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Processo n.º 656/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I.
Relatório:
1.
A. e outros, não se conformando com a sentença da 3ª vara Cível da Cível da
Comarca de Lisboa que julgou improcedente a acção por eles intentada contra B.,
absolvendo a ré do pedido, recorreram para a Relação de Lisboa, Tribunal que por
acórdão de 20 de Outubro de 2005 confirmou, no entanto, a sentença recorrida e
julgou improcedente a apelação.
Inconformados, recorreram de revista para o Supremo Tribunal de
Justiça apresentando, no recurso, as seguintes conclusões:
“ (…) 1.
14.
E não existe também o direito à transmissão do arrendamento à luz da alínea f)
do nº1 do art. 85º do RAU, na redacção introduzida pela Lei 6/2001, não só
porque nos autos não foram provados factos que demonstrassem a vivência em
economia comum há mais de dois anos à data da morte da inquilina do andar dos
autos, mas também porque a aplicabilidade da Lei Nova às relações jurídicas já
constituídas à data da sua entrada em vigor está condicionado ao pressuposto da
subsistência dessas relações jurídicas à data da entrada em vigor da Lei Nova e,
no caso dos autos, a relação jurídica de arrendamento já cessara por morte da
inquilina em 9 de Janeiro de 1996, há mais de 5 anos quando entrou em vigor a
Lei 6/2001 — art. 12º, nº2, in fine do Código Civil e Batista Machado (in
“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1987, pág. 233;
15.
O Acórdão recorrido ao decidir que a R. tinha o direito à transmissão do
arrendamento fez pois indevida interpretação do art. 12º, nº 2, do Código Civil,
violando o princípio da confiança dos cidadãos no Estado de Direito Democrático
ofendendo claramente o art. 2º da Constituição, e é nulo nos termos do art.
668º, nº 1, d), 2º parte, do Código de Processo Civil, por se pronunciar sobre a
vivência em comum da R. e da inquilina do andar quando tal conclusão não se
podia validamente extrair de factos inexistentes nos autos e vertidos em sede de
matéria de facto por forma claramente conclusiva;
16.
E ao manter a decisão de 1ª instância admitindo a existência do direito a novo
arrendamento violou os arts. 90º e 94º do RAU e os art.s. 219º e 220º do Código
Civil. (…)”
Por acórdão de 9 de Maio de 2006 o Supremo Tribunal de Justiça negou
a revista e confirmou o acórdão recorrido, dizendo, no que ora interessa
considerar, o seguinte:
“[…] São, fundamentalmente duas as questões a conhecer, considerando o teor da
alegação de recurso:
a) se a recorrida viveu em economia comum com a falecida arrendatária B.;
b) se à situação em apreço é aplicável, atento o regime previsto no art. 12º do
C.Civil, o art. 85º nº 1 al. f) do R.A.U., alínea esta aditada pela Lei nº
6/2001, de 11 de Maio.
I- Disse-se que são, fundamentalmente duas as questões a conhecer, porquanto uma
terceira se encontra prejudicada – caducidade do direito ao novo arrendamento –
, caso se entenda da razão do Acórdão recorrido no que se refere à
aplicabilidade do aludido regime preconizado no citado art. 85º nº 1 al. f) do
RAU.
O Acórdão da Relação de Lisboa entendeu encontrar-se preenchido o
requisito da vivência em economia comum entre a recorrida e a falecida
arrendatária B., sufragando-se na factualidade dada como provada constante nos
artigos 4º, 5º e 13º.
[...] Com efeito, sufragou-se o entendimento que durante todos os assinalados
anos se estabeleceu entre as duas senhoras uma estreita convivência “quase
familiar” que se integra no conceito de economia comum.
Na verdade, a tese sustentada pelos recorrentes no que se refere à existência de
um contrato doméstico que uniria a falecida inquilina e a recorrida, não tem, no
suporte factual dado como provado, a mínima verosimilhança.
Ao invés, a convivência entre ambas sedimentou-se não a partir de um qualquer
tipo de consenso, com relevância do direito, leia-se contrato, mas, antes na
sequência de uma amizade existente entre ambas em que a inter-ajuda entre as
duas senhoras seria um paradigma. […]
II- No que ora se refere à problemática da transmissão do direito ao
arrendamento e ao facto de no Acórdão recorrido se ter dado obediência à
previsão constante no art. 85º nº 1 al. f) do RAU, no aditamento que lhe foi
dado pela Lei nº 6/2001 de 11 de Maio, tendo em vista o que se dispõe, no que
tange ao direito transitório, no art. 12º do C.Civil, é de salientar o seguinte:
As normas de carácter geral relativas aos conflitos de leis no tempo são
reguladas nos arts. 12º e 13º do Código citado. A regra basilar vem contida no
art. 12º, cujo nº 1 reafirma o princípio da não retroactividade, esclarecendo,
contudo, que, mesmo na hipótese de a lei se atribuir eficácia retroactiva, se
presume que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se
destina a regular.
No nº 2, do mencionado art. 12º, procura-se, numa fórmula sintética, precisar o
princípio da não retroactividade, norma para a qual não se vislumbra qualquer
precedente legislativo, tendo antes como fonte inspiradora a doutrina de
Ennecerus-Nipperdey, que distingue entre “regulamentações de factos” e
“regulamentações de direitos”, devendo presumir-se, quanto a estas últimas leis
que elas abrangem também as próprias situações jurídicas já existentes, podendo
modificar-lhes o conteúdo, ou até suprimi-lo. No referenciado nº 2 estabelece-se
a seguinte disjuntiva: a lei nova, ou regula a validade de certos factos ou os
seus efeitos (e neste caso só se aplica a factos novos) ou define o conteúdo, os
efeitos de certa relação jurídica, independentemente dos factos que a essa
relação deram origem (hipótese em que é de aplicação imediata, isto é, aplica-se
de futuro às relações jurídicas constitutivas e subsistentes à data da sua
entrada em vigor).
A razão de ser que está na base desta regra da aplicação imediata é, por um
lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas em
conta pelo legislador, face ao ajustamento devido às novas concepções e
valorações da comunidade e, por outro, o reduzido ou nulo valor da expectativa
dos indivíduos que confiaram na continuidade do regime estabelecido pela lei
antiga, uma vez que se trata de um regime legal e não de um regime posto na
dependência da vontade dos mesmos indivíduos.
É sabido que é função do direito transitório concatenar a aplicação de dois
sistemas jurídicos que se sucedem no tempo. Para conseguir tal objectivo terão
de ser sopesados os interesses que se contrapõem, apontando uns para a aplicação
da lei nova; outros para a aplicação da lei antiga.
Esses interesses são, principalmente, dois: o interesse da estabilidade e o
interesse na adaptação.
O interesse dos indivíduos na estabilidade da ordem jurídica, o que lhes
permitirá a organização dos seus planos de vida e lhes evitará o mais possível a
frustração das suas expectativas fundadas. Podem, nomeadamente surgir situações
jurídicas merecedoras de tutela, como o sejam aqueles que a doutrina qualifica
de “direitos legitimamente adquiridos”.
A este feixe de interesses contrapõe-se um outro — o interesse público na
transformação da antiga ordem jurídica e na sua adaptação a novas necessidades e
concepções sociais, mesmo à custa de posições jurídicas e de expectativas
fundadas no antigo estado de direito.
Está-se, assim, em sede de existirem razões de ordem pública — “princípios
estruturadores da ordem social” — que levam a que o legislador pretenda a
aplicação imediata da lei nova.
E, para usar a terminologia já mencionada, de novo, se poderá colocar a
dicotomia —interesse da estabilidade/interesse da adaptação.
No entanto, e, segundo o ensinamento de Baptista Machado, no domínio do direito
civil, a resposta à questão de saber se a Lei Nova abstrai ou não dos factos que
dão origem às relações cujo conteúdo e efeitos essa mesma Lei disciplina,
implica que se tenha presente a distinção entre três áreas de problemas.
1. Questões pertinentes à determinação da existência e validade jurídicas da
relação contratual.
(E, neste ponto, dúvidas não subsistem que a aplicação da Lei nova implica
sempre retroactividade).
2. Questões pertinentes aos efeitos futuros (produzidos sobre a incidência da
Lei Nova) de factos ocorridos sob o âmbito da vigência da Lei Antiga, onde se
costumam distinguir dois tipos de situações:
a) normas de carácter supletivo, onde o legislador coloca na disponibilidade das
partes e na sua autonomia a fixação do regime do contrato e onde a aplicação da
Lei Nova representaria uma manifesta retroactividade; e
b) normas de carácter imperativo, sendo certo que se a Lei Nova se refere aos
efeitos do facto passado, essa referência implica retroactividade; se, ao invés,
aquilo que a Lei Nova tem em vista é o facto pretérito enquanto “facto de
produção normativa', então a aludida referência implica uma sua mera aplicação
imediata.
Desenvolvendo o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto
passado, o art. 12º nº 2, na lição, ainda, de Baptista Machado, distingue dois
tipos de leis ou de normas: “aquelas que dispõem sobre os requisitos da validade
(substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer
factos (1ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações
jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2ª
parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se
aplicam a situações jurídicas constituídas antes da lei nova, mas subsistentes
ou em curso à data do seu início de vigência”.
Em jeito de conclusão, afirma Baptista Machado, estatutos “pessoal” e “real”
estão sujeitos ao princípio da aplicação imediata da lei nova; o estatuto do
“contrato”, na parte em que não entre em conflito com regras imperativas do
“estatuto pessoal” e do “estatuto real”, seria regulado pela lei vigente ao
tempo da conclusão do contrato.
Nesta linha, facilmente se constata, na sequência da decisão proferida pelo
Tribunal da Relação, que a alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU, na redacção
que lhe foi dada pela Lei nº 6/2001, de 11 de Maio, reporta-se a um estatuto
legal, nela tendo o legislador tido em atenção tão só a relação locatícia
duradoura, abstraindo dos factos que a originaram, desviando-se claramente de
regulamentar o conteúdo de cada específico contrato de arrendamento celebrado.
Conforme se decidiu no Ac. deste STJ de 23.05.2002, as normas relativas ao
inquilinato e arrendamento, reportam-se à estruturação básica do sistema
jurídico e da ordem social, e consequentemente, ao estatuto fundamental das
pessoas e das coisas, e que, por isso, são de interesse geral, exigindo a
aplicação imediata da lei nova, dado que este tipo de relações se autonomiza,
atento o seu estatuto legal, do seu acto criador, conforme resulta da 2ª parte
do nº 2 do artº 12º do C. Civil.
Assim, facilmente se constata que a alteração legal constante da alínea f) do nº
1 do artigo 85º do RAU se aplica mesmo às situações jurídicas em que o direito à
transmissão do arrendamento já estava constituído à data da sua entrada em
vigor, não podendo, consequentemente esse efeito imediato da lei nova, previsto
na segunda parte do nº 2 do artigo 12º do Código Civil, enquanto tal, ser
considerado como representando um efeito retroactivo.
Na verdade, a aludida alínea f), dispondo directamente sobre o conteúdo da
relação jurídica de arrendamento urbano habitacional, abstraindo do facto
(jurídico) que lhe deu origem aplica-se às relações jurídicas já constituídas e
que subsistam à data da sua entrada em vigor – art. 12º nº 2 do C. Civil.
Assim sendo, bem andou a Relação de Lisboa em ter aplicado à situação em apreço
a mencionada alínea f), que entrou em vigor em 16.05.2001, já que tal
dispositivo aplica‑se de imediato — independentemente dos sujeitos, objecto e
respectivo conteúdo negocial — a todos os contratos de arrendamento
anteriormente celebrados, já que interpretou a lei na adequada decorrência do
estabelecido no citado nº 2 do art. 12º do C.Civil, não merecendo, pois,
censura, na economia da presente revista, nem, pelo que também se deixou já
reafirmado, foi, ainda, beliscado qualquer normativo constitucional, como
pretendem os recorrentes (…)”.
2.
Novamente inconformados, A. e outros recorreram do acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
No Tribunal Constitucional, o relator convidou o recorrente, nos termos do
disposto no n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, a precisar o objecto do recurso
mediante a enunciação do 'exacto sentido da norma (ou normas) cuja conformidade
constitucional pretende questionar, com indicação dos preceitos legais em que a
mesma se contem.”
Na sequência deste convite, os recorrentes vieram esclarecer 'que a norma em
causa no presente recurso é a do artigo 12º do Código Civil quando interpretada
no sentido de que a alteração da alínea f), do artigo 85º do R.A.U., na redacção
dada pela Lei 6/2001, era aplicável a um arrendamento já extinto por morte da
inquilina em 8 de Janeiro de 1986, ou seja, mais de cinco anos antes da entrada
em vigor da Lei Nova, entendimento que os recorrentes entendem violar o
princípio da confiança dos cidadãos no Estado de Direito Democrático, que emana
do art. 2º da Constituição.'
Concluíram, depois, a sua alegação nos seguintes termos:
1. A aplicabilidade da Lei Nova às relações contratuais já existentes antes da
sua data de entrada em vigor pressupõe que tais relações jurídicas ainda
subsistam à data da sua entrada em vigor;
2. No caso dos autos a questão da aplicabilidade da Lei Nova só se suscitaria se
à data da sua entrada em vigor o arrendamento não houvesse já cessado pela morte
da inquilina;
3. Tendo a inquilina falecido no dia 8 de Janeiro de 1996 a questão só se
colocava se a Lei 6/2001 tivesse entrado em vigor antes dessa data, atribuindo
então à R. (se tivesse uma vivência em comum há mais de dois anos) um direito
até então inexistente;
4. Mas das teses da aplicabilidade da Lei Nova às relações já constituídas antes
da sua entrada em vigor, não resulta, nem pode resultar, a sua aplicabilidade às
relações e situações jurídicas que já deixaram de vigorar na ordem jurídica;
5. A menos que a Lei Nova dispusesse ela mesma sobre o alargamento e
perdurabilidade no tempo das relações jurídicas já extintas à luz do direito
anterior, o que não é manifestamente o caso da Lei 6/2001;
6. E é isso que decorre do art. 12º, nº 2, do Código Civil ao estabelecer que a
aplicabilidade da Lei Nova às relações jurídicas já constituídas antes da sua
entrada em vigor está condicionado ao pressuposto de que essas relações
jurídicas ainda subsistam à data da entrada em vigor da Lei Nova;
7. Deste modo, aceitando-se a tese conhecida da aplicabilidade das leis no tempo
de que o Acórdão recorrido se louva, entende-se sem sombra de dúvidas que tal
tese não tem qualquer aplicabilidade no caso dos autos pois a relação jurídica a
que em abstracto podia ser considerada já terminara há mais de 5 anos quando
entrou em vigor a Lei Nova, no caso a Lei 6/2001 — Ver no mesmo sentido ainda
Batista Machado (in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina,
1987, pág. 233;
8. Tal interpretação do art. 12º, nº2, do Código Civil pelo Acórdão recorrido
colide necessariamente com o princípio da confiança dos cidadãos no Estado de
Direito Democrático ofendendo claramente o art. 2º da Constituição;
9. O Acórdão recorrido ao decidir como decidiu fez pois indevida interpretação
do art. 12º, nº2, do Código Civil, violando o princípio da confiança dos
cidadãos no Estado de Direito Democrático ofendendo claramente o art. 2º da
Constituição.
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, pedindo a manutenção do julgado.
3.
Foi, então, proferido pelo relator o seguinte despacho:
“Os recorrentes A. e outros impugnam a norma do artigo 12º do Código Civil
quando interpretada no sentido de que a alteração da alínea f), do artigo 85º do
R.A.U., na redacção dada pela Lei 6/2001, era aplicável a um arrendamento já
extinto por morte da inquilina em 8 de Janeiro de 1986, ou seja, mais de cinco
anos antes da entrada em vigor da Lei Nova”.
É possível que se entenda que a decisão recorrida assenta, todavia, não no
artigo 12º do Código Civil, que é uma norma auxiliar na aplicação do direito,
mas na própria alínea f) do artigo 85º do RAU, que, aliás, terá sido aplicada
numa dimensão não coincidente com a impugnada, por o Tribunal recorrido haver
entendido que o arrendamento se transmitiu sem que tenha ocorrido extinção do
primitivo contrato, ao contrário da norma que os recorrente enunciam “aplicável
a um arrendamento já extinto”.
Tal disparidade é motivo de não conhecimento do recurso, pelo que importa dar
oportunidade aos recorrentes para se pronunciarem sobre a questão, no prazo de
10 dias”.
Os recorrentes responderam, dizendo:
1º O Acórdão recorrido ao analisar a revista a fls. 9 do mesmo considera que:
“São fundamentalmente duas as questões a conhecer, considerando o teor da
alegação do recurso:
a) Se a recorrida viveu em economia comum com a falecida arrendatária B.;
b) Se à situação em preço é aplicável, atento o regime previsto no art. 12º do
Código Civil, o art. 85º, nº 1, f), do RAU, alínea esta aditada pela Lei nº
6/2001, de 11 de Maio.”
2º Analisando depois a primeira dessas questões o Acórdão recorrido a fls. 11
conclui que:
“Não merece, pois, qualquer tipo de censura a conclusão tirada pela Relação de
Lisboa, no sentido de que entre a recorrida e a falecida arrendatária se
estabeleceu uma vivência em comum que permite se conclua, dando por preenchido o
conceito de “economia comum”.
3º Entrando na análise da segunda das questões que colocou o Acórdão recorrido
após um percurso doutrinário sobre as teses da aplicação no tempo da Lei Nova e
do art. 12º do Código Civil, conclui a fls. 14 Verso o seguinte:
“Nesta linha facilmente se constata, na sequência da decisão proferida pelo
Tribunal da Relação, que a alínea f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção que
lhe foi dada pela Lei 6/2001, de 11 de Maio, reporta — se a um estatuto legal,
nela tendo o legislador tido em atenção tão só a relação locatícia duradoura,
abstraindo dos factos que a originaram, desviando-se claramente de regulamentar
o conteúdo de cada específico contrato de arrendamento celebrado.”
4º E a fls. 15:
“Na verdade, a aludida alínea f), dispondo directamente sobre o conteúdo da
relação jurídica de arrendamento urbano habitacional, abstraindo do facto
(jurídico) que lhe deu origem aplica-se às relações jurídicas já constituídas e
que subsistam à data da sua entrada em vigor — art. 12º, nº 2, do Código Civil.”
5º Aqui chegados cumpre salientar atentas as alegações da recorrida que os
recorrentes não se opuseram à tese defendida no Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa, e subscrevem na íntegra a análise efectuada à segunda questão
colocada pelo Tribunal recorrido aceitando “ipsis verbis” o que se transcreveu
no art. anterior, pois essa é na verdade a solução doutrinariamente correcta.
6º E de onde se extrai a conclusão de que se o arrendamento urbano celebrado com
a arrendatária ainda subsistisse a alínea f) do nº 1 do art. 85º do RAU seria
aplicável à recorrida em caso de falecimento da arrendatária e por causa da
solução dada à primeira questão dada pelo Acórdão recorrido.
7.º E a única questão que se levanta é quanto à última parte do art. 12º, nº 2,
do Código Civil quando se refere à aplicabilidade da Lei Nova às relações
jurídicas já anteriormente constituídas e “que subsistam à data da sua (da Lei
Nova) entrada em vigor”
8º No entender dos recorrentes, por força do art. 1051º, nº 1, d), do Código
Civil, e dos nºs 1 e 4 do art. 94.º do RAU, com a morte da locatária, ocorrida
no dia 8 de Fevereiro de 1996, caducou o contrato de arrendamento, razão porque
não podia o Acórdão interpretar aquele nº 2 do art. 12º do Código Civil como se
o contrato de arrendamento fosse “repristinado” por força da entrada em vigor da
Lei 6/2001, subsistindo por força do nº 2 do art. 12º do Código Civil não
obstante a sua caducidade há mais de 5 anos atrás.
9º Mas foi isso que sucedeu no caso do Acórdão recorrido pois, após aquela
conclusão doutrinária que se transcreveu no art. 4º anterior, o Acórdão
recorrido a seguir (e ainda na página 15):
“Assim sendo, bem andou a Relação de Lisboa em ter aplicado à situação em apreço
a mencionada alínea f), que entrou em vigor em 16 de Maio de 2001, já que tal
dispositivo aplica — se de imediato — independentemente dos sujeitos, objecto e
respectivo conteúdo negocial — a todos os contratos de arrendamento
anteriormente celebrados, já que interpretou a lei na adequada decorrência do
estabelecido no citado nº 2 do art. 12º do Código Civil, não merecendo, pois,
censura, na economia da presente revista, nem, pelo que também se deixou já
reafirmado, foi, ainda beliscado qualquer normativo constitucional, como
pretendem os recorrentes.
Face ao exposto o arrendamento foi transmitido para a ora recorrida…
10º Trata-se pois de interpretação cingida ao art. 12º, nº 2, do Código Civil,
designadamente no que refere à última parte daquele normativo e que, ao
contrário do entendimento do Acórdão recorrido “belisca” e viola a norma
constitucional invocada pelos recorrentes no presente recurso.
11º Não estando em causa nos autos, nem sequer no recurso interposto para o
Supremo Tribunal de Justiça a tese da aplicabilidade da alínea f) do nº 1 do
art. 85º do RAU aos contratos de arrendamento que ainda subsistissem após à data
da entrada em vigor da Lei 6/2001.
II.
Fundamentação.
4.
Os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional são limitados pelo pedido
expresso pelos requerentes no momento da interposição do recurso.
Constitui, assim, objecto do presente recurso de constitucionalidade, conforme
esclareceram os recorrentes, a norma contida no artigo 12.º do Código Civil
“quando interpretada no sentido de que a alteração da alínea f), do art. 85º do
R.A.U., na redacção dada pela Lei 6/2001, era aplicável a um arrendamento já
extinto por morte da inquilina em 8 de Janeiro de 1986, ou seja, mais de cinco
anos antes da entrada em vigor da Lei Nova”. Entendem que tal norma viola o
'princípio da confiança dos cidadãos no Estado de Direito Democrático',
consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
Não se dissiparam, todavia, as dúvidas – implícitas no convite formulado aos
recorrentes ao abrigo do n.º 5 do artigo 75º-A da LTC – quer sobre a
individualização do preceito em que se contém a norma sindicada, quer do seu
sentido normativo.
Na verdade, o conhecimento do presente recurso está dependente, por um lado, da
estrutura da norma contida no artigo 12.º do Código Civil, que funciona como
mecanismo interpretativo na aplicação do direito e, por outro lado, da dimensão
com que foi aplicada, na decisão recorrida, a regra constante da alínea f), do
n.º 1 do artigo 85.º do Regime do Arrendamento Urbano (doravante, RAU).
5.
Identificando os recorrentes como objecto do recurso a norma constante do artigo
12.º do Código Civil – por entenderem que a decisão recorrida nela assenta o seu
fundamento – passariam a constituir objecto de análise os cânones
interpretativos que levaram o Tribunal a definir o sentido da norma substantiva
efectivamente aplicada na resolução jurídica da questão – e que, no caso, é a da
alínea f) do n.º 1 do artigo 85.º do RAU; o que impõe a conclusão de que a
questão de constitucionalidade não é, afinal, imputada ao preceito legal que
contém a norma que constitui fundamento decisório do aresto em causa.
A questão submetida a apreciação foi, assim, deslocada para um âmbito não
susceptível de controlo de constitucionalidade, na medida em que o recurso se
circunscreveu apenas ao critério interpretativo do artigo 12.º do Código Civil,
cuja concretização – assim isolado da norma fundamento – se integra
indubitavelmente na própria decisão recorrida.
A convocação da norma contida no artigo 12.º do Código Civil na decisão
recorrida ocorre como norma que disciplina apenas indirectamente a situação,
pois constitui o mecanismo interpretativo a que se recorre para aplicar, em
determinado sentido, a norma que directamente regula o caso sub judice – no caso
a nova alínea f) do n.º 1 do artigo 85.º do RAU, aditada pela Lei n.º 6/2001 de
11 de Maio.
6.
O objecto da fiscalização de constitucionalidade só poderá
centrar-se, atentos os poderes cometidos ao Tribunal Constitucional, na norma
efectivamente aplicada na decisão de que se recorre: ora, a norma aplicada pela
decisão recorrida, enquanto seu fundamento decisório, não é unicamente o
mecanismo previsto no artigo 12.º do Código Civil, mas também a regra constante
do n.º 1, alínea f) do artigo 85.º do RAU. Disse, com efeito o Supremo Tribunal
de Justiça:
Na verdade, a aludida alínea f), dispondo directamente sobre o conteúdo da
relação jurídica de arrendamento urbano habitacional, abstraindo do facto
(jurídico) que lhe deu origem aplica-se às relações jurídicas já constituídas e
que subsistam à data da sua entrada em vigor – art. 12º nº 2 do C. Civil.
Constitui, na verdade, pressuposto do recurso de constitucionalidade interposto
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC que a questão de
constitucionalidade suscitada tenha por base a norma que a decisão recorrida
tenha efectivamente aplicado, enquanto ratio decidendi da solução encontrada.
Ora, a norma aplicada pela decisão recorrida, enquanto seu fundamento normativo
[transmissão do arrendamento por morte da arrendatária à Ré, ora recorrida, em
virtude de com aquela ter vivido em economia comum há mais de dois anos] é a do
artigo 85.º n.º 1 alínea f) do RAU, aplicável ao caso por força do artigo 12º
n.º 2 do Código Civil.
Todavia, comparado o sentido com que foi aplicada, na decisão recorrida, a norma
constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 85.º do RAU e a dimensão efectivamente
impugnada pelos recorrentes, não se verifica a identidade substancial que é
imposta nos artigos 72.º n.º 2 da LTC e 280.º n.º 4 da Constituição da
República.
Na verdade, a decisão recorrida não aplica a norma constante da alínea f), do
n.º 1 do artigo 85.º do RAU na dimensão que os recorrentes aqui questionam: como
já se referiu, o Tribunal interpretou e aplicou a norma constante da alínea f)
do n.º 1 do artigo 85.º do RAU com o sentido de que a relação jurídica
constituída era subsistente à data da entrada em vigor da nova lei.
Tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, entendeu, na verdade, o
Supremo Tribunal de Justiça considerar à luz do artigo 12.º, n.º 2 do Código
Civil, que o prescrito na alínea f), do n.º 1 do artigo 85.º do RAU se aplica às
relações jurídicas já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em
vigor, concluindo, assim, que o arrendamento se transmitiu à ré, ora recorrida.
Por seu lado, os recorrentes questionam uma norma 'interpretada no sentido de
que a alteração da alínea f) do art. 85º do R.A.U., na redacção dada pela Lei
6/2001, era aplicável a um arrendamento já extinto por morte da inquilina em 8
de Janeiro de 1986'.
Ou seja, o acórdão recorrido interpretou o preceito no sentido de que o
arrendamento se transmitiu sem que tenha ocorrido qualquer extinção do primitivo
contrato, ao contrário da dimensão normativa que os recorrentes enunciam, que
seria a aplicada a um arrendamento já extinto.
O que, aliás, significa que a norma que os recorrentes visam sindicar, ainda que
pudesse ser reportada ao verdadeiro preceito legal de que se extrai, não foi
aplicada, pela decisão recorrida, com o exacto sentido que é questionado pelos
recorrentes.
Em consequência, também por esta razão não poderia o Tribunal conhecer do
objecto do presente recurso.
III.
Decisão.
7.
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do
objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos