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Processo n.º 491/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Por sentença de 30 de Setembro de 2006, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, desaplicou a norma do artigo 80º, n.º 2, do Estatuto da Aposentação
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro), quando interpretada no
sentido de que o tempo de serviço contado para efeitos da atribuição de uma
pensão de aposentação, a que entretanto o interessado renunciou, não pode já ser
considerado para efeito do cálculo de uma nova pensão, dando assim provimento,
por vício de violação de lei, ao recurso contencioso interposto do acto
administrativo da Direcção de Serviços da Caixa Geral de Aposentações que não
havia atendido ao referido tempo de serviço.
Dessa decisão, o Ministério Público veio interpôr recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, formulando, nas suas alegações, as seguintes
conclusões:
1ª - A norma constante do n° 2 do artigo 80º do Estatuto da Aposentação,
aprovado pelo Decreto-Lei n° 498/72, ao considerar irremediavelmente precludida
a relevância de todo o tempo de serviço prestado pelo interessado, anteriormente
à primeira aposentação — a que renunciou para continuar a exercer as funções com
base nas quais obteve a segunda pensão de aposentação — colide com o princípio
afirmado pelo n° 4 do artigo 63º da Constituição da República Portuguesa.
2ª - Na verdade — e embora o legislador infraconstitucional goze de alguma
margem de discricionariedade legislativa no delinear das fórmulas técnicas
destinadas a compatibilizar as pensões de aposentação “acumuladas” pelo
interessado, — não pode afectar o “núcleo essencial” do direito, análogo aos
direitos fundamentais, outorgado pelo citado artigo 63°, n°4.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos dos Exmos Juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Através de despacho datado de 19 de Agosto de 2002, a Direcção de Serviços da
Caixa Geral de Aposentações, baseando-se no estatuído no artigo 80°, n.º 2, do
Estatuto da Aposentação (aprovado pelo Decreto-Lei n° 498/72, de 9 de Dezembro),
não levou em conta, para efeitos do cálculo da pensão de aposentação, o tempo
de serviço prestado pelo requerente, nos Serviços Geográficos e Cadastrais de
Moçambique, entre 21 de Junho de 1958 e 31 de Dezembro de 1966.
Esse tempo de serviço fora, no entanto, tido em atenção para o cálculo de uma
primeira pensão de aposentação que o interessado requerera ao abrigo do disposto
no Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de Novembro, e que fora concedida em 1986, mas
a que renunciara, por requerimento apresentado em 19 de Abril de 1988, por
pretender continuar a desempenhar a sua actividade profissional.
Pela decisão ora recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa,
anulou o referido acto administrativo, por vício de violação de lei, com
fundamento em preterição do disposto n° 4 do artigo 63° da Constituição da
República, desaplicando, para esse efeito, a citada norma do n° 2 do artigo 80°
do Estatuto da Aposentação, quando interpretada no sentido de que o tempo de
serviço contado para uma pensão (que já não produz efeitos, por renúncia do
interessado), não pode ser levado em consideração para o cálculo da nova pensão.
É desta decisão que vem interposto recurso de constitucionalidade, por parte do
Ministério Público, de carácter obrigatório, com invocação do disposto no artigo
70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
No recurso sustenta-se, em todo o caso, a inconstitucionalidade da referida
disposição do n° 2 do artigo 80° do Estatuto da Aposentação, por colidir com o
princípio afirmado n° 4 do artigo 63° da Constituição da República, aderindo-se
assim inteiramente ao juízo de inconstitucionalidade que havia já sido
formulado, nesse âmbito, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 411/99, de
29 de Junho de 1999.
Foi também com apoio nesse aresto, para cuja fundamentação remeteu, que a
decisão recorrida concluiu pela desaplicação ao caso concreto do mencionado
preceito do Estatuto da Aposentação.
É, pois, esta a questão de constitucionalidade que cabe dilucidar.
O artigo 80º, n.º 2, do Estatuto da Aposentação, inserindo-se nas disposições do
Capítulo V atinentes à situação de aposentação, e sob a epígrafe Nova
aposentação, na sua redacção primitiva, dispunha:
1 - Se o aposentado, quer pelas províncias ultramarinas quer pela Caixa, tiver
direito de inscrição nesta última pelo novo cargo que lhe seja permitido exercer
poderá optar pela aposentação correspondente a esse cargo e ao tempo de serviço
que nele prestar, salvo nos casos em que a lei especial permita a acumulação das
pensões.
2 - Não será de considerar para cômputo da nova pensão o tempo de serviço
anterior à primeira aposentação.
A Lei n.º 30-C/92, de 28 de Dezembro, aditou, entretanto, os n.ºs 3 e 4, que
vieram consignar o seguinte:
3 - Nos casos em que o aposentado opte por manter a primeira aposentação haverá
lugar à divisão da pensão respectiva, a qual só pode ser requerida depois da
cessação de funções a título definitivo e é devida a partir do dia 1 do mês
imediato ao da apresentação do pedido.
4 - O montante da pensão a que se refere o número anterior é igual à pensão
auferida à data do requerimento multiplicada pelo factor resultante da divisão
de todo o tempo de serviço prestado, até ao limite máximo de 36 anos, pelo tempo
de serviço contado no cálculo da pensão inicial.
Na redacção originária, o n.º 1 confere a quem já se encontre aposentado a
possibilidade de optar por uma pensão de aposentação a que tenha direito pelo
exercício de um outro cargo, excluindo, no entanto – como determina o
subsequente n.º 2 -, que o tempo de serviço contado para a anterior pensão seja
considerado no cálculo da pensão devida pelo novo cargo.
Interpretadas conjugadamente, essas disposições admitem, assim, um mero direito
de opção entre pensões que sejam devidas por cargos diversos, consagrando um
princípio de inacumulabilidade de pensões.
Foi esse, de resto, o entendimento que a doutrina coeva lhes conferiu, conforme
resulta da seguinte anotação de Simões de Oliveira (Estatuto da Aposentação
Anotado e Comentado, Coimbra, 1973, pág. 184):
O presente artigo prevê o caso de ao aposentado (incluindo beneficiário da
pensão de aposentação pelo ultramar) ser permitido exercer um cargo que dê o
direito de subscritor da Caixa, nos termos dos artºs. 1º e 2.°, desde que ainda
esteja em idade de inscrição ao abrigo do art. 4.° (v. o caso do art. 22°, nº
2). Pagará então quota para a Caixa sobre a remuneração total que, segundo a
lei, compete ao novo cargo.
Se esta inscrição se mantiver de modo a perfazer-se o mínimo de 15 anos de
serviço ou se ocorrer acidente de serviço ou facto equiparado que permita a
aposentação antes desse limite, poderá o interessado, optar por uma nova
aposentação pelo novo cargo, renunciando assim à situação de aposentação em que
anteriormente se encontrava e à respectiva pensão. Este regime relativo aos
aposentados é inteiramente aplicável aos beneficiários de pensão de invalidez,
nos termos do art. 131.°.
Para o cômputo da nova pensão, é inteiramente irrelevante todo e qualquer tempo
de serviço anterior à primeira aposentação, haja efectivamente influído ou não
na pensão fixada e tenha constado ou não do respectivo processo.
Deste modo se perfilham dois princípios essenciais, um substantivo e outro
processual: o da inacumulabilidade de pensões de aposentação sucessivas, ou do
serviço relevante para cada uma, e o da extensão e eficácia da resolução final
que, ao fixar a pensão de aposentação, decidiu definitivamente qual o tempo que
influía na aposentação e, expressa ou implicitamente, qual o que não influía,
abrangendo-se, portanto, no caso resolvido todo o tempo de serviço anterior, e
de uma vez para sempre.
No entanto, o aditamento, pela Lei n.º 30‑C/92, dos n.ºs 3 e 4, veio alterar
substancialmente a situação, determinando que, quando o aposentado optasse por
manter a primeira aposentação, havia lugar à revisão dessa pensão, caso em que
já será possível considerar no cálculo da pensão revista todo o tempo de serviço
prestado, incluindo o que originou a pensão inicial.
Temos, por conseguinte, face à redacção actualmente vigente, que o interessado
poderá optar pela pensão de aposentação correspondente ao primeiro ciclo de vida
laboral, isto é, pela primeira aposentação, havendo então lugar à revisão da
pensão [embora o texto do n.º 3 mencione divisão da pensão, do contexto e da
nova epígrafe resulta que o que está em causa é a revisão da pensão] quando
tenha adquirido direito à aposentação por um outro cargo, caso em que releva,
para esse efeito, todo o tempo contributivo; ou poderá optar pela pensão de
aposentação correspondente ao segundo ciclo de vida laboral, isto é, pela
segunda aposentação, que implica que, no cômputo da nova pensão, não seja
considerado o tempo de serviço anterior à primeira aposentação, nos termos do
n.º 2 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação.
Em suma, enquanto que, na redacção originária do preceito, cingido aos seus n.ºs
1 e 2, se dispunha, de acordo com o princípio da impossibilidade de cumulação de
pensões, que, findo o novo período de exercício de funções pelo aposentado, este
tinha de optar entre uma das duas pensões (pela correspondente ao primeiro
período de actividade, sem qualquer revisão que atendesse ao segundo período de
actividade; ou pela correspondente ao segundo período de actividade, sem que
para o cálculo desta fosse de considerar o tempo de serviço anterior à primeira
aposentação), já por força do aditamento dos n.ºs 3 e 4, o aposentado, podendo
continuar a optar pela segunda aposentação (em conformidade com o regime
estatuído naqueles n.ºs 1 e 2), podia beneficiar, todavia, de uma revisão da
pensão (com contagem do tempo de serviço correspondente aos dois períodos de
actividade), quando optasse por manter a primeira pensão.
A questão que se coloca é a de saber se o dispositivo do n.º 2 do artigo 80º do
Estatuto da Aposentação, no ponto em que, perante a opção do interessado pela
segunda aposentação, impede a contagem do tempo de serviço referente ao primeiro
ciclo de actividade, se mostra conforme o estabalecido no actual artigo 63º, n.º
4, da Lei Fundamental.
Uma resposta afirmativa foi formulada no já citado acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 411/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 10 de
Março de 2000), que confirmou o entendimento nesse sentido sufragado pelo
acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21 de Outubro de 1998 (Processo
n.º 41938), sendo certo que nesse caso se apreciava uma questão concreta que
apresentava com a dos presentes autos uma evidente similitude (o interessado, já
na situação de aposentado, foi reinscrito na Caixa Geral de Aposentações pelo
exercício de um outro cargo, e depois de ter sido fixada a pensão de aposentação
com base no tempo de serviço prestado após a primeira aposentação, os serviços
declararam sem efeito essa outra pensão).
Dispõe, na verdade, o n° 4 do artigo 63° da CRP que «[T]odo o tempo de trabalho
contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e de
invalidez independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado».
Essa norma foi introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/89 (correspondendo ao
n.º 5 que foi aditado por essa Lei, com a única diferença de ter sido
substituído o termo contribuirá, que constava da versão originária, por
contribui), e, como foi então entendido pela doutrina, pretendeu-se através
dela «salientar o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para
efeitos de pensões de velhice e invalidez, acumulando-se os tempos de trabalho
prestados em várias actividades e respectivos descontos para diversos organismos
da segurança social» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993, pág. 340).
E como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, é ainda hoje essa a intenção que se
encontra claramente manifestada no actual n° 4 do artigo 63° que resulta da
Revisão Constitucional de 1997 (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,
Coimbra, 2005, pág. 638).
Foi também esse o propósito dos promotores da alteração do texto constitucional,
como se depreende de diversas intervenções que tiveram lugar durante a discussão
parlamentar, em que se torna patente ter havido um interesse em assegurar, para
efeitos de aposentação, a articulação e intercomunicação entre os tempos de
serviços e os períodos contributivos que respeitem a diferentes sistemas de
segurança social (Diário da Assembleia da República, II Série, número 23-RC, de
7 de Julho de 1988, pág. 654, e número 81-RC, de 9 de Março de 1989, pág. 2388).
Porém - como se anotou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/2006 -,
«apesar desta motivação imediata do legislador constituinte, que corresponderá à
situação que então se apresentava como de verificação mais frequente ou de
efeitos práticos mais visíveis, a norma constitucional tem um alcance mais
geral, estabelecendo o imperativo de que todo o tempo de trabalho releve, nos
termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez,
independentemente de o problema de contagem emergir de o trabalhador ter estado
integrado em diversos sistemas ou subsistemas de segurança social ou de outra
causa, isto é, coloque-se ou não um problema de intercomunicabilidade de
sistemas ou regimes de segurança social pública». E é essa também a conclusão a
que chega o acórdão n.º 411/99, quando considera que a introdução do novo
preceito constitucional foi ditada pela ideia de “promover um aproveitamento
total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, independentemente do
sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e desde que tenha efectuado
os descontos legalmente previstos”.
Por outro lado, como explicita este mesmo aresto, «quando o texto
constitucional remete para os termos da lei, fá-lo para efeitos de concretização
do direito, não a título de cláusula habilitativa de restrições. A utilização da
expressão todo o tempo de trabalho, em conjugação com o segmento
independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado, impõe,
nesta matéria, a obrigação para o legislador ordinário, de prever a contagem
integral do tempo de serviço prestado pelo trabalhador sem restrições que
afectem o núcleo essencial do direito».
Ou seja, não é de entender que exista, por efeito da remissão para «os termos da
lei», uma total liberdade de conformação do legislador quanto ao cômputo do
tempo de serviço prestado pelo trabalhador para efeitos de aposentação
Na verdade, o direito à contagem do tempo de serviço para efeitos de
aposentação, como prevê o artigo 63º, n.º 4, da CRP, surge como uma
concretização do direito à segurança social, que, por sua vez, se inscreve na
constituição social como um direito social de natureza positiva cuja realização
exige o fornecimento de prestações por parte do Estado, impondo-lhe verdadeiras
obrigações de fazer e de prestar (n.º 2).
Acresce que - tal como se afirmou no citado acórdão n.º 411/99 – que a contagem
dos tempos de serviço (como um direito social inserido na garantia institucional
de um sistema de segurança social) se revista de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, aplicando-se-lhes o regime destes — constante do artigo
18° da Constituição da República Portuguesa - por força da extensão operada pelo
artigo 17º da Constituição.
Foram estes aspectos que, por sua vez, foram subinhados pelo acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 554/03, que analisou o parâmetro constitucional do direito à
segurança social em face de uma outra problemática (o estabelecimento de um
limite temporal, por via do Decreto-Lei n.º 210/90, de 27 de Junho, para ser
requerida a pensão de aposentação prevista no Decreto-Lei n.º 362/78), mas em
termos que mantêm plena validade no presente caso.
Aí se escreveu:
Não obstante se estar em presença de um direito fundamental social, em sentido
estrito, «isto é direito[s] cujo conteúdo principal típico consiste em
prestações estaduais sujeitas a conformação político-legislativa» (cfr. Vieira
de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 2.ª edição, 2001,
págs. 371), o certo é que, como adverte este autor, «apesar de estarem sujeitos
a um regime constitucional diferente, mormente quanto à determinação do seu
conteúdo (cfr. ob. cit., págs. 377 e segs.), eles não constituem uma categoria
de natureza naturalmente distinta dos direitos, liberdades e garantias».
Sem necessidade de se ter de tomar posição quanto à questão de saber se a esse
direito à segurança social não deverá ser reconhecido um conteúdo mínimo à face
da Constituição, «pela sua referência imediata à ideia da dignidade da pessoa
humana», não pode deixar de olhar-se para o direito à pensão de aposentação,
seja nos termos previstos na lei geral (Estatuto da Aposentação), seja nos
termos excepcionais, como são os que estão definidos no referido Decreto-Lei n.º
362/78, como correspondendo a uma realização das imposições constitucionais
estabelecidas no âmbito de tal direito social, até em termos de concretização da
«própria estrutura fornecedora das prestações que o Estado deve criar» apontada
pela Lei Fundamental.
Nesta perspectiva, estamos perante «direitos subjectivos [tornados] certos» por
via do poder de conformação conferido ao legislador democrático para estabelecer
autonomamente a forma, a medida e o grau em que entendeu concretizar as
imposições constitucionais respectivas (aqui com inclusão de uma certa estrutura
da prestação já definida pela Lei Fundamental) e não perante direitos cujo
conteúdo esteja determinado no seu essencial pela Constituição, como acontece
com o regime típico dos direitos, liberdades e garantias.
Mas, não obstante essa sua natureza, não se segue daí que o regime do direito à
segurança social esteja à mercê do legislador infraconstitucional, visto «não
ser total» a sua liberdade de conformação, sendo que, no caso do direito à
aposentação, essa liberdade se acha mais constrangida, dada a injunção
decorrente do artigo 63º, n.ºs 4 e 5, da CRP quanto à estrutura das prestações
(a necessária para acudir às referidas situações de carência) e até quanto ao
procedimento da sua determinação (cômputo do tempo de trabalho).
Por isso, como escreve Vieira de Andrade (ob. cit., págs. 386), «os preceitos
constitucionais relativos aos direitos sociais também servem de padrão positivo
de controle da constitucionalidade das leis», sendo «uma das hipóteses [de
violação] de mais fácil verificação a da inconstitucionalidade resultante da
violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio», a qual
poderá acontecer «quando uma lei organize ou regule prestações em cumprimento
das imposições constitucionais ligadas ou decorrentes da consagração de direitos
sociais e, ao fazê-lo, restrinja injustificadamente o âmbito dos beneficiários,
em manifesta contradição com os objectivos da norma constitucional, por força do
hábito ou de uma intenção discriminatória».
Sendo assim, em rigor, a remissão para a lei, como consta do n.º 4 do artigo 63º
da CRP, não pode pôr em causa o princípio do aproveitamento integral dos
períodos contributivos do trabalhador, e apenas poderá significar que a
Constituição deixa em aberto a concretização das soluções que permitem – por
exemplo em relação a um funcionário público, que em momento ulterior, ingressa
numa empresa privada – fazer um cálculo conjunto dos vários tempos prestados
pelo beneficiário ao serviço de diferentes entidades, em diferentes períodos ao
longo da sua vida (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., págs. 638-639).
É essa ordem de preocupações que está presente no regime jurídico da pensão
unificada, que começou por ser instituído pelo Decreto-Lei n.º 143/88, de 22 de
Abril, e cujo âmbito de aplicação tem sido sucessivamente ampliado pelos
diplomas que se seguiram (Decreto-Lei n.º 159/92, de 31 de Julho, e Decreto-Lei
n.º 361/98, de 18 de Novembro, actualmente em vigor), e cujo objectivo, no plano
material, foi o de permitir justamente, em relação a trabalhadores que se
encontrem abrangidos por mais de um sistema de protecção social, a totalização
dos períodos contributivos existentes no regime de segurança social e no regime
da função pública, para efeito da atribuição de uma única pensão.
Bem se compreende, neste contexto, que a exclusão, para efeito do cálculo da
pensão de aposentação, de uma parte do tempo de trabalho prestado – tal como
prevê a falada norma do artigo 80º, n.º 2, do Estatuto da Aposentação – não se
mostre conforme com o disposto no artigo 63º, n.º 4, da Lei Fundamental, que,
precisamente, impõe a obrigatoriedade de contagem de todo o tempo de serviço
juridicamente relevante, e, portanto, de todo o tempo de serviço sobre que
tenham recaído os descontos para a aposentação.
Certo é que a lei ordinária não está impedida de estabelecer determinados
requisitos de que dependa o reconhecimento do direito à pensão – como, também, o
Decreto-Lei n.º 362/78, ao estabelecer um regime especial de aposentação para os
funcionários e agentes da antiga administração ultramarina, não deixou de exigir
um tempo mínimo de serviço (cinco anos) e a realização dos correspondentes
descontos como condição necessária para requerem a atribuição da pensão. Outros
requisitos poderão ser fixados pelo legislador no que concerne aos termos em que
deverá operar, para efeitos de aposentação, a contagem das diversas parcelas de
tempo de serviço que respeitem a diferentes regimes de segurança social ou a
diferentes actividades profissionais. Mas contraria o princípio consagrado no
texto constitucional a permissão do exercício de um direito de opção entre uma
ou outra pensão, por referência a cada um dos cargos que tenham sido exercidos
pelo trabalhador, quando simultaneamente se impede, na prática, em qualquer dos
termos da opção, que o tempo de serviço num desses cargos possa ser considerado
para efeito do cálculo da pensão pela qual se optou.
Note-se que, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 366/2006, em que se
suscitava, em processo de fiscalização abstracta sucessiva, a
inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do
Estatuto da Aposentação, «na medida em que não permitem a contagem da
integralidade do tempo de serviço prestado, na situação em que o aposentado opta
pela segunda aposentação», e em que se alegava justamente a violação do
princípio do aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador,
consagrado no artigo 63.º, n.º 4, da Constituição da República, concluiu-se no
sentido da não inconstitucionalidade dessas disposições.
No entanto, como se aí se reconhece, esse aresto recaiu sobre uma realidade
distinta daquela sobre que se pronunciou o acórdão n.º 411/99 e que está em
causa, igualmente, no presente caso.
Com efeito, o acórdão n.º 366/06 analisa o regime decorrente dos n.ºs 1 e 2 do
artigo 80º do Estatuto da Aposentação, quando interpretado em conjugação com os
subsequentes n.ºs 3 e 4, que foram introduzidos pela Lei n.º 30-C/92.
Ponderou-se, nesse contexto, que o quadro normativo resultante dessa nova
redacção permite ao aposentado (que pretenda voltar a exercer funções) cumular
a pensão que auferia com o vencimento correspondente ao novo cargo ou optar, se
acaso entender que isso lhe é vantajoso, por uma pensão calculada apenas com
base no tempo de serviço prestado no segundo ciclo de vida laboral.
Ou seja, nesta óptica, o aposentado que regresse ao activo dispõe da seguinte
alternativa: opta por uma fórmula de cálculo de pensões que respeita o princípio
do aproveitamento integral do tempo de serviço e que incorpora, no cálculo da
pensão, o segundo ciclo da sua actividade laboral, o que sucede sempre que
prefira manter (e continuar a auferir) a pensão correspondente ao primeiro ciclo
de vida laboral; escolhe apenas a pensão correspondente ao exercício de
funções neste segundo ciclo de vida laboral, na qual já não é contabilizado o
tempo de serviço correspondente ao primeiro ciclo, no pressuposto de que essa é
para ele, nas circunstâncias do caso, uma situação mais vantajosa.
Perante este cenário, entendeu‑se, no referido acórdão, que o respeito pelo
princípio constitucional do aproveitamento integral do tempo de serviço não
impedia o legislador de estabelecer uma possibilidade que depende de uma escolha
do trabalhador e que lhe é mais favorável do que aqueloutra que, essa sim, se
refere (e dá pleno cumprimento) ao princípio consignado no n.º 4 do artigo 63.º
da CRP. Pois que – acrescenta-se - o que se pretendeu, com a consagração deste
princípio pela Lei Constitucional n.º 1/89, foi impedir que, nas situações
comuns, existissem parcelas da vida activa dos trabalhadores que, no final, não
fossem contabilizadas para efeitos de cálculo do montante da pensão, mas não
afastar a possibilidade de, em situações de todo em todo excepcionais, se
concedesse ao trabalhador a faculdade de escolher uma solução mais vantajosa,
ainda que com “perda” ou “inutilização” de anos de serviço.
Não é esse, no entanto, o caso dos autos (como também não o era a situação
versada no acórdão n.º 411/99), em que o Tribunal Constitucional, em processo de
fiscalização concreta da constitucionalidade, é chamado a pronunciar‑se sobre a
conformidade constitucional da interpretação, acolhida na decisão judicial
recorrida, da norma do artigo 80.º, n.º 2, do Estatuto da Aposentação, na
redacção anterior à Lei n.º 30‑C/92, interpretação essa que implica que a opção
pela pensão de aposentação que deva corresponder ao novo cargo determina
necessariamente a renúncia à primeira pensão, com a consequência de o tempo de
serviço anteriormente prestado (e que está na base daquela primeira pensão) não
poder entrar no cômputo da segunda pensão.
Esta outra situação – que decorria da primitiva versão do artigo 80º (que apenas
contemplava a opção entre a manutenção da pensão já existente e uma nova pensão
correspondente ao novo cargo, mas com perda do tempo de serviço anteriormente
prestado) – afronta nitidamente o princípio que deriva do artigo 63º, n.º 4, da
Constituição, já que, contrariamente ao que sucede em face das alterações
introduzidas pela Lei n.º 30-C/92, nesse caso, nenhum dos termos da alternativa
facultada ao interessado assegura a relevância integral do tempo de serviço
prestado.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam em julgar inconstitucional o n.º 2 do artigo 80º do
Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro,
na sua redacção originária, por violação do artigo 63º, n.º 4, da Constituição
da República e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas por não serem devidas
Lisboa, 25 de Setembro de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão