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Processo nº 452/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. No Tribunal da Comarca de Lisboa, o Ministério Público acusou, entre outros,
A. e B., o primeiro pela prática, em co-autoria material e em concurso real: de
um crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e continuada,
previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º,
alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à
Tabela anexa I-A e I-B e 30.º do Código Penal; de um crime de receptação na sua
forma continuada, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 e 30.º do Código
Penal; de um crime de posse de arma não manifestada e sem licença de uso e porte
de arma, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de
Junho. A segunda pela prática, em co-autoria material e em concurso real: de um
crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e continuada, previsto
e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b)
e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela anexa
I-A e I-B e 30.º do Código Penal; de um crime de receptação na sua forma
continuada, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 e 30.º do Código Penal.
Por acórdão da Vara de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga de 7 de
Dezembro de 2005 foram, entre outros, os arguidos A. e B. condenados: o primeiro
na pena única de sete anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico da pena de
sete anos de prisão pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de
estupefacientes na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1
do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e artigo 30.º do Código Penal, e da
pena de um ano de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma,
previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho; a
segunda na pena de sete anos de prisão, pela prática em co-autoria de um crime
de tráfico de estupefacientes na forma continuada, previsto e punido pelo artigo
21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e artigo 30.º do Código
Penal.
2. Inconformados, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães,
tendo, nas conclusões da respectiva motivação, suscitado as seguintes questões
de constitucionalidade:
(…)
5. O tribunal a quo interpretou as disposições conjugadas dos arts 188°, n° 4,
segunda parte, e 101º, n° 2, no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal não
tem de assinar o auto de transcrição dos gravações telefónicas nem sequer tem de
certificar a conformidade da transcrição.
6. Essa interpretação ofende o disposto nos arts 18°, n° 2, 32°, n.°s 1 e 8, e
34°, nºs 1 e 4, da CRP e é, por isso, inconstitucional, como tal devendo ser
declarada, caso venha a considerar-se que é esse o sentido e conteúdo daquelas
normas.
(…)
10. A interpretação contrária do artigo 188°, 3, adoptada pelo Juiz de
Instrução Criminal e acolhida pelo Tribunal a quo ao considerar válidas as
escutas efectuadas e ao valorizá-las como meio de prova superlativo e
determinante para a condenação dos Recorrentes, que permite a transcrição de
parte das gravações e a destruição definitiva e irremediável das partes
restantes, implica uma ofensa inaceitável das garantias de defesa dos Arguidos e
a violação ostensiva dos preceitos constitucionais já antes citados (arts 18°,
n° 2, 32°, n.°s 1 e 8, e 34°, n.°s 1 e 4, da CRP), sendo, por isso,
inconstitucional e como tal devendo ser declarada,
(…)
17. A interpretação do conjunto normativo integrado pela al. f) do n° 1 do
artigo 1º, e pelos arts 358° e 359º que qualifique como não substancial a
alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção
dolosa do agente ofende as garantias mínimas de defesa do Arguido e a estrutura
acusatória do processo, sendo, por Isso e por violação do disposto nos n.°s 1 e
5 do artigo 32° CRP, inconstitucional.
18. Deve, portanto, considerar-se tais factos como não escritos e, em
concomitância, absolver-se o Recorrente A. do crime de detenção ilegal de arma
de defesa p. e p. pelo artigo 6° da Lei 22/95, de 27 de Julho.
(…)
Por acórdão de 22 de Maio de 2006, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou
improcedentes os recursos interpostos, confirmando integralmente a decisão
recorrida.
3. A. e B. interpuseram então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
tendo, em 20 de Dezembro de 2006, sido proferido acórdão decidindo, entre o
mais, “[N]não conhecer dos recursos dos arguidos A. e B., na parte em que
suscitam as questões da nulidade das escutas e da alegada alteração substancial
dos factos, por as respectivas decisões do Tribunal da Relação serem
insusceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Deste acórdão vieram requerer «se esclareça se o douto acórdão em mérito
considera ou não que “a interpretação ... do art° 188°, n° 3, adoptada pelo Juiz
de Instrução Criminal e acolhida pelo Tribunal a quo ao considerar válidas as
escutas efectuadas e ao valorizá-las como meio de prova superlativo e
determinante para a condenação dos Recorrentes, que permite a transcrição de
parte das gravações e a destruição definitiva e irremediável das partes
restantes, implica a ofensa das garantias de defesa dos Arguidos e a violação
ostensiva dos preceitos constitucionais já antes citados (arts 18°, n° 2, 32°,
n°s 1 e 8, e 34°, n°s 1 e 4, da CRP)” e, por isso, se considera ou não que
aquela norma, assim interpretada, é inconstitucional», solicitação que foi
deferida por aresto de 7 de Fevereiro de 2007, em que se sublinha que “a decisão
sobre essa matéria, como o dispositivo do acórdão inequivocamente refere, não
foi a da improcedência do recurso, por se ter julgado inconstitucional a norma
citada, na interpretação assinalada. Foi sim, a do não conhecimento do mesmo, da
sua rejeição, por nessa parte, o acórdão recorrido ser insusceptível de recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça”.
4. Notificados deste aresto, A. e B. apresentaram o requerimento de fls. 4641 e
4641 verso, endereçado ao Desembargador Relator do Tribunal da Relação de
Guimarães, através do qual vieram interpor o presente recurso de
constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC),
fazendo-o “porque se não conformam com o, aliás douto, acórdão proferido no
processo crime identificado em epígrafe, pelo Tribunal da Relação de Guimarães
no dia 22 de Maio de 2006” e “para apreciação da inconstitucionalidade dos
seguintes diplomas e normas:
– disposições conjugadas dos arts 188°, n° 4, segunda Parte e 10lº, n° 2, CPP,
interpretadas no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal não tem de assinar
o auto de transcrição das gravações telefónicas nem sequer de certificar a
conformidade da transcrição, por ofensa do disposto nos arts 18°, nº 2, 32°, nºs
1 e 8, e 34°, nºs 1 e 4, CRP;
– art° 188°, n° 3, CPP, por ofensa dos citados arts 18°, n° 2, 32°, nºs 1 e 8,
e 34°, n°s 1 e 4, CRP;
– conjunto normativo integrado nela al. f) do nº 1 do art° 1º e pelos arts
358° e 359° do CPP, na interpretação que qualifique como não substancial a
alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção
dolosa do agente, por ofensa das garantias mínimas de defesa do Arguido e a da
estrutura acusatória do processo penal e, por isso, do disposto nos n°s 1 e 5 do
art° 32° CRP.
Determinada a produção de alegações, os recorrentes concluíram assim as suas:
1. A interpretação adoptada das disposições conjugadas dos arts 188°, nº 4,
segunda parte, e 101°, n° 2, CPP, segundo a qual o JIC não tem de assinar o auto
de transcrição das gravações telefónicas nem tem de certificar a conformidade da
transcrição é inconstitucional, por ofensa do disposto nos arts 18°, n° 2, 32°,
n°s 1 e 8, e 34°, n°s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
2. “A norma do artigo 188°, n° 3, do Código de Processo Penal, na interpretação
(adoptada) segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo Juiz de
Instrução Criminal, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se
possa pronunciar sobre a sua relevância” é inconstitucional, por violação dos
arts 18°, n° 2, 32°, n°s 1 e 8, e 34°, nºs 1 e 4, da CRP.
3. A interpretação adoptada dos arts 1°, n° 1, al. f), 358° e 359° CPP, e em
que assenta a condenação do Recorrente A. como autor material de um crime de
detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art° 6° da Lei n° 22/95, de 27
de Julho, que qualificou como não substancial a alteração dos factos relativos
aos elementos da factualidade típica e à intenção do agente e permitiu que os
mesmos passassem a constar da sentença apesar de não constarem da acusação, é
inconstitucional porque viola a estrutura acusatória do processo penal e,
portanto, o disposto nos nºs 1 e 5 do art° 32° da Lei Fundamental.
O Ministério Público contra-alegou, sustentando a não inconstitucionalidade de
todas as normas do Código de Processo Penal, na interpretação que delas fizera a
decisão recorrida.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
5. No presente recurso de constitucionalidade são colocadas ao Tribunal
Constitucional três questões distintas.
Incide a primeira sobre as disposições conjugadas dos artigos 188º, nº 4 e 101º,
nº 2, do Código de Processo Penal. Mais precisamente, pergunta-se se será ou não
inconstitucional – por violação dos artigos 18º, nº 2; 32º, nºs 1 e 8; 34º, nºs
1 e 4 da Constituição – a norma a extrair da leitura combinada da parte final
das duas disposições do CPP, quando interpretada no sentido de não impor ao Juiz
de Instrução Criminal (i) o dever de assinar o auto de transcrição de conversas
telefónicas interceptadas e gravadas e (ii) o dever de certificar a conformidade
do conteúdo da transcrição com o conteúdo do material gravado.
A segunda questão incide sobre o nº 3 do artigo 188º do Código de Processo
Penal. Pretende-se com ela saber se será ou não inconstitucional – por violação,
ainda, dos artigos 18º, nº 2; 32º, nºs 1 e 8º; 34º, nº 1 e 4º da Constituição –
a norma contida naquela disposição, quando entendida de forma a permitir a
destruição parcial das gravações das conversas telefónicas interceptadas, sem
que o escutado as tenha podido ouvir e controlar.
Finalmente, incide a terceira questão sobre o «conjunto normativo integrado pela
alínea f) do nº 1 do artigo 1º, e pelos artigos 358º e 359º do CPP». Pergunta-se
agora se será ou não inconstitucional – desta vez, por violação dos nºs 1 e 5 do
artigo 32º da Constituição – um tal «conjunto normativo», quando interpretado de
forma a que se «qualifique como não substancial a alteração dos factos relativos
aos elementos de factualidade típica e à intenção dolosa do agente».
Cada uma destas questões será examinada separadamente.
A)
Do primeiro problema de constitucionalidade: assinatura e certificação dos autos
de transcrição de escutas telefónicas
6. Sustentam os recorrentes, nesta primeira questão, que a Constituição impõe
ao Juiz de Instrução Criminal que tiver ordenado ou autorizado a intercepção e
gravação de conversas ou comunicações telefónicas: (i) o dever de assinatura do
auto de transcrição das mesmas (auto a que se refere o nº 3 do artigo 188º do
CPP); (ii) o dever de certificação da conformidade de conteúdos (de conformidade
entre o conteúdo das gravações e o conteúdo das transcrições).
Alegam os recorrentes que tais deveres decorrem antes do mais da lei ordinária,
pois que – dizem – é clara a sua consagração na parte final do nº 4 do artigo
188º e na parte final nº 2 do artigo 101º do CPP.
Dispõe o nº 4 do artigo 188º:
Para efeitos do disposto do número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando
entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se
necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações,
o disposto no artigo 101º, nº 2 e 3. (itálico aditado).
Determina o nº 2 do artigo 101º:
Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes
da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na sua
impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais curto
possível, sendo os respectivos encargos suportados os termos fixados no Código
das Custas Judiciais, devendo a entidade que presidiu ao acto certificar-se da
conformidade da transcrição, antes da assinatura. (itálico aditado).
No entanto – e a ideia deve ser desde já sublinhada – a questão que agora se
coloca não é a de saber se os referidos deveres judiciais de assinatura e
certificação dos autos decorrem, ou não, da leitura conjugada destes dois
preceitos. Como (e o ‘facto’ é bem conhecido) não é ao Tribunal Constitucional
que cabe a tarefa da interpretação e aplicação do direito ordinário, em causa
está – não pode deixar de estar – uma questão diferente, bem mais precisa: a de
saber se, face à Constituição, só haverá uma única interpretação possível da
norma contida nas duas disposições, interpretação essa que concluirá pela
existência dos referidos deveres judiciais.
Esta última ideia é, também ela, perfilhada pelos recorrentes, que se não
limitam a indicar a normação ordinária como sendo a única fonte de existência
dos dois deveres. In casu, o que se foi dizendo ao longo do processo e se
repetiu no recurso de constitucionalidade – constituindo esse dito, aliás, a
razão de ser do conhecimento do recurso, quanto a esta questão, por parte do
Tribunal Constitucional – foi algo mais. Sustentou-se [e sustenta-se] que é
afinal a própria Constituição a fonte última da existência dos deveres judiciais
de assinatura dos autos e de certificação dos seus conteúdos, por ser esse o
único sentido possível que os artigos 18º, nº 2; 32, nºs 1 e 8; 34º, nºs 1 e 4
da CRP permitem que se atribua às normas infraconstitucionais. Resta, pois, ao
Tribunal determinar se assim é: se a Constituição impõe ou não uma única leitura
para o disposto nos artigos 188º, nº 4 e 101, nº 2 do CPP, e se essa única
leitura tem um conteúdo idêntico ao que é alegado pelos recorrentes.
7. Assim equacionado, o problema posto pelos recorrentes é em certa medida novo
face ao já rico acervo da jurisprudência constitucional sobre escutas
telefónicas.
Enquanto meio excepcional de obtenção de prova em processo penal
(excepcionalidade essa, note-se, que é desde logo reconhecida pelo nº 3 do
artigo 126º do CPP), a intercepção e gravação de conversações ou comunicações
telefónicas só podem ser efectuadas nos quadros estreitos dos procedimentos
fixados pelos artigos 187º e 188º do Código de Processo Penal. Tais
procedimentos formam um ‘sistema’, dotado de coerência interna porque assente
antes do mais numa lógica dual. O legislador ordinário entendeu que devia
disciplinar tanto os pressupostos das escutas quanto os termos da sua execução.
Da disciplina dos pressupostos (ou seja, da definição das condições que devem
estar reunidas para que se possa ordenar ou autorizar a intercepção e gravação
das comunicações) cuida o artigo 187º do CPP; da disciplina dos termos da
execução (ou seja, da definição do tempo e do modo de acompanhamento das
intercepções já ordenadas ou autorizadas) cuida o artigo 188º.
Tem sido este último artigo (e, portanto, a disciplina que nele se contém dos
termos de execução das escutas) o objecto principal da jurisprudência já
existente sobre o tema.
Com efeito, tanto o Acórdão (seminal) nº 407/97 quanto os que o seguiram –
Acórdãos nºs 347/2001; 528/2003; 379/2004; 223/2005, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt – ao incidirem sobre o sentido a atribuir ao
advérbio imediatamente, inserto no enunciado do nº 1 do artigo 188º, acabaram
por restringir o seu campo de análise à constitucionalidade da disciplina legal
dos termos da execução das escutas, sem se debruçarem ex professo – porque tal
não era pedido – sobre a conformidade constitucional do outro tandem do sistema,
o dos pressupostos, contido no artigo 187º. Aliás (e para usar a expressão feliz
do Acórdão nº 426/2005: DR, II série, nº 232, 5/12/2005, p. 17004) toda esta
jurisprudência acabou por incidir sobre o tempo, que não sobre o modo, do
acompanhamento das escutas: mesmo constituindo o artigo 188º o objecto do seu
campo de análise, as questões analisadas acabaram por se limitar a apenas uma
parte da disciplina dos termos da execução das intercepções.
É evidente que o problema que nos ocupa se inscreve ainda no âmbito desta mesma
disciplina. No entanto, o que agora está em causa já não é a questão [da
constitucionalidade] do regime de tempo do acompanhamento das escutas. O que
está em causa é [a constitucionalidade] do modo do seu acompanhamento. Deste
ângulo das coisas só se ocuparam, até agora, e numa perspectiva diversa daquela
que aqui interessa, os Acórdãos nºs 426/2005 e 660/2006; a eles voltaremos. De
imediato, um outro ponto deve ser sublinhado.
8. Apesar de a questão agora em análise ser, em certa medida, nova, para o
acervo da jurisprudência existente, a verdade é que a sua correcta equação
jurídico‑constitucional só pode e deve ser ensaiada se se tiver em conta o
lastro deixado pelas anteriores decisões do Tribunal sobre o mesmo tema. Ora
desse lastro resultam algumas conclusões claras que não podem deixar de ser
recordadas.
A primeira – e primeira na ordem lógica das coisas – é naturalmente aquela que
diz respeito ao fundamento constitucional do regime fixado nos artigos 187º e
188º do CPP.
A conclusão firmou-se logo no Acórdão nº 407/97 (DR, II série, nº 164, 18/7/97,
p. 8604). A existência, no Código de Processo Penal, de um regime sobre «escutas
telefónicas» deve-se a uma autorização expressa da Constituição. Tal regime só
existe porque a Constituição expressamente autoriza a sua existência: é o que
decorre do nº 1 do artigo 34º, dos nºs 1 e 2 do artigo 18º, e do nº 4 do artigo
34º da CRP. Sendo o direito ao sigilo dos meios de comunicação privada (dito
inviolável pelo nº 1 do artigo 34º) um direito fundamental directamente
aplicável (artigo 18º, nº 1), a sua restrição terá que ser autorizada pela
própria Constituição (artigo 18º nº 2); a previsão, por lei ordinária, de um
regime que permita às autoridades públicas a intercepção e gravação de
conversações telefónicas sem o consentimento dos intervenientes é,
evidentemente, uma restrição; tal restrição legal só existe porque a
Constituição, no nº 4 do artigo 34º, expressamente a autoriza. Não cuidaremos
agora da questão de saber se serão ou não também constitucionalmente admissíveis
restrições só implicitamente autorizadas, e de qual o sentido exacto que deva
ser atribuído à primeira frase do nº 2 do artigo 18º da CRP: a colocação do
problema é aqui inútil, dado conter o nº 4 do artigo 34º uma autorização
expressa para restringir. Aliás, a autorização é concedida por intermédio de uma
reserva de lei qualificada: a «compressão» do direito só pode ser feita nos
termos da lei e em «matéria de processo criminal». Eis, pois, a razão de ser dos
artigos 187º e 188º do CPP.
A segunda conclusão, (e segunda, também, na ordem lógica das coisas) é aquela
que diz respeito às finalidades da autorização constitucional que acabou de ser
analisada. E também aqui tem sido constante a jurisprudência constitucional
iniciada em 1997: a reserva de lei qualificada que se encontra inserta no nº 4
do artigo 34º da CRP implica a devolução ao legislador ordinário de uma tarefa
de ponderação de bens (Ac. 407/97, loc.cit.; Ac. 347/2001, DR, II série, nº 260,
9/11/2001, p. 18631; Ac. 526/2003, DR, II série, nº 290, 17/12/2003, p. 18449).
Os bens jurídicos protegidos pelo «direito à palavra» e à «reserva de intimidade
da vida privada» – artigo 26 da CRP – e que são contíguos daquele outro que é
protegido pelo «direito à inviolabilidade dos meios de comunicação privada» –
artigo 34º, nº 1 da CRP – devem ser ponderados, ou sopesados, de forma a que se
possam conciliar com o «interesse» ou «valor» constitucionalmente protegido da
correcta prossecução, em Estado de direito, da justiça penal.
O nº 4 do artigo 34º da Constituição limita-se a devolver ao legislador
ordinário, «em matéria de processo criminal», a tarefa da conciliação entre
estes diferentes bens e interesses constitucionalmente protegidos; nada diz,
portanto, quanto ao método que deve ser seguido nessa tarefa de conciliação. Por
este motivo já sustentou o Tribunal, no Ac. 426/2005 (loc.cit., p. 16 998), que,
contendo o referido nº 4 apenas uma reserva de lei, o princípio da reserva do
juiz – isto é, o princípio segundo o qual, no processo de obtenção deste meio de
prova, se deveria atribuir exclusivamente ao juiz a competência para a prática
daqueles actos que se mostrassem mais lesivos dos direitos fundamentais atrás
mencionados – não decorreria em si mesmo daquele lugar da Constituição. No
entanto, e como o afirmou recentemente a doutrina (José Manuel Damião da Cunha,
«De novo as escutas telefónicas», em Jurisprudência Constitucional, nº 8, p. 51)
o ‘facto’ de o princípio da reserva de juiz não figurar como princípio escrito
no já referido nº 4 do artigo 34º da CRP não permite por si só que se
desconsidere a sua função com «princípio geral do sistema», especialmente
identificada no nº 4 do artigo 32º. Assim, e como a ideia do «juiz amigo das
liberdades» perpassa por todo o texto constitucional – v.g. artigos 33º, nº 2;
34º, nºs 2 e 3 – foi naturalmente em cumprimento da Constituição que os artigos
187º e 188º do CPP a adoptaram, estabelecendo «reservas de juiz» tanto a
propósito da competência para ordenar ou autorizar «escutas telefónicas» (artigo
187º, nº 1), quanto a propósito da competência para o acompanhamento da execução
das mesmas (artigo 188, nº 1) e da sua valoração como meio de prova (artigo 188,
nº 3). Esta, é pois, a terceira e última conclusão que o lastro deixado pela
jurisprudência constitucional permite que se retire.
A arquitectura essencial dessa mesma jurisprudência inclui, assim, três
afirmações essenciais: (i) o regime contido nos artigos 187º e 188º
fundamenta-se numa autorização constitucional expressa para a restrição legal de
direitos; (ii) tal sucede porque é necessário conciliar, «em matéria de processo
penal», certos bens jurídico-constitucionais com outros «interesses» ou
«valores», também constitucionalmente protegidos; (iii) o princípio da «reserva
de juiz» é, em cumprimento da Constituição, um elemento essencial do método
adoptado pelo legislador ordinário para levar a cabo tal tarefa de conciliação
entre diferentes «bens» e «interesses» protegidos.
Esta última conclusão assume particular importância para a resolução do problema
que nos ocupa.
Com efeito, quando se pergunta se a única leitura possível – e possível face à
CRP – da norma resultante da parte final do nº 4 do artigo 188º e da parte final
do nº 2 do artigo 101º do CPP será aquela que conclui pela existência dos
deveres judiciais de assinatura do auto de transcrição das escutas e de
certificação da conformidade do seu conteúdo, o que se procura saber é, afinal,
qual a extensão e o âmbito que deve ter o princípio da «reserva de juiz»,
adoptado pelo legislador ordinário em obediência à Constituição. Até onde deve
ir a competência exclusiva (e excludente) que é atribuída ao juiz de instrução
para a prática de certos actos, identificados no artigo 188º do CPP? Deve
entender-se que a Constituição obriga a que ela se estenda à [prática do acto]
«assinatura do auto de transcrição» e à [prática do acto] «certificação de
conformidade da transcrição»? Eis o núcleo essencial do primeiro problema que é
colocado ao Tribunal pelo presente recurso de constitucionalidade.
9. Deve dizer-se desde já que é claramente negativa a resposta a dar à pergunta
atrás enunciada. É claro que a Constituição não exige que a «reserva de juiz»,
consagrada em vários passos do artigo 188º do CPP, tenha um âmbito e uma
extensão tal que vá ao ponto de incluir a competência (exclusiva e excludente)
do JIC para a prática dos actos que se traduzem na assinatura dos autos de
transcrição das escutas e na certificação da conformidade do conteúdo das
conversações transcritas e das conversações gravadas. O fundamento da resposta
negativa radica essencialmente num juízo de proporcionalidade. Vejamos por quê.
9.1. Da jurisprudência constitucional sobre «escutas» não se retiram, apenas,
as três conclusões essenciais que atrás assinalámos. Para além delas, dois
outros pontos têm merecido a atenção – e a aceitação – do Tribunal. Um deles diz
respeito à possibilidade de aplicação do conceito de «intervenção restritiva»
àqueles actos do juiz que, incluindo-se embora no âmbito da sua competência
reservada (para o que agora interessa, em procedimentos de acompanhamento de
«escutas telefónicas»), podem no entanto vir a ser especialmente lesivos dos
direitos afectados pelas «escutas». O segundo ponto diz respeito à função que
tem o princípio da proporcionalidade, enunciado em geral no nº 2 in fine do
artigo 18º da CRP, quer enquanto parâmetro autónomo de valoração das ditas
«intervenções restritivas», quer enquanto elemento orientador da determinação do
âmbito (e da extensão) da reserva do juiz. Desenvolvamos cada um destes pontos.
O conceito de «intervenção restritiva», construído pela doutrina, implica que a
ideia de restrição de direitos – inicialmente pensada para valer, apenas, para
normas gerais e abstractas incluídas em leis ordinárias autorizadas a restringir
– seja extensivo também àqueles «actos ou actuações das autoridades públicas
restritivamente incidentes de modo concreto e imediato sobre um direito» (assim
mesmo, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7ª ed. Coimbra, Almedina, 2003, p. 451 e Jorge reis Novais, As Restrições aos
Direitos não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, Coimbra
Editora, 2003, pp. 205 e segs.) A utilidade do conceito está em ele tornar claro
que os actos não normativos – maxime, administrativos e judiciais –, podendo
também eles ser restritivos de direitos, devem estar submetidos, na parte que
lhes for por natureza aplicável, aos limites fixados pelo artigo 18º, nºs 2 e 3
da CRP: a restrição operada por tais actos terá em qualquer caso que ser
proporcional e não poderá «diminuir o conteúdo e alcance dos preceitos
constitucionais».
Embora o Tribunal só tenha usado expressamente o termo «intervenção restritiva»
no Acórdão nº 660/2006 (ponto 14 da fundamentação), a verdade é que foi a
aceitação plena do significado que lhe subjaz que orientou toda a sua
jurisprudência sobre «escutas telefónicas», sobretudo aquela que incidiu sobre o
tempo devido do seu acompanhamento judicial. O Tribunal partiu do princípio
segundo o qual as questões de constitucionalidade levantadas a propósito das
«escutas» se não resolviam só através da existência de um regime legal
«conciliador» de bens e metodologicamente assente no princípio da «reserva de
juiz»; e que era necessário garantir, para além disso, que as competências
judiciais reservadas fossem exercidas em conformidade com a Constituição. Foi
essa garantia que o Tribunal procurou obter com as decisões contidas nos
Acórdãos nºs 407/97, 347/2001, 528/2003, et alia (dentro, evidentemente, do
âmbito dos seus poderes cognitivos, que, como se sabe, só lhe permite conhecer
da constitucionalidade de normas e de dimensões normativas e nunca da
constitucionalidade de actos), decisões essas que visaram impedir que as
competências judiciais reservadas pudessem vir a ser exercidas de forma
desproporcionada ou lesiva do conteúdo essencial dos direitos. Isto mesmo se
disse, aliás, no Acórdão 407/97: “o critério interpretativo neste campo não pode
deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos
afectados pela escuta telefónica”, pelo que, “[tratando-se] aqui de precisar o
conteúdo constitucionalmente viável do trecho do artigo 188º, nº 1, do Código de
Processo Penal, onde surge a expressão ‘imediatamente’, [a interpretação]
carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura do princípio da
proporcionalidade, subjacente ao artigo 18º, nº 2 da Constituição, garantindo
que a restrição do direito fundamental em causa (de qualquer direito fundamental
que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa, possa afectar) se limite
ao estritamente necessariamente à salvaguarda do interesse constitucional na
descoberta de um concreto crime e punição do seu agente” (loc. cit., p. 8606;
itálico aditado)
Contudo – e este é ponto que agora interessa salientar – o Tribunal não se
limitou a usar o princípio da proporcionalidade como parâmetro de avaliação do
modo de exercício das competências reservadas ao juiz; usou-o também como
critério orientador da determinação do âmbito e da extensão da própria reserva.
A ideia é primeiro enunciada no Acórdão 497/97. Aí se disse: “Já se indicou que
o critério interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que assegure
a menor compressão possível dos direitos fundamentais afectados pela escuta
telefónica. Também já se assentou – e importa lembrá-lo de novo – que a
intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe
nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma
intervenção substancial se trate (…) pressupõe o acompanhamento da intercepção
telefónica. [.] Com isto não se quer significar que toda a operação de escuta
tenha que ser materialmente realizada pelo juiz. Contrariamente a tal visão
maximalista, do que aqui se trata é, tão-só, de assegurar um acompanhamento
contínuo e próximo temporal e material da fonte, acompanhamento esse que
comporte a possibilidade real de, em função do decurso da escuta, ser mantida ou
alterada a decisão que a determinou” (loc. cit., p. 8606). Subjacente a este
discurso está o princípio segundo o qual, não podendo a reserva de juiz –
rectius,o seu âmbito e extensão – ser definido aprioristicamente (num a priori
«maximalista»), o modo constitucionalmente conforme da sua determinação implica
o recurso a um juízo de adequação de «meios» a «fins». É, afinal, desse juízo de
adequação, ou de proporcionalidade, de que se fala, quando se identificam as
finalidades da reserva (‘a possibilidade real de, em função do decurso da
escuta, ser mantida ou alterada a decisão que a determinou’), e dela se retiram
as consequências lógicas (‘do que se trata é, tão só de assegurar um
acompanhamento…’).
A aplicação deste pensamento viria no entanto a ser levada até à suas últimas
consequências no Acórdão nº 426/2005. Aí se decidiu «[n]ão julgar
inconstitucional a norma do artigo 188º, nºs 1, 3, e 4 do Código de Processo
Penal, interpretada no sentido de que são válidas as provas obtidas por escutas
telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução,
não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos
contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela
Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogos» (DR,
II série, nº 232, 5/12/2005, p. 17006).
A decisão, inspirada na ideia que fora enunciada no Acórdão nº 407/97 (segundo a
qual, recorde-se, o âmbito da reserva de juiz não deveria ser compreendido de
modo «maximalista»), fundamentou-se nos seguintes termos: «Há que fazer uma
interpretação deste requisito jurisprudencial funcionalmente adequada à sua
razão de ser. E os propósitos visados consistem, como se assinalou, em propiciar
que seja determinada a interrupção da intercepção logo que a mesma se revele
desnecessária, desadequada ou inútil, e, por outro lado, fazer depender a
aquisição processual da prova assim obtida a um «crivo» judicial quanto ao seu
carácter não proibido e à sua relevância.» (ibidem)
9.2. Face a este lastro, tão nitidamente deixado pela jurisprudência – quer
quanto à natureza potencialmente restritiva das «intervenções» do juiz, quer
quanto ao método constitucionalmente conforme de determinação do âmbito das suas
competências reservadas –, importa concluir, respondendo nesta parte à questão
colocada pelo recurso de constitucionalidade. Deve, face a tudo quanto se disse,
entender-se que integram a âmbito da «reserva de juiz» tanto a assinatura do
auto de transcrição das escutas telefónicas efectuadas quanto a certificação da
conformidade entre o que foi transcrito e o que foi gravado, de modo a que se
entenda que tais actos têm, em qualquer caso, que ser praticados pelo juiz de
instrução e só por ele?
A resposta afirmativa a esta questão só seria possível se se provasse que:
(i) Face ao regime legal vigente, a não inclusão destes actos no âmbito da
«reserva judicial» seria por si só condição suficiente para que tais actos se
transformassem em «intervenções restritivas», desproporcionadamente lesivas dos
direitos afectados pelas escutas; e (ii) a sua inclusão naquele mesmo âmbito
seria condição necessária para que se cumprissem as finalidades,
constitucionalmente fundadas, da «reserva de juiz».
Ora a verdade é que nenhuma destas afirmações pode, em rigor, ser logicamente
provada.
Por um lado, e quanto a (i) recorde-se – como o faz o representante do
Ministério Público no Tribunal – que o arguido tem, nos termos do nº 5 do artigo
188º do Código de Processo Penal, o direito de «examinar o auto de transcrição a
que se refere o nº 3 para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem,
à sua custa, cópias dos elementos naqueles referidos». A possibilidade de
exercício de um tal direito impede que, por si só, a ausência do JIC (na
assinatura do auto de transcrição e na certificação da conformidade) se traduza
inelutavelmente numa «intervenção restritiva», constitucionalmente proibida, nos
direitos afectados pelas escutas. Por outro lado, e quanto a (ii), recorde-se –
como o fazem os Acórdãos nºs 407/97 e 426/2005 – que a finalidade que, face à
Constituição, tem a «reserva de juiz» (na fase de acompanhamento das escutas) é
a «comportar a possibilidade real de, em função do decurso [das mesmas], ser
mantida ou alterada a decisão que a determinou» e de «fazer depender a aquisição
processual da prova assim obtida de um ‘crivo judicial’ quanto ao seu carácter
não proibido e quanto à sua relevância». Não existe um elo de adequação
necessária entre a prossecução de uma tal finalidade e a assinatura, pelo JIC,
do auto de transcrição das escutas (ou a certificação pelo mesmo do conformidade
do conteúdo do material transcrito e o material gravado). No âmbito da
disciplina definida pelo artigo 188 do CPP – disciplina essa que ordena, quanto
a esta fase de aquisição da prova, os termos em que se processa a colaboração
entre o juiz de instrução e o órgão de investigação criminal – tal finalidade
poderá ainda ser cumprida, mesmo que os actos atrás referidos não venham a ser
praticados pelo juiz de instrução criminal.
Como já se disse – e convém agora repeti-lo – não está aqui em causa a questão
de saber qual será, quanto a estes pontos, a melhor interpretação do direito
ordinário; em causa está somente a questão de saber se existe, face à
Constituição, uma única leitura possível da norma a extrair da parte final do nº
4 do artigo 188º e da parte final do nº 2 do artigo 101º do CPP. Sustentam os
recorrentes que sim – e que dessa única leitura possível decorre a existência
dos deveres judiciais que atrás analisámos. Não têm, porém, razão: nada permite
demonstrar que o juiz de instrução esteja constitucionalmente obrigado a assinar
os autos de transcrição das escutas a que se refere o nº 3 do artigo 188º do CPP
e a certificar-se, ele próprio, da conformidade do conteúdo do material
transcrito e do material gravado.
Assim, não é inconstitucional a norma contida na parte final do nº 4 do artigo
188º e na parte final do nº 2 do artigo 101º do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de não impor ao juiz de instrução criminal o dever de
assinar o auto de transcrição de conversas telefónicas interceptadas e gravadas
e o dever de certificar a conformidade do conteúdo da transcrição com o conteúdo
do material gravado.
B)
Do segundo problema de constitucionalidade:
a destruição parcial das gravações efectuadas
10. A segunda questão de constitucionalidade que é colocada pelos recorrentes
incide sobre o nº 3 do artigo 188 do CPP, que dispõe:
Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a
prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso
contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações
ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado
conhecimento.
Pergunta-se, mais precisamente, se será ou não inconstitucional – por violação
dos artigos 18º, nº 2; 32º, nºs 1 e 8; 34º, nºs 1 e 4 da CRP – a norma contida
no preceito, quando interpretada no sentido de permitir que o juiz de instrução
criminal ordene a destruição parcial das gravações efectuadas, sem que
previamente o arguido as tenha podido ouvir e controlar.
Note-se desde já que, tal como foi sendo formulada ao longo do processo (fls.
4360 e 4612), esta questão é substancialmente diversa daquela outra que acabou
de se analisar. O problema que se coloca já não é relativo à «reserva de juiz» e
à delimitação do seu âmbito. Com efeito, em momento algum se contesta que seja a
ordem de transcrição das gravações tidas por irrelevantes, ou, se for caso
disso, a ordem da sua destruição um acto naturalmente incluído na «reserva de
juiz». O que está em causa não é a questão de saber quem deve decidir
definitivamente sobre a relevância dos elementos de prova recolhidos, ordenando
a sua transcrição ou destruição, mas antes a questão de saber se, cabendo tal
decisão ao juiz de instrução criminal, pode ela ser tomada de tal forma que
implique a destruição de parte das conversas interceptadas e gravadas, sem que o
arguido tenha tido, antes, acesso às gravações na sua integralidade. Pergunta-se
mais precisamente se tal acto do juiz (que ordene a destruição parcial das
gravações) não será por si só uma «intervenção restritiva» dos direitos
fundamentais do arguido, constitucionalmente ilegítima.
10.1. Ora a questão, assim colocada, já foi objecto de decisão por parte do
Tribunal Constitucional.
Com efeito, no Acórdão nº 660/2006 decidiu-se «[j]ulgar inconstitucional, por
violação do artigo 32, nº1 da Constituição, a norma do artigo 188º, nº 3 do
Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição
de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o
órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são
considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha
conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua irrelevância.» (DR, II
série, nº 7, 10/1/2007, p. 756).
Entendeu o Tribunal que a inconstitucionalidade desta dimensão normativa do
preceito – idêntica, precisamente enquanto dimensão normativa, à que agora se
aprecia – decorria do facto de ela permitir «uma compressão inaceitável, e
desnecessária, das garantias de defesa do arguido, particularmente notória na
comparação da sua posição com a da acusação», pois que «o arguido, que já sofreu
uma intervenção restritiva – determinada e justificada apenas por razões de
necessidade – nos seus direitos fundamentais ao ser objecto de escutas
telefónicas, vê destruídos os registos dessas comunicações, de cujo conteúdo não
chega a tomar conhecimento, e não pode sequer pronunciar-se sobre a sua
relevância, enquanto a acusação (rectius, o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público) teve acesso ao conteúdo integral e completo das comunicações
e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes que considere relevantes
(artigo 188º, nº 1, parte final), tendo uma intervenção substancial anterior à
apreciação do juiz e à sua decisão sobre a relevância, que pode influenciar»
(loc. cit., p. 755).
Para sustentar esta conclusão – segundo a qual, finalmente, a norma em causa
propiciaria uma desigualdade de armas entre acusação e defesa
constitucionalmente inaceitável – invocou o Tribunal, quer o estado do direito
comparado sobre o tema (p. 754), quer a jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem (ibidem) quer a sua própria jurisprudência anterior, sobretudo
a decorrente dos Acórdãos nºs 426/2006 e 4/2006 (loc. cit., p. 748-754). Quanto
à jurisprudência europeia, recordou – tal como o já tinham feito os Acórdãos nºs
528/2003, 426/2005 e 4/2006 – o que esta vem dizendo desde 1990, a saber, «que
as legislações nacionais devem tomar precauções para assegurar a comunicação
intacta e completa das gravações efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e
pela defesa». Quanto à sua própria jurisprudência, invocou especialmente o que o
Tribunal dissera no Acórdão nº 426/2005 – já atrás analisado – e onde, como se
viu, foi decidido «[n]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 188º, nºs
1,3, e 4 do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que são válidas
as provas obtidas por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte,
determinada pelo juiz de instrução, não com base em prévia audição pessoal das
mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram
espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária, acompanhados das fitas
gravadas ou elementos análogos» (DR, II série, nº 232, 5/12/2005, p. 17006).
Particularmente importante para a decisão tomada quanto à destruição parcial das
gravações foi a afirmação contida neste último Acórdão, segundo a qual a
«selecção [a efectuar pelo juiz de instrução] dos elementos a transcrever
[seria] necessariamente uma primeira selecção, dotada de provisoriedade, podendo
vir a ser reduzida ou ampliada» (ibidem). O Tribunal entendeu que o carácter
«provisório» da primeira selecção a efectuar – carácter esse, note-se, que
ocupara um lugar de relevo na argumentação do Acórdão de 2005 – pressupunha a
preservação da integralidade das gravações, pois que, caso contrário, se
tornaria impossível que quer o juiz quer o arguido promovessem a «redução» ou
«ampliação» do seu âmbito.
10.2. Todos estes argumentos mantêm, no presente caso, inteira validade.
Não se vê por isso como contrariar a conclusão obtida pelo Tribunal no Acórdão
nº 660/2006, segundo a qual a ordem de destruição, pelo juiz de instrução, de
parte das gravações efectuadas no decurso da intercepção das telecomunicações,
dada sem que o arguido tenha tido possibilidade de acesso à integralidade das
mesmas, ‘comprime’ de forma ‘desnecessária e inaceitável’ as garantias de defesa
do arguido, consagradas em geral no artigo 32º, nº 1 da CRP.
Com efeito, para além das razões apresentadas pelo Tribunal naquele mesmo
Acórdão, outras há, que decorrem do que ficou dito na resposta dada à primeira
questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca.
Antes do mais, do que ficou dito quanto ao direito consagrado no nº 5 do artigo
188º do CPP.
Afirmou-se acima (ponto 9.2.) que a possibilidade de exercício de um tal direito
– que, recorde-se, confere ao arguido o poder de examinar o auto de transcrição
[a que se refere o nº 3 do artigo 188º] para se inteirar da conformidade das
transcrições – prevenia que a não assinatura, por parte do juiz de instrução,
daquele auto (ou a não certificação, pelo mesmo juiz, da conformidade entre o
que havia sido transcrito e o que havia sido gravado) se traduzisse, por si só,
numa «intervenção restritiva», constitucionalmente inaceitável, dos direitos de
defesa do arguido. No entanto, para que tal suceda, necessário é que o arguido
possa ter acesso à integralidade das gravações que foram efectuadas, para que –
como já disse o Tribunal no Acórdão nº 426/2005 (DR, II série, nº 232, p. 17006)
– «seja facultada à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a
transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz,
quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria quer por se
revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens
anteriormente seleccionadas.» Foi aliás este dito (citado pelo Acórdão nº
660/2006) que justificou a decisão tomada (e a nosso ver bem) pelo Tribunal no
já referido Acórdão nº 426/2005. Para que esta ‘arquitectura’ jurisprudencial
mantenha coerência, necessário é que se entenda que o exercício do direito que é
conferido ao arguido no nº 5 do artigo 188º do Código de Processo Penal
pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à integralidade das gravações
efectuadas no decurso das intercepções telefónicas.
Mas, para além disso, uma outra razão há para que se entenda que tal acesso é
constitucionalmente imposto, não dependendo da livre disposição do legislador
ordinário facultá-lo, ou não, à defesa.
Disse-se atrás que o regime fixado nos artigos 187º e 188º do CPP decorria de
uma autorização constitucional expressa – conferida ao legislador – para
restringir, «em matéria de processo criminal», o direito ‘inviolável’ do sigilo
dos meios de comunicação privada (artigo 34º, nº 4 e nº 1). Disse-se também que
o bem jurídico protegido por tal direito era refracção de outros bens jurídicos,
nomeadamente dos protegidos pelo «direito à palavra» e pelo direito à «reserva
de intimidade da vida privada» (artigo 26º da CRP). A este último direito – e ao
bem que ele protege – se voltará adiante. Por agora, atenhamo-nos apenas às
implicações que decorrem da garantia constitucional de um «direito à palavra».
O direito à palavra a que se refere o artigo 26º da CRP – próximo do direito à
imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente distinto do direito
à liberdade de expressão (artigo 37º) – pressupõe a existência de uma «liberdade
de disposição na área da comunicação não pública», em que o que é dito –
justamente por ser dito fora do espaço público, ou seja, não com o intuito de
ser escutado – faz parte da «acção comunicativa» espontânea, «inocente e
autêntica» (veja-se Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em
Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A esta esfera da
comunicação humana pertencem os discursos fragmentários, a «expressão não
reflectida nem contida», ou a «formulação apenas compreensível no contexto de
uma situação especial» (Tribunal Constitucional Federal Alemão, apud Manuel
Costa Andrade, ob. e loc. cit.). Quem «escuta» um discurso assim, feito para não
ser escutado, infere sentidos. A decisão unilateral e externa (isto é, tomada
sem o conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e ao modo da
descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido iniciais se
venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de redução da
compreensibilidade do que foi dito.
Um «processo devido em direito» – ou, como diz a Constituição no nº 1 do artigo
32º, um processo que «assegura todas as garantias de defesa» –, não pode ignorar
que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe-se porque tal já
foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável que a acusação,
que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações, sugira ao juiz quais
as ‘partes’ das gravações a transcrever, por serem essas as partes consideradas
relevantes para a prova (artigo 188º, nº 1, in fine do CPP), e que a sugestão
seja acolhida «não com base em prévia audição das mesmas [por parte do JIC] mas
por leitura de textos contendo a sua reprodução …acompanhados das fitas gravadas
ou elementos análogas» (Fórmula decisória do Acórdão nº 426/2005). Sabendo-se
tudo isto, difícil é não concluir que, no âmbito de ‘todas as garantias de
defesa’ a que se refere o nº 1 do artigo 32º da CRP, se conta também a
possibilidade de acesso do arguido à integralidade das gravações efectuadas no
decurso de operações de «escutas telefónicas», antes que seja dada a ordem da
sua destruição parcial.
Sustentar-se-á em contrário que uma tal leitura das coisas desconhece que, nos
termos do nº 5 do artigo 32º da Constituição, o princípio do contraditório vale
apenas para as fases de audiência de julgamento e para os «actos instrutórios
que a lei determinar», pelo que argumentar como se argumentou implicaria uma
visão radicalmente acusatória de todo o processo penal, em que o princípio do
contraditório dominaria, também, todo o inquérito – visão essa que, como se
sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note‑se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para a fase do
inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração da prova –
princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à fase de
audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata-se apenas de
garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve cumprir, ou
seja, «de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da
defesa» (assim mesmo, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª
ed., 1974, reimp. 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p. 150), de tal forma que o
arguido tenha uma posição processual equiparada quanto possível à do acusador
(ibidem p.149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar um processo
penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura radicalmente
acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao princípio contido no
nº 1 do artigo 32º da Constituição, pois que, «[e]m todas as garantias de defesa
engloba‑se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários para o
arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical
desigualdade material de partida entre acusação (normalmente apoiada pelo poder
institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante
específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.» (J.J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516.
10.3. Decorre dos presentes autos que a ordem dada, in casu, pelo juiz de
instrução – de destruição ‘definitiva’ e ‘irremediável’ de parte das gravações
efectuadas – o foi por razões apenas atinentes ao juízo, que ele próprio fizera,
de valoração das «escutas» como meios de prova. É aliás assim, ou a partir deste
pressuposto, que é colocada ao Tribunal a questão de constitucionalidade (fls.
4612 dos autos).
Deve no entanto considerar‑se que a ordem de destruição parcial das escutas pode
ainda ser justificada por outra razão, atinente à protecção da reserva da
intimidade da vida privada do próprio arguido e de terceiros. Colocar‑se‑á então
o problema de saber se, nesses casos, não será (precisamente ao contrário do que
até agora se tem vindo a defender) constitucionalmente devida a ordem do JIC de
destruição de parte das gravações efectuadas, por corresponder ela «à
possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na
reserva de intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26º, nº
2 da Constituição).» (DR, II série, nº 7, 10/1/2007, p. 757. Itálico aditado)
Não existem dúvidas quanto à inevitabilidade da colocação do problema.
Por serem expressão da «liberdade de disposição da comunicação não pública»,
inscrita no exercício do «direito à palavra», as comunicações privadas que são
interceptadas pelas «escutas» não contêm só discursos potencialmente
fragmentários, cujo sentido só pode ser, para quem «escuta», apenas inferido.
Faz parte também da especial estrutura comunicativa deste tipo de discurso, com
as suas fronteiras fluídas, que ele raramente se restrinja à esfera pessoal
daqueles que nele participam. Enquanto devassa da privacidade – na sua esfera
mais íntima – as «escutas» são por isso, frequentemente, manchas que alastram:
muitas vezes e por seu intermédio, «a revelação do segredo só se torna possível
com a revelação de segredos de terceiros.» (Manuel da Costa Andrade, ob. cit. p.
50).
Deve por isso ter-se em conta que o problema que nos ocupa – ou seja, a questão
de saber se será constitucionalmente admissível que o Juiz de Instrução ordene a
destruição de parte do material gravado, sem que dessa parte tenha conhecimento
o arguido – poderá em certos casos (que não seguramente o agora em juízo) ser
equacionado como um problema de colisão de direitos: o direito do arguido a um
processo equitativo, com todas as garantias de defesa, e que inclui, como já
vimos, a faculdade de acesso à integralidade das gravações efectuadas, pode
conflituar, no modo concreto do seu exercício, com direito ou direitos de
outrem, afectando os bens jurídicos por estes últimos protegidos. (Sobre a
colisão de direitos, em geral, J.J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 1270). No
entanto, tal em nada legitima que se conclua que a ordem judicial de destruição
de parte das gravações efectuadas será sempre constitucionalmente devida, por
corresponder à correcção, feita pelo tribunal, da devassa da intimidade de
terceiros. Uma tal conclusão só seria sustentável se os problemas de colisão de
direitos pudessem ser resolvidos através do sacrifício unilateral de um deles –
como se tivera o juiz constitucional uma habilitação genérica para declarar, em
situações de conflito, qual o direito a sacrificar e qual o direito a tutelar.
Nada permite sustentar que assim seja. O que não é de excluir é que, nas
circunstâncias em que a colisão ocorra, se deva fazer a ponderação entre o
direito do arguido a um processo devido e os direitos de terceiros ao segredo e
à reserva, podendo por isso vir a ser constitucionalmente permitida a
destruição, sem a audição do arguido, daquela parte das gravações que lesem
especialmente o segredo ou a intimidade de terceiros. Em última análise, porém,
caberá ao legislador ordinário identificar os casos em que deva ser feita a
ponderação.
Face ao regime legal vigente – e tendo em conta que ele obriga que todos os
participantes nas operações de «escutas» fiquem «ligados ao dever de segredo
relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento» (nº 3, in fine, do
artigo 188º do Código de Processo Penal) – não pode deixar de se julgar
inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º, da Constituição, a norma
contida na primeira parte do referido preceito, quando entendida no sentido de
permitir que o juiz de instrução ordene, por considerar relevantes para a prova,
a transcrição parcial das gravações de conversas telefónicas interceptadas, e
prescreva a destruição das partes restantes, antes de o arguido as ter ouvido e
controlado.
C)
Do terceiro problema de constitucionalidade:
a alteração substancial dos factos
11. Resta analisar a terceira questão de constitucionalidade posta pelo
presente recurso.
Sustentam os recorrentes, nesta última questão, que é inconstitucional o
«conjunto normativo integrado pela alínea f) do nº 1 do artigo 1º, e pelos
artigos 358º e 359º do CPP» quando interpretado de forma a que se «qualifique
como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos de
factualidade típica e à intenção dolosa do agente», por violação dos nºs 1 e 5
do artigo 32º da CRP.
Embora – e como muito bem se sabe – se situe aquém dos poderes cognitivos do
Tribunal Constitucional quer a apreciação da matéria de facto quer a sua
valoração jurídico‑penal, importa, neste caso, recordar de modo sumário tanto o
enquadramento de alguns factos quanto o juízo para eles fez o tribunal a quo. É
que, se assim não for, tornar‑se‑á imperceptível a própria questão de
constitucionalidade que, neste seu último ponto, o recurso coloca ao Tribunal.
Assim, resulta dos autos que:
1º – O recorrente A. foi acusado e pronunciado pela prática de um crime de posse
de arma não manifestada e sem licença de uso e porte de arma, previsto e punido
pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, porquanto na busca
realizada à sua residência se apreendeu no seu quarto uma pistola de calibre
6.35 mm, marca “Astra Unceta”, modelo Cub, com respectivo carregador, municiado
com seis munições do mesmo calibre (fls. 4366);
2º – Não constava, nem da acusação nem da pronúncia, que o arguido «não era
titular de licença de uso e de porte de arma», e que «conhecia as
características das pistolas que detinha» [e] «sabia ainda que não estava
autorizado a detê‑las» (fls. 4366 dos autos)
3º – No entanto, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de detenção
ilegal de arma, previsto e punido pelo artigo 6º, nº 1, da referida Lei nº
22/97, por ter sido considerado provado, na sentença condenatória que «o arguido
A. não é titular de licença de uso e porte de arma» e «conhecia as
características das pistolas que detinha, sabia ainda que não estava autorizado
a detê‑las», sendo certo que estes factos não constavam da acusação;
4º – Finalmente: como consta de acta para que se remete a fls. 4365, da decisão
recorrida, deu‑se nessa altura conhecimento ao arguido da alteração – que se
qualificou como não substancial – «nos termos e para os efeitos do disposto no
art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP»;
5º – Embora o arguido se tivesse oposto à qualificação da alteração como
não‑substancial, foi a mesma confirmada pela decisão recorrida (fls. 4368), por
se ter entendido que, in casu, «os factos referidos se traduziam em meros factos
concretizantes de actividade criminosa do arguido sem repercussões agravativas
na [sua] estratégia de defesa».
É desta decisão – rectius, da interpretação que nela foi feita das normas
contidas nos artigos 1º, nº 1, f), 358º e 359º do CPP – que vem recorrer agora
A., alegando a inconstitucionalidade da dimensão normativa adoptada por
«violação da estrutura acusatória do processo penal e, portanto, do disposto nos
nºs 1 e 5 do art. 32º da Lei Fundamental».
Vejamos então.
12. Assim colocada, a questão está muito longe de ser nova para a
jurisprudência do Tribunal Constitucional.
E o que a este propósito sempre se tem dito – v.g., nos Acórdãos nºs 173/92,
674/99, 463/2004, 72/2005 – é que, não cabendo ao Tribunal a reapreciação do
juízo feito pela decisão recorrida, nem quanto à qualificação dos factos nem
quanto à interpretação do direito (infraconstitucional) que lhes for aplicável,
decisivo para aferir da compatibilidade de uma determinada interpretação
normativa dos referidos artigos do Código de Processo Penal com a Constituição é
tão somente a questão de saber se essa interpretação normativa impede a
possibilidade de uma defesa eficaz do arguido, visto que é aí e só aí – na
garantia da possibilidade de uma defesa eficaz – que se situa a razão de ser, ou
o critério orientador, de toda a jurisprudência constitucional sobre o tema.
Perante o que atrás ficou descrito não se vê como pode a qualificação, feita
pelo tribunal a quo, de alteração não substancial dos factos, ter de algum modo
diminuído as possibilidades de defesa eficaz do arguido, ao ponto de se ter que
concluir pela inconstitucionalidade (por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da
Constituição) da leitura feita, por aquele tribunal, das normas constantes dos
artigos 1º, nº 1, alínea f), 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Por este motivo, não se concede, nesta parte, provimento ao recurso.
III
Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 188.º, n.º 4,
2ª parte, e 101º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a
qual o juiz de instrução criminal não tem de assinar o auto de transcrição das
gravações telefónicas nem tem de certificar a conformidade da transcrição;
b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de
instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa
pronunciar sobre a sua relevância;
c) Não julgar inconstitucional o conjunto normativo integrado pela alínea f) do
n.º 1 do artigo 1.º e pelos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal,
na interpretação que qualifique como não substancial a alteração dos factos
relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção dolosa do agente;
Consequentemente, conceder parcial provimento ao recurso e determinar a reforma
da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade
constante da alínea b).
Lisboa, 18 de Setembro de 2007
Maria Lúcia Amaral
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes (Vencido quanto à al. b) da decisão, nos termos da
declaração de voto do Senhor Conselheiro Carlos Fernandes
Cadilha para que, no essencial, remeto).
Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração
de voto junto)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à segunda questão de constitucionalidade analisada, de
acordo com o projecto de acórdão que elaborei no Processo n.º 457/07, em que me
pronunciei pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 188º, n° 3, do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o juiz de
instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas,
quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha
conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa.
Baseie-me essencialmente nas seguintes ordens de considerações, aqui apenas
sintetizadas, e que no presente processo, mantêm, na minha perspectiva, plena
validade.
O sentido lógico que é possível atribuir às disposições conjugadas dos n.ºs 1 e
3 do artigo 188º do Código de Processo Penal, numa interpretação conforme à
Constituição (que tenha presente o carácter excepcional dos meios de prova que
envolvam a violação de direitos fundamentais dos cidadãos), é aquele que entrevê
o procedimento judiciário aí previsto, nas suas diversas fases, como
finalisticamente dirigido à obtenção de elementos relevantes para a investigação
(e apenas desses), com a salvaguarda possível da protecção da intimidade da
vida privada. Assim se compreende que a diligência seja ordenada ou autorizada
por um juiz, que os seus resultados lhe sejam imediatamente comunicados e que
este desde logo possa efectuar o controlo da relevância probatória dos elementos
recolhidos.
Neste contexto, a faculdade processual que é atribuída ao arguido no n.º 5 do
mesmo artigo 188º, não poderá deixar de ser entendida em sintonia com o que
prevê o n.º 3 desse preceito. O arguido e o assistente, bem como as pessoas
cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição
para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem cópia desses
elementos. Mas naturalmente que o exame apenas incide sobre os elementos
transcritos, isto é, aqueles que, nos termos do n.º 3, foram, considerados úteis
para a investigação e que poderão ser avaliados pelos interessados (incluindo o
arguido) para exercerem os direitos processuais que lhe correspondem.
A consulta não abrange os elementos não transcritos pela linear razão de que
esses elementos, em ordem ao princípio da menor intervenção possível e da
proporcionalidade, deverão ser destruídos, por determinação do juiz, como impõe
o n.º 3 desse artigo, por não terem qualquer interesse para o processo e não
justificarem de per si qualquer reacção defensiva por parte de quem tenha sido
objecto de escuta.
A destruição de registos não representa, por outro lado, uma
qualquer violação das garantias de defesa do arguido e especificamente do
direito do contraditório a que se referem os n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da
Constituição da República.
As garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional, não vão além, na
parte que agora mais interessa considerar, da previsão de um processo criminal
com estrutura acusatória em que apenas a audiência de julgamento e certos actos
instrutórios especialmente previstos na lei é que estão subordinados ao
princípio do contraditório.
Como bem se compreende, o arguido não pode interferir na actividade de
investigação, nem discutir, nessa fase, a relevância das diligências que tenham
sido efectuadas ou a importância dos resultados probatórios alcançados. Seria,
aliás, inexequível, e inteiramente contrário aos interesses da investigação, que
o arguido, ainda na fase do inquérito, pudesse examinar e pronunciar-se sobre os
registos de gravação de escutas telefónicas, quando é certo que a autoridade
policial tem de dar imediato conhecimento ao juiz da existência das gravações
para o aludido efeito de se efectuar a transcrição em auto ou se ordenar a sua
destruição. Nesse contexto, a audição do arguido teria de ser feita em tempo
útil (e, portanto, também, imediatamente), o que lhe permitiria o acesso também
imediato às provas já existentes, com a completa inviabilização da ulterior
realização de outras operações de intercepção de comunicações.
O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem,
pois, o sentido de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores
do processo, contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele
coligidas e tomar também iniciativas instrutórias e de realização de prova que
considerar pertinentes.
No entanto, como é bem de ver, esse direito de contraditório existe em relação
às provas em que se funda a acusação, as mesmas que serão ponderadas pelo juiz
de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a
julgamento, para efeito a condenação do réu.
É só em relação a essas provas – e não a quaisquer outras que os investigadores
tenham considerado irrelevantes ou tenham abandonado por considerarem (bem ou
mal) imprestáveis para os fins de indiciação da prática de ilícito -, que o
arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados
probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar
esses resultados.
É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação,
que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à
acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E é esse – e
apenas esse – o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no
artigo 32º, n.º 5, da Constituição.
É essa também a essência do processo equitativo ou do due process af law, que
justamente envolve como um dos seus aspectos fundamentais (para além da
independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a
consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as
possibilidades de contrariar a acusação.
Todavia, o arguido não tem o direito nem interesse processual a contraditar as
provas produzidas no inquérito que foram consideradas irrelevantes (e que não
servem de fundamento à acusação), como não tem direito nem interesse processual
em conhecer todos os expedientes ou diligências de que os órgãos de polícia
criminal se serviram, segundo as estratégias de investigação que consideraram em
cada momento adequadas ao caso e que podem, entretanto, ter sido abandonados.
Acresce que a não audição do arguido relativamente à relevância das provas
recolhidas não agrava nem afecta especialmente a sua posição no processo. Na
verdade, as deficiências que puderem ser apontadas à investigação, assim como a
insuficiência ou a descontextualização das passagens das gravações, na medida em
que dificultam ou impedem a prova dos factos que constam da acusação relevam a
favor do arguido, que poderá justamente utilizar a fase de instrução e de
audiência de julgamento para fazer valer, em contraditório, as imprecisões e
fragilidades das provas em que se funda a acusação.
Sendo assim, ainda que possa considerar-se aconselhável de jure condendo
assegurar a integralidade das conversações telefónicas interceptadas, por razões
de política legislativa que considerem prevalecentes as vantagens daí
advenientes para a justiça do caso concreto, tais considerações não justificam
um juízo de inconstitucionalidade relativo à norma do artigo 188º, n.º 3, do
CPP, na sua versão actual, que, por tudo o que foi dito, não representa uma
violação das garantias de defesa do arguido.
Ou seja, tendo em conta o sentido jurídico-constitucional do princípio
acusatório e a possibilidade de colisão entre o interesse processual em manter
intactas as provas coligidas através de intercepção e gravação de comunicações e
o correspondente risco de devassa da reserva de intimidade da vida privada, cabe
na liberdade de conformação legislativa adoptar um critério mais ou menos
restritivo no que se refere ao momento em que, no decurso do processo penal,
deverá efectuar-se a destruição dos elementos de prova considerados
irrelevantes.
Nada obstava, nesta perspectiva, a que se formulasse um juízo de não
inconstitucionalidade da apontada norma do artigo 188º, n.º 3, do Código de
Processo Penal.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha