Imprimir acórdão
Processo n.º 670/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público no
Tribunal Judicial de Abrantes interpôs recurso para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra a sentença do respectivo 3.º Juízo, de 17 de Abril
de 2007, que – na impugnação deduzida por A. contra a decisão da Delegação de
Viação de Portalegre, de 12 de Janeiro de 2006, que lhe aplicou a sanção
acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, por ter praticado uma
contra‑ordenação (não cumprimento do sinal de paragem obrigatória em
entroncamento) classificada como “muito grave” (artigos 21.º, n.º 1, e 23.º,
alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 22‑A/98, de 1 de Outubro, e 136.º, 138.º
e 146.º, alínea n), do Código da Estrada) – “recus[ou] a aplicação dos artigos
130.º, n.º 1, alínea a), e 122.º, n.º 4, do Código da Estrada, por violação do
artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa” e, em
consequência, “julg[ou] não caducada a carta de condução do arguido”, embora
tenha confirmado, no mais (aplicação da inibição de conduzir pelo período de 30
dias), a decisão da autoridade administrativa.
A referida sentença assentou a recusa de
aplicação dos artigos 130.º, n.º 1, aliena a), e 122.º, n.º 4, do Código da
Estrada, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República
Portuguesa (CRP), e, em consequência, julgou não caducada a carta de condução
do arguido, confirmando no mais a decisão da autoridade administrativa, na
seguinte fundamentação jurídica:
“O arguido procedeu ao pagamento voluntário da coima, pelo que
aceitou a prática da infracção conforme descrito no auto de contra‑ordenação.
Portanto, este recurso apenas prossegue restrito à gravidade da infracção e à
sanção acessória aplicável (artigos 172.º, n.º 5, e 175.º, n.º 4, ambos do
Código da Estrada).
Nestes termos, não será abordada a questão do erro quanto aos
pressupostos de punição, uma vez que tal se prende com a própria prática do
facto, o qual foi expressamente aceite por via do pagamento voluntário da coima.
O arguido praticou a contra‑ordenação prevista nos artigos 21.º, n.º 1, e 23.º,
alínea a), do Decreto Regulamentar n.º 22‑A/98, de 1 de Outubro, e 146.º, alínea
n), do Código da Estrada, qualificada, pela lei, como muito grave. As
contra‑ordenações graves e muito graves são punidas com coima e com sanção
acessória (artigo 138.º, n.º 1, do Código da Estrada). Esta sanção acessória
consiste na inibição de conduzir (artigo 147.º, n.º 1, do Código da Estrada).
Dispõe o artigo 141.º do Código da Estrada que «pode ser suspensa a execução da
sanção acessória aplicada a contra‑ordenações graves no caso de se verificarem
os pressupostos de que a lei penal faz depender a suspensão da execução das
penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números
seguintes».
Da simples leitura deste normativo resulta que apenas as contra‑ordenações
graves são passíveis de ser suspensas na sua execução.
Ora, conforme vimos, o arguido praticou uma contra‑ordenação muito grave.
Deste modo, a lei impõe que o arguido seja punido com inibição de conduzir e que
não possa ver suspensa a execução desta sanção acessória.
A sanção de inibição de conduzir para as contra‑ordenações muito graves tem a
duração mínima de dois meses e a máxima de dois anos (artigo 147.º, n.º 2, do
Código Estrada).
Ao arguido foi aplicada esta sanção acessória pelo período de 30 dias. Portanto,
a autoridade administrativa aplicou a inibição de conduzir pelo mínimo
admissível, o qual já advém da redução para metade do limite mínimo da sanção,
por força da atenuação especial do artigo 140.º do Código da Estrada.
Assim, face à impossibilidade de redução da sanção ou do seu agravamento – este
em virtude da proibição do reformatio in pejus (artigo 72.º‑A do Decreto‑Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro) – não relevam os termos da prática da infracção.
Portanto, o arguido deve ser sancionado com a inibição de conduzir pelo período
de 30 dias.
Sucede que o arguido é titular de carta de condução desde 2 de Fevereiro de
2005 e cometeu a infracção ora em apreço no dia 2 de Setembro de 2005.
Dispõe o artigo 122.º, n.º 4, do Código da Estrada que «a carta de condução
emitida a favor de quem não se encontra já legalmente habilitado para conduzir
qualquer das categorias ou subcategorias de veículos nela previstos tem carácter
provisório e só se converte em definitiva se, durante os três primeiros anos do
seu período de validade, não foi instaurado ao respectivo titular procedimento
pela prática de crime ou contra‑ordenação a que corresponda proibição ou
inibição de conduzir».
Por sua vez, o artigo 130.º, n.º 1, do Código da Estrada estabelece o seguinte:
«o título de condução caduca quando: a) sendo provisório nos termos dos n.ºs 4
e 5 do artigo 122.º, o seu titular tenha sido condenado pela prática de um crime
rodoviário, de uma contra‑ordenação muito grave ou de duas contra-ordenações
graves (...)».
Assim sendo, o arguido é titular de uma carta de condução provisória que, por
força da prática da presente contra‑ordenação, teria necessariamente de caducar.
Com efeito, a infracção ao Código da Estrada levado a cabo pelo arguido ocorreu
dentro dos três anos seguintes à emissão da sua carta de condução – período em
que a mesma mantém um carácter provisório –, sendo qualificada pela lei como
muito grave. Logo, por imperativo legal, a carta de condução do arguido
caducaria.
Esta medida legal já foi objecto de apreciação por parte do Tribunal
Constitucional, o qual, à luz da anterior redacção do Código da Estrada,
decidiu o seguinte: «(...) A obtenção da carta ou licença de condução é, assim,
um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos
positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa
actividade para bens jurídicos essenciais.
Com efeito, a lei apenas prevê que o requisito da obtenção de licença definitiva
seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando‑se,
portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter
provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença
provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de
conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta.
Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas
apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas
condições de obtenção da licença de condução.
(...)
Deste modo, não se verifica a alegada violação do artigo 30.º, n.º 4, da
Constituição.» (Acórdão n.º 461/2000, de 25 de Outubro de 2000, Cons.ª Maria
Fernanda Palma).
Porém, não pode deixar de se afirmar que a prática de uma contra‑ordenação
muito grave é forçosamente sancionada com a inibição de conduzir (artigo 138.º
do Código da Estrada), sendo que a sua prática dentro dos três anos
imediatamente posteriores à concessão da carta de condução ao infractor acarreta
de um modo inelutável a caducidade deste título de condução, tanto mais que nem
sequer é possível a suspensão da execução da inibição de conduzir (artigo 141.º,
n.º 1, do Código da Estrada).
Por conseguinte, ainda que se encare a não prática de contra‑ordenações graves
ou muito graves durante o período dos três anos imediatamente posteriores à
obtenção de carta como um requisito negativo para obtenção desta, não deixa de
ser contrário ao artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa o
facto de uma pessoa habilitada a conduzir, ainda que provisoriamente, não mais o
possa fazer – sem voltar a obter novo título – como efeito necessário da
prática de uma daquelas contra‑ordenações no período referido.
Trata‑se, na verdade, de um efeito automático da prática das aludidas
contra‑ordenações no período em causa, não beneficiando o infractor de qualquer
análise, seja da autoridade administrativa seja do Tribunal, sobre a gravidade
do facto, em termos de ilicitude e culpa manifestada no mesmo, que permita
afastar a sua aplicação.
Assim, a caducidade da carta de condução nos termos definidos nos artigos 130.º,
n.º 1, alínea a), em conjugação com o artigo 122.º, n.º 4, ambos do Código da
Estrada, implica uma violação dos princípios da culpa e proporcionalidade das
sanções legais, pois afasta a possibilidade de uma ponderação, em concreto, dos
contornos da infracção, estabelecendo uma verdadeira sanção ex lege.
Nestes termos, consideram‑se os artigos 130.º, n.º 1, aliena a), em conjugação
com o 122.º, n.º 4, ambos do Código da Estrada, inconstitucionais, por violação
do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Recusa‑se, por isso, a sua aplicação e, em consequência, não se considera
caducada a carta de condução do arguido.”
Neste Tribunal, o representante do
Ministério Público apresentou alegações, no termo das quais formulou as
seguintes conclusões:
“1.º – Face à corrente jurisprudencial firmada nos Acórdãos
n.ºs 461/2000, 574/2000 e 45/2001 – que se considera transponível para o regime
de caducidade do título de condução, emergente da versão em vigor do Código da
Estrada – não viola o princípio constitucional da proibição das penas
automáticas o regime legal, decorrente das normas que integram o objecto do
presente recurso (artigos 130.º, n.º 1, alínea a), e 122.º, n.º 4, do Código da
Estrada), segundo o qual a condenação pela prática de contra‑ordenação muito
grave determina a caducidade do título de condução provisório,
perspectivando‑se a ausência do cometimento de infracções às regras estradais,
tidas pelo legislador como revelando comportamento de especial gravidade, como
requisito negativo de extinção do carácter provisório da licença.
2.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O Código da Estrada, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 114/94, de 5 de Maio, previa, na sua versão originária, que
“quando inicialmente emitidas a favor de quem não seja titular de habilitação
legal para conduzir, as cartas de condução têm carácter provisório e só se
convertem em definitivas após o decurso dos dois primeiros anos do seu período
de validade sem que ao seu titular haja sido aplicada sanção de inibição do
direito de conduzir” (n.º 3 do artigo 125.º), dispondo o subsequente n.º 4 que
“a aplicação da sanção de inibição de conduzir ao titular de carta de condução
com carácter provisório implica a caducidade da respectiva carta”. A sanção
acessória de inibição de conduzir era, nos termos do artigo 141.º, n.º 1,
aplicável às contra‑ordenações graves (enumeradas no artigo 148.º) e muito
graves (enumeradas no artigo 149.º), tendo “a duração mínima de um mês e máxima
de seis meses, ou mínima de dois meses e máxima de um ano, consoante seja
aplicável às contra‑ordenações graves ou muito graves, respectivamente” (n.º 2
do artigo 141.º). Os artigos 143.º, 144.º e 145.º previam a possibilidade de
dispensa, atenuação especial e suspensão da execução da referida sanção
acessória: ela podia ser dispensada no caso de contra‑ordenações graves, “tendo
em conta as circunstâncias da mesma e o facto de o infractor ser infractor
primário ou não ter praticado qualquer infracção grave ou muito grave nos
últimos três anos” (artigo 143.º); especialmente atenuada no caso de
contra‑ordenações muito graves, com redução para metade da sua duração mínima e
máxima, verificadas as mesmas condições do artigo precedente (artigo 144.º); e
suspensa a sua execução, por período a fixar entre seis meses e dois anos,
“verificando‑se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a
suspensão da execução das penas”, suspensão em regra condicionada à prestação de
caução de boa conduta, a fixar entre 20 000$00 e 200 000$00, tendo em conta a
medida da sanção e a situação económica do infractor (artigo 145.º).
Na revisão do Código da Estrada operada pelo
Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, continuou a atribuir‑se carácter
provisório ao título de condução emitido a favor de quem não se encontrasse já
legalmente habilitado para conduzir qualquer das categorias de veículos nele
previstas, dependendo a sua conversão em definitivo da circunstância de,
“durante os dois primeiros anos do seu período de validade, não [ter sido]
instaurado ao respectivo titular procedimento pela prática de crime ou
contra‑ordenação a que correspondam proibição ou inibição de conduzir” (n.º 4
do artigo 122.º), pois, se similar procedimento tiver sido instaurado, “o título
de condução mant[inha] o carácter provisório até que a respectiva decisão se
torn[asse] definitiva ou transit[asse] em julgado” (n.º 5 do artigo 122.º),
caducando a carta de condução quando “sendo provisória nos termos dos n.ºs 4 e 5
do artigo 122.º, for aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou
sanção de inibição de conduzir efectiva” (artigo 130.º, n.º 1, alínea a)). A
sanção acessória de inibição de conduzir era, nos termos do artigo 139.º, n.º 1,
aplicável às contra‑ordenações graves (enumeradas no artigo 146.º) e muito
graves (enumeradas no artigo 147.º), tendo “a duração mínima de um mês e máxima
de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja
aplicável às contra‑ordenações graves ou muito graves, respectivamente” (n.º 2
do artigo 139.º). Continuava a prever‑se a possibilidade de dispensa de
aplicação da sanção de inibição de conduzir cominada para as contra‑ordenações
graves, “tendo em conta as circunstâncias da infracção, se o infractor não tiver
praticado qualquer infracção grave ou muito grave nos últimos cinco anos”
(artigo 141.º, n.º 1); a redução para metade dos limites mínimo e máximo da
sanção de inibição de conduzir cominada para as contra‑ordenações muito graves,
nas mesmas condições do número anterior (artigo 141.º, n.º 2); e a suspensão da
sua execução, por período a fixar entre seis meses e dois anos, “no caso de se
verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da
execução das penas”, suspensão que podia ser condicionada à prestação de caução
de boa conduta, a fixar entre 25 000$00 e 250 000$00, tendo em conta a duração
da inibição de conduzir e a situação económica do infractor (artigo 142.º).
Finalmente, de acordo com as alterações
introduzidas pelo Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, manteve‑se a
atribuição de carácter provisório à carta de condução emitida a favor de quem
não se encontrasse já legalmente habilitado para conduzir qualquer das
categorias ou subcategorias de veículos nela previstas, dependendo a sua
conversão em definitiva da circunstância de, “durante os três primeiros anos do
seu período de validade, não [ter sido] instaurado ao respectivo titular
procedimento pela prática de crime ou contra‑ordenação a que correspondam
proibição ou inibição de conduzir” (n.º 4 do artigo 122.º), pois, se similar
procedimento tiver sido instaurado, “a carta de condução mantém o carácter
provisório até que a respectiva decisão transite em julgado ou se torne
definitiva” (n.º 5 do artigo 122.º), caducando o título de condução quando
“sendo provisório nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 122.º, o seu titular tenha
sido condenado pela prática de um crime rodoviário, de uma contra‑ordenação
muito grave ou de duas contra‑ordenações graves” (artigo 130.º, n.º 1, alínea
a)). Nesta nova redacção, dispõe‑se genericamente que “as contra‑ordenações
graves e muitos graves são sancionáveis com coima e com sanção acessória”
(artigo 138.º, n.º 1). O artigo 147.º prevê que “a sanção acessória aplicável
aos condutores pela prática de contra‑ordenações graves ou muito graves
previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de
conduzir” (n.º 1), que “tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou
mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às
contra‑ordenações graves ou muito graves, respectivamente, e refere‑se a todos
os veículos a motor” (n.º 2). Deixou de se prever especificamente a
possibilidade de dispensa de aplicação da sanção acessória. Quanto à sanção
acessória cominada para as contra‑ordenações muito graves prevê‑se a sua
atenuação especial, através da redução para metade dos respectivos limites
mínimo e máximo, “tendo em conta as circunstâncias da infracção, se o infractor
não tiver praticado, nos últimos cinco anos, qualquer contra‑ordenação grave ou
muito grave ou facto sancionado com proibição ou inibição de conduzir e na
condição de se encontrar paga a coima” (artigo 140.º). Por seu turno, o artigo
141.º possibilita a suspensão da “execução da sanção acessória aplicada a
contra‑ordenações graves” [o que tem sido entendido como vedando a possibilidade
de suspensão da execução da sanção acessória aplicada a contra‑ordenações muito
graves, solução que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional nos
Acórdãos n.ºs 603/2006, 604/2006, 629/2006, 6/2007 e 32/2007], “no caso de se
verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da
execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas
nos números seguintes” (n.º 1), a saber: (i) “se o infractor não tiver sido
condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de
qualquer contra‑ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser
determinada pelo período de seis meses a um ano” (n.º 2); e (ii) se o infractor,
nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra‑ordenação grave, a
suspensão pode ser determinada pelo período de um a dois anos, devendo ser
condicionada, singular ou cumulativamente, à prestação de caução de boa conduta
(a fixar entre € 500 e € 5000, tendo em conta a duração da sanção acessória
aplicada e a situação económica do infractor), ao cumprimento do dever de
frequência de acções de formação (quando se trate de sanção acessória de
inibição de conduzir) e ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros
diplomas legais (n.ºs 3 e 4).
2.2. O Tribunal Constitucional já foi
chamado a pronunciar‑se sobre a constitucionalidade material, face ao artigo
30.º, n.º 4, da CRP, das normas dos artigos 122.º, n.ºs 4 e 5, e 130.º, n.º 1,
alínea a), do Código da Estrada, na redacção do Decreto‑Lei n.º 2/98, enquanto
determinava a caducidade da carta de condução provisória se, durante os dois
primeiros anos do seu período de validade, for aplicada ao respectivo titular
sanção acessória de inibição de conduzir. Fê‑lo nos Acórdãos n.ºs 461/2000,
574/2000 e 45/2001, tendo sempre concluído – a par da não inconstitucionalidade
orgânica das normas em causa – pela não verificação da alegada
inconstitucionalidade material.
Como se explanou no Acórdão n.º 461/2000:
“6. Os artigos 122.º, n.ºs 4 e 5, e 130,º, n.º 1, alínea a),
do Código da Estrada, ao preverem a caducidade da carta ou licença de condução
provisórias no caso de condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção
de inibição de conduzir, violarão o princípio da proibição de penas automáticas
consagrado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição?
A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um
efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua
justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das
sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da
proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da
adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando‑se a possibilidade de
penas fixas ou ex lege. Todavia, a proibição de penas automáticas não pode
abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo
proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não
tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de
culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.ºs 362/92 – DR, II Série, de 8 de Abril de 1993, 183/94 –
inédito, 264/99 – DR, II Série, de 13 de Julho de 1999, e 327/99 – DR, II Série,
de 19 de Julho de 1999).
7. No caso concreto, é efeito necessário da instauração de
procedimento pela prática de crime ou contra‑ordenação a que correspondam
proibição ou inibição de conduzir a não conversão em definitivo de um título de
condução provisório. É determinante da caducidade de carta ou licença de
condução provisória a condenação em pena de proibição de conduzir ou sanção de
inibição de conduzir efectiva.
Consubstanciará esta prescrição legal um efeito automático da
condenação?
A resposta negativa impõe‑se por duas razões fundamentais: o
direito a conduzir decorre de uma licença, que no caso é apenas provisória, e
que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de
comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma
licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um
direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.
Por outro lado, prevê‑se um período experimental e de
licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições
pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença definitiva.
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um
processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos
positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa
actividade para bens jurídicos essenciais.
Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de
licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de
trânsito, tratando‑se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção
do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da
licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de
inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção
da carta.
Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos
adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução
automóvel nas condições de obtenção da licença de condução.
Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir
possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de
requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza
absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos
existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa‑se no plano da formulação
dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser
reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por
outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em
prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja
condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma
licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de
conduzir.
Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença
provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período
provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução – o qual
constitui, materialmente, uma espécie de período probatório.
8. Mas, ainda numa certa concepção poderá entender‑se que
qualquer efeito automático de natureza penal sobre a licença provisória só
poderia verificar‑se se fosse igualmente automática a condenação em inibição de
conduzir ou se a instauração do procedimento determinasse logo a caducidade da
licença provisória. Todavia, nem resulta dos crimes de trânsito tal
automaticidade, nem é essa questão que agora é submetida à apreciação do
Tribunal Constitucional. Com efeito, nessa concepção, se a condenação em
inibição de conduzir depende de juízos de culpa sobre o facto, não decorre
automaticamente do facto, ex vi lege, qualquer efeito para o licenciamento
provisório.
Deste modo, não se verifica a alegada violação do artigo 30.º,
n.º 4, da Constituição.”
Este entendimento foi reiterado nos Acórdãos
n.ºs 574/2000 e 45/2001, que versaram sobre a mesma questão, reportada à mesma
redacção das normas em causa (no último acórdão citado, para além da rejeição da
tese da violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, também se julgou improcedente a
alegação da violação do artigo 13.º da CRP).
2.3. No presente caso, diferentemente do que
ocorrera nos casos sobre que versaram os três acórdãos citados, a questão de
inconstitucionalidade vem colocada face à redacção dada às pertinentes normas do
Código da Estrada pelo Decreto‑Lei n.º 44/2005.
No novo regime, para além da elevação de
dois para três anos do período durante o qual a carta de condução tem carácter
provisório, a alteração fundamental, face à versão de 1998, deriva de a
caducidade do título de condução (provisório) resultar da condenação pela
prática de um crime rodoviário, de uma contra‑ordenação muito grave ou de duas
condenações muito graves, enquanto anteriormente derivava de ter sido aplicada
ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir
efectiva. Esta exigência da efectividade da sanção de inibição de conduzir
consentia, na versão de 1998, que a condenação por contra‑ordenação muito grave
não determinasse necessariamente a caducidade do título de condução: bastava que
a sanção acessória tivesse sido suspensa na sua execução (o que então era
possível mesmo relativamente a contra‑ordenações muito graves, faculdade que
desapareceu na versão de 2005).
Apesar destas alterações, entende‑se ser de
manter o juízo de não violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, que proíbe a perda
de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário da aplicação
de uma pena (mesmo que se entenda que esta proibição visa também os efeitos
automáticos ligados à condenação por certos ilícitos, e não apenas a proibição
de efeitos automáticos ligados à condenação em certo tipo de penas).
Na verdade, mantém validade o argumento de
que, no caso, não estamos, em rigor, perante a perda de um direito civil já
adquirido, mas antes perante a constatação de que, no decurso do “período
probatório” a que o titular de uma licença de condução provisória estava
sujeito, o mesmo não satisfez uma condição legal da conversão dessa licença em
definitiva. Aliás, não estamos perante a perda definitiva ou dilatada no tempo
da faculdade de conduzir veículos automóveis: a caducidade da licença de
condução provisória apenas determina, a par da impossibilidade da sua conversão
em definitiva, o dever de o interessado se submeter a novo exame de condução
(n.º 3 do artigo 130.º), não existindo nenhum período de impossibilidade de
concessão de novo título, como ocorre nos casos de cassação da carta, em que o
artigo 148.º, n.º 3, impõe um período de espera de dois anos.
Por outro lado, como se salienta na alegação
do Ministério Público, não é exacto afirmar‑se que o infractor “não beneficiou
de «qualquer análise» sobre a gravidade do facto, em termos de ilicitude e culpa
manifestada no mesmo: é que, como decorre da primeira parte da decisão
recorrida, nela se considerou que o arguido praticou efectivamente a
contra‑ordenação que lhe era imputada e devia ser, consequentemente, sancionado
com a inibição de conduzir pelo período de 30 dias (sem que se mostre, aliás,
questionado o regime de insusceptibilidade de suspensão da sanção de inibição
de conduzir, decorrente do cometimento de contra‑ordenação muito grave, e sendo
certo que, face ao regime legal em vigor, seria irrelevante a hipotética não
aplicação de tal «pena», já que, como se viu, o regime actualmente em vigor
apenas atenta na natureza da infracção cometida)”.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma que
resulta dos artigos 130.º, n.º 1, alínea a), e 122.º, n.º 4, do Código da
Estrada, na redacção do Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a
qual a condenação pela prática de contra‑ordenação muito grave determina a
caducidade do título de condução provisório; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso,
determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Setembro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos