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Processo nº 266/07
Plenário
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O pedido
O Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira
veio requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade do artigo 41.º, n.º 1, da Lei n.º 53/2006, de 7 de
Dezembro, na parte em que se refere à administração regional.
A Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, estabelece o regime comum de
mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da Administração Pública,
visando o seu aproveitamento racional. O teor da norma questionada é o seguinte:
Artigo 41.º
Procedimento prévio de recrutamentos
1 – Nenhum serviço da administração directa e indirecta do Estado e da
administração regional e autárquica, com excepção das entidades públicas
empresariais, pode recrutar pessoal por tempo indeterminado, que não se encontre
integrado no quadro e na carreira para os quais se opera o recrutamento, antes
de executado o procedimento referido no artigo 34.º
2 – (…).
3 – (…).
4 – (…).
A norma cuja constitucionalidade é suscitada no pedido remete para o artigo
34.º, que dispõe o seguinte:
Artigo 34.º
Selecção para reinício de funções em serviço
1 - A selecção de pessoal em situação de mobilidade especial para reinício de
funções em serviço, a título transitório ou por tempo indeterminado, é efectuada
através de adequado procedimento.
2 - O procedimento inicia-se com a publicitação na BEP de despacho do dirigente
máximo do serviço que fixa:
a) O número de efectivos de pessoal a recrutar, por carreira, ou por categoria
quando necessário, e por áreas funcional, habilitacional e geográfica, quando
exigíveis, e outros requisitos de candidatura, neles sempre incluindo a
possibilidade de reclassificação e reconversão profissional;
b) Os métodos e critérios de selecção;
c) A composição dos júris de selecção;
d) Os prazos do procedimento.
3 - Podem apenas candidatar-se ao procedimento de selecção os funcionários ou
agentes em situação de mobilidade especial.
2. Os fundamentos do pedido
O requerente fundamentou o pedido nos seguintes termos:
- A Lei n.º 53/2006 estabelece o regime comum de mobilidade entre
serviços dos funcionários e agentes da Administração Pública, prevendo
instrumentos de mobilidade geral (transferência, permuta, requisição,
destacamento, afectação específica e cedência ocasional) e instrumentos de
mobilidade especial (reafectação e reinício de funções de pessoal excedentário,
proveniente de serviços submetidos a processos de extinção, fusão,
reestruturação ou racionalização de efectivos).
- O artigo 41.º dessa lei, com a epígrafe “Procedimento prévio de
recrutamentos”, estabelece que nenhum serviço, designadamente da administração
regional, pode recrutar pessoal por tempo indeterminado, que não se encontre
integrado no quadro e na carreira para os quais se opera o recrutamento, antes
de publicitar anúncio na Bolsa de Emprego Público (BEP), para que se possam
candidatar funcionários ou agentes em situação de mobilidade especial.
- A Região Autónoma da Madeira não teve conhecimento nem foi ouvida
sobre esta matéria, tal como está regulada na norma mencionada. Com efeito,
apenas lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre duas versões anteriores
da norma em questão, que não obrigavam os serviços da administração regional a
proceder à publicitação prévia de recrutamentos na BEP.
- A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira recebeu do
Gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros um
pedido de audição relativo ao Projecto de Proposta de Lei n.º 260/2006, que
regulava no artigo 33.º a obrigação de publicitação prévia de recrutamentos e
apenas abrangia os serviços das administrações central e local (excluindo,
portanto, os serviços da administração regional).
- Posteriormente, o Governo Regional recebeu da Assembleia da República
um pedido de audição relativo à Proposta de Lei n.º 81/X, que regulava a
obrigação de publicitação prévia de recrutamentos no artigo 41.º e apenas
abrangia os serviços da administração directa e indirecta do Estado e da
administração local (excluindo os serviços da administração regional).
- Foi apenas com a publicação da Lei n.º 53/2006 que se constatou ter
havido uma alteração de vulto (no que toca à Região) na redacção do artigo 41.º,
por este passar a abranger os serviços da administração regional.
- A redacção final do artigo 41.º da Lei n.º 53/2006, ao abranger a
administração regional, entra em clara colisão com o Decreto-Lei n.º 85/85, de 1
de Abril, que regula a mobilidade dos funcionários entre a administração central
e regional, submetendo-a a regras específicas. A norma questionada também não se
coaduna com o artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 78/2003, de 23 de Abril, que
determina que a utilização da BEP é facultativa para as regiões autónomas.
- Além disso, a alteração em análise é substancial, incide
expressamente sobre a administração regional e torna o texto do artigo 41.º, n.º
1, da Lei n.º 53/2006 absolutamente inovatório em relação ao que foi enviado
para consulta aos órgãos de governo regional.
- A situação descrita consubstancia uma flagrante violação do direito
de audição dos órgãos de governo regional, previsto no artigo 229.º, n.º 2, da
Constituição e regulado na Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto.
- Com efeito, o artigo 7.º da Lei n.º 40/96 determina que “sempre que a
audição tenha incidido sobre proposta concreta à qual venham a ser introduzidas
alterações que a torne substancialmente diferente ou inovatória devem ser
remetidas aos órgãos de governo próprio cópia das mesmas e a respectiva
justificação”. Essa obrigação não foi cumprida, tornando inconstitucional (tal
como prescreve o artigo 9.º da Lei n.º 40/96) o artigo 41.º, n.º 1, da Lei n.º
53/2006, na parte em que se refere à administração regional.
O requerente entregou, em anexo ao pedido, cópia parcial (contendo a norma
relativa à publicitação prévia de recrutamentos) do Projecto de Proposta de Lei
n.º 260/2006, datado de 1 de Junho de 2006, e da Proposta de Lei n.º 81/X,
datada de 29 de Junho de 2006. Esta última tem um carimbo de aprovação na
generalidade, aposto em 20 de Julho de 2006.
3. A resposta do autor da norma
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, a Assembleia da
República entregou cópia da documentação relativa aos trabalhos preparatórios da
Lei n.º 53/2006 e ofereceu o merecimento dos autos.
4. As diligências posteriores
Analisada a documentação constante dos autos, considerou-se necessário solicitar
informações adicionais.
Por um lado, a documentação entregue pela Assembleia da República apenas
respeita à parte do procedimento legislativo que decorreu em sede parlamentar.
Ora, tendo o diploma questionado tido origem numa proposta de lei do Governo
(n.º 260/2006) e constatando-se que os órgãos de governo das regiões autónomas
foram ouvidos relativamente a essa proposta antes da sua aprovação em Conselho
de Ministros, revela-se necessário à decisão da causa saber em que termos
decorreu esta audição. Assim sendo, solicitou-se ao Secretário de Estado da
Presidência do Conselho de Ministros, ao abrigo do disposto no artigo 64.º-A da
Lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional
(doravante, LTC), uma cópia da documentação referente ao procedimento de audição
das regiões autónomas relativa à Proposta de Lei n.º 260/2006, designadamente, o
pedido de audição, o teor da proposta (à data da audição) e a resposta dos
órgãos de governo regionais.
Por outro lado, para conhecer com exactidão as condições em que decorreu o
exercício do direito de audição, solicitou-se ao Presidente da Assembleia
Legislativa Regional da Madeira que indicasse a data em que a Assembleia
Legislativa Regional da Madeira recebeu o pedido de audição relativo à Proposta
de Lei n.º 81/X, constante do Ofício n.º 1110/GPAR/06-pc, do Gabinete do
Presidente da Assembleia da República, datado de 11 de Outubro de 2006.
Todos os elementos solicitados foram entregues, estando agora o Tribunal em
condições de apreciar o pedido que deu origem ao presente processo.
5. O memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação
do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. Questão prévia – A legitimidade do requerente
De acordo com o disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição,
podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade
de normas, com força obrigatória geral, os presidentes dos Governos Regionais,
quando o pedido “se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas”.
No caso sub iudice, o requerente fundamenta o seu pedido na existência de uma
violação do direito de audição dos órgãos de governo regional, consagrado no
artigo 229.º, n.º 2, da Constituição. Tratando-se de um direito das regiões
autónomas com assento constitucional, não se suscitam dúvidas acerca da
legitimidade do requerente para submeter ao Tribunal o presente pedido de
fiscalização da constitucionalidade.
Aliás, este Tribunal já teve ocasião de afirmar, noutros casos, que a
legitimidade dos presidentes dos Governos Regionais para requerer a fiscalização
abstracta da constitucionalidade depende de estar em causa a violação de
direitos regionais consagrados na Constituição (cf., entre muitos, o Acórdão n.º
264/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º Vol., pp. 169 e segs.).
7. As matérias sujeitas a audição
De acordo com o disposto no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, os órgãos de
soberania ouvirão sempre, relativamente a questões da sua competência
respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se a Lei n.º 53/2006 constitui um
acto da competência dos órgãos de soberania que respeita às regiões autónomas.
Antes da revisão constitucional de 2004, a qual introduziu alterações
significativas no Direito Constitucional Regional, o Tribunal Constitucional
teve oportunidade de definir, diversas vezes, o âmbito de aplicação deste
preceito da Lei Fundamental, tendo consolidado ao longo do tempo, na
jurisprudência constitucional portuguesa, o seguinte entendimento, formulado
inicialmente pela Comissão Constitucional, no Parecer n.º 20/77 (Pareceres da
Comissão Constitucional, 2.º Vol., INCM, 1977, pp. 159 e sgg.):
(…) são questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às
regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo
regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos,
mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua
incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a
relevância de que se revestem para esses territórios”. (…)
Será, por exemplo, a circunstância de o órgão de soberania, na disciplina que se
propõe editar para determinada questão, circunscrever tal disciplina ao âmbito
regional. Ou ainda a circunstância de o órgão de soberania, na regulamentação de
determinada questão, se propor adoptar uma solução especial no que toca às
Regiões Autónomas, por referência à regulamentação geral que nessa matéria prevê
para o restante território nacional.
Esse entendimento foi acolhido posteriormente em numerosos arestos (cf., entre
outros, os Acórdãos n.º 42/85, n.º 264/86, n.º 403/89, n.º 670/99, n.º 684/99,
n.º 529/2001 e n.º 243/2002, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
5.º Vol., pp. 181 e segs., 8.º Vol., pp. 169 e segs., 13.º Vol., Tomo I, pp. 465
e segs., 45.º Vol., pp. 57 e segs., e pp. 91 e segs., 51.º Vol., pp. 65 e segs.,
e 53.º Vol., pp. 117 e segs., respectivamente).
Antes de apreciar se o regime fixado na Lei n.º 53/2006 constitui um acto da
competência dos órgãos de soberania que respeita às regiões autónomas, importa
averiguar se a jurisprudência acabada de mencionar continua a ser aplicável após
a revisão constitucional de 2004.
Apesar de a redacção do artigo 229º, nº 2, da CRP não ter sofrido qualquer
alteração na mencionada revisão, as modificações introduzidas noutros preceitos
do Título VII da Parte III, referente às regiões autónomas, designadamente em
sede de repartição de poder legislativo entre os órgãos das regiões autónomas e
os órgãos de soberania, que se consubstanciaram numa maior abertura da
Constituição à autonomia regional, poderiam implicar um diferente entendimento
da expressão respeitantes às regiões autónomas.
Deve, todavia, sublinhar-se que o âmbito material da audição não coincide
absolutamente com o âmbito material do poder legislativo regional, pois enquanto
o primeiro decorre de um direito de participação junto dos órgãos de soberania,
o segundo é um poder próprio.
Assim, a expressão respeitantes às regiões autónomas constante do nº 2, do
artigo 229º, da Constituição deve (continuar a) ser interpretada no sentido de
se tratar de matérias que, apesar de serem da competência dos órgãos de
soberania, nelas os interesses regionais apresentam particularidades por
comparação com os interesses nacionais, quer devido às características
geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões, quer devido às
históricas aspirações autonomistas das populações insulares, que justificam a
audição dos órgãos de governo regional.
Vejamos então se, no caso concreto dos presentes autos, as regiões autónomas
deveriam ou não ter sido ouvidas.
A Lei n.º 53/2006 regula a mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes
da função pública, matéria que respeita a interesses nacionais, do Estado
unitário, designadamente o interesse na gestão eficaz dos recursos humanos da
administração pública (cf. o segundo parágrafo da exposição de motivos da
Proposta de Lei n.º 81/X/1).
Apesar disso, pode dizer-se que o diploma em questão incide de forma particular
sobre as regiões autónomas, atendendo a que parte do seu regime se aplica
directamente à administração regional (cf. os artigos 2.º, n.º 3, e 41.º, n.º 1)
e esta apresenta especificidades relativamente à administração estadual.
Desde logo, as administrações regionais são entes, que se encontram sob a alçada
do poder executivo próprio das regiões autónomas [artigo 227.º, n.º 1, alínea
g), da Constituição] – trata-se de uma decorrência da autonomia
político-administrativa regional. Uma das expressões dessa autonomia é a
existência de quadros regionais de pessoal (cf. o artigo 78.º, n.º 1, do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e o artigo 92.º,
n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores).
Além disso, a insularidade interfere na mobilidade geográfica das pessoas,
justificando que o regime de mobilidade dos funcionários públicos seja adaptado
à realidade regional. Daí que o Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira determine que “a legislação sobre o regime da função pública
procurará ter em conta as condicionantes da insularidade” (artigo 79.º, n.º 3).
Assim sendo, a legislação nacional que afecte a organização e o funcionamento
das administrações regionais, designadamente o regime de mobilidade do
respectivo pessoal, deve qualificar-se como matéria respeitante às regiões
autónomas, para os efeitos previstos no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição.
Esse entendimento recebeu consagração expressa no artigo 40.º, alínea qq), do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e no artigo 8.º,
alínea n), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Além disso, o legislador tem reconhecido a especificidade das administrações
regionais, no que toca à mobilidade dos recursos humanos. Desde logo, o
Decreto-Lei n.º 85/85, de 1 de Abril, aprovou um regime especial de mobilidade
dos funcionários entre os quadros da administração central e das administrações
regionais autónomas. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 190/99, de 5 de Junho,
aprovou um conjunto de incentivos à mobilidade dos recursos humanos da
administração pública e, atendendo à especificidade das administrações
regionais, fez depender a sua aplicação nos territórios regionais da aprovação
de diploma próprio (artigo 2.º, n.º 5). Essa solução foi igualmente adoptada no
Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro, que estabeleceu o regime de
colocação e de afectação dos funcionários e agentes integrados em serviços e
organismos extintos, fundidos e reestruturados (artigo 2.º, n.º 2).
Também o artigo 2.º da Lei n.º 53/2006, ora questionada, manda aplicar a
totalidade do regime de mobilidade nela fixado à administração directa e
indirecta do Estado e apenas parte desse regime à administração regional e
autárquica. Resulta do n.º 3 desse artigo que a aplicação da restante parte do
regime de mobilidade a estas administrações depende de adaptação, reconhecendo o
legislador que elas possuem especificidades, justificadoras da definição de um
regime parcialmente distinto.
Em face do exposto, não pode deixar de se concluir que a Lei n.º 53/2006 contém
matéria respeitante às regiões autónomas, para efeitos do direito de audição dos
órgãos de governo próprio regionais.
8. O procedimento de audição das regiões autónomas, no âmbito da elaboração da
Lei n.º 53/2006
De acordo com a documentação constante do processo, os órgãos de governo
próprios das regiões autónomas tiveram conhecimento do projecto de diploma que
esteve na origem da Lei n.º 53/2006, numa fase inicial, em que o projecto ainda
se encontrava na Presidência do Conselho de Ministros – o Projecto de Proposta
de Lei n.º 260/2006 foi enviado, para audição, às assembleias legislativas
regionais, em 2 de Junho de 2006, com indicação de urgência e redução do prazo
de audição para dez dias; foi recebido por estas, em 5 de Junho de 2006 e em 7
de Junho de 2007, respectivamente; e foi apreciado em 12 de Junho de 2006 por
ambas, tendo a assembleia legislativa da Madeira deliberado nada ter a opor à
proposta de lei e a assembleia legislativa dos Açores deliberado não se
pronunciar sobre o mérito da proposta, atenta a exiguidade do tempo concedido
para a emissão de parecer. A versão enviada às Regiões, datada de 1 de Junho de
2006, previa a aplicação directa do diploma às administrações regionais
autónomas, no tocante ao regime dos instrumentos de mobilidade e ao reinício de
funções em serviço público de pessoal colocado em situação de mobilidade
especial, regulado nos Capítulos II e III (artigo 2.º, n.º 2), mas restringia a
obrigação de publicitação prévia de recrutamentos às administrações central e
local (artigo 33.º, n.º 1, inserido no Capítulo IV – Disposições finais e
transitórias).
O Projecto de Proposta de Lei n.º 260/2006 foi admitido na Assembleia da
República, em 29 de Junho de 2006, e convertido na Proposta de Lei n.º 81/X/1.
Esta Proposta restringiu a aplicação directa do diploma às regiões autónomas,
passando apenas a abranger o regime do reinício de funções em serviço de pessoal
colocado em situação de mobilidade especial, regulado na Secção VI do Capítulo
III (artigo 2.º, n.º 3). Além disso, o regime da publicitação prévia de
recrutamentos sofreu alterações de numeração (essa matéria passou a estar
regulada no artigo 41.º, mantendo-se a inserção no Capítulo IV – Disposições
finais e transitórias) e de conteúdo (a norma passou a abranger a administração
directa e indirecta do Estado e a administração local) – cf. Diário da
Assembleia da República, Série II-A, N.º 124/X/1, de 30 de Julho de 2006.
Até à fase de apreciação na especialidade, os artigos 2.º, n.º 3, e 41.º, n.º 1,
da Proposta de Lei mantiveram a mesma redacção: a primeira dessas normas
determina a aplicação parcial do regime à administração regional e a segunda
abrange a administração directa e indirecta do Estado e a administração local,
não contendo qualquer referência à administração regional. Foi essa versão que
foi submetida a discussão pública, em 30 de Junho de 2006, aprovada na
generalidade, em 20 de Julho de 2006, e enviada aos órgãos de governo das
Regiões, para exercício do direito de audição, em 11 de Outubro de 2006.
Registe-se, ainda, que à data em que a audição foi promovida, a Proposta de Lei
n.º 81/X/1 se encontrava na fase de apreciação na especialidade, a cargo da
Comissão de Trabalho e Segurança Social.
Essa Comissão parlamentar procedeu à discussão e votação na especialidade da
dita Proposta de Lei, em reunião realizada em 17 de Outubro de 2006. Daí
resultou a alteração da redacção dos artigos 2.º, n.º 3, e 41.º, n.º 1, da
Proposta: no artigo 2.º, n.º 3, a palavra local foi substituída por autárquica e
no artigo 41.º, n.º 1, passou a abranger-se a administração directa e indirecta
do Estado e a administração regional e autárquica – cf. Diário da Assembleia da
República, Série II-A, N.º 10/X/2, suplemento de 18 de Outubro de 2006. Esta
versão foi submetida a votação final global, na reunião plenária de 19 de
Outubro de 2006, tendo sido aprovada. É ela que corresponde ao texto da Lei n.º
53/2006.
Importa, agora determinar as consequências jurídico-constitucionais do
procedimento seguido na aprovação da Lei em apreço.
9. Conformidade do procedimento seguido com o direito de audição das
regiões autónomas
A Constituição nada dispõe acerca do procedimento de audição das regiões
autónomas. Essa matéria encontra-se regulada em legislação ordinária,
designadamente na Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, nos artigos 89.º a 92.º do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e nos artigos
78.º a 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Também o artigo 152.º do Regimento da Assembleia da República (aprovado pela
Resolução da Assembleia da República n.º 4/93, de 2 de Março, e alterado pelas
Resoluções da Assembleia da República n.º 15/96, de 2 de Maio, n.º 3/99, de 20
de Janeiro, n.º 75/99, de 25 de Novembro, e n.º 2/2003, de 17 de Janeiro) e o
artigo 23.º do Regimento do Conselho de Ministros do XVII Governo Constitucional
(aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2005, de 15 de Abril, e
alterado pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.º 186/2005, de 6 de
Dezembro, e n.º 64/2006, de 18 de Maio) tratam do procedimento de audição das
regiões autónomas.
Do desrespeito dessas regras não se extrai automaticamente uma conclusão de
inconstitucionalidade (cf., neste sentido, os Acórdãos n.º 670/99 e, sobretudo,
n.º 529/2001). Como se disse neste último acórdão, “decisivo para tal efeito, em
último termo, é saber se, em cada caso, se observou, ou não, um procedimento
capaz de corresponder ao sentido da exigência do artigo 229.º, n.º 2, da
Constituição”.
Assim, na medida em que o incumprimento daquelas regras comprometa o exercício
do direito constitucional de audição, coloca-se um problema de
constitucionalidade. É exactamente isso que sucede no presente processo, visto
que o requerente sustenta ter sido violado o direito de audição das regiões
autónomas, por não ter sido cumprido o procedimento fixado no artigo 7.º da Lei
n.º 40/96. Esta norma dispõe o seguinte:
Sempre que a audição tenha incidido sobre proposta concreta à qual venham a ser
introduzidas alterações que a torne substancialmente diferente ou inovatória
devem ser remetidas aos órgãos de governo próprio cópia das mesmas e a
respectiva justificação.
O Tribunal tem entendido (cf., designadamente, os Acórdãos n.º 264/86, n.º
125/87 e n.º 105/2002, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º Vol., pp. 169 e
sgg., 9.º Vol., pp. 287 e sgg., 52.º Vol., pp. 135 e sgg., respectivamente) que
os órgãos de governo próprio das regiões autónomas não têm que ser novamente
ouvidos quando a alteração da proposta de lei consubstancia uma mera variação
(sem dilatação) do âmbito temático e problemático das matérias reguladas na
iniciativa legislativa originária.
Ora, se (a contrario) os órgãos de governo regionais devem ser novamente ouvidos
quando ocorre uma ampliação do elenco de matérias reguladas na proposta de lei
originária, o mesmo deverá suceder quando há uma ampliação do âmbito de
aplicação do regime fixado, que seja relevante para as regiões autónomas.
É o caso, por exemplo, da introdução de disposições especiais para as regiões
autónomas – como diz Jorge Miranda (obra citada, p. 791), “parece indiscutível
que, se um projecto ou proposta de lei não contiver nenhuma disposição especial
para uma região autónoma e ela surgir através de um texto de substituição ou de
uma proposta de alteração, a Assembleia Legislativa Regional terá de ser
consultada”. É também o caso da ampliação do conjunto de normas aplicável às
regiões autónomas, que ocorre no processo sub iudice.
No caso em análise, os órgãos de governo regionais foram ouvidos duas vezes –
uma primeira vez, no contexto do procedimento legislativo do Governo que levou à
aprovação do Projecto de Proposta de Lei n.º 260/2006, e uma segunda vez, no
contexto do procedimento legislativo da Assembleia da República que culminou na
aprovação da Lei n.º 53/2006.
Contudo, a Proposta de Lei submetida à audição tinha, em ambos os casos, um
âmbito de aplicação regional mais restrito do que aquele que foi fixado na
redacção final do diploma. Com efeito, ambas as versões previam a aplicação
directa do diploma às administrações regionais na parte relativa ao reinício de
funções em serviço do pessoal colocado em situação de mobilidade especial
(regulada na Secção VI do Capítulo III), a primeira delas previa também a
aplicação directa do regime dos instrumentos de mobilidade (regulado nos
Capítulos II e III), mas nenhuma das duas versões previa a aplicação directa às
administrações regionais do regime da publicitação prévia de recrutamentos
(inserido no Capítulo IV).
Apesar de os órgãos de governo regionais terem tido oportunidade de manifestar a
sua opinião acerca do regime de publicitação prévia de recrutamentos (visto que
ele já existia nas versões submetidas a audição), não pode considerar-se
realizado o direito de audição, uma vez que essas versões não previam que a
matéria em causa se aplicasse directamente às administrações regionais, não
tendo os órgãos de governo regional interesse directo em se pronunciar sobre
ela.
Com efeito, a Lei n.º 53/2006 regula uma matéria – a mobilidade entre serviços
dos funcionários e agentes da função pública – cujo âmbito de aplicação é
nacional, pelo que apenas interessa às regiões, para os efeitos previstos no
artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, na medida em que, por um lado, o diploma
que a regula lhes seja aplicável, e por outro lado, as características da
realidade insular e a autonomia político-administrativa regional podem
justificar desvios ao regime geral.
Acresce que a solução normativa que constava das versões submetidas a audição –
de não inclusão das administrações regionais no leque das entidades obrigadas à
publicitação prévia de recrutamentos na BEP – se harmonizava com o regime que
vigorava anteriormente à Lei n.º 53/2006 (cf. o artigo 2.º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 78/2003, de 23 de Abril), apresentando-se às regiões autónomas
como uma solução de continuidade, não inovadora. A circunstância de os órgãos de
governo próprio das regiões autónomas terem razão para confiar na manutenção do
regime vigente – de utilização facultativa da BEP, por parte das administrações
regionais – reforça a sua falta de interesse em se pronunciar sobre o regime de
publicitação prévia de recrutamentos, nos termos em que ele foi submetido a
audição.
Em suma, a ampliação do âmbito de aplicação directa do diploma às regiões
autónomas, que veio a ocorrer em sede de apreciação na especialidade, por parte
da Comissão de Trabalho e Segurança Social, exigia que se procedesse a uma nova
audição das assembleias legislativas regionais, para lhes dar oportunidade de se
pronunciarem sobre a matéria em apreço.
A aprovação da Proposta de Lei n.º 81/X/1, sem a realização desse procedimento
de audição, consubstancia um vício de procedimento legislativo gerador de
inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 229.º, n.º 2, da
Constituição.
10. Âmbito dos efeitos da inconstitucionalidade
Uma vez que a presente declaração de inconstitucionalidade abrange apenas um
segmento de uma norma da Lei n.º 53/2006, importa clarificar se as restantes são
afectadas e em que medida.
Além disso, tendo em conta que o segmento da norma ora declarada
inconstitucional respeita a um procedimento de recrutamento de funcionários e
agentes da administração pública, é necessário ponderar a limitação dos efeitos
da inconstitucionalidade.
Quanto à primeira questão enunciada, entende-se que o vício de
inconstitucionalidade detectado não afecta a validade do artigo 41.º, n.º 1, na
parte que não se refere às administrações regionais, nem das restantes normas da
Lei n.º 53/2006.
Reitera-se, no presente processo, o que se disse no Acórdão n.º 403/89:
(…) o exercício pelos órgãos regionais da faculdade de impugnação da
constitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania pressupõe uma
legitimidade qualificada pela violação de direitos das regiões. É precisamente a
circunstância de ser accionado, por esta via, um poder de garantia dos poderes
das regiões, que fornece o critério de determinação do âmbito do pedido. Só têm
de (devem) ser consideradas as normas que (…) violem direitos
constitucionalmente conferidos às regiões e na medida em que essas normas se
destinem a nelas ser aplicadas (…).
No mais, nada impedirá que a disciplina continue vigorando para o restante
espaço nacional, como também nada impedirá que a parte não inconstitucionalizada
do diploma impugnado continue em vigor para a própria região (…).
Só não terá de ser assim quando estivermos perante normas que, no contexto da
lei em causa, formem, com as restantes, uma unidade indissolúvel de sentido
teleológico ou lógico.
Por um lado, a presente declaração de inconstitucionalidade não contende com a
aplicação do artigo 41.º, n.º 1, aos restantes destinatários da norma (os
serviços da administração directa e indirecta do Estado e da administração
autárquica, com excepção das entidades públicas empresariais).
Por outro lado, não suscita problemas a aplicação do restante regime da Lei n.º
53/2006 às próprias administrações regionais. O preceito que padece do vício de
inconstitucionalidade tem autonomia relativamente às restantes normas da Lei n.º
53/2006, em termos tais que a invalidação daquele não prejudica a normal
aplicação destas últimas.
Com efeito, a norma constante do artigo 41.º, n.º 1, é uma disposição final
(inserida no Capítulo IV – Disposições finais e transitórias), que completa o
regime definido no artigo 34.º, obrigando a administração a realizar um
procedimento prévio de recrutamento, dando prioridade ao pessoal em situação de
mobilidade especial. Com a presente declaração de inconstitucionalidade,
continua inclusivamente a aplicar-se às administrações regionais o procedimento
de selecção de pessoal em situação de mobilidade especial, regulado no artigo
34.º – até porque esta é uma das normas da Lei n.º 53/2006 que se lhes aplica
directamente (nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 3), não tendo sido
abrangida pelo presente pedido nem relativamente a ela sido contestada a
verificação da audição dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas.
Simplesmente, quando as administrações regionais pretendam recrutar pessoal por
tempo indeterminado, que não se encontre integrado no quadro e na carreira para
onde se opera o recrutamento, não estão obrigadas a recorrer previamente àquele
procedimento de selecção.
Quanto à segunda questão acima enunciada, entende-se ser necessário garantir a
estabilidade das relações de trabalho que, entretanto, se poderão ter
constituído, em consequência de a administração regional ter utilizado o
procedimento prévio de recrutamento previsto na norma ora declarada
inconstitucional. É preciso ter em conta que, no âmbito dos provimentos
resultantes do recurso àquele procedimento prévio, a norma em apreço tem uma
importância fulcral.
O Tribunal entende, assim, que, salvo para os casos em que os provimentos
resultantes do recurso àquele procedimento se encontrem pendentes de impugnação
judicial ou ainda dela sejam susceptíveis, a salvaguarda da estabilidade dessas
relações constitui uma exigência de segurança jurídica, justificando a limitação
dos efeitos da inconstitucionalidade, de forma a que estes se produzam apenas a
partir da publicação do presente acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 282.º,
n.º 4, da Constituição.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) declarar a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, por violação do artigo 229º, nº 2, da Constituição, da norma
constante do artigo 41.º, n.º 1, da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro – que
estabelece o regime comum de mobilidade entre serviços dos funcionários e
agentes da Administração Pública, visando o seu aproveitamento racional –, na
parte em que se refere à administração regional;
b) determinar, nos termos do artigo 282.º, n.º
4, da Constituição, por razões de segurança jurídica, que a declaração de
inconstitucionalidade a que se refere a alínea a) só produza efeitos a partir da
data da publicação do presente acórdão no jornal oficial, exceptuando, porém, os
casos que se encontrem pendentes de impugnação judicial ou ainda dela sejam
susceptíveis.
Lisboa, 7 de Novembro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos