (cfr. Acórdão n.º 644/98, de 17 de Novembro de 1998, publicado
in «Diário da República», IIª Série, n.º 168, de 21 de Julho de 1999, pp. 10644
a 10653)
Quer dizer, o Tribunal admite aqui que a solução poderá ser
diferente se estiver em causa uma “mudança qualitativa” da pena.
Aliás, só assim se compreende que a mesma Secção, com a mesma composição, alguns
dias mais tarde, tenha proferido o Acórdão n.º 677/98, de 02 de Dezembro, que
julgou no sentido da inconstitucionalidade daquele mesmo n.º 4 do artigo 2º do
CP. E isto sucedeu não porque tenha havido uma contradição de julgados, mas
porque a situação concreta em apreço nos autos deste último acórdão justificou
decisão distinta. É que, em sede de fiscalização concreta, o Tribunal
Constitucional não esgota a apreciação da constitucionalidade de uma norma
aferida na pureza da sua abstracção, mediante a prolação de uma declaração de
inconstitucionalidade “erga omnes”, pelo contrário, profere uma decisão que
apenas se pode aplicar ao caso concreto e que, como tal, tem de levar em conta
as particularidades do caso concreto. Ora, nesse mesmo aresto, este Tribunal
teve oportunidade de expressar o entendimento que ora se reitera, segundo o
qual:
“(…)
4. É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a
Constituição consagra os princípios básicos relativos à 'aplicação da lei
criminal' (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o
princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e o direito
à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta.
Na parte que agora nos importa considerar, o nº 4 do artigo 29º determina que se
aplicam 'retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra, que
decorre directamente do princípio que a doutrina tem denominado da necessidade
das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas ( Acórdão deste
Tribunal nº 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da República, II, de
15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 'Direito Penal – Questões
fundamentais – a doutrina geral do crime', em curso de publicação, Coimbra,
1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, 'Direito Penal - Parte Geral',
Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, 'Direito Penal', 1º vol.,
2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO, 'A lei penal na
Constituição', Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 178, págs. 199 e
segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, 'Sucessão de Leis Penais', 2ª edição,
Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.).
Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais
depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito,
para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu
valor assenta na verificação de que 'qualquer criminalização e respectiva
punição' (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, 'A determinação da medida da pena privativa
de liberdade', Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos,
liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado
no nº 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode
justificar-se, nos termos do nº 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a
salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável
se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da
aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em
momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se
constitucionalmente ilegítima.
5. Como já se viu, a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal foi interpretada
pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de não permitir a aplicação
retroactiva da lei que transforma em crime semi-público um crime público – lei
que é, por isso, mais favorável – e de impedir, consequentemente, a relevância
da desistência da queixa apresentada.
Apurado o fundamento do nº 4 do artigo 29º da Constituição, impõe-se a conclusão
de que se verifica uma contradição formal entre esta disposição e a norma do nº
4 do artigo 2º do Código Penal, com o alcance com que foi aplicada pelo acórdão
recorrido (considerando existir tal contradição em todos os casos abrangidos
pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol.,
2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455, que sustenta que a parte final do nº 4 do artigo
2º do Código Penal deve 'considerar-se inconstitucional face ao disposto no nº 4
do artigo 29º').
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só
ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos,
liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e
proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também
constitucionalmente protegidos. Com efeito, '... as restrições e os
condicionamentos dos direitos fundamentais ... só se justificam quando, para
além do mais, se mostrem necessários e adequados à salvaguarda de outros
direitos ou valores constitucionais. Por outro lado, têm sempre que ser
proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o conteúdo
essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da Constituição)
(acórdão nº 392/89 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 14
de Setembro de 1989).
Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso
julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do
artigo 2º do Código Penal .
Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar
legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança
jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, 3ª
edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da
segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no
princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e
Teoria da Constituição”, Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer
dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia,
indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva
prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei
mais favorável.
Afirmou-se no acórdão nº 644/98 deste Tribunal, ainda inédito, haver que
averiguar se “aceite a consagração constitucional do valor ou interesse
consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar
a regra constante da parte final do nº 4 do artigo 29º como uma garantia
constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a
restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a
salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela
garantia”.
Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera
que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no nº 4 do artigo 29º
da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste
a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos
substancialmente análogos. (sublinhado nosso)
Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional
da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos
hipoteticamente abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, há que
entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma
não respeita o conteúdo essencial do nº 4 do artigo 29º da Constituição. Com
efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da
ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o
resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que
descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro,
a aplicação da lei nova determinaria a não punição.
6. Não se afigura admissível invocar o nº 5 do artigo 29º da Constituição, que
garante que 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo
crime', para defender a intangibilidade do caso julgado, como se fez no douto
acórdão recorrido (cfr. a invocação do nº 5 do artigo 29º como um dos argumentos
para a defesa da não inconstitucionalidade da última parte do nº 4 do artigo 2º
do Código Penal, em PEREIRA TEOTÓNIO, 'Interpretação da lei criminal e sua
aplicação no tempo', Revista do Ministério Público, ano 3º, vol. 12, 1982, pág.
64). Na verdade, a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio
ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do
arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua
ratio.” (cfr. Acórdão n.º 677/98, de 02 de Dezembro, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/)
Daqui resulta que, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal
sobre a constitucionalidade do n.º 4 do artigo 2º do CP (na redacção anterior à
Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro) se admite a aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável se sobreponha ao caso julgado penal: (i) quando está em
causa uma mudança “qualitativa” da pena (Ac. 644/98) ou (ii) quando a da lei
nova descriminaliza ou produz efeitos substancialmente análogos (Ac. 677/98,
seguido pelos Ac. 169/02 e 572/03).
FIGUEIREDO DIAS, escrevendo sobre o artigo 2º, nº 4, CP, na redacção anterior à
Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, diz o seguinte:
“O mesmo que se expôs para as hipóteses de descriminalização deve defender-se
para o caso em que a lei nova atenua as consequências jurídicas que ao facto se
ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto.
Também neste caso a «lex mellior» deve ser retroactivamente aplicada, todavia,
de acordo, com o disposto no art. 2º-4, com ressalva dos casos julgados”. (JORGE
FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 2007, p. 201).
Todavia, mais adiante, discutindo a questão da constitucionalidade daquele
preceito, o mesmo Autor sublinha:
“A conformidade com o artigo 29º-4 da CRP da ressalva dos casos julgados
prevista no art. 2º-4 do CP, não significa, como é evidente, que a mesma não
possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção legislativa. Nesse
sentido vai a alteração do regime do art. 2º-4 proposta no Anteprojecto 2007.
Nesse anteprojecto a actual ressalva dos casos julgados é substituída por uma
outra, menos restritiva, do seguinte teor: “Se tiver havido condenação, ainda
que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a
parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista
na lei posterior”. Desta proposta não resulta uma imposição de reabertura do
processo para nova determinação da pena concreta no quadro da nova moldura penal
aplicável, mas somente um limite à execução da pena concreta aplicada na
condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da pena
aplicável pela lei nova mais favorável. Em todo o caso, de acordo com o novo
regime processual proposto para compatibilizar a lei adjectiva (cf. o art. 371º
- A, aditado pelo art. 3º da Proposta de Lei nº 109/X) com esta alteração do
art. 2º-4, “o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe
seja aplicado o novo regime”. (JORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, cit., p.
202 e 203).
Ora, no caso dos autos, embora a nova lei penal não descriminalize a conduta em
causa, introduz uma mudança “qualitativa”, uma vez que atenua as consequências
jurídicas que se ligam ao facto, permitindo, consequentemente, a reabertura da
audiência com vista à suspensão da execução da pena.
Posição muito próxima da supra exposta é assumida pelo Ex.mo
Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, o qual defende que a
circunstância de ter sido proferido um juízo de não inconstitucionalidade de uma
norma com fundamento num juízo de ponderação de valores constitucionais que teve
em conta a necessidade de salvaguarda do caso julgado não conduz,
automaticamente, a um juízo de inconstitucionalidade de toda e qualquer norma
adoptada pelo legislador que, no uso do seu amplo poder de decisão legislativa,
opte por consagrar solução infra-constitucional distinta. Encontrando-se em
confronto o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável e o
princípio da salvaguarda do caso julgado penal, o legislador goza de ampla
margem de conformação que só pode ser censurada por este Tribunal se da análise
da norma em questão resultar uma manifesta desproporcionalidade na restrição da
salvaguarda do caso julgado. É apenas esta análise – e não qualquer outra,
centrada na opção legislativa tomada pelo órgão constitucionalmente legitimado –
que importa aqui levar a cabo.
Ora, sendo indubitável que a Lei Fundamental não pode deixar de
reconhecer o caso julgado como uma necessária emanação do princípio da segurança
jurídica, ínsito na ideia de dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1º da CRP),
não é menos verdade que a ideia de caso julgado penal entronca num propósito de
protecção do indivíduo face ao arbítrio do Estado-julgador – “ne bis in idem”.
Quando o legislador constituinte protege, ainda que indirectamente, a força de
caso julgado penal não visa proteger, de modo abstracto, a confiança de todos
nos tribunais, enquanto órgãos que administram a Justiça em nome do Povo, mas
antes visa, de modo concreto, assegurar que o cidadão acusado e julgado pela
prática de um crime não fica permanentemente sujeito a uma reapreciação da sua
responsabilidade penal. Conforme sustenta, Taipa de Carvalho:
“Esta preocupação em garantir a segurança individual contra a possível
arbitrariedade judicial ou legislativa levou à «absolutização do caso julgado
penal». Mas, como se intui e desde já se chama a atenção, não se tratou de uma
sacralização do caso julgado penal ao serviço de um equívoco «prestígio dos
tribunais» - como por vezes ainda se invoca – mas sim uma «absolutização
motivada pela» preocupação em constituir um travão de «defesa do cidadão» contra
a tentação de repetição arbitrária do julgamento.
(….)
Assim, depois de uma primeira fase em que, por uma compreensível motivação de
reacção contra a próxima-passada arbitrariedade persecutória penal, se tende à
absolutização do caso julgado, logo se lhe segue uma segunda fase em que,
ultrapassada aquela radical reacção inicial, se descobre que a razão de garantia
política ínsita no caso julgado e na sua exigência negativa do princípio «ne bis
in idem» nada têm contra a aplicação retroactiva da lei penal favorável.”
(“Sucessão de Leis Penais”, 2ª edição revista, 1997, Coimbra, pp. 214 e 215)
Com efeito, se o propósito constituinte que presidiu à garantia do
caso julgado foi precisamente evitar que o condenado viesse a ter que enfrentar
um novo julgamento, no qual poderia ver agravada a sua situação jurídico-penal,
então a intangibilidade do caso julgado não pode ser invocada em seu manifesto
prejuízo, na medida em que o condenado não sofre qualquer agravação na sua
esfera jurídica. Assim entendem igualmente Jorge Miranda / Rui Medeiros
(“Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, pp. 330 e 331):
“Com efeito, é errado, senão mesmo contraditório, invocar (como o tem feito o
referido Tribunal) o princípio «ne bis in idem», consagrado no n.º 5 do artigo
29.º, como argumento a favor da intangibilidade do caso julgado penal. Um tal
argumento esquece a evidência de que a proibição de duplo julgamento penal
referida no mencionado n.º 5, visa impedir a dupla punição pelo mesmo crime, e
não, de forma alguma, impedir a «revisão» da pena aplicada, por força da entrada
em vigor de uma lei nova que estabelece para o mesmo crime uma pena mais leve”.
Obviamente que a necessidade de segurança jurídica justifica a protecção do caso
julgado, mas este deve ceder quando as circunstâncias concretas do caso em
apreço imponham a prevalência da lei penal de conteúdo mais favorável. Isso
mesmo já foi entendido por este Tribunal, através do Acórdão n.º 677/98, de 02
de Dezembro, que rejeitou uma ideia de preponderância automática e absoluta do
caso julgado:
“Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso
julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do
artigo 2º do Código Penal.
Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar
legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança
jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª
edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da
segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no
princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e
Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer
dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia,
indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva
prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei
mais favorável.
Afirmou-se no acórdão nº 644/98 deste Tribunal, ainda inédito, haver que
averiguar se 'aceite a consagração constitucional do valor ou interesse
consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar
a regra constante da parte final do nº 4 do artigo 29º como uma garantia
constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a
restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a
salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela
garantia'.
Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera
que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no nº 4 do artigo 29º
da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste
a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos
substancialmente análogos.
Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional
da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos
hipoteticamente abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, há que
entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma
não respeita o conteúdo essencial do nº 4 do artigo 29º da Constituição. Com
efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da
ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o
resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que
descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro,
a aplicação da lei nova determinaria a não punição.” (cfr. Acórdão n.º 677/98,
de 02 de Dezembro, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/)
Aliás, a própria relatividade do caso julgado penal, por comparação
ao caso julgado civil, encontra-se eloquentemente consagrada na própria Lei
Fundamental. Ao abordar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral, o legislador constituinte procedeu, no n.º 3 do artigo
282º da CRP, a uma notória distinção entre “caso julgado penal” e “caso julgado
civil”. É que se, em regra, o n.º 3 do artigo 282º ressalva “os casos julgados”,
em sentido amplo – ou seja, abrangendo os casos julgados de qualquer uma das
jurisdições especializadas –, logo de seguida se permite que o Tribunal
Constitucional desconsidere os casos julgados “quando a matéria respeitar a
matéria penal (…) e for de conteúdo menos favorável ao arguido”. Só esta
constatação permite concluir que, na realidade, a Lei Fundamental manifesta uma
evidente preocupação com a aplicação dos regimes penais mais favoráveis aos
condenados, ainda que tal coloque em cheque eventuais casos julgados penais.
10. Não perdendo de vista a norma penal mais favorável concretamente
em apreço nos autos, impõe-se então averiguar se a possibilidade de reabertura
da audiência, expressamente prevista e garantida pelo actual artigo 371º-A do
CPP, configura uma restrição desproporcionada ao princípio da salvaguarda do
caso julgado penal.
Antes que tudo, há que frisar que o Acórdão n.º 644/98, proferido
por este Tribunal, quando aponta o risco de “uma enormíssima perturbação na
ordem dos tribunais judiciais”, reportado à potencial aplicação retroactiva da
lei penal mais favorável, apenas a fundamenta na consequente necessidade de
feitura de novos julgamento, à luz da nova lei penal entretanto vigente. Para
que dúvidas não restem, aponte-se a seguinte passagem:
“Não se pode passar em claro que a aplicação do regime penal mais favorável tem
de ser apreciada em concreto, o que implicaria a feitura de um verdadeiro novo
julgamento, a fim de serem pesadas todas as circunstâncias fácticas rodeadoras
do caso e a própria personalidade do agente.
(…)
Não está em causa, na aplicação de regimes penais supervenientes
potenciadores de, em concreto, serem mais favoráveis ao arguido, tão-somente um
acréscimo de trabalho (questão que poderia não ter o relevo suficiente para se
aferir da necessidade ou adequada proporcionalidade da restrição em causa).
Está, isso sim, toda a actividade dos tribunais consubstanciada na feitura de
novos julgamentos, com todas as consequências implicadas.”
Ora, mesmo dando por adquirido o entendimento vencedor no referido
aresto, torna-se claro que, no caso especificamente em apreço – como, aliás, bem
nota o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal – a
aplicação retroactiva de nova lei penal, de conteúdo mais favorável, não implica
necessariamente a feitura de um novo julgamento. Conforme melhor se demonstrará
no § 11 deste acórdão, todos os factos necessários à determinação dos
pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão já se encontram dados
como provados quer nos relatórios sociais quer no próprio acórdão condenatório.
Assim, não colhe o argumento de paralelismo entre a situação dos autos e a
situação que deu lugar ao Acórdão n.º 644/98 – em que, recorde-se, se decidia da
aplicação de nova lei penal que alterou as molduras penais dos crimes de furto
qualificado e de burla agravada. Naqueles autos, o condenado pretendia que fosse
efectuado novo julgamento “com vista a decidir quais as disposições penais mais
favoráveis ao arguido, se as vigentes no momento da prática dos factos puníveis
ou as posteriores, as introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março”
(cfr. § 1 do Acórdão n.º 644/98).
Sucede que, in casu, a norma reputada de inconstitucional (artigo
371º-A do CPP) e, consequentemente, desaplicada não implica uma repetição
automática do julgamento já efectuado, antes obrigando a uma mera reabertura da
audiência, para estrita reapreciação da questão relativa à suspensão da execução
de pena privativa liberdade, em função de nova redacção conferida ao n.º 1 do
artigo 50º do CP.
Acresce ainda que a nova norma, introduzida pelo aditamento do
artigo 371º-A do CPP, “ex vi” Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não implica uma
repetição automática de julgamentos, na medida em que condiciona a reabertura de
audiência à formulação de um pedido por parte do interessado. Significa que,
independentemente de os tribunais que proferiram acórdão condenatório poderem
“ex officio” aplicar retroactivamente a nova lei penal de conteúdo mais
favorável, em estrito cumprimento do n.º 4 do artigo 29º da Constituição e do
actual n.º 4 do artigo 2º do CP, a norma constante do artigo 371º-A do CPP não
implica uma reapreciação de todos os acórdãos condenatórios proferidos, mas
apenas daqueles que tenham sido objecto de pedido de reabertura de audiência por
parte do condenado. Daqui decorre que os argumentos relativos a uma “enormíssima
perturbação na ordem dos tribunais judiciais”, equacionados por este Tribunal,
através do Acórdão n.º 644/98, não são repetíveis nem muito menos decisivos nos
presentes autos.
11. Por último, importa ainda verificar se, no caso em concreto, o princípio da
continuidade da audiência impediria a reapreciação do caso julgado, conforme
entendido pela decisão recorrida. Com efeito, a decisão recorrida fundamenta a
sua recusa de aplicação da norma constante do artigo 371º-A do CPP, invocando
que a circunstância de não ser possível formar o mesmo colectivo que julgou e
condenou a recorrida e de ser necessária uma repetição dos juízos formulados por
aquele colectivo inviabilizaria a aplicação retroactiva da “lex mitior”.
Atente-se, pois, nas palavras da decisão recorrida:
“Por um lado, o tribunal da condenação não tem de ter a mesma composição (parece
mesmo que actualmente nenhum dos juízes do anterior julgamento pode intervir na
reapreciação da causa face ao impedimento criado pela revisão do Código de
Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, quanto ao art.
40°, c), desse Código).
Ainda que se defendesse que o tribunal da condenação tinha de ser o mesmo,
quando tal já não pudesse acontecer (designadamente em caso de cessação de
funções ou morte), apenas a integral repetição do julgamento permitiria a
aplicação do novo regime.
Ainda que esteja em causa “apenas” a aplicação de um novo regime penal nenhuma
vinculação pode existir para o tribunal quanto ao anterior juízo de culpa, à sua
medida ou à consideração dos fins das penas.” (fls. 227 e 228)
Sucede, porém, que uma justa ponderação dos valores constitucionais
em conflito implica o afastamento deste entendimento. Senão, veja-se.
É certo que o artigo 328º do CPP consagra o princípio da
continuidade da audiência, nos termos do qual se exige que os membros do
tribunal que procedem a um julgamento penal assistam a todos os actos praticados
durante a audiência de julgamento e que aquela decorra sem interrupções, salvo
as expressamente decorrentes da própria lei processual (cfr. n.º 3 do artigo
328º do CPP).
Afigura-se, porém, evidente que tendo em conta o tipo de reponderação que é
necessário fazer, na situação concreta, o princípio da aplicação retroactiva da
lei penal mais favorável, com expressa consagração constitucional (artigo 29º,
n.º 4), deve prevalecer sobre o princípio da continuidade da audiência, que nem
sequer encontra guarida expressa no texto normativo constitucional.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 371º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a
reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite
máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução
de pena privativa da liberdade;
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a
reforma de decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo sobre a
questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Março de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Gil Galvão