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Processo n.º 1125/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformado com a decisão do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa que
o condenou na pena conjunta de 7 anos e 9 meses de prisão pelos crimes de
tráfico de estupefacientes e falsificação de documento, e na pena acessória de
expulsão do território português pelo período de 10 anos, recorreu para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
Este Tribunal concedeu parcial provimento ao recurso interposto, determinando a
aplicação da pena conjunta de 6 anos e 9 meses de prisão, e determinando o
reenvio dos autos para novo julgamento em relação à questão da pena acessória de
expulsão.
De novo inconformado, o Recorrente reclamou de tal decisão, nos termos dos
artigos 669.º e 670.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicáveis
por remissão do artigo 4.º do Código de Processo Penal, invocando o seguinte:
“ (…) 3 – Deve assim, numa interpretação não literal do disposto no art. 328.º,
n.° 6 do CPP, o arguido ser sujeito a novo julgamento.
4 – Entende-se, assim e como corolário do que fica dito – que o art. 328.º, n.°
6 do CPP se interpretado no sentido e com a dimensão de que é possível na
sequência da nulidade do acórdão, prolatar-se novo acórdão sem efectuação de
novo julgamento (não se considerando nulo, também, o julgamento terminado já há
cerca de quatro meses), encontra-se ferido de verdadeira inconstitucionalidade
material, por violação, entre outros, do disposto nos arts. 32°, n.ºs 1 e 5 da
CRP e do princípio de ampla garantia de defesa do arguido nele consignado.
De facto, de acordo com o n.° 6 do art. 328.º do CPP o adiamento da audiência
não deve exceder 30 dias, ou seja, o intervalo entre sessões de audiência não
poderá exceder esse prazo, sob pena de a prova já produzida perder eficácia,
implicando assim a sua repetição (CPP Anotado – Leal Henrique e Simas Santos –
Pag. 295).
Assim, ao se considerar (como o faz o douto Aresto da Veneranda Relação neste
processo) que os juízes podem, decorridos cerca de quatro meses, efectuar
julgamento parcial, fazem, com o devido respeito e em nossa modesta opinião,
interpretação inconstitucional do referido normativo (o n.° 6 do art. 328.º do
CPP).
Por todas estas razões se entende que essa interpretação será manifestamente
inconstitucional. Por violação dos princípios do contraditório, da imediação e
da concentração da prova ‘maxime’ da garantia de defesa do arguido em processo
penal (art. 320.º, n.° 1 da Lei Fundamental).”
Os Exmos. Desembargadores da Relação de Lisboa indeferiram a reclamação,
dizendo, no que ora importa:
“3. Liminarmente dir-se-á que os preceitos invocados como suporte da reclamação
referentes ao CPC são inaplicáveis em processo penal, pois, a respeito da
correcção dos acórdãos proferidos em recurso existe no CPP norma própria, a do
art. 380.°, aplicável ex vi do art. 425.° n.°4 do CPP.
Emerge do referido art. 380.° que o tribunal procede, oficiosamente ou a
requerimento, à correcção da sentença quando esta contiver erro, lapso,
obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Uma decisão só é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa nos seus
termos ou de interpretação difícil dos seus parâmetros, ou nos seus propósitos
decisórios, ou seja, quando a obscuridade se traduzir na ininteligibilidade e a
ambiguidade na possibilidade de, à dita decisão serem razoavelmente atribuídos
dois ou mais sentidos diferentes ou assacáveis duas ou mais perspectivas
diversas (cfAcSTJ de 2.10.2003. in Rec.4635/02 5.ª Secção SASTJ n.° 74, pag.
169,).
O inconformismo do requerente A. com o decidido por esta Relação quanto ao
reenvio parcial, nos termos dos art.426.° n.°1 e 426-A do CPP, não constitui
fundamento para qualquer pedido de correcção do acórdão ao abrigo do disposto no
citado normativo, pois que a correcção tem como limite que dela não resulte
modificação essencial do que foi decidido com o poder jurisdicional esgotado.
O requerente não imputa ao acórdão recorrido qualquer obscuridade ou
ambiguidade, sem embargo de poder revelar alguma confusão sobre o instituto do
reenvio decretado ao abrigo do disposto no art. 426.° n.°1 e 426-A do CPP e os
outros casos de anulação de sentença/acórdão ou do próprio julgamento. Deste
modo, o que se intenta obter não é nenhuma aclaração do acórdão proferido mas um
reexame do mesmo, a prolação de uma nova decisão tendo presente a argumentação
que ora vem deduzir, que propicie uma alteração do julgado. Mas tal objectivo
está fora do escopo legal do meio processual exercido, acima referido.
Na verdade, segundo o melhor entendimento do art. 380.° do CPP, a correcção para
que a lei aponta e que este preceito autoriza só pode ser ditada por erro,
lapso, obscuridade ou ambiguidade evidentes, e só pode visar uma alteração não
substancial do julgado, já que de outro modo estaria aberta a passagem a um
ínvio caminho conducente à alteração do decidido quando o poder jurisdicional de
quem decidiu se encontrasse esgotado, com risco para a segurança das decisões
(cf neste sentido o Ac. do STJ de 1.6.2000, in Rec. 76/2000 5.ª Secção, in SASTJ
n.º 42. pag.60).
Portanto, há que ter bem presente que todo o acto que importe intromissão no
conteúdo do julgado, ainda que a pretexto de simples correcção do acórdão, está
vedado ao julgador. Os erros de julgamento, ou suas omissões – como omissão de
pronúncia – quando existam, estão subtraídos à disciplina sumária da correcção
de vícios ou erros materiais do acórdão até por uma razão lógica intuitiva:
evitar que uma ponderação sumária e, portanto mais abreviada, deite por terra os
fundamentos de uma decisão, necessariamente mais elaborada.
Colmatar um pretenso erro de julgamento – que de todo o modo, energicamente,
aqui se têm por afastado – é, assim, na expressão legal, proceder a uma
modificação essencial do acórdão, o qual só por via de recurso quando a ele
houver lugar, pode ser apreciado.
2. O Recorrente interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
concluindo, no que releva para os autos:
“1. O douto acórdão recorrido não se pronunciou sobre a alegada
inconstitucionalidade do art.° 328.° n.°6 do CPP, em tempo alegada pelo
recorrente em requerimento entregue na sequência da prolacção o douto acórdão
recorrido. (reclamação em tempo apresentada nos termos das disposições
conjugadas dos art.° 369.° e 370.° do CPC por aplicação subsidiária do art.° 4.°
do CPP).
2. Pelo que cometida se mostra ter sido a nulidade de omissão de pronúncia a que
se reporta o art.° 379.º n.° 1 alinea c) do CPP (dado o facto de o tribunal
recorrido não ter tomado conhecimento de questão que podia e devia conhecer).
Nulidade esta que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça deve por isso
declarar.
3. Sem conceder, quanto à medida da pena, sempre se dirá que a punição
concretamente aplicada ao recorrente (mesmo concedendo-se provimento parcial ao
recurso e mesmo tendo-se diminuído para seis anos e seis meses de prisão
efectiva o primitivo castigo de sete anos e meio) ainda assim se mostra algo
exagerada, tendo em conta quer a natureza ‘leve’ da droga transportada
(cannabis), quer a primaridade do recorrente, quer ainda o facto de este
comprovadamente demonstrar ter sido um peão menor no tráfico, tráfico este que
no caso concreto apenas se concretizou num simples ‘transporte’, desligado ou
dissociado de qualquer outra actividade organizada de tráfico.
4. Pelo que quer a ilicitude (demonstrada esta no desvalor da acção e na
desqualificação objectiva do resultado típico causado, já que o crime de tráfico
é um crime exaurido ou de consumação imediata), quer a culpa do próprio
recorrente (revelada no dolo directo ao efectuar o aludido transporte de
‘cannabis’), não se mostram de grande dimensão, não exigindo agora, em nossa
opinião, as exigências de prevenção geral, medidas pelo modo de exteriorização
da ilicitude no contexto de um simples transporte e em actuação parcelar
desinserida de um plano (como se mostra ter acontecido no caso dos autos),
punição superior a cinco anos.
5. Assim, ao aplicar a pena de seis anos e seis meses de prisão, o recorrido
acórdão violou os art.°s 40.° n.°2, 70.° e 71.º do Código Penal.”
3. Já no Supremo Tribunal de Justiça foi concedido parcial provimento ao
recurso, reduzindo-se a pena para 5 anos e 9 meses de prisão. Em relação à
arguida nulidade, por omissão de pronúncia, no acórdão recorrido foi decidido o
seguinte:
“Nulidade do Acórdão Recorrido
[…]
Primeira observação a fazer é a de que, mesmo em processo civil, a arguição de
nulidades (com excepção da falta de assinatura do juiz), sendo recorrível a
sentença, terá de ser feita no recurso – artigo 668°, n.° 3, do Código de
Processo Civil –, isto é, não pode ser feita perante o tribunal que,
supostamente, cometeu a nulidade.
Por outro lado, consabido que proferida a sentença fica imediatamente esgotado o
poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – artigo 666°, n.° 1 do
Código de Processo Civil –, não é admissível a arguição de
inconstitucionalidades perante o tribunal que proferiu a sentença, tendo
obviamente de ser feita através de recurso.
Por outro lado, ainda, em processo penal, tal como o Tribunal da Relação de
Lisboa já afirmou, inexiste o instituto de reforma da sentença previsto no
processo civil, prevendo a lei, apenas, a possibilidade de correcção da sentença
– artigo 380°, do Código de Processo Penal –, cujo âmbito se circunscreve,
fundamentalmente, à rectificação de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja
eliminação não importe modificação essencial.
Assim sendo, bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao não apreciar o
requerimento de reforma do acórdão apresentado pelo arguido A., através do qual
arguiu a inconstitucionalidade da norma do n.° 6 do artigo 328° do Código de
Processo Penal, sendo certo não se verificar a nulidade arguida.”
Vem agora o Recorrente interpor recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) e g), da Lei do
Tribunal Constitucional, para apreciação do artigo 328.º, n.º 6, do Código de
Processo Penal, face ao disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, da Lei
Fundamental, na interpretação efectuada pela Relação de Lisboa, e confirmada
pelo Supremo Tribunal de Justiça.
4. Notificado pelo Relator para alegar, veio o Recorrente pugnar pela
inconstitucionalidade do artigo 328.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, “com
a interpretação que foi feita pela Veneranda Relação de Lisboa e confirmada pelo
Venerando Supremo Tribunal de Justiça, ao ordenar o reenvio do processo para
novo julgamento no que concerne apenas à pena acessória de expulsão, assim se
indeferindo a pretensão do recorrente), e no entender da defesa, por violação do
disposto no art. 32.º, n.° 1 da Constituição da República.”
Nas suas contra-alegações, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em funções neste
Tribunal suscitou questão prévia atinente à falta de pressuposto processual
essencial ao conhecimento do objecto do recurso, tendo concluído que:
“1°
A ‘ratio decidendi’ do acórdão recorrido assenta exclusivamente numa
interpretação normativa do âmbito dos incidentes pós-decisórios, consentidos em
processo penal pelo artigo 380.º do Código de Processo Penal – e não na norma
questionada pelo recorrente: a constante do n° 6 do artigo 328° daquele Código.
2°
Não tendo tal norma, definidora do objecto do recurso, sido aplicada pela
decisão recorrida, é evidente que falta um pressuposto do recurso de
constitucionalidade interposto.”
Nos termos do artigo 704.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi
do artigo 69.º, da Lei do Tribunal Constitucional, foi Recorrente notificado
para se pronunciar sobre a questão prévia invocada pelo Ministério Público, não
tendo, no entanto, aquele respondido no prazo estabelecido.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Questão Prévia
5. A apreciação do presente recurso exige que os respectivos pressupostos,
aplicáveis nos termos da Constituição e da Lei do Tribunal Constitucional, se
encontrem devidamente preenchidos. Assim, o conhecimento de recursos interpostos
ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como é o caso ora em apreciação –
tendo o recorrente abandonado qualquer menção relativamente à alínea g) do mesmo
preceito legal – ocorre quando, nomeadamente, a norma impugnada tenha sido
aplicada pela instância recorrida como ratio decidendi, isto é, como fundamento
da decisão proferida, na exacta dimensão interpretativa que vem impugnada pelo
recorrente.
O objecto do presente recurso, delimitado pelo respectivo requerimento de
interposição, reporta-se à norma constante do artigo 328.º, n.º 6, do Código de
Processo Penal. O Tribunal da Relação de Lisboa, pelas razões aduzidas a fls.
495 e 496, supra transcritas, não se pronunciou sobre tal questão apenas, e na
medida, em que considerou que o bloco normativo invocado fundamentante da
reclamação deduzida (artigos 668.º e 669.º do Código de Processo Civil,
aplicáveis por remissão do artigo 4.º do Código de Processo Penal), não opera em
sede de processo penal.
Posteriormente, como já se teve oportunidade de aferir, o Supremo Tribunal de
Justiça veio a confirmar tal matéria decisória. Significa isto, portanto, que o
acórdão recorrido – que constitui o dado ou pressuposto de que parte a presente
pronúncia – não aplicou a norma impugnada. Antes considerou que o regime legal
aplicável à concreta factualidade em análise se consubstancia nos artigos do
Código de Processo Penal, respeitantes à nulidade e correcção da sentença.
6. Ora, atendendo à instrumentalidade que enforma o recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade, bem como ao facto de que a norma que vem
impugnada pelo Recorrente não foi, sequer, aplicada pelo Tribunal a quo, não
constituindo, por conseguinte, obviamente, a ratio decidendi da respectiva
decisão, qualquer que fosse a resposta do Tribunal Constitucional à questão
suscitada, a mesma não teria a virtualidade de repercutir efeito útil na decisão
recorrida.
Assim, não pode conhecer-se do objecto do recurso que integra os autos.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do
objecto do presente recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de
conta.
Lisboa, 22 de Janeiro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos