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Processo n.º 647/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. e mulher B., notificados do Acórdão n.º 470/2007
– que, deferindo pedido de reforma do Acórdão n.º 230/2007, julgou
inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º
2, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma do
artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais (CCJ), aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 224‑A/96, de 26 de Novembro, “interpretada por forma a permitir
que as custas devidas pelo expropriado excedam de forma intolerável o montante
da indemnização depositada, como flagrantemente ocorre em caso, como o presente,
em que esse excesso é superior a € 100 000,00”, e, em consequência, concedeu
provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida
(acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13 de Dezembro de 2005), em
conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade – vieram requerer
a sua aclaração, ao abrigo do artigo 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Civil (CPC), aplicável por força do artigo 69.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), nos seguintes termos:
“1.º – Os recorrentes ponderaram muito a oportunidade do presente
pedido de aclaração, não só quanto à sua razão de ser, como também por receio,
que continuam a ter, quanto à possibilidade de poderem ser condenados em custas.
2.º – Todavia, por considerarem ser indispensável, decidiram avançar
com o pedido de aclaração.
3.º – O douto Acórdão n.º 470/2007, depois de na alínea a) do ponto
11, deferir o pedido de reforma do Acórdão n.º 230/2007, delibera na alínea b)
do mesmo ponto o seguinte: «b) Julgar inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição
da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas
Judiciais, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 224‑A/96, de 26 de Novembro,
interpretada por forma a permitir que as custas devidas pelo expropriado
excedam de forma intolerável o montante da indemnização depositada, como
flagrantemente ocorre em caso, como o presente, em que esse excesso é superior
a € 100 000,00; e, em consequência, c) ...»
4.º – Os recorrentes entendem que a expressão «... de forma
intolerável…»
5.º – e a expressão, «... como flagrantemente ocorre em caso, como o
presente, em que esse excesso é superior a € 100 000,00;…»
6.º – são expressões que vêm reforçar o sentido de que o douto
Acórdão entendeu julgar inconstitucional a norma do artigo 66.°, n.º 2, do
Código das Custas Judiciais, interpretada por forma a permitir que as custas
devidas pelo expropriado excedam o montante da indemnização depositada.
7.º – Ou seja, que entendeu o Acórdão que as custas devidas pelos
expropriados não devem exceder o montante da indemnização depositada.
8.° – No entanto, podem existir outras interpretações, pois vindo o
Acórdão n.º 470/2007 reformar o Acórdão n.º 230/2007, que parece ter
considerado tolerável que as custas devidas pelo expropriado excedessem em 15
000 € o montante da indemnização depositada, suscita dúvidas se o Acórdão n.º
470/2007 considerou como tolerável que as custas a pagar pelos expropriados
excedam o montante da indemnização depositada, em 15 000 €.
9.º – Todavia, na mente dos expropriados/recorrentes, que há mais de
10 anos sofrem com o presente processo, paira o receio de que outras
interpretações, para si ainda mais gravosas, que levem a uma deficiente
reformulação da decisão recorrida, em desconformidade com o juízo de
inconstitucionalidade, possam dar origem a nova reclamação da conta de custas,
começando tudo de novo.
10.º – Na verdade, existe a possibilidade de, na reformulação da
decisão recorrida, se vir a considerar que a expressão – «... de forma
intolerável ...» – admite que as custas devidas pelo expropriado possam exceder
o montante da indemnização depositada, não em 15 000 €, mas ainda em valores
superiores a este,
11.º – ficando no arbítrio de quem proferiu a decisão recorrida e
agora tem que a reformular decidir qual o valor de custas superior ao montante
da indemnização depositada, que é tolerável que os recorrentes venham a ser
condenados a pagar.
12.º – Exemplo desse arbítrio seria vir a considerar‑se que, se a
decisão reformulada operasse uma redução de 50% no valor das custas que supera
(111 816,46 €) o montante da indemnização depositada, tal decisão estaria em
conformidade com o juízo de inconstitucionalidade,
13.º – o que não é verdade,
14.º – pois levaria os expropriados/recorrentes a ficarem sem o bem
expropriado pelo Estado, que também arrecada o valor da indemnização
depositada, e a terem ainda que pagar mais 55 908,23 € (50% dos 111 816,46 €
que superavam a indemnização depositada),
15.º – situação que continuaria a ser intolerável, uma vez que
excederia, também de forma flagrante, o montante da indemnização depositada,
16.º – e que obrigaria os recorrentes a ter de apresentar nova
reclamação da conta de custas, com prejuízo do princípio da economia
processual.
17.º – e que os obrigaria, nos termos do n.º 2 do artigo 61.º do
Código das Custas Judiciárias, ao prévio depósito das custas em que fossem
condenados, valor de que não dispõem.
18.º – São pois estas as dúvidas de obscuridade que os recorrentes,
com todo o respeito que têm a esse Superior Tribunal, gostariam de ver
esclarecidas, e que, em seu entender, justificam a necessidade da aclaração
requerida,
19.º – entendendo que, a ter sido considerado tolerável pelo douto
Acórdão, o que não admitem, que o valor das custas possa exceder o valor da
indemnização depositada, deverá ser aclarado qual o montante desse excesso que é
tolerável.
20.º – E a ter sido considerado tolerável haver excesso, se ele é
tolerável até ao valor de 15 000 €, como referido pelo Acórdão reformado,
21.º – ou se o douto Acórdão n.º 470/2007 entendeu que as custas não
devem exceder o montante da indemnização depositada, como foi defendido nas
conclusões de recurso pelos recorrentes.”
Notificado deste pedido de aclaração, o representante do
Ministério Público neste Tribunal apresentou a seguinte resposta:
“1.º – O pedido de esclarecimento deduzido é manifestamente
improcedente, já que o acórdão reclamado é perfeitamente claro quanto ao juízo
de inconstitucionalidade que emitiu.
2.º – Tendo a dúvida colocada pelos reclamantes que ver com as
consequências práticas e processuais de tal juízo, matéria que se situa na
competência dos tribunais judiciais, no exercício da sua tarefa de
interpretação e aplicação do direito infraconstitucional.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como é sabido, o pedido de aclaração de decisões
judiciais visa o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade de que a
decisão aclaranda padeça (a decisão é obscura quando contém algum passo cujo
sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a
interpretações diferentes), não podendo ser utilizado para se obter, por via
oblíqua, a modificação do julgado, nem, como no presente caso parece pretenderem
os recorrentes – que não identificam nenhuma passagem do Acórdão aclarando que
padeça de tais vícios –, para fazer com que o Tribunal Constitucional se
substitua ao tribunal a quo na especificação da concreta decisão que este terá
de emitir na reformulação do julgado em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade.
O Acórdão n.º 470/2007 claramente sublinhou que,
respeitando o lapso detectado – e que determinou o deferimento do pedido de
reforma – exclusivamente à parte da fundamentação do Acórdão n.º 230/2007
relativa ao “primeiro sentido do princípio da proporcionalidade” (o sentido de
“equilíbrio entre a consagração do direito de acesso ao direito e aos tribunais
e os custos inerentes a tal exercício”), eram insusceptíveis de reponderação as
restantes partes do Acórdão. Ficaram, assim, incólumes as considerações desse
Acórdão no sentido de que a fixação do valor das custas em montante superior ao
da indemnização depositada não violava: (i) nem o “segundo sentido do
princípio da proporcionalidade” (“responsabilização de cada parte pelas custas
de acordo com a regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da
intervenção jurisdicional”), “na medida em que o débito de custas superior ao
valor da indemnização depositada está, no caso dos autos, ligado ao valor
indicado pelos recorrentes para o bem expropriado, valor que não veio, a final,
a ser considerado o correcto e adequado pelo tribunal – isto é, com decaimento
ou sucumbência da sua pretensão”; (ii) nem o “terceiro sentido do princípio da
proporcionalidade” (“ajustamento dos quantitativos globais das custas a
determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a respectiva
tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os
comportamentos das partes”), “na medida em que o débito de custas superior ao
valor da indemnização depositada nos autos é uma consequência do valor da acção
de expropriação e de questões específicas suscitadas (ao menos também) pelos
expropriados”; (iii) nem o artigo 62.º, n.º 2, da CRP, já que no cálculo da
indemnização por expropriação por utilidade pública, que “visa compensar os
expropriados do prejuízo que sofrem”, “não podem ser tomados em consideração os
custos inerentes à sua actuação, julgada improcedente, no processo de
expropriação, mas tão‑só os danos que foram realmente suportados pelos
expropriados em consequência da expropriação, os quais se medem pelo valor do
bem expropriado considerado correcto e adequado pelo tribunal”, “não existindo
qualquer impedimento constitucional, do ponto de vista do direito consagrado no
artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, a que o valor indemnizatório depositado não
garanta a realização do crédito de custas, por o montante das custas devidas
pelo expropriado ser, em consequência do decaimento ou sucumbência da sua
pretensão relativa a um valor mais elevado, superior ao montante da
indemnização depositada”.
O juízo de inconstitucionalidade proferido fundou‑se,
assim, exclusivamente no reconhecimento da violação do apontado “primeiro
sentido do princípio da proporcionalidade”, conjugado com o direito de acesso
aos tribunais (“que fica comprometido quando o risco de ter de pagar custas
incomportáveis funciona como inibidor do recurso à justiça por parte dos
cidadãos”), que se considerou serem “desrespeitados, quando, como no presente
caso ocorreu, o critério normativo adoptado pelas instâncias determina a fixação
das custas devidas pelos recorrentes em € 309 052,71 (cerca de 62 000 000$00),
do que resulta que, tendo os recorrentes ficado privados do seu prédio por força
da expropriação, não só a indemnização que lhes era devida pela expropriação (€
197 236,25 ou 39 542 317400) lhes é totalmente absorvida pelas custas, como
ainda terão de pagar a mais, de custas, o valor de € 111 816,46 (22 417
187$00)”. Resulta claramente desta passagem, em consonância com as considerações
expendidas aquando da apreciação dos restantes argumentos dos recorrentes, que a
mera ultrapassagem do valor da indemnização depositada não acarreta
necessariamente a inconstitucionalidade da regra de fixação das custas,
derivando a violação do princípio da proporcionalidade e do direito de acesso
aos tribunais da aplicação de um critério de que resulte que os encargos a
suportar pelos interessados que recorram aos tribunais para defesa dos seus
direitos ou interesses legalmente protegidos sejam de tal montante que “na
prática, constituam um entrave inultrapassável ou um acentuadamente grave ou
incomportável sacrifício para desfrutarem de tal direito”. É este critério,
reputado inconstitucional, que não poderá voltar a ser utilizado pelo tribunal
recorrido na reformulação da decisão recorrida. Mas, como é óbvio, não compete
ao Tribunal Constitucional – nem tal cabe no âmbito de um pedido de aclaração –
avançar na concretização do resultado que, no caso, se virá a entender ser o que
deriva da aplicação do critério tido por respeitador do princípio da
proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir o presente
pedido de aclaração.
Custas pelos recorrentes, fixando‑se a taxa de justiça
em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Novembro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos