Imprimir acórdão
Processo n.º 727/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
“1. Nos autos de Instrução n.º 116/02.9TAFLG, que correram termos pelo 3º Juízo
do Tribunal Judicial de Felgueiras, foi proferida decisão instrutória que
desatendeu as questões prévias suscitadas no requerimento de abertura da
instrução pela arguida A., e pronunciou a mesma arguida pela prática de um crime
de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1,
alínea a), e n.º 3, do Código Penal.
Não se conformando com esta decisão, na parte em que desatendeu as questões
prévias, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães,
pretendend-o a apreciação das seguintes questões:
«a) A doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2000, in DR I-A de
23/05/2000 que estabelece a tese do concurso efectivo entre o crime de
falsificação e burla padece de inconstitucionalidade material por violação do
principio “ ne bis in idem” formalmente previsto no artº 29.º nº 5 da CRP, pelo
que o Tribunal “a quo” ao declarar extinto o procedimento criminal pelo crime de
burla deveria ordenar arquivamento dos autos não pronunciando a recorrente pelo
crime de falsificação, violando por isso o núcleo essencial do referido
principio constitucional;
b) A aplicabilidade “in casu” do Código Penal, na redacção de 1982 e a
consequente alteração da qualificação jurídica
c) A prescrição do procedimento criminal.»
Em resposta, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido
defendeu a improcedência do recurso e, na Relação, na vista que teve dos autos,
o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, sustentando o
seguinte:
«Em relação à pretensa inconstitucionalidade do Ac. STJ 8/2000, DR I série de 23
de Maio de 2000 (concurso real entre a burla e a falsificação), já foi decidido,
mais do que uma vez, pelo TC, que o entendimento expresso naquele aresto
uniformizador de jurisprudência não viola a constituição (cf. Acs. TC 303/2005,
DR II S., de 5/8/2005 e 375/2005, DR IIS., de 21/9/2005).
Além disso, a questão não tem qualquer relevo nestes autos, dado que a arguida
foi pronunciada apenas por um crime de falsificação.
Quanto à aplicação do Código, sendo que os factos se consumaram em 1998, deve
ser aplicado o CP na versão posterior a 1982.
Relativamente à prescrição do procedimento criminal, concorda-se com a posição
do despacho recorrido e da resposta do MP, onde a questão é devidamente
equacionada.»
Notificada a arguida nos termos do n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo
Penal, respondeu como consta de fls. 142, realçando o interesse no conhecimento
das questões colocadas.
2. Por acórdão de 19 de Março de 2007, o Tribunal da Relação de Guimarães negou
provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Na parte que se reporta à “questão de constitucionalidade” o aresto
recorrido fundamentou-se no seguinte:
«1 - A inconstitucionalidade material, por violação do princípio ne bis in idem,
do entendimento de que pode haver concurso efectivo entre o crime de burla e de
falsificação de documento – art. 29 nº 5 da CRP.
Nesta parte, verdadeiramente, não se percebe a argumentação do recurso.
Vejamos.
A arguida foi acusada como autora de dois crimes de falsificação de documento e
um de burla.
Requereu a instrução e veio a ser pronunciada apenas como autora de um crime de
falsificação.
Por isso, independentemente das causas do desaparecimento da incriminação pelo
crime de burla, está prejudicada a questão de saber se a imputação feita na
acusação violava algum comando constitucional. Se alguém é, erradamente, acusado
da prática de dois crimes, quando os factos que praticou apenas integram um
crime, a consequência não é a desresponsabilização penal de todo o
comportamento.
Como quer que seja, a questão prévia suscitada é apenas a inconstitucionalidade
da punição, em concurso, pelos crimes de falsificação e burla. Não tendo o
despacho recorrido imputado à arguida a existência de tal concurso, não há
questão a decidir.»
Notificado deste aresto veio a recorrente pedir a sua aclaração, nos termos de
fls. 157, a qual foi indeferida pelo acórdão da Relação de 14 de Maio de 2007.
Neste acórdão, após se transcrever a parte da fundamentação do anterior aresto
respeitante à questão suscitada, escreveu-se o seguinte:
«Vem agora a recorrente, a pretexto de aclaração do acórdão alegar que “entende
que a questão prévia da inconstitucionalidade material por violação do princípio
ne bis in idem mantém-se actual, pelo que deverá ser objecto de apreciação …”.
Ou seja, a recorrente percebeu o alcance da decisão. Entende é que a Relação
errou ao considerar que a questão da unidade ou pluralidade de infracções só se
pode colocar quando existe a possibilidade de o agente ser punido por mais de um
crime.
Ora, o aclaramento não é uma oportunidade para a réplica da decisão, nem para
obter uma alteração do sentido da decisão, a qual, no caso das sentenças
proferidas em processo penal, é expressamente proibida pelo artigo 380º, n.º1,
alínea b) do CPP, aplicável aos acórdãos da Relação por força da norma do artigo
425º, n.º4, do CPP.»
3. Inconformada, vem agora a recorrente interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, nos seguintes termos:
«A arguida/recorrente quer no requerimento de abertura de instrução quer no
recurso que interpôs para esse Venerando Tribunal invocou, além do mais, a
violação do princípio constitucional” ne bis in idem” formalmente previsto no
artº 29º, nº 5 da C.R.P.
Para tanto alegou que a acção descrita na acusação publica e sufragada pelo
despacho de pronúncia configura apenas o crime de burla e nunca um crime de
falsificação e burla em concurso efectivo na medida em que do pedaço de vida ali
descrita resulta que há pela arguida/recorrente uma unidade de resolução
criminosa e que a falsificação foi tão só um crime meio ao invés da burla que se
encontra configurada como o crime fim.
Mais alegou que em homenagem ao referido principio constitucional o Tribunal “ a
quo” ao manter e não alterar aquele pedaço de vida descrito na acusação, mas, no
entanto, ao declarar extinto por caducidade do direito de queixa o procedimento
criminal pelo crime de burla deveria de igual forma declarar extinto o crime de
falsificação determinando em consequência a não pronuncia da arguida/recorrente,
até porque manteve a qualificação jurídica formulada na acusação recusando a
alteração da qualificação jurídica formulada pela arguida recorrente em sede de
requerimento instrutório.
No entanto, e por seu lado, o douto acórdão desse Venerando Tribunal manteve a
decisão do Tribunal “a quo” considerando ultrapassada a questão da arguida
inconstitucionalidade em virtude do despacho recorrido não ter imputado à
arguida a existência de tal concurso.
Salvo o devido respeito por opinião em contrária a recorrente entende que mau
grado o Tribunal “a quo” declarar extinto o procedimento criminal pelo crime de
burla imputado à arguida por caducidade do direito de queixa, a
inconstitucionalidade material por violação do principio constitucional do” ne
bis in idem” mantém-se actual não só porque o Tribunal “a quo” refere
expressamente no despacho de pronuncia que “ in casu” entende existir um
concurso real entre o crime de falsificação e o crime de burla, mas também na
medida em que o Tribunal ”a quo” deduziu pronuncia pelo crime de falsificação
mantendo o quadro factual descrito na acusação imputando à arguida a mesma acção
criminosa a qual se centra numa única resolução criminosa em que a falsificação
configura um meio para atingir o fim que é a burla.
Assim sendo e ao manter-se o despacho de pronuncia pelo crime de falsificação a
arguida está a ser punida duas vezes pelo mesmo facto em violação do principio
do principio constitucional ”ne bis in idem”, formalmente previsto no artº 29º,
nº 5 da C.R.P, na medida em que ao extinguir-se o crime de burla deveria da
mesma forma extinguir-se o crime de falsificação atenta as regras da consunção.»
4. Não obstante o recurso ter sido admitido no tribunal a quo, o que não vincula
o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76.º, n.º 3 da LTC), entende-se não poder
tomar-se conhecimento do objecto do recurso, sendo de proferir decisão sumária
ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, por não ocorrerem os
pressupostos de admissibilidade do recurso.
5. Com efeito, no sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade entre
nós instituído, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos
demais tribunais que apliquem (ou que recusem aplicação com fundamento em
inconstitucionalidade) normas de direito ordinário, arguidas de violação de
regras ou princípios constitucionais (cf. n.º 1 do artigo 280.º da Constituição
e n.º 1 do artigo 70.º da LTC). Neste sistema, em que o controlo de
constitucionalidade incide sobre as normas ou actos normativos, não cabe
apreciar a violação da Constituição directamente imputada a actos do poder
público de outra natureza, designadamente às sentenças dos tribunais, sem
interposição de uma norma que tenha sido aplicada pela decisão recorrida e que
se acuse de inconstitucionalidade. Como se sabe, não foi consagrado entre nós um
sistema de acesso ao Tribunal Constitucional do tipo recurso de amparo ou queixa
constitucional.
Ora, é manifesto que aquilo que a recorrente propõe à verificação de
conformidade com a Constituição no presente recurso, o acto do poder público a
que imputa violação de preceitos constitucionais, é o acórdão da Relação que
manteve a decisão da 1ª instância, e não conheceu da questão relativa ao
“concurso efectivo do crime de burla e de falsificação de documentos”, e não
qualquer norma de que o aresto recorrido tenha feito aplicação. Na verdade, o
que o recorrente censura à Relação, não é ter aplicado uma norma arguida de
inconstitucionalidade, mas o facto de não ter apreciado a questão relativa ao
“concurso efectivo entre o crime de burla e de falsificação de documentos”, ao
contrário do entendimento defendido pela recorrente, que considera que “ao
manter-se o despacho de pronuncia pelo crime de falsificação a arguida está a
ser punida duas vezes pelo mesmo facto em violação do principio do principio
constitucional ”ne bis in idem”, formalmente previsto no artigo 29.º, n.º 5 da
C.R.P, na medida em que ao extinguir-se o crime de burla deveria da mesma forma
extinguir-se o crime de falsificação atenta as regras da consunção”. É,
portanto, a directa violação de princípios constitucionais pela decisão judicial
e não a constitucionalidade de qualquer norma intermédia que a recorrente
pretende submeter a recurso de fiscalização concreta pelo Tribunal
Constitucional.
É, assim, ostensivo que o recurso de constitucionalidade não pode prosseguir,
por não versar sobre objecto idóneo para o juízo da fiscalização concreta.
6. Mas, ainda que assim se não entendesse, e se considerasse como constituindo o
objecto do recurso a questão que a recorrente suscitou no recurso para a
Relação, não se poderia tomar conhecimento do recurso porque o acórdão recorrido
não fez aplicação da “interpretação normativa” invocada pela recorrente.
Na verdade, esta referiu na sua motivação que: «A doutrina do Acórdão de Fixação
de Jurisprudência nº 8/2000, in DR I-A de 23/05/2000 que estabelece a tese do
concurso efectivo entre o crime de falsificação e burla padece de
inconstitucionalidade material por violação do principio “ ne bis in idem”
formalmente previsto no artigo 29.º nº 5 da CRP, pelo que o Tribunal “a quo” ao
declarar extinto o procedimento criminal pelo crime de burla deveria ordenar
arquivamento dos autos não pronunciando a recorrente pelo crime de falsificação,
violando por isso o núcleo essencial do referido principio constitucional».
Admitindo-se que, deste modo, foi colocada uma questão de constitucionalidade
normativa de que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer, certo é que o
acórdão da Relação de 19 de Março de 2007, complementado pelo de 14 de Maio de
2007 [que indeferiu a aclaração], não aplicou a doutrina do mencionado acórdão
de fixação de jurisprudência relativa ao concurso efectivo entre o crime de
burla e o de falsificação. Na verdade, a Relação entendeu que não tinha para
decidir qualquer questão relativa à punição em concurso pelos dois crimes, visto
a arguida só ter sido pronunciada pelo crime de falsificação, e a questão da
unidade ou pluralidade de infracções só se poder colocar quando existe a
possibilidade de o agente ser punido por mais de um crime.
7. Nestes termos, ao abrigo do n.º1 do art. 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades de
conta.”
2. Desta decisão reclamou a recorrente para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 78.º-A da LTC. Consubstancia as razões da sua divergência com a decisão
nos seguintes termos:
“(…)
9º) Salvo o devido respeito a arguida/recorrente e ora reclamante não concorda
com a douta decisão sumária de inadmissibilidade do recurso e por isso a razão
de ser da presente reclamação, pois apesar de não serem susceptíveis de
fiscalização da constitucionalidade as decisões judiciais em si mesma, porém
pode-se atacar uma decisão judicial – recorrendo dela para Tribunal
Constitucional – se ela aplicou uma norma arguida de constitucionalidade no
processo ou se deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade;
10º) Mau grado não se mostrar consagrado no nosso sistema
jurídico/constitucional o recurso de amparo ou queixa constitucional a
jurisprudência do Tribunal Constitucional tem permitido, ainda que de forma
lateral ou mitigada, alcançar alguns dos efeitos do recurso de amparo,
designadamente quando admite a sindicabilidade das normas com uma determinada
interpretação acolhida na decisão recorrida. Na verdade, como o Tribunal
Constitucional vem decidindo, através de uma abundante e reiterada
jurisprudência, a questão de constitucionalidade tanto pode respeitar a uma
norma (ou a uma parte dela) como também à interpretação ou sentido como foi
tomada no caso concreto e aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida, ou
mesmo a uma norma “construída” pelo juiz recorrido a partir da interpretação ou
integração de várias normas textuais. Nestes casos pode ver-se uma espécie de
“quase recurso de amparo” visto que aí o Tribunal Constitucional controla não a
constitucionalidade da norma enquanto produto do legislador, mas sim na
interpretação/aplicação que o tribunal recorrido dela fez. (Cfr, por exemplo,
entre vários, s acórdãos n.ºs 106/92; 151/94; 507/94; 612/94; 243/95; 342/95;
829/96; 205/99 e 383/2000, em especial os três últimos);
11º) Ora face ao objecto do recurso interposto para esse Venerando Tribunal
Constitucional, a decisão proferida pelo Juiz de Instrução Criminal da Comarca
de Felgueiras confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães fazem uma
interpretação/aplicação dos tipos penais revistos os artºs 217º (crime de burla)
e 256º (crime de falsificação) que é desconforme ao princípio constitucional “ne
bis in idem” formalmente previsto no artº 29º, nº 5 da CRP e por isso sindicável
através do competente recurso para esse Venerando Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público respondeu que a argumentação da reclamante em nada abala
os fundamentos da decisão reclamada no que toca à evidente inverificação dos
pressupostos do recurso.
3. A reclamação é manifestamente improcedente.
Com efeito, a decisão reclamada não se afastou do entendimento de que o recurso
de fiscalização concreta pode ter por objecto a verificação da
inconstitucionalidade da “interpretação ou sentido como [a norma] foi tomada no
caso concreto e aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida, ou mesmo uma
norma “construída” pelo juiz recorrido a partir da interpretação ou integração
de várias normas textuais”, para usar a expressão da reclamante. O que entendeu
foi que, para que possa caber recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, necessário se torna que uma dada norma, ainda que assim entendida,
tenha sido aplicada pela decisão recorrida e que seja sobre a sua conformidade à
Constituição que verse a questão colocada ao Tribunal Constitucional.
Ora, como na decisão reclamada se refere e agora se reafirma, nenhuma destas
condições se verifica.
Inultrapassável é, desde logo, ter a Relação considerado que nenhum problema
respeitante ao concurso de crimes lhe competir apreciar, visto a recorrente só
ter sido pronunciada por falsificação e não também por burla. Deste modo, não
pode fundadamente afirmar-se que o acórdão recorrido inclua a aplicação, como
sua ratio decidendi, de qualquer norma ou entendimento normativo relativo à
natureza do concurso entre o crime de burla e o de falsificação que deste seja
instrumental. Se com esse procedimento a Relação deixou por decidir ou decidiu
erradamente questão que devesse apreciar é matéria que não cabe no âmbito do
recurso para Tribunal Constitucional, tal como a Constituição e a Lei do
Tribunal Constitucional o configuram.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 27 de Setembro de 2007
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão