Imprimir acórdão
Processo n.º 77/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. O representante do Ministério Público junto do 2.º
Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto deduziu reclamação para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o despacho do Juiz daquele Juízo, de 12 de
Novembro de 2007, que não admitiu recurso por ele interposto, ao abrigo das
alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do despacho de 29 de Outubro
de 2007, que teria recusado a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade
e/ou ilegalidade, da norma do artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal
(CPP).
O processo de que emerge a presente reclamação teve
origem em “auto de notícia por detenção”, instaurado, por agente da PSP, a A.,
por, no dia 27 de Outubro de 2007, pelas 3 horas e 55 minutos, conduzir o
veículo automóvel de matrícula ..‑..‑.., na Praça Marquês de Pombal, Porto, e,
ao ser submetido a teste para a detecção de álcool, ter acusado a taxa de 1,53
g/l, e, posteriormente conduzido à Secção de Acidentes da Divisão de Trânsito do
Porto da PSP, onde foi submetido a novo controlo, ter acusado a taxa de álcool
no sangue de 1,33 g/l, o que integraria a prática de “crime contra a segurança
das comunicações”. O referido condutor foi constituído arguido e notificado, nos
termos do artigo 385.º, n.º 3, do CPP, para comparecer perante o Ministério
Público, junto do Tribunal de Turno do Porto, nesse dia 27 de Outubro de 2007,
pelas 10h00, para ser submetido a audiência de julgamento, em processo sumário.
O representante do Ministério Público no Tribunal do
Turno do Porto exarou, com data de 27 de Outubro de 2007, o seguinte despacho:
“Apresente o expediente ao M.mo Juiz de Turno, para os efeitos do artigo 387.º,
n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, atento o disposto no artigo 60.º,
n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 186‑A/99”.
O Juiz do Tribunal de Turno do Porto proferiu, na mesma
data, o seguinte despacho:
“Neste Tribunal não existe qualquer sala de audiências que permita
a realização do julgamento sumário, com observância do formalismo legal.
Importa, por igual, frisar que o edifício em que se encontra
inserido é de acesso reservado ao público, o que impede o cumprimento do artigo
387.º, n.º 1, do CPP.
Verifica‑se, assim, a impossibilidade da realização de audiência
imediata, referida no artigo 387.º do CPP.
Nestes termos, determino que o arguido seja notificado para
comparecer no próximo dia 29 de Outubro de 2007, pelas 10 horas, no Tribunal
competente, a fim de aí ser julgado em processo sumário – artigo 387.º, n.º 2,
alínea a), do CPP.”
Distribuído o processo ao 2.º Juízo do Tribunal de
Pequena Instância Criminal do Porto, o respectivo Juiz, em 29 de Outubro de
2007, exarou o seguinte despacho: “Atentos a promoção e o despacho meramente
formal de adiamento no TIC (artigo 387.º, n.º 2, alínea a), do CPP), vão os
autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes,
respectivamente apresentação da acusação”.
Dada vista dos autos ao representante do Ministério
Público junto desse Juízo, o mesmo consignou, na mesma data, que “Atento o
disposto no n.º 2 do artigo 389.º do CPP, «O Ministério Público pode substituir
a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que
tiver procedido à detenção», o Ministério Público aguardará o início da
audiência para, aí e então, se for o caso, requerer, nos termos legais supra, a
substituição da apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia (por
detenção, de fls. 1) da autoridade (PSP) que procedeu à detenção”.
Ainda nesse dia 29 de Outubro de 2007, o Juiz do 2.º
Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto exarou o seguinte
despacho:
“Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi
detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido
notificado para comparecer perante o Ministério Público junto do Tribunal de
turno.
Resulta também dos autos que não foi deduzida verdadeira acusação escrita contra
o arguido.
O Ministério Público apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os
efeitos do artigo 387.º, n.º 2, alínea a), do CPP, pretensão que foi deferida,
adiando‑se simplesmente o início da audiência de julgamento.
Aberta vista à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi referido
que aguardará o início da audiência, para aí requerer a substituição da
apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que
procedeu à detenção.
É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime.
É de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos,
bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei – o dolo – constitui
elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente
indiciado no auto de notícia.
O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos artigos 13.º e
15.º do Código Penal.
Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia – cf.
os artigos 243.º e 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, e ainda sobre o tema, entre
outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7 de Abril de 2003,
Colectânea de Jurisprudência, 2003, tomo II, pp. 291‑294.
Qualquer acusação em que se omita este facto – falta dos factos integradores do
dolo ou da negligência – deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente
infundada, com base no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP – quando os demais
elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
negligência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e
implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado artigo 311.º, n.º 3,
alínea c), do CPP.
Dado o teor do auto de notícia, mesmo com a sua leitura em audiência nada mais
se acrescenta ao que aí consta.
É condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de
processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado,
com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e
de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os
apertados requisitos de admissibilidade do processo sumário, bem como a
competência do tribunal.
Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de
defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.
Afigura‑se‑nos, pois, que não se verificam os requisitos que justificam o
julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no artigo 381.º do CPP,
na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Setembro.
Assim sendo, e por razões de economia processual, e ainda nos termos dos artigos
381.º e 390.º, alínea a), do CPP, na actual redacção, determino a remessa dos
presentes autos ao Ministério Público, para tramitação sob outra forma
processual.”
Foi deste despacho que o referido representante do
Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
das alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, através de requerimento
onde refere que a decisão recorrida, “tendo consignado, além do mais, «Está em
causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa do
arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal» (sic), a final decidiu
«… nos termos dos artigos 381.º e 390.º, alínea a), do CPP, na actual redacção,
determino a remessa dos presentes autos ao Ministério Público, para tramitação
sob outra forma processual» (sic), recus[ou], dessa forma, a aplicação da norma
constante do artigo 389.º, n.º 2, do CPP, expressamente requerida pelo
Ministério Público, por reputar a mesma inconstitucional, por violação dos
invocados princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido e da
estrutura acusatória do processo penal – artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP – e/ou
ilegal, por violação do referido princípio da vinculação temática do tribunal –
artigos 358.º, 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP”.
Este recurso não foi admitido pelo despacho de 12 de
Novembro de 2007, ora reclamado, por entender que o despacho de que se pretendeu
interpor recurso não recusou, nem explícita nem implicitamente, a aplicação de
qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, aduzindo o magistrado reclamante:
“Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da
respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à
prolação do mesmo, parece‑nos inegável que consubstancia este, de facto, a
recusa de aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do CPP –
constante de acto legislativo (Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – 15.ª Alteração
ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 78/87, de 17 de
Fevereiro) –, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
De facto, tendo o Ministério Público, nos termos do douto despacho
exarado a fls. 8, verificados que se mostravam os pressupostos dos artigos
381.º, n.º 1, alínea a), e 387.º, n.º 1, do CPP, determinado, nos termos do
disposto na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 382.º do CPP, a apresentação do
«.../... expediente, ao M.mo Juiz de Turno para os efeitos do artigo 387.º, n.º
2, alínea a), do Código de Processo Penal, … /...» (sic) e tendo este – Mmo/a
Juiz de turno –, com os fundamentos de facto e de direito que constam do douto
despacho judicial de fls. 9 determinado “…/... que o arguido seja notificado
para comparecer no próximo dia 29 de Outubro de 2007, pelas 10 horas, no
Tribunal competente a fim de aí ser julgado em processo sumário, artigo 387.º,
n.º 2, alínea a), do CPP» (sic) e tendo ainda o Ministério Público, entretanto e
atento o despacho judicial de fls. 12 – «Atentos a promoção e o despacho
meramente formal de adiamento proferido no TIC (artigo 387.º, n.º 2, alínea a),
do CPP), vão os autos ao Ministério Público para os fins tidos por
convenientes, respectivamente apresentação da acusação» (sic) –, nos termos
consignados a fls. 13, reservado para o início da audiência de discussão e
julgamento o eventual uso da faculdade prevista no n.º 2 do artigo 389.º do
CPP, a decisão judicial entretanto recorrida, ao decidir «.../..., determino a
remessa dos presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra
forma processual» (sic), não só nega a aplicação daquela disposição legal,
expressamente invocada pelo Ministério Público (ou antes, a possibilidade do
exercício, pelo Ministério Público, da faculdade prevista na mesma), como
fundamenta tal posição, alegando, além do mais, que: «É certo que no auto de
notícia constam alguns factos. Todavia, tais factos, por si só, não constituem
qualquer crime, …/… – o dolo – constitui elemento típico dos ilícitos criminais,
…/… O mesmo sucede quanto à negligência, …/… Tal elemento subjectivo deverá
constar da acusação e/ou do auto de notícia – …/… Do expediente ora em análise
não consta qualquer um desses elementos (dolo ou negligência). De tal expediente
também não se retira a indicação das disposições legais aplicáveis à chamada
qualificação jurídica dos factos, …/…» (sic), concluindo com a alegação de que
«Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de
defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal» (sic).
Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para
afirmar princípios, parece‑nos que outra coisa não fez o/a M.mo/a Juiz a quo
que não tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente
invocada pelo Ministério Público (n.º 2 do artigo 389.º do CPP), por entender
que tal aplicação, faltando no auto de notícia, «o elemento subjectivo» e «a
chamada qualificação jurídica dos factos», seria inconstitucional, por violação
dos, aliás expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais
da estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do
arguido – artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP – e/ou ilegal, por violação do,
igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do
tribunal – artigos 358.º, 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
Mais alega o/a M.mo/a Juiz a quo, no douto despacho ora reclamado:
«Requisito de admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 70.º, alínea a),
é o da existência da recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece, nem explicita nem
implicitamente, no despacho em causa nos autos, …/…».
De facto, nos termos da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi
interposto o recurso ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso
é efectivamente a existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com
fundamento em inconstitucionalidade.
Contudo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do mesmo preceito legal,
ao abrigo da qual foi, ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de
admissibilidade do recurso é a existência de recusa de aplicação de norma
constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de
lei com valor reforçado.
Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra
referenciados princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do
processo penal e das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da
vinculação temática do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do
respectivo texto, supra transcrito, mormente do supra citado segmento da
respectiva parte final – «Está em causa a natureza acusatória do processo, além
das garantias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do
tribunal» (sic, com sublinhado nosso).
Face ao exposto, não pode naturalmente concordar‑se com a, além de
infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no
sentido de que, no mesmo «…/… não acontece, nem explicita nem implicitamente
…/...» (sic), a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade, pois que manifestamente tal acontece, relativamente à
norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do CPP, com fundamento, aliás
explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva inconstitucionalidade
e/ou na respectiva ilegalidade, por violação dos princípios citados, o que,
sendo certo que a norma em referência consta de acto legislativo, também pode
fundamentar a admissibilidade do recurso, ora indeferido.
Assim sendo, parece‑nos forçoso concluir que a decisão em referência
não só admite recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra
citadas alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, como é o mesmo, aliás, para o Ministério Público, atento o prescrito
no n.º 3 do artigo 72.º da citada Lei, até obrigatório, por a norma cuja
aplicação se mostra recusada constar de acto legislativo (Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto, conforme supra já referido).
Concluindo, o que o/a M.mo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão
recorrido/a, ao decidir «.../..., determino a remessa dos presentes autos ao
Ministério Público para tramitação sob outra forma processual» (sic), não
realizando o requerido pelo Ministério Público, nos termos legais e, aliás,
anteriormente, judicialmente determinado – tendo sido o/a arguido/a e o/ais
agente/s autuante/s de tal despacho notificado/a/s (cf. fls. 10) – julgamento
do/a arguido/a em processo sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo
início, note‑se, havia sido, oportuna e anteriormente, judicialmente adiado,
nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 387.º do CPP – sem cuidar
aqui sequer da questão da eventual violação do princípio do caso julgado
formal, na medida em que se pronunciou o/a M.mo/a juiz a quo sobre questão já
ultrapassada/processualmente precludida e relativamente à qual se encontrava
esgotado o poder jurisdicional com a prolação do anterior despacho judicial,
supra citado, que procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em
processo sumário – foi manifestamente recusar a aplicação da norma constante do
n.º 2 do artigo 389.º do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na
sua ilegalidade, por permitir a realização do julgamento em processo sumário,
nos casos em que o Ministério Público, não tendo deduzido acusação, reserva para
o início da audiência a faculdade de substituir a apresentação da acusação pela
leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, quando
deste «.../... não consta qualquer um desse elementos (dolo ou negligência)»
(sic) e «…/… não se retira a indicação das disposições legais aplicáveis, a
chamada qualificação jurídica dos factos, …/…» (sic).
Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do
CPP deveria ter sido admitido, pelo que, não o tendo sido, o Ministério Público
apresenta a presente reclamação, sendo as ora expostas as razões que justificam
a admissão daquele.”
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público
emitiu o seguinte parecer:
“Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo
Ministério Público e rejeitado no Tribunal a quo, – exclusivamente fundado na
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, apenas poderá reportar‑se à
recusa de aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de
interposição – e não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente
aplicados no despacho reclamado, já que tal implicaria a ampliação do
respectivo objecto de modo a incluir estes últimos, bem como a invocação, como
base recursória, da alínea b) daquele artigo 70.º, n.º 1, o que se afigura
inviável face à regra de que a delimitação do objecto do recurso decorre
irremediavelmente (no que se refere ao seu máximo âmbito) do teor daquele
requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da
determinação da existência de uma «verdadeira» recusa de aplicação normativa,
reportada ao artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em
violação dos princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo
penal e das garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz a quo de tal preceito
legal?
A nosso ver, considerou‑se ser inviável a substituição da
apresentação de acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela
simples leitura do auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer
«aditamento», num caso em que o referido auto omitiria elementos essenciais a
qualquer acusação, nos planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do
crime imputado ao arguido), da qualificação jurídica (especificação das
disposições legais aplicáveis) e probatório (indicação das provas que
fundamentam tal imputação ao arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma
constante do artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que
tiver procedido à detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os
elementos – fácticos, de qualificação jurídica e probatório – que
obrigatoriamente – por força das disposições gerais – devem constar de qualquer
acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação
processual ali consentida ao Ministério Público, procedendo‑se antes a uma
leitura conjugada de tal preceito legal com as disposições que regulam os
requisitos da acusação, só consentindo a «substituição» da acusação pela
leitura do auto quando este satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada
da norma que integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos
da acusação (artigos 283.º, n.º 3, e 311.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo
Penal) para concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no
início da audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências
formuladas por aqueles preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa «linha de fronteira» entre a
verdadeira «recusa de aplicação» normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de
preceitos legais «em conformidade com a Constituição» (cf., v. g., os Acórdãos
n.ºs 170/85, 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura‑se que – no caso dos
autos – o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito –
violaria determinados princípios constitucionais se não fundou «única ou
primacialmente» (para utilizar a expressão de Rui Medeiros, A Decisão de
Inconstitucionalidade, pp. 331 e seguintes) no princípio da interpretação
conforme à Lei Fundamental, mais não desempenhando «o apelo à Constituição
(princípio do acusatório e das garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma
função de apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos
restantes elementos de interpretação» (cf. ainda o Acórdão n.º 285/2002).
Assim, por se afigurar que o Tribunal a quo, no despacho recorrido,
se limitou a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais
penais, referentes aos requisitos da acusação, articulando‑os com a
possibilidade de mera «leitura» pelo Ministério Público do auto de notícia no
início da audiência em processo sumário, não será a circunstância de se
considerar que a imperativídade de tal aplicação conjugada dos regimes legais
decorre dos princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa
que traduz a ocorrência de uma verdadeira «recusa de aplicação normativa»,
enquadrável no tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei n.º 28/82.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Face ao teor do requerimento de interposição de
recurso, o respectivo objecto era integrado por alegada decisão de recusa de
aplicação da norma do artigo 389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em
inconstitucionalidade e/ou ilegalidade (por violação de lei com valor
reforçado).
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de
norma com fundamento em inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso
previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa
recusa explícita, como numa recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas
determinadas decisões de aplicação da norma interpretada em conformidade com a
Constituição, “sempre que se esteja perante uma clara rejeição de certa
interpretação, mormente da interpretação literal ou «natural», com fundamento na
sua inconstitucionalidade” (José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição
Constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p.
73, nota 93). Necessário é sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade
(ou de desconformidade constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi,
e não um mero obiter dictum, da decisão recorrida.
Nos presentes autos, ressalta da leitura da decisão
recorrida que o elemento primordial e determinante do entendimento da
inadmissibilidade, no caso, de o Ministério Público “substituir a apresentação
da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção”, prevista no n.º 2 do artigo 389.º do CPP, resultou da leitura
conjugada das disposições dos artigos 243.º, 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º,
n.º 3, alínea d), do mesmo Código, que determinam a rejeição da acusação que
omita os factos integradores do elemento subjectivo do crime, o mesmo se devendo
passar quando o Ministério Público substitua a dedução de acusação pela leitura
do auto de notícia, quando este auto seja igualmente omisso quanto a esses
factos.
Isto é: foi com base na interpretação do direito
ordinário que a decisão recorrida entendeu só ser admissível a substituição da
acusação pela leitura do auto de notícia quando este auto contenha todos os
elementos legalmente exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura
acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de defesa do
arguido a realização da audiência, em processo sumário, tendo por acusação
apenas o que consta de um auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a
conhecimento da totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo
legal, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do entendimento a que
anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por correcta, ao nível da
interpretação do direito ordinário aplicável, da possibilidade de substituição
da acusação pelo Ministério Público pela leitura do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento
em inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º
2, do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de
notícia não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e,
depois, sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa
de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o presente
recurso surge como inadmissível, na perspectiva da alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC.
E o mesmo se diga quanto à também invocada alínea c) do
mesmo preceito, já que não se vislumbra – nem o recorrente a indica – que lei
com valor reforçado teria fundamentado, na lógica da decisão recorrida, a
pretensa recusa de aplicação da norma do artigo 389.º, n.º 2, do CPP.
No mesmo sentido já se pronunciaram, em situações
idênticas à presente, os Acórdãos n.ºs 8/2008, 12/2008, 15/2008, 16/2008,
31/2008, 48/2008, 49/2008, 56/2008, 58/2008, 60/2008, 61/2008, 65/2008, 73/2008,
74/2008, 79/2008, 88/2008 e 89/2008.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos