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Processo n.º 121/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Os presentes autos vêm do Tribunal Central Administrativo Sul e neles é
recorrente o Presidente da Câmara Municipal de Évora e recorrido A.
Nos autos de procedimento cautelar, identificados pelo Proc. n.º 250/06.6BEBJA,
o ora recorrido veio requerer ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja que
decretasse (cfr. fls. 5 a 20):
“a) A suspensão da eficácia do acto do Presidente da Câmara Municipal de Évora
que se auto designou representante da Câmara Municipal de Évora na Comissão
Regional da Região de Turismo de Évora, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 68º da LAL, nos termos do artigo 112º/2 a) CPTA;
b) A intimação do Requerido para se abster de participar na Comissão Regional de
Turismo de Évora ou de praticar qualquer acto no procedimento eleitoral da
Região de Turismo como representante da Câmara Municipal de Évora, nos termos do
artigo 112º/2 f) CPTA;
c) A intimação do Requerido para convocar reunião extraordinária da Câmara
Municipal de Évora, nos termos do artigo 112º/2 f) CPTA.”
2. Porque o Tribunal Administrativo de Beja decidiu decretar todas as
providências cautelares requeridas (fls. 287 a 312) – com excepção da 2ª parte
da alínea b) do pedido, pelo facto de o referido procedimento eleitoral já ter
ocorrido –, o ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal Central
Administrativo Sul (fls. 320 a 352), alegando, designadamente, que “a
interpretação da alínea b) do n.º 1 do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da RTE
no sentido de considerar atribuída ao órgão câmara municipal a competência para
designar o representante da autarquia na comissão regional da região de turismo,
em detrimento, da regra geral de representação autárquica prevista na alínea a)
do n.º 1 do art. 68º da Lei das Autarquias Locais, é manifestamente
inconstitucional por violação da reserva legislativa da Assembleia da República”
(fls. 350).
O Tribunal Central Administrativo Sul proferiu acórdão, em 14 de Dezembro de
2006 (fls. 479 a 486), que julgou improcedente o recurso interposto por não
considerar verificada qualquer inconstitucionalidade na interpretação conferida
pela primeira instância à norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º
dos Estatutos da Região de Turismo de Évora, visto que, “tendo em consideração
que o disposto no artº 68/1/a da LAL, atribui aos presidentes poderes de
representação do Município e não das Câmaras municipais, sucedendo que o artº
64/7/d) da mesma LAL atribui às câmaras municipais competência residual, «ou
seja, qualquer outro normativo pode atribuir-lhe uma competência específica como
acontece com o artº 12º dos Estatutos da RTE»” (fls. 485-verso).
3. Notificado em 18 de Dezembro de 2006 (fls. 489) e inconformado com esta
decisão, o ora recorrente interpôs recurso para este Tribunal, o qual foi
admitido pelo tribunal “a quo” (fls. 495), tendo a Exma. Conselheira Relatora
junto deste Tribunal, em 29 de Janeiro de 2007, ordenado a notificação do
recorrente para alegar, no prazo de 15 dias (fls. 500), por força do n.º 2 do
artigo 79º da LTC.
Em sede de alegações (fls. 502 a 531), veio o recorrente concluir que:
“A. O presente recurso tem objecto a norma contida na alínea b) do n.º 1 do
artigo 12.º dos Estatutos da Região de Turismo de Évora, constantes do
Decreto-Lei n.º 73/93, de 10 de Março, interpretada e aplicada ao caso concreto
pelo Tribunal a quo, no sentido de atribuir a competência de representação na
Comissão Regional da RTE aos representantes das câmaras municipais;
B. O fundamento do recurso é o de que esta norma, na interpretação mencionada,
viola a reserva legislativa de competência da Assembleia da República, conforme
consagrada na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição;
C. Resulta da interpretação conjugada da natureza e regime jurídicos das regiões
de turismo que estas são compostas por municípios pelo que no seu órgão
deliberativo Comissão Regional devem ter assento os representantes dos
municípios e não das câmaras municipais, uma vez que são interesses da pessoa
colectiva que importa assegurar, e não interesses do órgão;
D. Ainda que seja discutível o alcance absoluto da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República sobre o estatuto das
Autarquias Locais, é inegável que aquela reserva abrange a definição das
competências dos respectivos órgãos;
E. Assim sendo, a norma da alínea d) do n.º 7 do artigo 64.º da Lei das
Autarquias Locais nunca poderá extravasar o âmbito da reserva legislativa da
Assembleia da República, nos termos em que a mesma se encontra consagrada;
F. Nesse sentido, não é admissível considerar a norma da alínea b) do n.º 1 do
artigo 12.º dos Estatutos da RTE, aprovados por um decreto-lei não autorizado,
como um dos casos de concretização daquela norma da Lei das Autarquias Locais;
G. A interpretação da norma contida [na] alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos
Estatutos da RTE que se apresenta conforme à Constituição é aquela que atribui a
competência de representação do município ao presidente da câmara municipal, na
medida em que, decorrendo directamente das competências expressamente previstas
na Lei das Autarquias Locais e não de nenhuma norma residual, não revela
qualquer carácter inovador em face da reserva parlamentar;
H. Este entendimento é reforçado pelas conclusões que o Tribunal Constitucional
alcançou na análise de situações análogas, nomeadamente, naquelas que se
encontram vertidas nos acórdãos n.º 678/ 95 e n.º 502/2001;
I. Em qualquer caso, mesmo que fosse admissível ao Governo, sem autorização,
legislar em matéria de competência dos órgãos autárquicos, tal jamais poderia
pôr em causa o conteúdo essencial do sistema de governo autárquico e a
concomitante repartição de competências tal como gizados pela Lei das Autarquias
Locais;
J. Nesse esquema de repartição, desde logo avulta que a competência de
representação do município se encontra atribuída ao presidente da câmara
municipal, sendo tal regra – parte integrante ou matéria essencial do Estatuto
das Autarquias Locais — ostensivamente violada pela norma contida na alínea b)
do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da Região de Turismo de Évora,
interpretada no sentido de atribuir a competência de representação na Comissão
Regional da RTE aos representantes das câmaras municipais;
K. Em suma, a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos
da RTE – no sentido de considerar atribuída à câmara municipal a competência
para designar o representante da autarquia na Comissão Regional da RTE – é
inconstitucional por violação da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição”.
4. Por sua vez, em 12 de Março de 2007, o recorrido viria a apresentar as suas
contra-alegações (fls 564 a 590), que, resumidamente, consistem nos seguintes
argumentos:
“a) A norma cuja constitucionalidade o recorrente questiona — art.
12º/1/b) dos Estatutos da RTE -, é simultaneamente aplicável na presente
providência cautelar e na acção principal;
b) Face à natureza provisória e instrumental das providências
cautelares, não é admissível o recurso para o Tribunal Constitucional de normas
que, tendo sido aí aplicadas, podem ser objecto de apreciação na acção
principal, sob pena do juízo de constitucionalidade ser igualmente provisório
(v., por todos, Ac. TC nº 442/00, de 25.10.2000);
c) Face aos pressupostos para o decretamento de providências
cautelares, não cabe aqui apreciar a constitucionalidade dos Estatutos da RTE
(v. art. 120º do CPTA);
d) Além disso, o presente recurso não é susceptível de alterar o
decidido no douto acórdão recorrido — confirmação da sentença recorrida que
decretou as providências cautelares –, não tendo assim qualquer efeito útil,
pois o ora recorrente não impugnou o referido aresto na parte em que considerou
que,
- “o art. 64º/7/d) da (...) LAL atribui às câmaras municipais competência
residual, ou seja, qualquer outro normativo pode atribuir-lhe uma competência
específica “,
que,
- “a pretendida inconstitucionalidade daqueles Estatutos por violação do
disposto no art. 165º/1/q) da CRP, não seria susceptível de alterar o decidido
em 1ª instância, pois que do disposto no art. art. 68º/1/a) da LAL não resulta
que a CME tivesse que legalmente ser representada na RTE pelo seu Presidente, o
qual apenas representa o Município “,
e que,
- “ esta questão não se mostra decisiva na adopção das medidas cautelares
decretadas em 1ª instância” (cfr. Acórdão recorrido - sombreados nossos),
não tendo o ora recorrente suscitado sequer a inconstitucionalidade daqueles
preceitos da LAL, maxime na interpretação normativa adoptada no douto aresto
recorrido (v. Ac. TC nº 241/2003, de 20.05.2003);
e) Acresce que, o douto acórdão recorrido não apreciou ou decidiu
qualquer questão de constitucionalidade
f) Finalmente, o Tribunal a quo não interpretou o art. 12º/1/b) dos
Estatutos da RTE no sentido invocado pelo ora recorrente no requerimento de
interposição de recurso e nos nºs 4 e segs. das suas doutas Alegações;
g) De resto, nas alegações de recurso para o TCA Sul, a fis. 293 e
segs. dos autos, o ora recorrente não suscitou a questão da
inconstitucionalidade da “interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º dos
Estatutos da RTE”, no mesmo sentido que vem agora invocar junto deste Venerando
Tribunal Constitucional (v. conclusões m) e segs. das alegações a fls. 322; cfr.
Req. de interposição de recurso de 22.12.2006, e nºs 4 e segs. das Alegações do
Recorrente)”.
5. Por despacho de 15 de Março de 2007 (fls. 619), a Ex.ma Conselheira Relatora
junto deste Tribunal ordenou a notificação do recorrente para se pronunciar
sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelo recorrido, nos
termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 704º do CPC, aplicável “ex vi”
artigo 69º da LTC.
Em 30 de Março de 2007, o recorrente viria a pronunciar-se, considerando,
nomeadamente, que:
a) A norma em apreço havia sido efectivamente aplicada, visto que “em
suma, nunca poderia estar em causa «apenas a designação de um representante da
câmara municipal» - na medida em que a norma em causa erroneamente indica como
partes integrantes das regiões de turismo e representadas na Comissão Regional
as «câmaras municipais» e não os «municípios» -, pelo que não existe outra
solução que a análise da perspectiva do Tribunal «a quo» à luz da terminologia
adequada” (fls. 623);
b) Não existe divergência terminológica relevante para efeitos de
suscitação de inconstitucionalidade pelo recorrente, pois “é perfeitamente
evidente que a diferença de redacção não tem a relevância que o Recorrido
pretende apontar: o que o Recorrente pretendeu foi invocar a
inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da RTE
se reportado ao órgão «câmara municipal» e não ao «município», na medida em que
dessa forma se estaria a criar uma norma de competência em violação da alínea q)
do n.º 1 do artigo 165º da Constituição” (fls. 635 e 636);
c) Nada obsta a que o Tribunal Constitucional possa sindicar a
constitucionalidade de normas aplicadas em sede de providências cautelares, na
medida em que “impedir a fiscalização da constitucionalidade em sede cautelar
não se coaduna com a consagração clara e inequívoca de uma justiça cautelar
garantística – aqui, reportada à parte vencida que se deparou com a emissão de
providências cautelares violadoras dos seus direitos e decretadas ao abrigo de
uma interpretação normativa inconstitucional” (fls. 625);
d) A emissão de uma decisão favorável ao recorrente, pelo Tribunal
Constitucional, manteria utilidade processual porque “todos os argumentos
invocados pelo Tribunal «a quo» se reconduzem aos fundamentos da
inconstitucionalidade alegada pelo Recorrente” (fls. 630);
e) Não é verdade que o tribunal recorrido não tenha aplicado a norma em
apreço, já que “tanto apreciou que concluiu não ser a mesma procedente, mas que,
ainda assim «mesmo não concordando com a supra aludida tese», a pretendida
inconstitucionalidade não alteraria o decidido em 1.ª instância” (fls. 631);
f) Ainda que o tribunal recorrido não tivesse aplicado a norma, “não é
a apreciação/decisão da questão de inconstitucionalidade o requisito exigido na
alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição para a interposição de
recurso. O que este preceito determina é que cabe recurso das decisões dos
tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido «suscitada»
durante o processo” (fls. 631).
6. Por ter cessado funções neste Tribunal a Exma. Conselheira Relatora, os
presentes autos foram redistribuídos e apresentados a conclusão da actual
Conselheira Relatora, em 23 de Abril de 2007.
II – QUESTÃO PRÉVIA: DA INADMISSIBILIDADE DO RECURSO
7. Como se viu, o recorrido, nas contra-alegações, invoca dois fundamentos de
não conhecimento do objecto deste recurso, a saber:
a) a inadmissibilidade de fiscalização sucessiva
concreta da constitucionalidade no processo de providência cautelar por a norma
supostamente inconstitucional também ser aplicável na acção principal;
b) a não aplicação efectiva da interpretação reputada
de inconstitucional e a suscitação de diversa inconstitucionalidade.
Cumpre, pois, começar por apreciar a primeira questão, uma vez que dela depende
a apreciação de todas as outras.
8. O recorrido alega que “não cabe apreciar no âmbito do presente procedimento
cautelar a constitucionalidade de normas que também são aplicáveis na acção
principal, sob pena de ser desvirtuada a natureza instrumental do procedimento
cautelar – que seria transformado numa verdadeira acção principal –, e
desrespeitados os pressupostos legalmente fixados para o decretamento das
providências” (cfr. § 8, fls. 599), ao que o recorrente veio responder que
“impedir a fiscalização da constitucionalidade em sede cautelar não se coaduna
com a consagração clara e inequívoca de uma justiça cautelar garantística” (cfr.
§ 18, fls. 641), aduzindo em seu benefício diversos argumentos.
A verdade é que as características típicas das providências cautelares –
“sumariedade”, “provisoriedade”, e “instrumentalidade” – não podem deixar de
levantar sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com o proferimento de
juízos de constitucionalidade. Na medida em que assentam num juízo de mera
verosimilhança, as providências cautelares não se revestem de força de caso
julgado material, nem tão pouco determinam ou condicionam a decisão a proferir
em sede da acção principal da qual dependem.
E é por estas – e outras – razões que este Tribunal tem decidido, em
jurisprudência constante, embora com alguns votos de vencido, não conhecer do
objecto do recurso de constitucionalidade nestes casos.
Foi o que sucedeu, por exemplo, no Acórdão 442/00, de 25 de Outubro de 2000,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt, no qual se pode ler:
«Como já teve ocasião de afirmar por diversas vezes (cfr. os acórdãos nºs
151/85, 400/97 e 664/97, publicados no Diário da República, II Série, de 31 de
Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1997 e 18 de Março de 1998, respectivamente)
não cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões proferidas no âmbito
das providências cautelares destinado à apreciação da constitucionalidade de
normas em que, simultaneamente, se fundamentam, quer a providência requerida,
quer a acção correspondente, dada a natureza provisória do julgamento ali
efectuado.
Como se escreveu no citado acórdão nº 151/85, nestes casos, “não terá o juiz da
causa, para decidir sobre a concessão ou não d[a] (...) providência, de
esclarecer exaustiva e definitivamente essa questão de constitucionalidade, mas
apenas de apreciá-la de modo perfunctório e interino. Concretamente: o que ao
juiz caberá formular (nesse momento ou nessa fase processual) é tão-só um juízo
sobre a probabilidade séria da ocorrência de inconstitucionalidade, de harmonia
com a qual decretará ou não a pretendida” providência.
“Crê-se, de resto, que isto se poderá generalizar, afirmando que nos
procedimentos cautelares não cabe senão este tipo de decisão’provisória’
relativamente à questão de constitucionalidade de normas de que substantivamente
dependa a resolução da questão a decidir no processo principal e, portanto, a
concessão da providência (outro poderá ser o caso, evidentemente, se a
inconstitucionalidade respeitar a aspectos diferentes desse, v. g., à tramitação
do procedimento em causa)”.
“Visando os procedimentos cautelares uma solução provisória, é no processo
principal que hão-de ser dirimidas as questões substantivas, aí decidindo-se em
definitivo a matéria da (in)constitucionalidade, pelo que não há que conhecer”
do recurso (cit. acórdão nº 664/97).»
Esta jurisprudência foi integralmente retomada no Acórdão 235/01, de 23 de Maio
de 2001, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
9. É certo que a justiça cautelar tem consagração constitucional, desde a
revisão constitucional de 1997, enquanto meio de garantir o acesso ao direito e
aos tribunais em prazo razoável (nº 5 do artigo 20º da Constituição), mas,
retomando, mais uma vez, o citado acórdão 442/00, daí não decorre, de forma
alguma, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
É a circunstância de a mesma norma ser aplicável na providência cautelar e no
processo principal que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da
providência cautelar, atento o valor meramente provisório do juízo de
constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a providência cautelar.
Como se afirma no citado Acórdão 442/00:
«Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa hipóteses
destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção
principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento,
eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o
Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação
de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte
daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste.»
(…)
7. Finalmente, não se vê em que medida é que o acrescentamento do nº 5 do artigo
20º da Constituição pela revisão constitucional de 1997 altera a conclusão de
que o recurso não é admissível. Na verdade, a consagração constitucional da
necessidade de a lei prever “procedimentos judiciais caracterizados pela
celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra
ameaças ou violações desses direitos” não obriga a que se considerem recorríveis
para o Tribunal Constitucional todas as decisões proferidas nesses
procedimentos.»
10. Deve notar-se, todavia, que a jurisprudência acabada de mencionar não tem
por base providências cautelares administrativas, mas sim providências de outra
índole, pelo que, antes de a aplicar ao caso em apreço, cumpre averiguar se
existem especificidades nas providências cautelares administrativas que
justifiquem decisão diferente deste Tribunal.
Na verdade, na revisão constitucional de 1997, foi aditado ao n.º 4 do artigo
268º da Constituição que consagrou o direito fundamental à tutela cautelar
administrativa, o que implica que especificamente em sede de Direito Processual
Administrativo, a garantia de tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos
administrados, mediante “a adopção de medidas cautelares adequadas” (artigo
268º, n.º 4, da CRP) exige que tanto o requerente, como o requerido, como ainda
os contra-interessados possam ver apreciadas, ainda que perfunctoriamente,
questões relacionadas com a (in)constitucionalidade de normas que sustentam a
decretação ou a recusa de providências cautelares administrativas.
Quer dizer, o artigo 268º, nº 4, conjugado com o artigo 204º da Constituição não
podem deixar de reconhecer o poder dos tribunais administrativos, no exercício
de funções cautelares, para apreciar a constitucionalidade de normas aplicadas
ou a aplicar.
Mas daqui não decorre, necessariamente, que o Tribunal Constitucional detenha
poderes para sindicar, em sede de recurso, essa mesma constitucionalidade,
quando a questão deva ser de novo apreciada no processo principal, sob pena de
esvaziamento do objecto processual deste último.
Não se verifica, portanto, violação do princípio da tutela jurisdicional
efectiva, dado que a questão de constitucionalidade sempre poderá ser apreciada
na acção principal, a qual se pronunciará em definitivo.
11. Com efeito, a tramitação célere e simplificada que caracteriza a tutela
cautelar administrativa não se coaduna com a admissibilidade de fiscalização da
constitucionalidade. Aliás, precisamente com fundamento na sumariedade das
providências cautelares administrativas, houve até quem colocasse em causa a
admissibilidade de suscitação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça
das Comunidades Europeias por parte dos juízes cautelares nacionais, por estas
não se coadunarem com a natureza urgente daquelas (neste sentido, ver SÉRVULO
CORREIA / RUI MEDEIROS / DINIZ DE AYALA, “Vers une protection jurisdictionnelle
commune des citoyens en Europe”, in «Estudos de Direito Processual
Administrativo», 2002, Lex, Lisboa, p. 51). Idênticas considerações se podem
fazer em relação à apreciação de recursos fundados na inconstitucionalidade de
normas aplicadas por decisões cautelares, por parte do Tribunal Constitucional.
Além disso, a provisoriedade das providências cautelares administrativas que
significa que estas apenas visam regular determinada situação
jurídico-administrativa até ao proferimento de decisão de fundo sobre a questão
controvertida, implicaria sempre que a formulação de um juízo, pelo Tribunal
Constitucional, de (in)constitucionalidade de norma aplicada por um tribunal
administrativo, nas vestes de juiz cautelar, constituíria um juízo meramente
provisório. Isto é, a eventual decisão do Tribunal Constitucional (seja no
sentido da inconstitucionalidade ou da não inconstitucionalidade) apenas
produziria efeitos jurídicos enquanto não fosse proferida decisão definitiva
sobre o incidente de inconstitucionalidade suscitado no âmbito da respectiva
acção administrativa principal. Aliás, em caso de decretação de providência
cautelar administrativa alvo de confirmação por decisão do Tribunal
Constitucional, aquela sempre caducará por força de qualquer uma das
circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 123º do CPTA, designadamente, por
força do “trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo principal,
no caso de ser desfavorável ao requerente” [cfr. alínea f)].
Ainda que o Tribunal Constitucional se pronunciasse perfunctoriamente pela
inconstitucionalidade de norma aplicada em processo cautelar administrativo,
aquela decisão apenas produziria os seus efeitos (ou seja, a desaplicação da
norma em causa) de modo provisório. Esta decisão de desaplicação apenas poderia
formar caso julgado formal, restrito ao processo cautelar administrativo, pelo
que não poderia afectar a liberdade de apreciação quer do juiz cautelar
administrativo, em sede de julgamento da acção administrativa principal, quer do
próprio Tribunal Constitucional, caso voltasse a ser chamado a pronunciar-se, em
sede de recurso de inconstitucionalidade interposto da decisão final da acção
administrativa principal, o que não seria admissível.
O juízo do Tribunal Constitucional sobre a (in)constitucionalidade da norma
aplicada pela decisão recorrida apenas vigoraria enquanto não fosse julgada
definitivamente a questão de (in)constitucionalidade nos autos da acção
administrativa principal, o que igualmente não é sustentável.
Entendimento diverso, isto é, admitir a possibilidade de a decisão deste
Tribunal formar caso julgado material, conduziria a que o juiz constitucional se
substituísse ao juiz do processo principal.
Ora, o sistema de fiscalização da constitucionalidade não se compadece com uma
solução em que o juiz constitucional se substitui ao juiz do processo principal
nem comporta a possibilidade de decisões de inconstitucionalidade provisórias.
Por último, o julgamento pelo Tribunal Constitucional, em sede de recurso, sobre
uma questão de inconstitucionalidade suscitada em autos de providência cautelar
administrativa coloca em causa a natureza instrumental das providências
cautelares, dado que implica uma antecipação do juízo sobre a
inconstitucionalidade de normas a aplicar na acção administrativa principal.
Juízo esse a formular quer pelos tribunais administrativos que julgam em
primeira instância e, eventualmente, em recurso (artigo 204º da CRP), quer pelo
próprio Tribunal Constitucional, caso venha, nesses autos, a ser interposto o
competente recurso (artigo 280º da CRP). Só assim não será, conforme tem sido
unanimemente reconhecido por este Tribunal (cfr. Acórdãos n.º 235/2001, n.º
442/2000, n.º 400/97 e n.º 151/85, todos disponíveis in
www.tribunalconstitucional.pt), se se tratar do conhecimento de questões de
inconstitucionalidade de normas que sejam exclusivamente aplicáveis em sede de
processo cautelar – v.g., normas processuais que regulem a sua tramitação –,
visto que a decisão sobre a inconstitucionalidade se restringe aos autos de
processo cautelar.
Ora, não é este o caso que se verifica nos presentes autos. Pelo contrário, a
norma em relação à qual foi suscitada a questão de inconstitucionalidade, é
simultaneamente fundamento da decisão cautelar e fundamento da decisão
definitiva, pelo que a instrumentalidade da providência cautelar ficaria
prejudicada pelo proferimento de juízo perfunctório sobre a
inconstitucionalidade por parte deste Tribunal.
Em conclusão, do exposto resulta que não se deve conhecer do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide
não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC`S.
Lisboa, 25 de Setembro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão