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Processo n.º 891/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por acórdão de 22 de Fevereiro de 2007 (a fls. 1180 e seguintes), o Supremo
Tribunal de Justiça negou provimento a um recurso de revista interposto por A.
de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, revogando a sentença
recorrida, a condenara a pagar aos autores, B., S.A. e outros, a quantia de
374.098 euros e 42 cêntimos, acrescida de juros moratórios, e julgara
improcedente a reconvenção por si deduzida.
A. arguiu, a fls. 1235 e seguintes, a nulidade deste acórdão, por omissão de
pronúncia, omissão de fundamentação de direito e contradição entre os
fundamentos e a decisão, tendo sustentado, entre o mais que agora não releva,
que “arguiu-se a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 812º do Código Civil,
quando interpretado no sentido de a redução da cláusula penal não poder ser
efectuada por iniciativa do julgador, ainda que critérios de justiça e equidade
apontem para o seu manifesto excesso e desproporção desmesurados entre o dano
causado e o montante indemnizatório clausulado, por violação do n.º 4 do artigo
20º da Constituição (direito a um processo equitativo e princípios da justiça e
proporcionalidade)” (n.º 50) e, bem assim, que “o Acórdão em apreciação sufraga
com fundamento no n.º 2 do artigo 811º do Código Civil as possibilidades de
acumulação da cláusula penal e montante sinalizado, independentemente da
existência de danos, pelo que se argui a inconstitucionalidade do n.º 2 do
artigo 811º do Código Civil, quando interpretado no sentido de permitir a
cumulação da cláusula penal com o montante sinalizado, independentemente da
existência e apuramento de danos, por violação do direito a um processo
equitativo e dos princípios da justiça e proporcionalidade (artigo 20º, n.º 4,
da Constituição)” (n.º 54).
As nulidades arguidas foram desatendidas, por acórdão de fls. 1265 e seguintes.
A. interpôs então, a fls. 1270 e seguinte, recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, pretendendo a apreciação da “inconstitucionalidade do n.° 1 do
artigo 812° do Código Civil, quando interpretado no sentido de a redução de
cláusula penal não poder ser efectuada por iniciativa do julgador, ainda que
critérios de justiça e equidade apontem para o seu manifesto excesso e
desproporção desmesurados entre o dano causado e o montante indemnizatório
clausulado, por violação do n.° 4 do artigo 20° da CRP (direito a um processo
equitativo e princípios da justiça e proporcionalidade)”, e, bem assim, da
inconstitucionalidade do n.° 2 do artigo 811º do Código Civil, “quando
interpretado no sentido de permitir a cumulação da cláusula penal com o montante
sinalizado, independentemente da existência e apuramento de danos, também por
violação do direito a um processo equitativo e dos princípios da justiça e
proporcionalidade (artigo 20°, n° 4 da CRP)”; mais informa a recorrente que
“suscitou a questão da inconstitucionalidade no seu requerimento de arguição de
nulidades (artigos 50º e 54º)”.
O recurso de constitucionalidade não foi admitido, por despacho de fls. 1285 e
v.º, com fundamento na não suscitação pela recorrente, durante o processo, de
qualquer questão de inconstitucionalidade.
Deste despacho reclamou A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo
77º da Lei do Tribunal Constitucional, com os fundamentos seguintes (cfr. fls.
1295 e seguintes):
“01. Respeitam estes autos a acção em que a Recorrente, então Ré, obteve ganho
de causa na lª instância e decaiu na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça.
02. A Recorrente A., tempestivamente, interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido nos autos à
margem referenciados.
03. O que fez ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei n.° 28/82, na
sua actual redacção, peticionando a apreciação da constitucionalidade das normas
dos artigos 811º e 812° do Código Civil, por violação do direito a um processo
equitativo e dos princípios da Justiça e proporcionalidade.
04. Para tanto, como referiu no requerimento de interposição, indicou ter
suscitado a questão da inconstitucionalidade no requerimento de arguição de
nulidades, nos artigos 50º e 54° desta peça processual - cfr. requerimento de
interposição.
05. Mais referiu ter arguido a inconstitucionalidade do n.° 1 do artigo 812° do
Código Civil, quando interpretado no sentido de a redução da cláusula penal não
poder ser efectuada por iniciativa de julgador, ainda que critérios de justiça e
equidade apontem para o seu manifesto excesso e desproporção desmesurados entre
o dano causado e o montante indemnizatório clausulado, por violação do n.° 4 do
artigo 20º da Constituição (direito a um processo equitativo e princípios de
justiça e proporcionalidade) — cfr. requerimento de interposição.
06. E referiu ainda ter alegado que o n.° 2 do artigo 811° do Código Civil é
inconstitucional quando interpretado no sentido de permitir a redução da
cláusula penal com o montante sinalizado, independentemente da existência e
apuramento de danos, também por violação do direito a um processo equitativo e
dos princípios da justiça e proporcionalidade (artigo 20º, n° 4, da
Constituição) — conforme requerimento de interposição.
07. Sobre o requerimento de interposição, veio o Senhor Conselheiro Relator a
decidir que: “Ora, no decurso normal do processo o Requerente não suscitou
qualquer questão da inconstitucionalidade concretamente no requerimento de
arguição de nulidades.
E só agora no requerimento de interposição de recurso é que alude à
inconstitucionalidade de determinadas normas, o que nunca fizera antes. Falta,
portanto, o requisito em causa
Nestes termos e de acordo com o preceituado no artigo 76°, n.ºs 1 e 2, da Lei
n.° 28/82, não se admite o recurso interposto com o requerimento de fls. 1270 e
1271. Custas do incidente pela recorrente, com 20 unidades de conta de taxa de
justiça’’.
08. Com a devida vénia, quanto à apreciação deste requisito, ele é de aferição
objectiva: ou a Recorrente suscitou a questão nos artigos 50º e 54° do
requerimento de arguição de nulidades, como diz ter feito (como concretizou e
identificou no requerimento de interposição de recurso) ou não.
09. O Senhor Conselheiro Relator afirma que a Recorrente só no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é que alude à questionada
inconstitucionalidade, “o que nunca fizera antes’’.
10. Atentando no requerimento de arguição de nulidades, apresentado nos autos ao
abrigo do artigo 668° do CPC — anterior portanto ao requerimento de interposição
do recurso — lê-se, de artigos 48° a 50º e 54°:
“48. A fls. 12 da decisão em apreciação, sufraga este Alto Tribunal o
entendimento de que a intervenção judicial pressupõe uma desproporção
flagrantemente desmesurada, entre o dano causado e o montante indemnizatório
clausulado (vem que refiram se é o caso ou não), mas que para que possa ter
lugar é condição primeira que a redução seja pedida pelo devedor.
49. No caso, a Ré pediu-a [Conclusão MM)].
50. Todavia, arguiu-se a inconstitucionalidade do n° 1 do artigo 812° do CC,
quando interpretado no sentido de a redução da cláusula penal não poder ser
efectuada por iniciativa do julgador, ainda que critérios de justiça e equidade
apontem para o seu manifesto excesso e desproporção desmesurados entre o dano
causado - e o montante indemnizatório clausulado, por violação do n° 4 do artigo
20° da CRP (direito a um processo equitativo e princípios da justiça e
proporcionalidade).
54. Ora, o Acórdão em apreciação sufraga com fundamento no n°2 do artigo 811º do
CC as possibilidades de acumulação da cláusula penal e montante sinalizado,
independentemente da existência de danos, pelo que se argui
inconstitucionalidade do n° 2 do artigo 811º do CC, quando interpretado no
sentido de permitir a cumulação da cláusula penal, com o montante sinalizado,
independentemente da existência e apuramento de danos, por violação do direito a
um processo equitativo e dos princípios da Justiça e proporcionalidade (artigo
20°, n°4 da CRP.”
11. Não pode, por isso, afirmar-se que a Recorrente só suscitou a questão da
inconstitucionalidade “no requerimento de interposição de recurso, o que nunca
fizera antes”.
12. Não só a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade na
reclamação em que arguiu as nulidades, como se deixa provado, como o fez no
momento processual adequado, isto é, quando a questão se colocou, observando,
assim, o disposto no n.° 2 do artigo 72° da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional.
13. E como vem sufragando a jurisprudência desse Tribunal Constitucional, nos
termos do disposto no n.° 2 do artigo 72° da Lei n.° 28/82, invocar
oportunamente a inconstitucionalidade, significa suscitá-la de forma a que o
tribunal recorrido dela esteja obrigado a conhecer.
14. Recaiu Acórdão sobre o requerimento de arguição de nulidades.
15. Assim, não se verificando a omissão de suscitação de inconstitucionalidade,
encontram-se reunidos os requisitos de que depende a admissão do recurso, nos
termos e para os efeitos do disposto nos artigos 77º e 78-A da Lei de
Organização e Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional”.
Notificados desta reclamação, B., S.A. e outros, ora recorridos, sustentaram a
inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade, em síntese pelos seguintes
fundamentos (cfr. fls. 1304 e 1270):
“[…]
5-A Recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade do n.° 1 do
artigo 812° e n.° 2 do artigo 811º, ambos do Código Civil, em peça processual
tal como exige o artigo 75º-A da Lei 28/82, mas sim em requerimento interposto
já após ter sido proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça acórdão que, a
título definitivo, resolveu a questão em litígio.
6- No decurso normal do processo não foi suscitada pela Recorrente qualquer
questão de inconstitucionalidade.
7- Mas sim em requerimento no qual deduziu uma reclamação manifestamente
infundada e que mais não pretendia do que atrasar a aplicação da justiça.
8- Pelo exposto não deve ser admitido o recurso para o Tribunal Constitucional”.
O despacho reclamado foi mantido, por despacho de fls. 1307.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação, pelos
seguintes fundamentos (fls. 1308 v.º e seguinte):
“[…] a ora reclamante não suscitou, durante o processo – isto é, antes da
prolação do acórdão que julgou a revista – as questões de inconstitucionalidade
normativa que só ulteriormente tratou de delinear (e sendo evidente que a sua
colocação no âmbito de um requerimento de arguição de nulidades se configurava
como intempestiva); e sendo evidente que o decidido pelo STJ não pode
seguramente perspectivar-se como “decisão surpresa” que, pelo seu conteúdo
“insólito” ou “imprevisível”, dispensasse o recorrente do cumprimento do
referido ónus.
Deste modo, a admissibilidade do recurso interposto com base na alínea b) do n.º
1 do artº 70º da Lei n.º 28/82, implicava que – em conexão com a linha
argumentativa expendida nas conclusões enumeradas sob os n.ºs 13 e 15 – a
recorrente tivesse suscitado a inconstitucionalidade da interpretação dos
preceitos legais que se não conformasse com o seu entendimento”.
2. Fundamentação
Não tendo a reclamante identificado, no requerimento de interposição de recurso,
a decisão recorrida, deve entender-se que o seu objecto é constituído pelo
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2007, até porque o
acórdão que ulteriormente incidíu sobre arguição de nulidades, não fez qualquer
aplicação como ratio decidendi das normas questionadas.
O recurso de constitucionalidade que a ora reclamante pretendeu interpor
pressupõe nomeadamente o cumprimento do ónus de suscitação da questão de
inconstitucionalidade durante o processo, a que alude o artigo 70º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Nos termos do artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei, tal ónus só se considera cumprido
quando a questão de inconstitucionalidade é suscitada de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer.
Significa esta exigência que a questão de inconstitucionalidade (que depois se
vem a submeter à apreciação do Tribunal Constitucional) deve ser colocada ao
tribunal recorrido antes da prolação da decisão, pois que uma vez proferida essa
decisão se extingue o poder jurisdicional desse tribunal sobre a matéria da
causa, conforme dispõe o artigo 666º do Código de Processo Civil.
Assim sendo, o momento adequado para a suscitação da questão de
inconstitucionalidade não é o momento da arguição da nulidade da decisão: a
menos que tal questão de inconstitucionalidade não se refira à matéria da causa
mas ao próprio vício processual que originou a arguição da nulidade, ou que tal
questão de inconstitucionalidade surja no processo precisamente após a prolação
da decisão sobre a matéria da causa pelo tribunal recorrido (o que sucederá
quando esta decisão aplica, pela primeira vez no processo, a norma ou
interpretação normativa censurada pelo recorrente).
Ora, nem as questões de inconstitucionalidade que a reclamante pretende ver
apreciadas pelo Tribunal Constitucional se prendem com vícios de natureza
processual, que por sua natureza só pudessem ser apreciados na decisão da
arguição da nulidade (e que, portanto, só fizesse sentido invocar nessa
arguição), nem tais questões de inconstitucionalidade foram despoletadas no
processo só após a prolação da decisão sobre a matéria da causa pelo tribunal
recorrido.
Quanto a este último aspecto, verifica-se que, já nas alegações do recurso de
revista (a fls. 1060 e seguintes), a ora reclamante sustentara a possibilidade
de redução da cláusula penal pelo tribunal, ao abrigo do artigo 812º, n.º 1, do
Código Civil (cfr. conclusões HH a NN), bem como a impossibilidade de condenação
no pagamento da cláusula penal e do sinal e princípio de pagamento, tal como o
fizera o acórdão então recorrido (cfr. conclusões OO a QQ), o que bem demonstra
a previsibilidade da aplicação, pelo tribunal agora recorrido, das
interpretações normativas que constituem o objecto do presente recurso de
constitucionalidade (e, portanto, a exigência do cumprimento, pela recorrente,
do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade a que aludem os
artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Não tendo a reclamante suscitado as questões de inconstitucionalidade que
pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional antes de ter sido proferido
o acórdão pelo tribunal recorrido que decidiu a matéria da causa (ou seja, o
acórdão de 22 de Fevereiro de 2007), podendo fazê-lo, constata-se que não está
preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, não sendo
consequentemente possível conhecer do respectivo objecto.
A presente reclamação é, assim, infundada, devendo ser indeferida.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação,
mantendo-se o despacho reclamado, que não admitiu o recurso de
constitucionalidade.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 7 de Novembro de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão