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Processo nº 837/2007
3ª Secção
Relatora.: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 21 de Agosto de 2007 foi proferida decisão sumária em que se decidiu não
tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A..
Este recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70.°, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 2007, tem como objecto a
apreciação da inconstitucionalidade das normas “dos art.ºs 158.º, n.º 1, al. b)
e, 163.º, n.º 2 e 431.º do CPP, na interpretação perfilhada no acórdão
recorrido, ou seja, interpretadas no sentido do Tribunal «a quo» indeferir o
requerimento para realização de novas perícias, de não fundamentar devidamente a
divergência existente entre o teor constante do relatório pericial da
psiquiatria e o acórdão, e ainda pelo facto do Tribunal da Relação alterar a
matéria de facto contida nesse mesmo relatório pericial, por violação das normas
dos art.ºs 13.º e 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP e art.ºs 6.º e 13.º da CEDH.”
A decisão de não conhecimento do objecto do recurso assentou nos seguintes
fundamentos:
2. No requerimento de recurso indicam-se três normas, que o recorrente pretende
ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, correspondentes a interpretações
normativas dos seguintes preceitos:
– artigo 158.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, interpretado
“no sentido do Tribunal «a quo» indeferir o requerimento para realização de
novas perícias”;
– artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido
de o Tribunal a quo “não fundamentar devidamente a divergência existente entre o
teor constante do relatório pericial da psiquiatria e o acórdão”;
– artigo 431.º do Código de Processo Penal, “pelo facto do Tribunal da
Relação alterar a matéria de facto contida nesse mesmo relatório pericial”.
3. Começando por aquela primeira dimensão normativa, verifica-se que o
recorrente não suscitou, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a
questão de (in)constitucionalidade da norma que agora pretende ver apreciada
pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional a invocação pelo
recorrente, durante o processo, da questão de (in)constitucionalidade normativa
que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. O artigo 72.º, n.º 2,
da mesma LTC concretiza tal pressuposto, ao estabelecer que esse recurso só pode
ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de
(in)constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Como se disse, entre muitos outros, no Acórdão n.º 269/94 (publicado no Diário
da República, II Série, de 18 de Junho de 1994, e em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 27.º vol., pp. 1165 e ss.), “suscitar a inconstitucionalidade de
uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão
é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para
decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo
claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada
interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a
Constituição”.
Compulsados os autos, verifica-se que o recorrente, nas alegações produzidas
junto do Supremo Tribunal de Justiça a fls. 2569 e segs., não identifica
qualquer norma, dimensão ou interpretação normativa referida ao artigo 158.º,
n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que repute de inconstitucional. A
verdade é que abandonou a arguição, constante de fl. 2500, segundo a qual “10. O
entendimento que o Tribunal “a quo” fez sobre o pedido de segundas perícias, é
não só contrário aos normativos indicados [artigos 158.º, n.º 1, alínea b), e
127.º, ambos do Código de Processo Penal], o que gera uma nulidade insanável,
como também viola o art.º 32.º da CRP, inconstitucionalidade que expressamente
se argui”.
Não tendo suscitado a questão de (in)constitucionalidade normativa perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, não pode considerar-se preenchido um
dos pressupostos processuais do presente recurso – a suscitação da
inconstitucionalidade da norma durante o processo - e, consequentemente, não
pode do mesmo tomar-se conhecimento no que respeita à norma do artigo 158.º, n.º
1, alínea b), do Código de Processo Penal.
4. No que concerne à norma do artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de o Tribunal a quo “não fundamentar devidamente a
divergência existente entre o teor constante do relatório pericial da
psiquiatria e o acórdão”, a interpretação normativa assim identificada pelo
recorrente não constituiu ratio decidendi para o tribunal recorrido.
Com efeito, é requisito específico do recurso de constitucionalidade interposto
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, além da suscitação, de forma clara e perceptível, da
inconstitucionalidade da norma durante o processo (e do esgotamento dos recursos
ordinários que no caso cabiam), que a norma (ou dimensão normativa) em causa
tenha efectivamente sido aplicada pelo tribunal a quo, na decisão recorrida,
como verdadeira razão de decidir.
É que, se o sentido impugnado não corresponder ao sentido com que a norma
questionada foi aplicada na decisão recorrida, não existe interesse processual
que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional.
Neste caso, seja qual for o sentido da decisão que recaia sobre a questão de
constitucionalidade, manter-se-á inalterado o decidido pelo tribunal recorrido
(cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 454/91, 337/94, 608/95, 577/95, 1015/96,
196/97 e 508/98, publicados os três primeiros no Diário da República, II série,
respectivamente de 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de 1994, e 19 de Março de
1996).
No caso presente é isto mesmo que se verifica, não se tendo o tribunal a quo
baseado, como ratio decidendi, na interpretação do artigo 163.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal que o recorrente reputa inconstitucional. É o que
decorre do que se pode ler a fl. 2754 dos autos, no aresto sob recurso:
[…]
A fundamentação elaborada pela Relação – colhida directamente do material
probatório dos autos, e seu exame crítico, em obediência, repete-se, ao acórdão
anulatório proferido por este Supremo Tribunal em 18.01.2007 – em ordem às
conclusões agora vertidas nos items 32 e 37 da matéria de facto provada, procede
inteiramente.
Não violou, como pretende o recorrente, o disposto nos artigos 431.º e 163.º,
n.º 2, do CPP, nem o n.º 5 do artigo 32.º (violação do princípio do
contraditório?) da CRP.
Conclui-se, pois, que a norma em questão, na dimensão tentada impugnar pelo
recorrente, não foi aplicada pelo tribunal a quo, o qual considerou antes que
nada nos autos permitiria concluir pela insuficiência da fundamentação.
5. Quanto, por último, à norma do artigo 431.º do Código de Processo Penal, que
o recorrente reputa inconstitucional “pelo facto do Tribunal da Relação alterar
a matéria de facto contida nesse mesmo relatório pericial”, reitere-se que, no
nosso sistema de fiscalização concentrada e incidental da constitucionalidade,
não cabe ao Tribunal Constitucional nem controlar o modo como a matéria de facto
foi apurada pelos tribunais recorridos, nem sequer controlar o mérito da decisão
recorrida, em si mesma, ou, sequer, apurar se as normas nela aplicadas
correspondem ou não ao melhor direito. No recurso de constitucionalidade, tal
como foi delineado pela Constituição da República e pela Lei do Tribunal
Constitucional, este é apenas um órgão de fiscalização da constitucionalidade de
normas, em si mesmas consideradas na interpretação que lhes for dada pela
decisão recorrida. Não pode, pois, ser apreciada a questão de
constitucionalidade da decisão – do acto de aplicação do direito –, mas, apenas,
da norma que nela haja sido aplicada. Como se pode ler no Acórdão n.º 604/93,
publicado no Diário da República, II série, de 29 de Abril de 1994:
[...] Importa referir que o legislador constituinte referencia como elemento
definidor do objecto típico da actividade do Tribunal em matéria de fiscalização
de constitucionalidade – designadamente, de fiscalização concreta – o conceito
de ‘norma jurídica’. Assim, apenas as normas podem ser objecto de controlo
constitucional e não as decisões judiciais enquanto tais.
A este respeito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Fundamentos da
Constituição, 1991, p. 258): “pode-se atacar uma decisão judicial – recorrendo
dela para o TC – se ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se
deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode
impugnar junto do TC uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer
motivo a Constituição.” (Cfr. também os Acórdãos n.ºs 595/97, 338/98, 520/99 e
232/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Como este Tribunal tem afirmado repetidamente, nada obsta a que seja questionada
apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito.
Porém, nesses casos, o recorrente tem o ónus de indicar, de modo claro e
perceptível, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a exacta
dimensão normativa do preceito que entende não dever ser aplicada por ser
incompatível com a Constituição. Como se disse, entre muitos outros, no Acórdão
n.º 21/2006 (também ele disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), “identificar uma interpretação normativa é, no
mínimo, indicar com precisão o sentido dado à norma, para que o Tribunal, se
vier a julgar inconstitucional essa mesma norma – entendida nesse preciso
sentido –, possa enunciar, na decisão que proferir, de modo que todos os
operadores jurídicos disso fiquem cientes, qual a interpretação que não pode ser
adoptada, por ser incompatível com a Constituição”.
No requerimento de recurso de constitucionalidade o recorrente limitou‑se a
impugnar a constitucionalidade do artigo 431.º do Código de Processo Penal,
“pelo facto do Tribunal da Relação alterar a matéria de facto contida nesse
mesmo relatório pericial”, pelo que o que fez foi, antes, suscitar a
inconstitucionalidade da decisão, sem referir a desconformidade constitucional a
uma interpretação desse artigo, devidamente enunciada, que reputava
inconstitucional.
Tal modo de invocação de desconformidade constitucional, sem se individualizar
de forma clara a interpretação normativa que pretende ver apreciada, não
configura uma forma adequada, por perceptível, de suscitação da questão de
constitucionalidade.
Não se encontram, pois, preenchidos os requisitos para se poder tomar
conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, dizendo o
seguinte:
1°
A decisão de não tomar conhecimento do recurso interposto pelo recorrente, devia
ter sido precedida do cumprimento do disposto no nº 2 do art° 78° A, da LTC, O
QUE NÃO SE VERIFICOU.
Por outro lado,
2°
Face ao disposto nos art°s 51° e 75°‑A, desse mesmo diploma legal, Lei n° 28/82
de 15 de Novembro, quando o recurso apresentado, peque por deficiente ou por não
indicar elementos considerados necessários, o Exm° Sr. Juiz Conselheiro,
Presidente da Secção, ou Relator, notifica o autor do pedido para suprir
deficiências, ou, convidará o requerente a prestar as indicações em falta,
O QUE IGUALMENTE NÃO SUCEDEU.
Com efeito,
3º
A Exma Srª Juíza Conselheira-Relatora, no tocante às inconstitucionalidades
suscitadas quanto à interpretação que foi dada pelo Tribunal a quo, mantida pelo
Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos art°s 163°
n°2 e 431°, ambos do CPP, limita-se a dizer que não se encontram preenchidos os
requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso, quando, no nosso modesto
entender, deveria ter convidado o requerente a prestar a indicação dos elementos
em falta, de acordo com o previsto no n° 5 do art° 75º‑A, da LTC.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
pela seguinte forma à reclamação:
1°
Está-se fora do âmbito de aplicação das disposições legais citadas pelo
reclamante.
2°
Os fundamentos da decisão sumária em nada foram postos em causa pela presente
reclamação, que por isso, deverá ser indeferida.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, por
não abalar os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada.
Com efeito, e como se disse nessa decisão, num recurso, como o presente,
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional (LTC), apenas se pode conhecer da inconstitucionalidade de
normas, em si mesmas ou numa sua específica interpretação (dimensões
interpretativas do preceito). E, para que o Tribunal possa conhecer do objecto
do recurso, exige-se não só que as questões colocadas sejam de
constitucionalidade normativa – o que no presente caso é desde logo questionável
– mas também que o recorrente suscite, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma, ou, se só ele estiver em causa, de um dado
sentido ou dimensão normativa, que pretende submeter à apreciação deste Tribunal
e que tal norma, ou sentido normativo, tenha sido aplicada na decisão recorrida,
como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Desde logo, é manifestamente improcedente a invocação do disposto no artigo 51.º
da LTC, norma que versa sobre recebimento e admissão de processos de
fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade e que é, em razão
do seu objecto, inaplicável aos presentes autos de fiscalização concreta da
constitucionalidade.
Depois, uma coisa é a falta de requisitos do requerimento de interposição de
recurso, susceptível de sanação; outra, diversa, é a falta de pressupostos de
admissibilidade do recurso. O convite de aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e 6
do artigo 75.º-A da LTC reporta-se, apenas, aos requisitos do requerimento de
interposição de recurso constantes dos n.ºs 1 a 4 do mesmo artigo, e não aos
pressupostos processuais do recurso, cuja falta é logicamente insusceptível de
suprimento. Na verdade, é seguro que tal convite não se justificará nem, muito
menos, se imporá – antes, sendo um acto inútil, não deverá ter lugar – quando,
pela análise dos autos, se deva logo concluir, sem dúvidas, que se não podem
verificar os requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade. Tal convite não teria então qualquer sentido, pois não
permitiria ultrapassar uma falta de verificação dos pressupostos do recurso que
é independente de qualquer incompletude do respectivo requerimento, e já não
pode ser suprida por qualquer aperfeiçoamento deste requerimento.
É justamente este o caso presente. Do ponto de vista da decisão reclamada, não
estão preenchidos os pressupostos essenciais para que se possa conhecer do
objecto do recurso. E essa falha nos pressupostos para o conhecimento do objecto
do recurso não poderia ser já corrigida através de uma resposta a um convite a
aperfeiçoamento do requerimento do recurso, como pretende o reclamante.
Em relação à norma do artigo 158.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo
Penal, interpretado “no sentido do Tribunal «a quo» indeferir o requerimento
para realização de novas perícias”, verificou-se a falta de suscitação, durante
o processo, da questão normativa de (in)constitucionalidade em causa. Não faria
sentido convidar o recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição
de recurso, quando o pressuposto em falta para se dele poder tomar conhecimento
não podia ser suprido pela resposta que viesse a ser dada a esse convite.
O mesmo se diga quanto à norma do artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, interpretado no sentido de o Tribunal a quo “não fundamentar devidamente
a divergência existente entre o teor constante do relatório pericial da
psiquiatria e o acórdão”, sendo também claro que a decisão reclamada se
fundamentou, não na falta de um “cabal cumprimento” das exigências constantes do
artigo 75.º-A, n.ºs 1 a 4, da LTC, mas antes na constatação de que ao acórdão
recorrido não esteve subjacente a interpretação normativa tida por
inconstitucional, com a consequente inutilidade de conhecimento do recurso.
A respeito da norma do artigo 431.º do Código de Processo Penal, “pelo facto do
Tribunal da Relação alterar a matéria de facto contida nesse mesmo relatório
pericial”, impeditivo do conhecimento do objecto do recurso foi, não
propriamente a insuficiência do respectivo requerimento, mas antes a falta de
suscitação adequada, por parte do recorrente, de qualquer questão de
constitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido durante o processo.
Por último, diga-se que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de asseverar
que o que se retira do disposto do n.º 2 do artigo 78.º-A da LTC é unicamente
que, nos casos em que, depois do convite previsto no artigo 75º-A, n.ºs 5 e 6,
da LTC, continue a faltar, no requerimento de interposição de recurso, a
indicação dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 a 4 do artigo 75.º-A da referida
LTC, deve ser lavrada decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Nada mais do que isto.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 19 de Setembro de 2007
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão