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Processo n.º 510/2007
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.
No processo de insolvência instaurado no 2ª Juízo do Tribunal de Comércio de
Lisboa pela A. foi proferido em 5 de Fevereiro de 2007, antes ainda da citação
da ré, o seguinte despacho:
“(…)
A questão que se coloca nesta sede é a da competência em razão da matéria deste
Tribunal.
De acordo com o art. 67°, do Código de Processo Civil As leis de organização
judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da
competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
A competência deste Tribunal encontra-se delimitada pelo artigo 89°, da L.O.T.J.
que, na redacção que lhe foi conferida pelo Dec. lei nº 53/04, de 18.03, dispõe
que o tribunal de comércio é competente para julgar o processo de insolvência se
o devedor for uma sociedade comercial ou se a massa insolvente integrar uma
empresa (art. 89°, nº 1, al. a).
Este preceito foi alterado pelo Dec. lei 76-A/06 de 29.03, entrado em vigor a
30.06.2006 (art. 64°) que, no seu artigo 29°, conferiu ao tribunal de comércio
competência para julgar os processos de insolvência.
O art. 165°, n° 1, al. p), da Constituição da República Portuguesa dispõe que É
da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo: Organização e competência dos tribunais
e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das
entidades não jurisdicionais de composição de conflitos. Sobre as leis de
autorização prevê o n° 2 do mesmo preceito que as mesmas devem definir o
objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
O Dec. Lei 11° 76-A/2006 surgiu no uso de autorização legislativa concedida pelo
artigo 95°, da Lei n° 60-A/2005, de 30 de Dezembro. Este preceito, sob a
epígrafe dissolução e liquidação das entidades comerciais dispõe que:
1. O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob a forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 — O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para que
possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um
procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais’.
Ora resulta claro que este artigo não autorizou o governo a legislar sobre a
competência dos tribunais de comércio em matéria de insolvência (matéria que
aliás é de todo estranha à que o artigo regula). Significa isto que a alteração
da alínea a), do artigo 89°, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, não foi
autorizada pela Lei 60-A/2005. Consequentemente, sendo tal matéria da
competência da Assembleia da República e não se encontrando o Governo autorizado
a legislar sobre a mesma, é organicamente inconstitucional a alteração em
apreço, não se aplicando a redacção em causa, antes se repristinando a anterior.
Neste sentido se pronunciou já o Ac. TC n° 690/2006 de 19 de Dezembro, no qual
se pode ler: Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que,
como sabido é, para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in
Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a
concretização do “objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer
a condensação dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo
decreto-lei”) da autorização legislativa constante do aludido art° 95° e
enunciados no seu n° 2, não podem comportar um entendimento que conduza a
considerar que nela foi delineado, por entre o mais, um programa legislativo que
implicasse a atribuição de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o
caso, afectando-a a determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de um programa
legislativo que consubstanciasse uma real «desjudicialização» do regime de
dissolução e liquidação das entidades comerciais — a operar por via
administrativa —, e prevendo se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do nº 2 do citado artigo, toma-se patente que a
autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações cm
que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar
não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de
competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o «estabelecimento das
situações» significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos
em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não
a definição do órgão judicial que vai aferir deles. Neste contexto, o normativo
em apreço, ao ser editado pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar e
tendo em conta a matéria que regula, enferma do vício de inconstitucionalidade
orgânica.”.
O art. 89°, n° 1, al. a), com a redacção que lhe foi dada pelo art. 29° do
Dec.lei 76-A/06 de 29.03, foi novamente alterado pelo art. 14° do Dec.lei 8/2007
de 17 de Janeiro, que repôs a redacção deste artigo com a alteração que lhe
havia sido introduzida pelo Dec. lei n° 53/04.
Sucede, porém, que também este diploma, no que respeita à alteração do art. 89°
da LOTJ, enferma de inconstitucionalidade orgânica uma vez que a respectiva lei
de autorização legislativa (Lei 22/06 de 23 de Junho) não autorizou o governo a
legislar sobre a competência dos tribunais de comércio em matéria de
insolvência.
Assim, e não obstante esta última alteração ter voltado a dar ao preceito em
causa a redacção que lhe havia sido conferida pelo Dec. lei 53/04, por a mesma
não poder ser aplicada face à referida inconstitucionalidade orgânica, mantém-se
o supra exposto sobre a repristinação do Dec. lei 53/2004.
Ora, não resulta da p.i. que a requerida seja comerciante ou que na sua esfera
jurídica se integre um qualquer estabelecimento comercial.
Assim, é forçoso concluir não ser o tribunal de comércio de Lisboa o tribunal
competente em razão da matéria para conhecer do pedido (cfr. art. 77°, n.º 1,
al. a), da LOTJ).
A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória de conhecimento
oficioso que implica a absolvição da instância ou o indeferimento liminar da
p.i. quando o processo depender de despacho liminar (arts. 494°, al. a), 102º,
n.º 1, 105º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil e 27°, nº 1, al. a) do
Dec. lei 200/2004 de 18 de Março).
Face ao exposto e nos termos das supra citadas disposições legais, declaro este
Tribunal incompetente em razão da matéria e, consequentemente, absolvo a
requerida da instância.'
2.
Deste despacho recorre o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro,
para apreciação da questão da não aplicação 'com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica da alteração da alínea a) do artigo 89.º da Lei
Orgânica dos Tribunais, efectuada pelo artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006
de 29 de Março, bem como a alteração dada pelo artigo 14º do Decreto-Lei n.º
8/2007 de 17 de Janeiro, por violação do artigo 165.º n.º 1 alínea p) da
Constituição da República Portuguesa”.
O recurso foi admitido e o processo mandado subir sem que a ré tenha sido
citada.
3.
Na sua alegação, o Ministério Público concluiu pedindo a “procedência do
presente recurso quanto à questão de constitucionalidade suscitada quanto à
versão normativa decorrente do referido artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 8/2007”.
4.
O presente recurso obrigatório vem interposto da decisão proferida pelo Tribunal
de Comércio de Lisboa que, em processo de insolvência de pessoa singular, julgou
organicamente inconstitucionais as normas constantes das sucessivas versões do
artigo 89º n.º 1 alínea a) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais
Judiciais (LOTJ), resultantes do disposto nos artigos 29º do Decreto-Lei n.º
76-A/2006 de 29 de Março e 14º do Decreto-Lei n.º 8/2007 de 17 de Janeiro.
Há, na verdade, duas normas, ou dimensões normativas, a considerar no presente
recurso de constitucionalidade.
Diz, em primeiro lugar, o despacho, em determinado passo:
“(…) Ora resulta claro que este artigo não autorizou o Governo a legislar sobre
a competência dos tribunais de comércio em matéria de insolvência (matéria que
aliás é de todo estranha à que o artigo regula). Significa isto que a alteração
da alínea a), do artigo 89°, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, não foi
autorizada pela Lei 60-A/2005. Consequentemente, sendo tal matéria da
competência da Assembleia da República e não se encontrando o Governo autorizado
a legislar sobre a mesma, é organicamente inconstitucional a alteração em
apreço, não se aplicando a redacção em causa, antes se repristinando a anterior.
Neste sentido se pronunciou já o Ac. TC n° 690/2006 de 19 de Dezembro (…).
“(...) O art. 89°, n° 1, al. a), com a redacção que lhe foi dada pelo art. 29°
do Dec.lei 76-A/06 de 29.03, foi novamente alterado pelo art. 14° do Dec.lei
8/2007 de 17 de Janeiro, que repôs a redacção deste artigo com a alteração que
lhe havia sido introduzida pelo Dec. lei n° 53/04.
Sucede, porém, que também este diploma, no que respeita à alteração do art. 89°
da LOTJ, enferma de inconstitucionalidade orgânica uma vez que a respectiva lei
de autorização legislativa (Lei 22/06 de 23 de Junho) não autorizou o Governo a
legislar sobre a competência dos tribunais de comércio em matéria de
insolvência.
Assim, e não obstante esta última alteração ter voltado a dar ao preceito em
causa a redacção que lhe havia sido conferida pelo Dec. lei 53/04, por a mesma
não poder ser aplicada face à referida inconstitucionalidade orgânica, mantém-se
o supra exposto sobre a repristinação do Dec. lei 53/2004”.
5.
Relativamente à 1ª versão da norma desaplicada já o Tribunal Constitucional se
pronunciou através, nomeadamente, dos seus Acórdãos n.ºs 690/06, 692/06, 43/07 e
131/07 (o primeiro publicado no DR, II Série, de 31 de Janeiro de 2007 e os
outros disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), dizendo:
“Por intermédio do artº 8º do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, diploma
editado ao abrigo da Lei nº 39/2003, de 22 de Agosto, e na sequência do que se
prescreveu no artº 11º desta última, foi alterada a redacção da alínea a) do
artº 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais), vindo a ser conferida aos tribunais de comércio
competência para o processo de insolvência se o devedor for uma sociedade
comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
Em 30 de Dezembro de 2005 foi editada a Lei nº 60-A/2005 (Lei do Orçamento de
Estado para 2006), a qual, no que ora interessa, dispôs no seu artº 95º:
Artigo 95º
Dissolução e liquidação de entidades comerciais
1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para que
possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um
procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 95.º da Lei n.º
60-A/2005, de 30 de Dezembro (cfr. palavras finais do seu exórdio), foi, em 29
de Março de 2006, publicado o Decreto-Lei nº 76-A/2006, o qual, no seu artº 29º,
veio a dispor:
Artigo 29.º
Alteração à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
O artigo 89. ° da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.º 101/99,
de 26 de Julho, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de Dezembro, e 38/2003,
de 8 de Março, pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de Março, e pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto, passa a ter a
seguinte redacção:
«Artigo 89.º
[...]
1 – Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
b)
c)
d)
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f)
g)
h)
2 – Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a)
b) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como
as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos
procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades
comerciais;
c)
3 –
Com a alteração de redacção dada à alínea a) do nº 1 do artº 89º da Lei nº 3/99
ficou, pois, cometida aos tribunais de comércio competência para, na área da
respectiva jurisdição, curarem dos processos de insolvência, «alargando-se»,
desta sorte, a competência de que, no domínio daquela Lei, anteriormente à
entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006 e posteriormente à vigência do
Decreto-Lei nº 53/2004, e para os processos em causa, desfrutavam. E isso,
justamente, porque, com a referência esses processos, aquela espécie de
tribunais tão só era competente para curar daqueles em que o devedor fosse uma
sociedade comercial ou a massa insolvente integrasse uma empresa. O mesmo é
dizer que, se em causa se postasse a insolvência de uma pessoa singular e em que
a massa insolvente não fosse considerada como integrando uma empresa, a
competência para a preparação e julgamento do respectivo processo era cometida
ao tribunal de competência genérica [cfr. alínea a) do nº 1 do artº 77º da Lei
nº 3/99], ainda que de competência específica, e não a um dado tribunal de
competência especializada.
A questão que se coloca reside, consequentemente, em saber, em primeiro lugar,
se dispunha o Governo, desacompanhado de credencial parlamentar, de competência
para editar uma norma tal como a ínsita no artº 29º do Decreto-Lei nº 76-A/2006,
e, em segundo, caso se confira resposta negativa à primeira questão, se a
autorização concedida pelo artº 95º da Lei nº 60-A/2005 pode ser considerada
como abarcando a devida autorização para uma tal edição.
2.1. Como resulta evidente, a alteração de redacção introduzida na alínea a) do
nº 1 do artº 89º da Lei nº 3/89 pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006 consequenciou uma
«inovação» na competência material dos tribunais de comércio relativamente à que
detinham antes de se operar a vigência deste último diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva relativa de competência da
Assembleia da República [nos termos da alínea p) do nº 1 do artigo 165º da
Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente desde a Lei Constitucional
nº 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma em causa] a edição de
legislação sobre a competência material dos tribunais, onde se inclui, “para
além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e
a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais – … a
distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos
diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou
específica” (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números 36/87, 356/89, 72/90,
271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados, respectivamente, no Diário da
República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de
1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de Novembro de 1992, 8 de Junho de
1992, 22 de Junho de 1995 e 22 de Maio de 1997). Ou, como se referiu no Acórdão
nº 476/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “inclui-se na reserva
parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione materiae – ou
seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais
dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam
relações de supra-ordenação e de subordinação”.
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei nº 76-A/2006 veio invocar o uso da
autorização legislativa concedido pelo artº 95º da Lei nº 60-A/2005, claramente
que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de enfrentar a questão de
saber se, ponderando o que se prescreve no nº 2 do artigo 165º da Lei
Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para 2006 (acima
transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para habilitar o Governo
a emitir a norma ínsita no artº 29º do mencionado Decreto-Lei nº 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que, como sabido é,
para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da
República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a concretização do
“objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer a condensação
dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo decreto-lei”) da
autorização legislativa constante do aludido artº 95º e enunciados no seu nº 2,
não podem comportar um entendimento que conduza a considerar que nela foi
delineado, por entre o mais, um programa legislativo que implicasse a atribuição
de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o caso, afectando-a a
determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de um programa
legislativo que consubstanciasse uma real «desjudicialização» do regime de
dissolução e liquidação das entidades comerciais – a operar por via
administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do nº 2 do citado artigo, torna-se patente que a
autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações em
que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar
não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de
competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o «estabelecimento das
situações» significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos
em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não
a definição do órgão judicial que vai aferir deles.”
É este entendimento que, relativamente à alteração introduzida em 2006 através
do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006 de 29 de Março o Tribunal reafirma;
ao ser editada pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar e tendo em
conta a matéria que regula, a norma enferma de inconstitucionalidade orgânica.
6.
Vejamos agora a questão que se reporta à alteração do artigo 89º n.º 1 alínea a)
resultante do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 8/2007 de 17 de Janeiro que, no
entender do Tribunal recorrido é, também ela, violadora do disposto no artigo
165º n.º 1 alínea p) da Constituição, o que acarreta a inconstitucionalidade
orgânica da norma.
Acontece que o Tribunal de Comércio se declarou incompetente para o conhecimento
do pedido formulado pelo requerente com fundamento na circunstância de não ter
sido alegado ('não resulta da p.i.') que 'a requerida seja comerciante ou que na
sua esfera jurídica se integre um qualquer estabelecimento comercial'. Com
efeito, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da Lei n.º 3/99 de 13 de
Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), quer na
versão adoptada no Decreto-Lei nº 53/2004, quer na redacção conferida pelo
artigo 14º do Decreto-Lei n.º 8/2007 de 17 de Janeiro, 'compete aos tribunais
de comércio preparar e julgar o processo de insolvência se o devedor for uma
sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa'.
Assim, ao especificar, como razão de decidir do juízo de incompetência do
tribunal de comércio, a circunstância de a requerida não ser comerciante nem no
seu património se integrar um qualquer estabelecimento comercial, a decisão
recorrida está, na verdade, a fazer aplicação da norma, embora retirada do
diploma de 2004, para reconhecer que se não verifica um pressuposto da sua
aplicação, isto é, como um feito totalmente coincidente à sua aplicação pela
norma 'desaplicada'. Daqui se retira a completa inutilidade do conhecimento do
recurso nesta parte, pois, fosse qual fosse a decisão tomada, permaneceria
incólume, nesta parte, a decisão recorrida.
Ouvido sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso nesta parte, o
Ministério Público recorrente sustenta que na lógica da decisão recorrida a
competência do tribunal comum radica na repristinação do Decreto-Lei 53/2004 por
via de declaração de inconstitucionalidade material já decretada, mas que, no
entender do recorrente, essa competência advém directamente da norma constante
do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 8/2007.
A verdade, porém, é que, não obstante o que o tribunal recorrido afirma a
propósito da desconformidade constitucional orgânica da norma, o certo é que,
como já se viu, a sua decisão é com ela conforme, por resultar de norma
semelhante, anterior, resultante da desaplicação operada.
Tal permite concluir pela verificação da inutilidade desta parte do recurso.
7.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar organicamente inconstitucional a norma constante do artigo
29º do Decreto-Lei n.º 76-A/06 de 29 de Março, na parte em que conferiu nova
redacção à alínea a) do n.º 1 do artigo 89.º da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais, confirmando, nesta parte, a decisão
recorrida.
b) Não conhecer do recurso na parte relativa à versão da norma
decorrente do artigo 14.º do Decreto-lei n.º 8/2007 de 17 de Janeiro;
c) Negar, em consequência, provimento ao recurso, na parte em que
dele se conhece.
Lisboa, 26 de Setembro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos