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Processo n.º 1046/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
A - Relatório
1. A., advogado, propôs contra a Companhia B. S.A. uma acção pedindo uma
indemnização de €61.734,31 e juros por danos patrimoniais e não patrimoniais
decorrentes da perda de uma mala de viagem num voo Roma-Paris-Lisboa, contratado
com a ré. A acção foi julgada improcedente em 1.ª instância e parcialmente
procedente na Relação. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 7 de
Novembro de 2006, considerando que a responsabilidade pelo extravio da mala
estava limitada aos valores previstos no n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de
Varsóvia de 1929 (Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao
Transporte Aéreo Internacional) e que esse montante (calculado em €468) já tinha
sido pago, julgou a acção improcedente.
O autor interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, visando a
apreciação de constitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º
da Convenção de Varsóvia.
2. Prosseguindo o recurso, o recorrente apresentou alegações em que
sustentou as seguintes conclusões:
“1- O presente recurso visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma
contida do artº 22º, nº 2, a), (entretanto revogada) da Convenção de Varsóvia de
12 de Outubro de 1929 (Convenção para Unificação de certas regras relativas ao
Transporte Aéreo Internacional), por violação do Principio da Igualdade
estabelecido no artº 130; mas principalmente, por violação da norma do artº 60º,
nº 1 (Direitos dos Consumidores) da Constituição da República Portuguesa.
2 - O artº 22º, nº 2, alínea a), da Convenção de Varsóvia estabelecia que: “No
transporte de bagagens registadas, a responsabilidade do transportador é
limitada à quantia de 17 direitos especiais de saque por kilograma, salvo
declaração especial de interesse na entrega no destino feita pelo expedidor no
momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa
suplementar eventual. Neste caso, será o transportador obrigado a pagar até ao
limite da quantia declarada, salvo se provar que aquela é superior ao interesse
real do expedidor na entrega”.
3 - Do acórdão recorrido consta, nomeadamente:
- “O transportador só responderá acima dos limites previstos no artº 22º, nº 2,
quando o dano resultar do seu dolo, ou da sua culpa, que, segundo a lei
portuguesa, for equivalente ao dolo.
- Esta é a excepção à regra do limite da responsabilidade da R., cabendo ao A. o
ónus de provar a ocorrência das circunstâncias aí previstas. Não ficou provado
que a R. tenha agido dolosamente ou com culpa equivalente ao dolo. Nesta
situação, a responsabilidade da R. pelo extravio da mala de viagem do A. está
limitada aos valores previstos no nº 2 do artº 22º da Convenção, que a R. já lhe
liquidou.
- Esta limitação de responsabilidade do transportador e a sua aplicação aos
casos de presunção de culpa deste não viola qualquer princípio constitucional,
até porque o passageiro tem sempre a possibilidade de não se conformar com este
limite, fazendo uma declaração especial de “interesse na entrega” e pagando a
taxa suplementar que for devida.”
4 - O Recorrente considera aqui reproduzida a matéria de facto dada,
definitivamente, por provada na 1ª instância.
5 - A responsabilidade civil das transportadoras aéreas por danos causados no
transporte de passageiros, bagagens e mercadorias está regulada, se o respectivo
transporte aéreo for considerado internacional, nos termos do nº 2, do artº 1º
da Convenção de Varsóvia, de 12 de Outubro de 1929, que refere:
..é considerado transporte internacional todo o transporte no qual, de acordo
com o que foi estipulado pelas Partes, o ponto de partida e o ponto de destino,
quer haja ou não interrupções de transporte ou transbordo, estejam situados quer
no território de duas Altas partes contratantes, quer apenas no território de
uma Alta parte Contratante, se se previu uma escala no território de um ou outro
Estado, mesmo que este Estado não seja uma Alta parte Contratante”.
6 - Portugal aderiu formalmente e sem reservas a esta Convenção em 20 de Março
de 1947 (crf. Aviso publicado no Diário do Governo 185, 1 Série, de 10/08/1948).
7 - Tratando-se assim de transporte aéreo internacional nos termos do acima
citado artigo, a responsabilidade civil das transportadoras aéreas, de Estados
signatários da referida Convenção, estava, até 04 de Novembro de 2003, regulada
na Convenção e no conjunto de legislações internacionais que a alteraram e
tentaram actualizar: Protocolo de Haia de 1955, Convenção de Guadalajara de
1961, Acordo de Montereal de 1966, Protocolo de Guatemala de 1971 e Protocolos
1,2,3, e 4 de Montereal de 1975, conjunto de instrumentos que os juristas
designam por “Sistema de Varsóvia”.
8 - No caso dos autos, considerando a data da verificação dos factos em apreço,
a responsabilidade da Recorrida é determinada pelo “Sistema de Varsóvia” .
9 - Segundo o artigo 17º, da Convenção de Varsóvia:
n° 2 - O Transportador é responsável pelo dano resultante da destruição, perda
avaria da bagagem, pela simples razão de o evento que causou a destruição, perda
ou avaria ter ocorrido a bordo da aeronave ou no decurso de quaisquer operações
de embarque ou durante qualquer período em que a bagagem se encontrava à guarda
do transportador. O transportador não será, porém responsável se o dano tiver
resultado exclusivamente da natureza ou vício próprio da bagagem.
10 - Este artigo estabelece uma presunção contra o transportador, que nos termos
do artº 20º só é exonerado de culpa se provar que ele e os seus propostos
tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhe era
impossível tomá-las.
11 - Dá-se aqui por reproduzida a brilhante fundamentação jurídica que esteve
subjacente à decisão constante do douto Acórdão da Relação de Lisboa proferido
no presente processo.
12 - O artº 22º, nº 2, a), da Convenção de Varsóvia estabelece uma cláusula
típica de imposição pela parte forte (transportadora) à parte fraca (passageiro)
do pagamento de um seguro que desobriga a transportadora cujo preço da passagem
já pressupõe este custo.
13 - A nossa constituição está informada sob a proibição do abuso de poder
económico de uma parte sobre outra, cfr. artº 81º, al. e), da CRP.
14 - O princípio da Igualdade proíbe as diferenciações de tratamento sem
fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação
razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.
15 - Interpretar-se que para ser afastado qualquer limite à indemnização
estabelecido no artº 22º, nº 1 a) da CV, compete ao transportado o ónus da prova
que o transportador actuou com dolo ou culpa, é, salvo o devido respeito, estar
a condenar ab initio a totalidade dos lesados à mais completa desprotecção
legal, penalizando-os sem justificação racional e desproporcionada, pois implica
que os riscos do “descaminho” da bagagem em transporte aéreo corram quase
exclusivamente por sua conta.
16 - Nestes casos, é praticamente impossível provar a negligência ou o dolo
praticado por um qualquer funcionário de uma grande companhia, no âmbito das
suas funções de manutenção do fluxo de bagagens num tapete rolante de centenas
ou milhares de passageiros num aeroporto.
17 - E, ofende-se o principio de equidade que refere que: aquele que lucra com a
situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultante.
18 - As Transportadoras Aéreas não carecem de qualquer protecção especial e o
lesado é objecto de um tratamento jurídico manifestamente inferiorizante face às
mesmas.
19 - O artº 22º, n2, a) da CV viola, assim, o artº 13º, nº2, da nossa
Constituição, inconstitucionalidade que aqui se invoca. Além disso,
20 - Os direitos dos consumidores são no nosso actual texto constitucional um
direito fundamental que está previsto no artº 60, nº 1, da Constituição
Portuguesa - “Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços
consumidos, à formação e à informação: à protecção da saúde, da segurança e dos
seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”.
21 - A Constituição da República Portuguesa está informada no sentido de
reprimir o abuso de poder económico que sucumbe ao poder empresarial, pois
proíbe quaisquer cláusulas abusivas em relação ao consumidor: “Os consumidores
têm direito à qualidade dos bens e serviços e à …protecção dos seus interesses
económicos...”, art° 60º, nº 1 da Constituição da Rep. Portuguesa.
22 - Segundo J.J. Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3º Edição Revista, Coimbra Editora, pág. 323 e segs.,:
“Nesta disposição a Constituição institui os consumidores (bem como as suas
organizações especificas) em titulares de direitos constitucionais.”
23 - A protecção constitucional dos consumidores surge localizada em sede de
direitos fundamentais. Trata-se de direitos que não têm natureza homogénea.
Outros, todavia, revestem natureza equiparada à dos «direitos, liberdades e
garantias» (cfr. artº 17º CRP), beneficiando do respectivo regime - é o caso do
direito à reparação de danos (cfr., artº 60º, nº 1, in fine) (Canotilho e Vital
Moreira).
24 - Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, este direito “traduz-se no direito
de indemnização dos prejuízos causados pelo fornecimento de bens ou serviços
defeituosos, por assistência deficiente ou por violação do contrato de
fornecimento. O Direito à reparação não pressupõe o abandono dos esquemas da
responsabilidade contratual de cariz subjectivista mas aponta para a eventual
necessidade de um responsabilidade tendencialmente objectivista do produtor pelo
produto, de forma a resolver-se o problema da justa distribuição dos riscos
inerentes ao consumo de bens produzidos segundo os esquemas técnicos e
tecnológicos modernos”.
25 - O artº 2º, nº 1, da Lei da Defesa do Consumidor aprovada pela Lei nº 24/96,
de 31 de Junho lei, considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos
bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso
não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade
económica que vise a obtenção de benefícios.”
26 - Portanto, o passageiro que vê a sua bagagem extraviada é considerado
consumidor, configurando-se, entre o passageiro e a companhia aérea, a relação
“CONSUMIDOR-FORNECEDER-PRODUTO-SERVIÇO”.
27 - Sendo assim, qualquer relação de consumo estará sob a tutela da
Constituição (artºs 60º, nº1, 52º, nº 3, 81º, j), 102º, e), 17º e 18º da
C.R.P.).
28 - Segundo o artº 17º da C.R.P., “O regime dos direitos, liberdades e
garantias aplica‑se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de
natureza análoga”.
29 - O artº 18º da Constituição estabelece a força jurídica destes direitos: “N°
1 - Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas”.
30 - Deve assim entender-se que a Convenção de Varsóvia face ao artº 8º, nº 2 da
CRP, vigorava em Portugal, excepto quanto às normas respeitantes à limitação da
responsabilidade civil do transportador, uma vez que nelas há uma patente
antinomia com a nossa Constituição.
31 - O facto da Convenção de Varsóvia não ter sido denunciada pelo Estado
Português (tal como previsto no artº 39º da Convenção) não quer significar que
os limites da indemnização nela previstos prevalecessem, pois que incompatíveis
com o artº 60º, nº 1, “in fine” da C.R.P..
32 - Consagra-se assim no artº 60º, nº1, a tutela do direito à indemnização com
o escopo de defender e proteger o consumidor por danos decorrente da violação de
direitos fundamentais, nomeadamente, por em nada ser beneficiado pela Convenção
de Varsóvia.
33 - Razões de protecção social, postuladas pelo que se exige a um Estado de
Direito Social, impõem que aos interesses do consumidor se confira adequada
protecção, defendendo-o de clausulados abusivos e, muitas vezes, desconhecidos
daqueles (maxime, quando se deparam casos de contratos de adesão).
34 - As normas da Convenção de Varsóvia ao serem recepcionadas pela Constituição
da República (8º, nº 2, CRP) dizem respeito somente aquilo que não firam a
própria norma mãe, pois não podem restringir direitos consagrados na
Constituição.
35 - Ora, resultando do texto da Lei Fundamental que, de entre o mais, os
consumidores têm direito à reparação de danos, deve entender-se que as normas e
cláusulas de limitação dessa reparação se impedirem a ressarcibilidade efectiva
de quaisquer categorias de danos (ainda que decorrentes de fonte legal interna
ou internacional) podem assumir, em determinados casos, ofensa da ordem pública,
se grosseiramente violarem o direito àquela reparação, designadamente nos
domínios de prestações por empresas que por escopo têm o fornecimento de
serviços e tendo em vista um particular.
36 - A limitação estabelecida no artº 22º, nº 2, a) da CV deve, pois, ser
considerada por não recepcionada por violar os artºs 13º, e 60º, nº 1 da CRP. Na
verdade,
37 - A Convenção de Varsóvia teve grande importância para a época em que foi
regulamentada, porém, actualmente com a elevação do direito do consumidor à
reparação de danos como um direito constitucional de natureza fundamental, deve
considera-se ultrapassada qualquer limitação ao valor da indemnização (art° 22°,
n° 2, a) CV) por violação do artº 60º, nº 1 (CRP) e o princípio basilar do nosso
ordenamento jurídico - o Principio da Igualdade (13º CRP), pois trata
desigualmente as partes contratantes.
38 - E, como tal não pode ser aplicada no nosso ordenamento a limitação
estabelecida no seu artº 22º, nº 2, a) por ser inconstitucional – cfr - art°s
8°, n° 2, 13º, nº 1 e 2, 60º, nº 1, 207º, 277º, nº 1 e 2, inconstitucionalidade
que se invoca para todos os efeitos.
39 - Destarte, in casu, se uma norma infraconstitucional – artº 22º, nº 2, a) da
CV - elimina a possibilidade do ressarcimento quanto a toda a extensão e/ou
categoria de danos, verificando-se uma conduta inadimplente de uma fornecedora
de bens ou serviços (quantas vezes empresas dotadas de grande poder económico a
cujos serviços ou prestações de bens recorrem os consumidores sem um perfeito
conhecimento das regras que comandam os respectivos contratos de adesão, como é
o caso) não poderá tal norma deixar de ser considerada ofensiva do ditame da Lei
Básica que comanda a ressarcibilidade dos danos sofridos pelos consumidores,
ainda que não presentes o dolo ou a culpa grave.
40 - Daqui resultará que o Recorrente tem direito a ser indemnizado, sem a
limitação prevista no artº 22º, nº 2, a), da Convenção de Varsóvia, por esta ser
considerada inconstitucional, estando a Recorrida obrigada a indemnizar os danos
patrimoniais e não patrimoniais, concretamente, sofridos pelo Recorrente,
conforme, aliás, já doutamente decido no Acórdão da Relação de Lisboa, o qual
após provimento do presente recurso, deverá ser mantido pelo Supremo Tribunal de
Justiça. “
A recorrida contra-alegou, defendo a improcedência do recurso e
concluindo nos seguintes termos:
“a) O art. 13.º da CRP prescreve que todos os cidadãos devem ser tratados de
igual forma perante a lei, não podendo ser privilegiados, beneficiados,
prejudicados, privados de qualquer direito ou isentos de qualquer dever em razão
de ascendência, sexo, raça, território de origem, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social;
b) Ora, a Convenção de Varsóvia e, naturalmente, a alínea a) do n.º 2 do seu
art. 22º, é aplicável a todos os cidadãos, de igual forma, como norma geral e
abstracta que é;
c) Com efeito, não se vislumbra - porque não existe - qualquer tratamento
diferenciado ou discriminatório de cidadãos em resultado da referida norma da
Convenção de Varsóvia, pelo que não se entende como pode a aplicação da mesma
violar, de alguma forma, o princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da
C.R.P.;
d) Reforce-se aliás que a Recorrida é apenas uma de entre muitas outras
Companhias Aéreas a operar em Portugal, sendo que a alínea a) do n.º 2 do art.
22º da Convenção de Varsóvia é uma norma que se aplica a todos os voos
internacionais entre Estados signatários, e não uma qualquer norma ou disposição
contratual aplicável exclusivamente à ora Recorrida, pelo que, definitivamente,
tal preceito não é violador do princípio da igualdade;
e) Acresce que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, a alínea a) do n.º 2 do
art. 22º da Convenção de Varsóvia também não viola o art. 60.º da CRP;
f) Com efeito, ao contrário do defendido pelo Recorrente, a aludida norma da
Convenção de Varsóvia não impede a reparação do dano, estabelecendo apenas uma
limitação de responsabilidade do transportador;
g) Limitação indemnizatória essa que, para mais, pode ser afastada quer através
de uma declaração especial de valor, quer através da alegação e prova de que o
dano resultou de dolo ou negligência grosseira do transportador;
h) Por outro lado, o n.º 1 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 24/96, de 31 de Julho
(diploma citado pelo Recorrente), estipula que “os bens e os serviços destinados
ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os
efeitos que se lhe atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na
falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”
(sublinhado nosso);
i) Ora, sucede que a referida limitação de responsabilidade não só resulta
expressamente da Convenção de Varsóvia, como também resulta expressamente do
título de transporte (juntamente com a possibilidade de ser feita uma declaração
especial de valor), sendo como tal do conhecimento do passageiro e expressamente
aceite por este aquando da aquisição do serviço;
j) Termos em que, a aplicação da alínea a) do n.º 2, do art. 22º da Convenção de
Varsóvia não viola, manifestamente, o art. 60.º da CRP.”
B – Fundamentos
3. A acção de indemnização de que emerge o presente recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade visava efectivar a responsabilidade
do transportador pela perda de bagagem registada no âmbito de um contrato de
transporte aéreo internacional de passageiros. Convieram as partes e os
tribunais da causa em que, atendendo ao tipo de contrato (transporte aéreo
internacional), à natureza do evento danoso (perda de bagagem) e à data em que
ocorreram os factos, ao caso era aplicável o chamado “sistema de Varsóvia”,
constituído pela Convenção de Varsóvia para a Unificação de Certas Regras
Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, de 12 de Outubro de 1929 (publicada
no Diário do Governo, I Série, de 10 de Agosto de 1948) alterada por sucessivos
instrumentos internacionais, designadamente, o protocolo de Haia de 1955
(aprovado para ratificação pelo Decreto‑Lei n.º 45.069, de 12 de Junho de 1963),
a Convenção de Guadalajara de 1961, o Protocolo da Cidade da Guatemala de 1971 e
os Protocolos Adicionais de Montreal, de 1975 (aprovados para ratificação pelo
Decreto n.º 96/81, de 24 de Julho). Note-se, sem que para efeito do presente
recurso, limitado à questão de constitucionalidade da versão normativa aplicada
e que está processualmente determinada, seja indispensável entrar em maiores
detalhes, que nem todos estes instrumentos lograram as ratificações necessárias
para entrar em vigor (Cfr. o site do Gabinete de Documentação e Direito
Comparado, do Ministério da Justiça, http://www.gddc.pt/). Assinale-se ainda que
outros aspectos do contrato de transporte aéreo de passageiros e da
responsabilidade do transportador por eventos danosos dele decorrentes (diversos
da perda, avaria ou atraso na entrega da bagagem) eram objecto de legislação
nacional ou comunitária mais favorável ao passageiro do que a emergente da
Convenção de Varsóvia e actos adicionais (Aliás, na perspectiva da tutela do
consumidor, orientada pelo standard do elevado grau de defesa, a intervenção
comunitária em matéria de responsabilidade do transportador aéreo de passageiros
é significativa e precursora: cfr. Regulamento (CE) n.ºs 2027/97 do Conselho, de
9 de Outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas em
caso de acidente, Regulamento (CE) n.º 889/2002 do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 13 de Maio de 2002, que altera o Regulamento (CE) n.º 2027/97 do
Conselho e Regulamento (CE) n.º 785/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de
21 de Abril de 2004, relativo aos requisitos de seguro para transportadoras
aéreas e operadores de aeronaves (cfr. mario lopez gonzalo, 'La Tutela del
Passeggero nel Regulamento CE n. 261/2004, Rivista Italiana do Diritto Publico
Comunitário, n.º 1, 2006, pag. 203 e sgs). Por último, pode ainda referir-se que
a matéria veio a ser objecto de nova convenção, a Convenção de Montreal para a
Unificação de certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional,
celebrada em 1999 (Cfr. dario moura vicente, “A Convenção de Montreal sobre o
Transporte Aéreo Internacional” in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Joaquim
Moreira da Silva Cunha, pág. 199, maria da graça trigo, “Responsabilidade Civil
do Transportador Aéreo”, Direito e Justiça, Vol. XII, Tomo 2, pág. 72). Retendo
só o aspecto que pode interessar à compreensão dos problemas discutidos neste
processo, o da responsabilidade por destruição, perda, danificação ou atraso na
entrega da bagagem, verifica-se que o novo regime uniforme continua a conter uma
regra de limitação da indemnização, agora estabelecida em 1000 'DSE' por
passageiro (cfr. também o Anexo aditado pelo Regulamento (CE) n.º 889/2002 do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Maio de 2002).
4. O acórdão recorrido considerou que, não se tendo provado dolo ou
culpa equiparável por parte do transportador ou seus propostos, o ora recorrente
apenas tinha direito, pela perda da mala que fizera seguir como bagagem
registada, a uma indemnização calculada nos termos da primeira parte da alínea
a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia, que dispunha:
“2 - a) No transporte de bagagens registadas e de mercadorias, a
responsabilidade do transportador é limitada à quantia de 17 direitos especiais
de saque por quilograma, salvo declaração especial de interesse na entrega no
destino feita pelo expedidor no momento de confiar o volume ao transportador e
mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual.
Nesse caso, será o transportador obrigado a pagar até ao limite da quantia
declarada, salvo se provar que ela é superior ao interesse real do expedidor na
entrega.”
É esta a norma – correspondente à redacção introduzido pelo referido
Protocolo Adicional n.º 2 à Convenção de Varsóvia – cuja constitucionalidade o
recorrente questiona, por violação do direito constitucional dos consumidores à
reparação dos danos (n.º 1 do artigo 60.º da CRP) e do princípio da igualdade
(n.º 1 do artigo 13.º da CRP).
Vejamos.
5. O n.º 1 do artigo 60.º da Constituição – deslocando a matéria, a
partir da Revisão Constitucional de 1989, para a sede formal dos direitos
fundamentais quando anteriormente estava inserida na parte da organização
económica (artigo 110.º) – consagra um conjunto de direitos dos consumidores, de
evidente radical subjectivo ('…. têm direito'), mas de natureza não homogénea:
(i) direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, (ii) direito à formação
e informação, (iii) direito à protecção da saúde e da segurança, (iv) direito à
protecção dos interesses económicos e (v) direito à reparação dos danos.
No presente recurso é o direito constitucional do consumidor à
reparação dos danos que o recorrente pretende que o Tribunal julgue violado pela
norma convencional transcrita, nele se centrando o exame subsequente.
Traduz-se este direito na indemnização dos prejuízos causados pelo
fornecimento de bens ou serviços defeituosos, por assistência deficiente ou por
violação do contrato de fornecimento ou prestação de serviços e, em geral, por
violação dos direitos do consumidor. A constitucionalização do direito de
reparação dos danos não pressupõe necessariamente o abandono dos esquemas da
responsabilidade de cariz subjectivista, embora exija notas equilibradoras da
subalternidade do consumidor na relação económica com o produtor, fornecedor ou
prestador, seja no momento de contratar e estabelecer as consequências do
incumprimento, seja no momento de demonstrar esse incumprimento ou deficiente
cumprimento (p. ex. consagrando presunções de culpa ou responsabilidade
tendencialmente objectiva).
No acórdão n.º 650/2004, publicado no Diário da República, I
Série-A, de 23 de Fevereiro, o Tribunal já teve oportunidade de apreciar, por
confronto com este mesmo parâmetro, normas que estabelecem limitações no cálculo
do montante a que os consumidores têm direito como indemnização por danos
decorrentes do incumprimento ou deficiente cumprimento da prestação por parte do
fornecedor ou prestador do serviço, mas que não constituam danos à vida,
integridade e saúde.
Apreciando, em fiscalização abstracta sucessiva, normas que estabeleciam limites
ao montante da indemnização por prejuízos decorrentes de deficiente prestação do
serviço de transporte ferroviário de passageiros e do serviço dos correios, o
Tribunal, entendeu desnecessário tomar posição sobre se o direito dos
consumidores à reparação dos danos deve ser classificado como análogo aos
direitos, liberdades e garantias, para efeito de aplicação, ex vi do artigo
17.º, do regime consagrado no artigo 18.º da Constituição (cfr., reconhecendo
que o direito à reparação dos danos tem essa natureza e beneficia do
correspondente regime de protecção acrescida, Gomes canotilho e vital moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, pág. 780, e vieira de
andrade “Os Direitos dos Consumidores como direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976”, Boletim da Faculdade de Direito - Universidade de Coimbra,
volume LXXVIII, 2 002, 52 e seguintes). E isto, no essencial, por considerar
que, dos termos em que é consagrado o direito constitucional em causa, não
resulta que seja vedado ao legislador ordinário efectuar modelações do regime de
responsabilidade. O Tribunal entendeu que a Constituição não impõe que a
obrigação de indemnizar tenha de ser configurada de modo a que venha sempre a
ser ressarcida a totalidade dos danos calculados nos termos gerais da
responsabilidade civil, quer do ponto de vista qualitativo (p. ex.: exclusão de
danos não patrimoniais ou de lucros cessantes), quer do ponto de vista
quantitativo (limitações a forfait do montante da indemnização). O legislador
dispõe, em princípio, da liberdade de conformar mais ou menos limitativamente o
regime da responsabilidade civil, seja definindo condições para a obrigação de
indemnização, seja limitando os danos ressarcíveis. Ponto é, como se disse no
acórdão 'que, no estabelecimento desses limites, de uma parte, não se venha a
tornar desprovido de significado o «núcleo» do direito consagrado na parte final
do n.º 1 do artigo 60.º da Constituição, ou seja, que o direito à reparação dos
danos dos consumidores, na prática, não venha ser impossibilitado de operar; de
outra, que dos limites fixados não resulte um ressarcimento irrisório ou
desprezível e, por fim, que, a haver limitações à reparação integral dos
prejuízos, sejam elas justificadas pelos interesses em presença'.
6. A doutrina desse acórdão, de modo mais chegado quando nele se
analisa a constitucionalidade das normas aí em apreço respeitantes à perda,
espoliação ou avaria de bens confiados aos serviços dos correios, é largamente
transponível para o caso presente. E a tanto não obsta o facto de a limitação da
indemnização então analisada ocorrer no âmbito de serviços públicos essenciais
ou serviços de interesse económico geral, em que pode encontrar-se justificação
constitucional adicional para essa limitação na imposição ao Estado de
assegurar, com os recursos disponíveis, a existência de 'um serviço público
vocacionado a proporcionar a toda a comunidade prestações indispensáveis à sua
vivência, sem que, em contrapartida, se lhe exija encargos acentuados', que não
valem, ou não valem directamente, quando o fornecimento ou prestação de serviços
ocorre em condições normais de mercado.
Com efeito, visto o regime da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da
Convenção de Varsóvia no seu todo, também neste caso pode afirmar-se que não
estamos perante uma verdadeira restrição ao direito de reparação dos danos, mas
perante uma norma de conformação ou condicionamento da obrigação de indemnizar
em função do risco assumido pelas partes no momento de contratar.
Na verdade, o passageiro pode assegurar a indemnização integral dos
danos, mesmo em caso de mera negligência do transportador ou seus propostos,
mediante uma declaração especial de interesse na entrega no destino feita no
momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa
suplementar eventual. Nesse caso, será o transportador obrigado a pagar uma
indemnização até ao limite da quantia declarada, salvo se provar que ela é
superior ao interesse real do expedidor na entrega. Vale por dizer que no
contrato normal de transporte se pressupõe a aceitação, por parte do passageiro,
de que a bagagem que regista não tem valor superior a 17 'direitos especiais de
saque' por quilograma, rectius, ao produto do peso da bagagem registada por esse
valor unitário. No preço pelo qual o transportador normalmente se dispõe a fazer
o transporte do passageiro e da sua bagagem, assumindo as consequências de não
conseguir assegurar o resultado por, em algum ponto do complexo circuito das
operações de condução da bagagem, ocorrerem factos causadores da sua perda ou
danificação, está implícita essa aceitação ou, pelo menos, a correspondente
repartição de risco. Se o passageiro pretender contratar noutros termos, faz a
declaração correspondente e paga o preço suplementar, assim assegurando que a
obrigação de indemnizar em caso de destruição, perda, danificação ou atraso na
entrega da bagagem não fique sujeita à cláusula limitativa estabelecida para as
condições normais.
7. Este limite não é de tal modo exíguo que atinja o núcleo
essencial do direito do consumidor à reparação dos danos e tem justificação
razoável nos interesses contraditórios que na situação se confrontam. Aos
interesses dos lesados em serem integralmente ressarcidos pelos prejuízos
sofridos contrapõe-se o interesse das transportadoras em não serem
sobrecarregadas com indemnizações, ou com procedimentos onerosos para
preveni-las, que tornem economicamente inviável a sua actividade. Mas há também
o interesse dos consumidores em geral em usufruir a preços acessíveis da mais
ampla oferta de transporte aéreo internacional, que se veria contrariado pela
necessidade de repercutir nos preços o risco para os operadores de transporte
aéreo de o preço do bilhete de passageiro o poder fazer incorrer no pagamento de
indemnizações elevadas, em situações de mera negligência presumida. E há o
interesse dos Estados na existência e funcionamento regular e eficiente de tais
serviços a partir e com destino ao território respectivo. O regime convencional
corresponde a um equilíbrio razoável entre todos estes interesses (cfr., para
solução semelhante no âmbito da Convenção de Montreal, dario moura vicente, loc.
cit . pág. 206).
Aliás, a limitação da responsabilidade pela danificação ou perda da
bagagem registada é susceptível de influenciar, ainda por uma outra via
indirecta as tarifas e o funcionamento eficiente do transporte aéreo de
passageiros. Com efeito, a existência de um limite à indemnização pela perda ou
extravio de bagagem em caso de mera negligência, estabelecido a um nível que
torne a formulação de pretensões descabidas ou fraudulentas pouco compensadora,
permite que nos procedimentos de despacho os transportadores prescindam de
verificações ou declarações prévias e adoptem procedimentos simplificados de
entrega da bagagem e de regularização dos conflitos que dificilmente poderiam
manter-se se a regra fosse a da ilimitada responsabilidade, mesmo em caso de
mera negligência, por deficiente cumprimento num domínio de execução do contrato
que, além de ser o de mais frequente conflitualidade no transporte aéreo de
passageiros, envolve estruturas e circuitos aeroportuários que escapam ao total
controlo do transportador.
Em conclusão, o Tribunal considera que a limitação do cálculo da
indemnização pela perda ou danificação de bagagem registada constante da alínea
a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia não viola o direito dos
consumidores à reparação dos danos, consagrado no n.º 1 do artigo 60.º da
Constituição.
8. O que se disse quanto à não violação do direito à reparação dos
danos afasta também a alegada violação do princípio constitucional da igualdade.
Aliás, mal se entende a invocação do n.º 2 do artigo 13.º da CRP num domínio
onde existe parâmetro constitucional específico.
De todo o modo, sempre se dirá que a protecção constitucional dos
interesses económicos do consumidor não impõe ao legislador uma opção parcial a
favor do consumo, mas o equilíbrio e garantia da igualdade material, sobretudo
para prevenção de desiquilíbrios contratuais em detrimento do consumidor, por
exemplo no caso de contratos de adesão ou de certas cláusulas contratuais
gerais, quando não haja negociação individual nem liberdade de estipulação,
especialmente quanto a bens e serviços essenciais, e contra métodos agressivos
de venda que prejudiquem a avaliação consciente e a formação livre, esclarecida
e ponderada da decisão de contratar (vieira de andrade, loc cit., pág. 49).
Ora, como se disse, no aspecto que agora interessa da reparação dos
danos por perda ou danificação de bagagem, a norma convencional aplicada deixa
ao passageiro a opção por assegurar a indemnização integral dos danos mediante a
avaliação que faça de que os seus interesses não correspondem aos que são
pressupostos na regra geral daquela norma. Ainda que a limitação do montante
indemnizatório a favor de uma das partes no contrato fosse “candidato positivo”
à equiparação às proibições de discriminação com base nas categorias suspeitas
elencadas no n.º 2 do artigo 13.º – e não é, não sendo assimilável a uma
discriminação com base na situação económica, que seria a categoria mais
próxima, porque a situação económica das partes contratantes não é factor
diferenciador – é descabida a conclusão de que a norma convencional não tem
fundamento material ou justificação razoável. Como se referiu a propósito do
parâmetro constitucional pertinente, visa até objectivos de defesa global do
consumidor, obstando a que um dos componentes do preço das viagens aéreas seja a
cobertura sistemática de riscos que a generalidade dos casos não justifica (Nos
considerandos do Regulamento (CE) n.º 889/2002 justifica-se assim solução
semelhante do novo regime uniforme: “(12) A existência de limites de
responsabilidade uniformes para a perda, os danos ou a destruição da bagagem e
para os prejuízos causados pelos atrasos, aplicáveis a todas as viagens
efectuadas por transportadoras comunitárias, garantirá o estabelecimento de
regras simples e claras para os passageiros e para as companhias aéreas e
permitirá que os passageiros reconheçam a necessidade de fazerem ou não um
seguro complementar).
C. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, condenando o recorrente nas
custas, com 25 (vinte e cinco) UC,s de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão