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Processo n.º 439/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Os Recorrentes A., Lda., e Outros, não se conformando com o despacho do Juiz
de Instrução do 1.º Juízo da comarca de Vila Nova de Famalicão, que os
pronunciou como co-autores de um crime de abuso de confiança em relação à
Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjuntas dos artigos 6.º,
n.º 1, 7.º-A, 24.º, n.ºs 1 e 5, e 107.º, todos do Regime Jurídico das Infracções
Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de
Janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de
Junho, bem como pelos artigos 6.º, n.º 1, 105.º, n.ºs 1 e 5, e 107.º, n.º 1,
todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho, recorreram de tal decisão para o Tribunal da Relação do
Porto, concluindo o seguinte:
“a. Não obstante a previsão normativa do artigo 310º, nº 1, do CPP, a decisão
instrutória aqui em apreço é recorrível nos termos da regra consignada no artigo
399° do CPP, conjugada com o artigo 400º do mesmo diploma legal.
b. No caso, o objecto do recurso visa a apreciação de actos nulos e reapreciação
de uma questão de direito com implicações constitucionais.
c. As nulidades verificadas no presente processo advêm do facto de os actos
instrutórios terem sido praticados pela delegação de Braga do Instituto de
Gestão Financeira da Segurança Social que não detinha competências próprias ou
delegadas para a prática de quaisquer actos probatórios.
d. Os Serviços da Segurança Social de Braga, nos termos da Portaria n° 416/2000,
de 17 de Junho, no artigo 2, alínea k), apenas dispunham de competência para
acompanhar os processos penais, e não para proceder à sua instrução.
e. A delegação de competências junta aos autos, a fls. 644 e ss., apenas foi
deliberada ulteriormente à realização do aplicado termo de identidade e
residência aplicado ao arguido aqui recorrente.
f. Não houve quaisquer diligências probatória levadas a efeito pelo Ministério
Publico ou por si ordenadas.
g. Assim sendo, na fase do inquérito não existiu produção probatória e a
produção probatória levada a efeito na fase de pré‑inquérito é nula.
h. Constata-se assim a violação do princípio da legalidade consignado no artigo
118° do CPP.
i. No caso concreto verifica-se a existência de duas nulidades insanáveis, a
saber: ausência do Ministério Público a actos relativamente aos quais a lei
exige a comparência (alínea b) do artigo 119° do CPP), e a falta de inquérito
(alínea d) do referenciado artigo).
j. A cessão de créditos fiscais ao denominado ‘B.’ tem reflexos processuais no
presente processo.
k. Com efeito, não se pode ceder créditos através de um contrato de cessão e
afirmar-se por via legislativa (nº 3, do artigo 3°, da Lei n° 103/2003, de 5 de
Dezembro) que tudo se passa como se não tivesse ocorrido qualquer cessão.
l. O legislador, ao proferir semelhante afirmação, tenta validar uma declaração
negocial simulada, que na sua essência é nula e, como tal, deve ser declarada
pelo tribunal.
m. A relação creditícia fiscal tem implicações necessárias na relação processual
criminal, na medida em que o pagamento da medida fiscal durante a pendência do
processo tem diversas implicações, conforme a fase em que é efectuada.
n. Assim sendo não pode o Estado conceder ao ‘B.’ – entidade particular –
prerrogativas cativas de um ente público.
o. Por virtude da cessão de créditos ocorrida operou-se a descriminalização do
crime de abuso de confiança fiscal aqui em apreço e, consequentemente, o
Ministério Público perdeu a legitimidade para prosseguir os autos.
p. Se porventura assim não for entendido – o que não se admite – constatamos uma
inconstitucionalidade por violação do artigo 13° da CRP; na medida em que um
particular é tratado de forma desigual (com vantagens desmedidas) em relação aos
demais particulares, na medida em que goza de prorrogativas próprias do Estado.
q. Nesta conformidade, a cessão de créditos existente terá de implicar as suas
consequências normais: isto é, privatização do crédito; perda de legitimidade do
Ministério Público para prosseguir os autos; descriminalização dos crimes, cujo
objecto creditício foi cedido; para além de se constatar a violação do princípio
da igualdade consignado no artigo 13° da CRP.”
2. Tal recurso veio, no entanto, a ser rejeitado por acórdão daquela Relação por
“manifesta total improcedência.” Deste acórdão interpuseram os Recorrentes o
presente recurso de inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
“(…) Os recorrentes declaram que o seu recurso é sustentado pela al. b) do n° 1
do art. 70 da L.T.C.
Em causa, está a violação do princípio de igualdade, consignado no art. 13° de
C.R.P., o qual foi invocado no requerimento da abertura de instrução e nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação.”
O recurso foi admitido por despacho do Exmo. Conselheiro Relator da Relação de
Lisboa e, não obstante não terem sido notificados para tal, os Recorrentes
produziram alegações, junto daquele Tribunal, concluindo nos seguintes termos:
“A) Os créditos devidos à Segurança Social, objecto do crime de abuso de
confiança fiscal, pelo qual os arguidos estão acusados foram cedidos a um grupo
bancário, denominado ‘B.’.
B) A cedência de créditos supra citada teve a natureza de uma verdadeira venda
de crédito público, na medida em que o preço da alienação foi inscrito como
receita na Conta Geral do Estado do ano de 2003.
C) Concomitantemente com essa alienação o Estado Português celebra um contrato
de prestação de serviços para a gestão e cobrança dos créditos cedidos.
D) A expressão ‘como se não tivesse ocorrido qualquer cessão’, que figura no
art°. 50 do Dec. Lei 303/2003, de 5 de Dezembro é uma declaração simulada.
E) A Lei 103/2003 e o Dec. Lei 303/2003, ambos de 5 de Dezembro não têm natureza
jurídica de uma verdadeira lei.
F) Os referenciados actos legislativos têm a natureza de acto administrativo (ou
até contrato) formalizado por via legislativa.
G) O facto de ter sido o legislador, por via legislativa a realizar um contrato,
não subtrai este à sindicabilidade dos Tribunais.
H) Nesta conformidade a declaração simulada proferida por via legislativa no
art°. 50, n° 1 da referenciada lei é nula e de nenhum efeito.
I) Assim incumbe ao particular ‘B.’ o dever de se habilitar nas acções pendentes
e impulsionar os autos por via de mandatário judicial constituído para o efeito
e no âmbito dos Tribunais comuns.
J) No âmbito de acções criminais o M°. P°. perdeu a sua legitimidade porque os
créditos que outrora eram públicos, hoje são privados.
L) Muito embora reconheçamos que o crime de abuso de confiança fiscal
consumou-se antes da operação de cessão de créditos, o certo é que essa cedência
provoca a descriminalização do aludido crime.
M) A descriminalização advém do facto de a lei não permitir que um particular –
‘B.’ – goze de prerrogativas criminais próprias do Estado, quando outros
particulares não gozam dessas prerrogativas.
N) As prerrogativas consistem no facto de a coacção criminal influir no
pagamento das dívidas, neste caso, á Segurança Social.
O) O ‘B.’enquanto particular acaba por beneficiar de um esforço anormal (para
além dos limites patrimoniais dos arguidos) de pagamento, quando em
circunstâncias normais esse pagamento não ocorreria, por inexistência de
património e meios financeiros bastantes, que sorvessem a dívida.
P) Até se poderá compreender a protecção criminal em relação ao Estado, mas não
se compreende que essa protecção criminal seja concedida a um crédito de
natureza particular.
S) Tanto mais que nenhum particular goza de protecção criminal para o
recebimento do seu crédito.
R) Logo, também o ‘B.’ não deverá merecer a prorrogativa da protecção criminal.
S) Foram violados os seguintes dispositivos constitucionais - C.R.P.: art.° 13°
maxime n° 2, art.° 112°, art°s. 29° e 30º.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência,
dever-se-á declarar inconstitucionais a Lei 103/2003 e o Dec. Lei 303/2003,
ambos de 5 de Dezembro, maxime o art.° 5º, n° 1 deste último Dec. Lei,
ordenando-se a sua desaplicação nestes autos, reconhecendo-se a
descriminalização tácita de crime de abuso de confiança fiscal, por se ter
verificado a cedência do crédito público a um particular, pois só assim se fará
a habitual JUSTIÇA.”
Notificado para contra-alegar, o Ministério Público, ora Recorrido,
pronunciou-se pelo não conhecimento do recurso, concluindo que
“Não tendo sido processual e adequadamente suscitada perante o Tribunal
recorrido a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada, nem
resultando das alegações de recurso, que, pelo modo como a mesma foi
apresentada, possa ser atingido o resultado almejado pelos recorrentes, não
deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso.”
A recorrente, notificada que foi da contra – alegação nada acrescentou.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
3. A apreciação de um recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b) da Lei do Tribunal Constitucional impõe o preenchimento prévio de alguns
requisitos cumulativos: a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade
normativa, durante o processo, constituindo tal a norma ou segmento normativo
impugnados o fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o
prévio esgotamento dos recursos ordinários.
No caso em apreço, verifica-se desde logo que os Recorrentes não cumpriram o
disposto no artigo 72.º, n.º 2 do diploma citado, nos termos do qual os
“recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º só podem ser
interpostos pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou
da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”
Indubitavelmente, tal ónus, a cargo dos Recorrentes, não foi cumprido nos
presentes autos, na medida em que não enunciaram, junto do Tribunal a quo, a
dimensão normativa impugnada, nem explicitaram o sentido que, em seu entender,
deveria ter presidido, na decisão recorrida, à interpretação das normas
controvertidas. Como se escreveu no Acórdão n.º 244/2007, inédito, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, “(…) tal ónus impõe a necessidade de, logo
perante o tribunal recorrido, se proceder à enunciação da dimensão normativa a
sindicar através da especificação, positiva e expressa, do preciso sentido em
que, na perspectiva do recorrente, determinada norma ou conjunto de normas terão
sido interpretados pela decisão impugnada (…).”
4. Aliás, dos autos nem sequer resulta, de forma clara, qual a norma (ou
segmento normativo) que os Recorrentes pretendem ver apreciada por este
Tribunal. Referindo-se vagamente, no seu requerimento de interposição de
recurso, a uma “violação do princípio da igualdade”, e resultando, das suas
alegações, que pretendem ver declarada (ou reconhecida) “a descriminalização
tácita de crime de abuso de confiança fiscal”, impugnando, apenas nesta sede, a
Lei n.º 103/2003, e o Decreto-Lei n.º 303/2003, ambos de 5 de Dezembro, o certo
é que, aquando das alegações de recurso para a Relação do Porto, existe uma
referência única, entre parêntesis, ao artigo 3.º, n.º 3, daquela Lei, como bem
salienta o Ministério Público nas suas contra-alegações.
Donde se conclui, portanto, que não só a questão de inconstitucionalidade
normativa não foi suscitada de modo processualmente adequado perante o Tribunal
recorrido, como o bloco normativo que os Recorrentes almejam agora que venha a
ser apreciado jamais foi objecto de impugnação em momento anterior ao da
formulação das alegações de recurso do presente meio impugnatório.
E nem se diga que tal questão foi suscitada em sede de requerimento de abertura
de instrução, o que seria, aliás, irrelevante porquanto, ao contrário do que
invocam os Recorrentes, não foi ali arguida qualquer violação do princípio da
igualdade, tendo existido, sim, a invocação de ofensa ao princípio da legalidade
por alegada “ausência do Ministério Público a actos relativamente aos quais a
lei exige a sua comparência.”
4. Por outro lado, o recurso interposto ao abrigo da citada alínea b) pressupõe,
nos termos de doutrina firme e unânime deste Tribunal Constitucional, que o
Tribunal recorrido tenha formado, sobre a norma controvertida, um juízo de
constitucionalidade, que constitua a ratio decidendi da decisão e não um simples
“obiter dictum”. Fundamental, portanto, é que o juízo formulado sobre a norma
impugnada (ou o conjunto de normas, no caso dos autos) se reflicta “utilmente no
processo.” (cfr., a este propósito, o Acórdão 496/99, inédito, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt). No mesmo sentido, vejam-se igualmente os
Acórdãos n.ºs 82/92 e 367/94, publicados, respectivamente, no Diário da
República, II Série, de 18 de Agosto de 1992 e 7 de Setembro de 1994.
As normas atacadas pelos Recorrentes – tanto a mera referência ao artigo 3.º,
n.º 3 da Lei n.º 103/2003, em sede de alegações de recurso para a Relação, como
o bloco normativo composto por este diploma e pelo Decreto-Lei n.º 303/2003,
impugnado apenas nas alegações do presente recurso – não constituem o fundamento
da decisão recorrida, assentando a condenação na leitura combinada das normas
pertinentes, supra citadas, do RGIT e do RJIFNA. Falha, portanto, também aqui,
outro pressuposto do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b) da L.T.C., nos termos do qual o juízo de constitucionalidade proferido se
deve revestir de utilidade para a decisão da causa controvertida.
5. Não se verificando, por conseguinte, o preenchimento dos pressupostos do
recurso de constitucionalidade interposto, nomeadamente a suscitação, de modo
adequado e atempado, de uma questão de inconstitucionalidade normativa, e não
constituindo o bloco normativo impugnado a ratio decidendi da decisão recorrida,
não pode este Tribunal conhecer o objecto dos autos.
III – Decisão
Face ao exposto, e de acordo com o disposto no artigo 72.º, n.º 2 da Lei do
Tribunal Constitucional, o Tribunal Constitucional decide não conhecer o objecto
do presente recurso.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 26/09/2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos