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Processo n.º 1104/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e mulher reclamam para a conferência, ao abrigo do disposto
no n.º 3 do art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal
Constitucional, que decidiu não tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
constante dos autos, limitando-se a requerer a admissão da reclamação e que seja
ordenado o seguimento da lide e demais formalidades legais.
2 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação que foi “deduzida, aliás, sem a
menor indicação dos fundamentos da discordância do reclamante quanto à decisão
reclamada”.
3 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. e mulher, melhor identificados nos autos, recorrem para o
Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alíneas b),
c) e f), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), por
entenderem “que no processo há violação dos princípios consagrados no art.º 8.º
da CRP e ainda da igualdade (art.º 13.º n.º 1 e 2 da CRP), da protecção dos
portugueses no estrangeiro (art.º 14.º da CRP), da protecção do direito de
propriedade privada (art.º 62.º n.º 1 e 2 da CRP) e da sujeição à lei (art.º 203
da CRP) tudo com a consequente responsabilidade cominada no art.º 22.º do mesmo
diploma e ainda dos arts.º 298.º, n.º 3, do Código Civil e do art.º 668.º, n.º
1, alínea d), do Código de Processo Civil”.
2 – Integrando-se o caso sub iuditio sob a alçada normativa do
artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, e atento o disposto no artigo 76.º, n.º 3, do
mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
3.1 – O presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alíneas b), c) e f) da LTC, nas quais se admite recurso para
o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo – alínea b) –; que
recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na
sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado – alínea c) –; e que
apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com
qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e), a saber, com
fundamento em violação de lei com valor reforçado [alínea c), do artigo 70.º,
n.º 1, da LTC], em violação do estatuto de região autónoma ou de lei geral da
República, no caso de normas constantes de diploma regional [alínea d), do
artigo 70.º, n.º 1, da LTC], ou em violação do estatuto de uma região autónoma,
no caso de normas emanadas de um órgão de soberania [alínea e), do artigo 70.º,
n.º 1, da LTC].
Previamente à consideração individualizada dos pressupostos processuais
determinantes da admissibilidade do recurso ao abrigo das citadas disposições,
impõe-se começar por referir, como dimensão estrutural do processo de
fiscalização concreta da constitucionalidade, que o seu objecto são apenas
normas jurídicas, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre uma
(eventual) “inconstitucionalidade ou ilegalidade da decisão judicial”, como, de
resto, tem sido unanimemente acentuado pela jurisprudência deste Tribunal – cf.
nesse sentido o Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República II Série,
de 28 de Março de 1989).
Aí se afirmou que “este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que
só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ –, o que exige que, ao suscitar-se uma questão de
inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade se
questiona, ou no caso de se questionar certa interpretação de uma determinada
norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por
violador da lei fundamental”.
Nestes termos, em face da delimitação dos poderes assinalados a este Tribunal,
urge reconhecer, semel pro semper, que os recursos de constitucionalidade,
embora interpostos de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que
nelas se contém sobre a violação ou não violação da Constituição por normas
mobilizadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi, não podendo visar as
próprias decisões jurisdicionais qua tale, identificando-se, nessa medida, o
conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de
constitucionalidade, daí resultando, pois, que apenas as normas e não já as
decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso – cf., nestes exactos
termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 286/93,
336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt/.
E isto porque a Constituição não configurou o recurso de constitucionalidade
como um recurso de amparo no âmbito do qual fosse possível sindicar qualquer
lesão dos direitos fundamentais, aí se incluindo a possibilidade de conhecer,
nesse âmbito, do mérito da própria decisão judicial sindicanda, mas recortou a
competência do Tribunal Constitucional em torno do conhecimento de questões de
constitucionalidade de normas, sendo perante tal conformação do sistema
jurídico-constitucional de recursos que o Tribunal pode actuar em termos de
avaliar da bondade constitucional de critérios normativos aplicados pelos demais
tribunais.
Note-se, porém, que o facto de “não exist[ir], no sistema
jurídico-constitucional português, um processo de «queixa constitucional»
(Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo) que
permita aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais apelarem
directamente para um tribunal constitucional (...)”, não significa uma
“protecção enfraquecida dos direitos fundamentais uma vez que “os particulares
podem, nos feitos submetidos à apreciação de qualquer tribunal e em que sejam
parte, invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma (...) fazendo assim
funcionar o sistema de controlo da constitucionalidade (...) numa perspectiva de
controlo subjectivo” – cf. Gomes Canotilho (in “Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 4.ª edição, Coimbra, 2000, p. 493).
3.2 – Efectuada tal explicitação, importará agora apurar se o presente recurso
cumpre os requisitos determinantes do conhecimento do seu objecto.
Quanto ao recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC,
constata-se, perscrutando os autos, que os recorrentes não suscitaram durante o
processo qualquer questão de constitucionalidade – por antonomásia, normativa –,
nem definem, perante este Tribunal, qualquer critério normativo antes apodado de
inconstitucional, razão pela qual se encontra prejudicado o conhecimento do
objecto do recurso.
De facto, para poder conhecer-se deste tipo de recurso, torna-se necessário, a
mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha
sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a
inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo, sendo que
este requisito deve ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste
Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República II
Série, de 6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido
feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”,
“antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma
questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido
pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de
recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal
recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º
560/94, in Diário da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o
Acórdão n.º 155/95, in Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995).
Ora, não tendo os recorrentes suscitado qualquer questão de constitucionalidade
normativa e não se confundindo esta com a imputação, às decisões recorridas, da
violação de diversos preceitos constitucionais, está o Tribunal Constitucional
impedido ex constitutionis de conhecer de tal recurso.
Mutatis mutandis, o mesmo poderá dizer-se quanto ao cumprimento dos requisitos
processuais relativos ao recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, no seio do qual impende igualmente sobre os recorrentes o
ónus de suscitar o problema de ilegalidade normativa num momento anterior ao da
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88,
publicado no Diário da República II Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º
618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para
jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no
Diário da República II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9,
inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de
18 de Junho de 1994)], sendo que, perante um recurso do tipo do presente, a
competência do Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da legalidade de
actos normativos – e não de decisões judiciais – em face dos fundamentos já
invocados: violação de lei com valor reforçado e violação do estatuto de uma
região autónoma ou de lei geral da República.
Compulsados os autos, verifica-se que os recorrentes não suscitaram qualquer
questão de ilegalidade normativa susceptível de fundar o presente recurso, sendo
certo que a “ilegalidade” da decisão judicial qua tale não constitui objecto
idóneo do recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, não se encontram também preenchidos os requisitos processuais
determinantes da admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1, alínea f), da LTC.
Por fim, o presente recurso vem igualmente fundado no disposto na alínea c) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por mor da qual se admite o recurso para este
Tribunal das decisões que recusem a aplicação de norma constante de acto
legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.
Considerado o Acórdão recorrido, verifica-se, porém, que o Supremo Tribunal de
Justiça não recusou a aplicação de qualquer norma constante de acto legislativo
com o invocado fundamento, importando relembrar, também nesta sede, que a
hipótese subjacente à previsão do considerando recurso de constitucionalidade em
nada contende com a concreta aplicação da lei realizada pelos tribunais, maxime
quanto ao juízo de verificação fáctica dos pressupostos que recortam as
hipóteses normativas.
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) Ucs.».
B – Fundamentação
3 – Como resulta do relatado, os reclamantes limitam-se a contestar a decisão
sumária e a requerer o prosseguimento do recurso sem indicarem quaisquer
fundamentos da sua discordância com as razões aduzidas para estribar o decidido.
Não se vendo que, pela sua bondade, os argumentos em que se apoiou a decisão
reclamada não devam ser acolhidos, não pode deixar de indeferir-se a reclamação.
C – Decisão
4 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir
a reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 14.01.2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos