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Processo nº 317/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
(Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Em acção, com a forma ordinária, com o valor de 1.598.350.814$00, proposta por
A., S.A., contra o Município de Lisboa, que correu termos na 3ª Secção do
Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, com o nº 1243/96, foi elaborada a
seguinte conta final de custas, da responsabilidade do demandante:
- Taxas aplicáveis:
Incidente de apoio judiciário: € 19,984,42
Processo:€ 39.968,85
Recurso:€ 39.968,85
- Reembolsos:€ 106,80
- Procuradoria S.S.M.J.:€ 1.199,07
- Procuradoria C.P.A.S.€ 22.782,24
- Procuradoria à parte vencedora€ 15.987,57
TOTAL -€ 139.997,80
Taxas de justiça já pagas -€ 1.359,22
Total a pagar -€ 138.638,58
Tendo a Autora reclamado desta conta, foi proferido despacho que decidiu:
“- Não aplicar a Tabela de Custas anexa ao C.C.J., aprovado pelo Dec.Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro, por padecer de inconstitucionalidade material, por
ofensa aos princípios da proporcionalidade e da igualdade (artº 13º, 18º, nº 2,
e 266º, nº 2, da C.R.P.);
- Determinar a reforma da conta nos termos previstos no artº 27º, do C.C.J., na
redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 324-2003, de 27-12,
aplicando-se a respectiva Tabela de taxa de justiça.”
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artº 70.º, nº 1, a), e 72.º, nº 3, da LTC.
Respondendo a convite do relator, no Tribunal Constitucional, o recorrente
indicou como constituindo objecto do recurso de constitucionalidade a seguinte
interpretação normativa:
“A norma que constava do artigo 13.º, n.º 1, CCJ, na versão emergente do
Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26/11, conjugada com a tabela constante do anexo I,
interpretada em termos de o montante das custas decorrente do decaimento nas
acções, incidentes e recursos – por referência a uma acção ordinária de €
7.972.540,25 – ser calculado em função de tal valor, sem que se preveja a
aplicação de qualquer limite máximo e havendo lugar ao pagamento do montante
remanescente das custas, mesmo que o processo termine antes de concluída a fase
de discussão e julgamento da causa”.
O recorrente concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso:
“A norma constante do artigo 13° nº 1, Código das Custas Judiciais, na versão
emergente do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, conjugada com a tabela
constante do anexo I, interpretada em termos de o montante das custas decorrente
do decaimento numa acção visando efectivar a responsabilidade civil de uma
autarquia e respectivos incidentes e recursos – por referência a uma acção
ordinária de €7.972.540,25 – ser calculado em função de tal valor, sem que se
preveja a aplicação de qualquer limite máximo e havendo lugar ao pagamento do
remanescente das custas, mesmo que o processo termine antes de concluída a fase
de discussão e julgamento (implicando tributação da parte vencida em
€138.638,58), não viola os princípios da proporcionalidade e do acesso aos
tribunais.
Na verdade, tal tributação dessas acções de valor consideravelmente elevado não
implica quebra da estrutura bilateral ou sinalagmática das taxas, representando
a ponderação – não apenas do valor de custo do serviço em causa – mas também do
valor presumivelmente resultante da utilidade obtida através do recurso ao
tribunal e da normal complexidade e delicadeza que está subjacente à
generalidade dos litígios que envolvem valores dessa natureza.
Não funcionando o princípio da igualdade em termos diacrónicos, não é possível
realizar uma comparação entre tal regime, decorrente da versão de 1996 do Código
das Custas Judiciais, e o actualmente estabelecido no artigo 27º, representando
uma ponderação inovatória e constitutiva do legislador que não pressupõe a
inconstitucionalidade da solução que constava da lei anteriormente vigente.
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Por sua vez, A., S.A., concluiu, do seguinte modo, as suas contra-alegações:
“O valor das custas liquidado à recorrida por aplicação do artigo 13º do Código
das Custas Judiciais, na versão emergente do Decreto-Lei nº224-A/96, de 26 de
Novembro, conjugado com a Tabela Anexo I do mesmo Código – cerca de € 140.000,
numa acção sem complexidade e que findou no saneador – é manifestamente
desproporcional e alheio aos custos que a tramitação com o processo envolve para
o Tribunal, configurando um verdadeiro imposto.
Não constando a Tabela Anexa ao C.C.J. de qualquer Decreto-Lei emitido a coberto
de autorização legislativa da Assembleia da República, a mesma tabela e os
normativos que determinam a sua aplicação enfermam de inconstitucionalidade
orgânica, ex vi do disposto nos artigos 103º e 165º/1/i) da Constituição.
O artigo 13º nº 1 do Código das Custas Judiciais, na versão emergente do
Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, conjugado com a Tabela Anexo I,
interpretado no sentido do montante das custas decorrente do decaimento de uma
acção de responsabilidade civil de um Município julgada improcedente antes da
realização da audiência de discussão e julgamento dever ser calculado em função
do valor da acção sem limite máximo e havendo lugar ao pagamento do remanescente
das custas (implicando no caso a liquidação da quantia de 138.638,58 €), é
materialmente inconstitucional por ofensa aos princípios da justiça,
proporcionalidade e da igualdade (v. arts. 13º, 18º/2 e 266º/2 da Constituição),
pelo que não deve ser aplicado, como muito bem se entendeu nos autos ex vi do
disposto no artigo 204º da CRP.
A aplicação dos normativos da Tabela de C.C.J. que o Tribunal de 1ª Instância se
recusou aplicar com fundamento na sua inconstitucionalidade, conduz – em
situações como a patenteada nos autos – a resultados manifestamente
desproporcionados atendendo à actividade judicial desenvolvida, estando por isso
ainda em causa a violação do princípio da igualdade, bastando atentar a
situações em tudo idênticas em termos de prestação de serviço (v.g. acções
administrativas de responsabilidade civil extracontratual de valor inferior).
A fixação do valor da acção como critério de incidência da taxa judicial a
cobrar resulta igualmente na violação dos princípios da justiça, da
uniformidade, e da igualdade tributária, conduzindo à liquidação de taxas muito
elevadas nuns casos e irrisórias noutros, em processos de igual complexidade
processual.
A Tabela de Custas do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL nº 224-A/96,
de 26 de Novembro e os normativos que determinam a sua aplicação, ao tributarem
os incidentes de pedidos de apoio judiciário unicamente em função do valor
formulado na acção e sem qualquer limite máximo, enfermam de
inconstitucionalidade material também, por violação dos princípios
constitucionais do acesso ao direito e à justiça (v. arts. 20º e 268º/4 da
Constituição), pelo que não deveriam, também por essa razão, ser aplicados ex vi
do disposto no artigo 204º da Constituição.”
Houve mudança de relator
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
O tribunal recorrido recusou “a aplicação da Tabela de Custas anexa ao C.C.J.,
aprovado pelo Dec.Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, por padecer de
inconstitucionalidade material, por ofensa aos princípios da proporcionalidade e
da igualdade”.
É desta recusa, com fundamento em inconstitucionalidade material, que foi
interposto o presente recurso.
Foi a seguinte a fundamentação da decisão recorrida:
«A questão sub judice resulta, em síntese, do apuramento de uma conta de custas
cujo montante a A. entende ser manifestamente desproporcionado em função da
actividade judicial desenvolvida e também da aplicação de regras de custas aos
pedidos de apoio judiciário que, no argumentário da A., dissuadem os cidadãos a
peticionar tal pedido.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido chamada a pronunciar-se
sobre esta matéria, concluindo que o direito de acesso aos tribunais não inclui
o direito a litigar gratuitamente, uma vez que inexiste qualquer princípio
constitucional de gratuitidade no acesso à justiça, gozando o legislador de
ampla margem de liberdade na fixação dos montantes das custas judiciais, podendo
optar por uma justiça mais cara ou mais barata.
Porém, o instituto do apoio judiciário, visando temperar os malefícios de um
sistema assente na onerosidade da justiça, tal como está construído permite
extrair duas conclusões: em primeiro lugar que os economicamente carenciados não
podem ver ser posto em causa o acesso ao direito e aos tribunais, daí se
justificando a dispensa de pagamento, total ou parcial, das custas judiciais e
até dos honorários dos advogados. Em segundo lugar, se assim é para os
economicamente desfavorecidos, então os demais cidadãos não devem suportar
custas judiciais desproporcionadas em relação ao custo do serviço de que
usufruíram sob pena de grave distorção e desequilíbrio gerador de violação dos
princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade (art. 13º, e
266º, nº 2, da CRP).
Nesta perspectiva o montante das custas judiciais a pagar em cada caso concreto
deveria ser legislativamente determinado em função dos rendimentos do
responsável pelo seu pagamento, do trabalho a que deu causa e da complexidade
das matérias que submeteu a juízo e não, como sucede no sistema actual, através
de critérios que apenas têm em conta o valor da acção, pese embora atenuados com
mecanismos de redução segundo a fase processual em que terminam os autos.
Mas esse sistema ideal não é, como se compreende, facilmente implementável, o
que tem levado o Tribunal Constitucional a ser particularmente cauteloso na
abordagem desta questão, apenas admitindo a inconstitucionalidade das normas que
densificam os critérios de fixação dos montantes das ajudas de custo quando da
aplicação das mesmas resulta tomar-se incomportável o custo da demanda para o
utente em concreto, isto é, quando se torna insuportável ou especialmente
gravoso o acesso aos tribunais.
É que, se por um lado o estabelecimento de custas tem por finalidade evitar que
os encargos decorrentes do funcionamento da máquina judiciária sejam subtraídos
dos impostos, pondo em causa outros custos sociais relevantes (v. g. saúde e
educação), não é menos verdade que o direito, constitucionalmente consagrado, do
acesso ao direito e aos tribunais, não pode ser travado em função de critérios
de taxação concretamente desrazoáveis ou desequilibrados.
Dito de modo mais simplista, a conformação constitucional das normas que regem
em matéria de custas tem de ser aferida em função de uma justiça não gratuita,
mas com limites na sua onerosidade.
No caso vertente há que ponderar que a acção findou na fase do saneador (pese
embora o recurso interposto deste), ou seja, nem sequer se realizou julgamento;
por outro lado o conhecimento de mérito não apresentou qualquer especial
complexidade em relação a muitas outras acções já decididas neste TAF e em
particular pelo signatário.
Porém, o montante apurado das custas diverge significativamente, para mais, do
que foi exigido na esmagadora maioria delas. Por isso, não pode deixar de se
concluir que o montante final apurado – cerca de € 140.000 – não tem qualquer
relação com a actividade judicial desenvolvida, sendo manifestamente exagerado,
inclusive em função das disponibilidades financeiras evidenciadas pela A..
Há, de facto, uma evidente desproporção entre o volume e o custo da actividade
judicial a que a propositura da acção deu lugar, e o custo a que a A. é chamada
a pagar.
Essa desproporção é ainda mais evidente no que concerne ao pedido de apoio
judiciário. De facto, como bem refere a A., a exigência de quantias exorbitantes
em caso de indeferimento do pedido de apoio judiciário – quando, como é sabido,
a tramitação deste incidente e o apuramento da base factual é extremamente
simplificada – constitui um freio para quem pretende beneficiar de tal apoio, ou
seja, consubstancia um verdadeiro desincentivo legislativamente consagrado.
Neste enfoque pode afirmar-se que as normas da Tabela de Custas, aplicadas ao
caso sub judice são claramente inconstitucionais por ofensa aos princípios da
igualdade e da proporcionalidade. Mas não sofrem, a nosso ver, de
inconstitucionalidade orgânica como defende a autora porque, bem vistas as
coisas, “A base funcional da distinção entre taxas e imposto não impõe, uma
sinalagmaticidade pré-jurídica, mas sim uma sinalagmaticidade construída
juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser entendido e
aceite como tal pelos cidadãos atingidos”.”
Da leitura dos fundamentos da decisão recorrida resulta que se entendeu que o
valor das taxas apuradas neste processo, por força da aplicação da tabela de
custas então vigente, o qual resultava do disposto nos artº 13.º, nº 1, 15.º, nº
1, o), e 18.º, nº 2, todos do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de
Novembro, era manifestamente desproporcionado relativamente ao grau de
complexidade do processo taxado. E essa desproporção resultava da inexistência
de um limite máximo da taxa de justiça, fixada proporcionalmente ao valor da
causa, e do facto de não ser permitido ao tribunal limitar o valor concreto
dessa taxa, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do
processo, o que violava o princípio constitucional da proporcionalidade e o
direito constitucional ao acesso aos tribunais.
É este juízo de inconstitucionalidade que importa aqui verificar, sendo certo
que a redacção do C.C.J. que irá estar sob análise é a que resultou do D.L. nº
224-A/96, de 26 de Novembro, apesar de, entretanto, as disposições deste Código
terem sido posteriormente alteradas pelo D.L. nº 324/2003, de 27 de Dezembro.
Esta alteração não prejudica, porém, o conhecimento da questão de
constitucionalidade sub iudice, uma vez que, tendo a situação tributária da
recorrida sido definida com fundamento na recusa, por inconstitucionalidade, das
normas do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, terá de se
conhecer da sua validade, de modo a ser possível a reforma da respectiva
decisão, no caso de não proceder o juízo de inconstitucionalidade em que esta se
baseou.
Como é evidente, já escapa ao controlo do Tribunal Constitucional a apreciação
da bondade do critério infraconstitucional de tributação que a decisão
recorrida adoptou como sendo o aplicável ao caso, depois de ter afastado a
aplicação das normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.
2. Do mérito do recurso
No nosso sistema judiciário os processos, em regra, estão sujeitos a custas
(artº 1.º, nº 2, do C.C.J, na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro).
As custas de um processo judicial compreendem a taxa de justiça (anteriormente
designada de imposto de justiça) e os encargos (artº 1.º, nº 1 do C.C.J., na
redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro).
Enquanto os encargos compreendem os reembolsos das despesas efectuadas directa e
exclusivamente com a tramitação do processo em causa, pelo tribunal, por
intervenientes incidentais e pela parte vencedora, enumeradas no artº 32.º, do
C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, a taxa de justiça
corresponde à contrapartida pecuniária devida ao Estado pela utilização dos
tribunais para resolução de conflitos.
Como o seu próprio nome indica, dentro das receitas públicas, a “taxa de
justiça” é uma taxa, enquanto “quantia coactivamente paga pela utilização
individualizada de bens semi-públicos, ou como o preço autoritariamente fixado
de tal utilização”, utilizando as definições de TEIXEIRA RIBEIRO (em “Noção
jurídica de taxa”, na R.L.J., Ano 117º, pág. 294).
Nesta categoria também se deve incluir a procuradoria, na parte em que revertia
para o Conselho Geral da Ordem dos Advogados (15%), para o Conselho Geral da
Câmara dos Solicitadores (2%), para a Caixa de Previdência dos Advogados e
Solicitadores (40%) e para os Serviços Sociais do Ministério da Justiça (3%),
nos termos do artº 42.º, do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224/96, de 26 de
Novembro.
Na verdade, a enumeração dos encargos constante do artº 32.º, do C.C.J., na
redacção do D.L. nº 224/96, de 26 de Novembro, apenas incluía na sua alínea g) a
procuradoria, enquanto reembolso à parte vencedora do despêndio com o mandato
judicial, não correspondendo a parte restante a qualquer reembolso de quantia
gasta com o processo, o que se traduzia numa taxa encoberta pela rubrica em que
se inseria.
O pagamento desta parte da procuradoria foi entretanto extinto pelo Decreto-lei
nº 324/2003, de 27 de Dezembro, tendo-se escrito no seu preâmbulo o seguinte, a
propósito desta matéria:
“Introduzem-se também profundas alterações em sede de procuradoria,
designadamente através da consagração da regra de que o seu montante reverte,
integralmente para a parte vencedora. Restitui-se, assim, à procuradoria a sua
originária e verdadeira função de compensação dos encargos suportados com o
processo pelas partes, função essa que foi objecto de progressivo
desvirtuamento, ao ponto de se estipular que as partes, embora possam abdicar da
procuradoria, não podem prescindir da parcela que reverte para terceiras
entidades.
Assim, deixam de ser as partes a financiar, directamente e com prejuízo do
montante a que teriam direito a receber a título de procuradoria, as entidades
que, atendendo às relevantes funções sociais que desempenham, beneficiam do
sistema de cobrança de custas judiciais. Tal encargo passa, pois, a ser
assegurado pelo Estado, designadamente através de parte das quantias cobradas a
título de taxa de justiça.”
Assim, a parte da procuradoria que se destinava a subsidiar outras entidades,
uma vez que não correspondia ao reembolso de qualquer quantia despendida por
elas com o processo, deve, conjuntamente com a taxa de justiça, ser englobada na
contraprestação devida pelo particular ao Estado pela utilização dos serviços
públicos de justiça.
Apesar da fixação de taxas ter como pressuposto uma relação material de
sinalagmaticidade entre uma prestação pecuniária do sujeito passivo e uma
contrapartida qualitativa de utilização de um bem ou serviço público, isso não
significa que a esta equivalência jurídica tenha de corresponder uma
equivalência económica (vide, nesse sentido, ALBERTO XAVIER, em “Manual de
direito fiscal”, pág. 43-44, da ed. de 1974, e CARLOS BAPTISTA LOBO, em
“Reflexões sobre a (necessária) equivalência económica das taxas”, em “Estudos
jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco”,
pág. 409 e seg.).
Além de, na maior parte dos casos, não existir um mercado que permita determinar
o valor da prestação pública, de, muitas vezes, a fixação do montante das taxas
visar finalidades extra-financeiras, e de, frequentemente, serem prestadas
utilidades indivisíveis a uma pluralidade de beneficiários, considerando que as
taxas têm uma função essencialmente redíticia, no que diz respeito à definição
do seu montante vigora o princípio da liberdade de conformação pelo legislador
ordinário.
Como refere CARLOS BAPTISTA LOBO “…a configuração da equivalência económica que
se estabelece entre a prestação do sujeito passivo e a contraprestação do Estado
será necessariamente de “geometria variável”. Tal significa que a definição da
prestação pecuniária do sujeito passivo dependerá em larga medida do fundamento
que legitima a exigência da taxa.
Numa primeira aproximação, assente em padrões generalistas, poderá referir-se
que na ausência de qualquer preocupação ou finalidade extra-financeira
legalmente consagrada, e uma vez que a taxa tem como objectivo principal a
angariação de receita pública, a doutrina tem sistematicamente avançado a ideia
de que não é exigível que ocorra uma equivalência económica entre as prestações
dos particulares e os serviços públicos prestados” (na ob. cit. pág. 441).
Esta liberdade de definição do montante das taxas terá, contudo, como limite
superior o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso,
corolário do Estado de direito democrático (artº 2.º, da C.R.P.), o qual
impedirá a fixação de valores manifestamente desproporcionados ao serviço
prestado, o que, a suceder, porá em causa a própria equivalência jurídica das
prestações (vide, neste sentido CARLOS BAPTISTA LOBO, na ob. cit., pág. 442, e
os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 640/95, em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 32º vol., pág. 185, nº 1108/96, no Diário da República, II
Série, de 12-12-1996, nº 1140/96, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 35º
vol., pág. 317, nº 354/98, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 40º vol.,
pág. 219, nº 410/00, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 48º vol., pág.
141, 115/02, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 52º vol., pág. 515, e
227/07, no Diário da República, II Série, de 22-5-07).
Podem ser utilizados os mais variados critérios para a fixação das taxas devidas
pela tramitação de processo judicial, sendo os mais utilizados os seguintes:
- taxa fixa prevista na lei para cada acto processual, sendo o número e o tipo
de actos praticados em cada processo que determinará o seu custo final;
- taxa fixada pelo juiz, com limites previamente estabelecidos na lei;
- taxa fixa prevista na lei, proporcional ao valor da causa.
O primeiro dos sistemas vigorou entre nós até à aprovação do D.L. nº 25.882, de
1 de Outubro de 1935 (vide, sobre as deficiências deste sistema a opinião da
R.L.J., no Ano 69º, pág. 84-86), o qual generalizou a aplicação do critério da
taxa fixa prevista na lei, proporcional ao valor da causa, que já havia sido
introduzido, mas com aplicação parcial, pelos Decretos-Lei nº 22780, de 29 de
Junho de 1933, e nº 24.090, de 29 de Junho de 1934, sendo ainda este o critério
actualmente utilizado pelo legislador para estabelecer o montante da taxa de
justiça devida para os processos civis, assim como para os processos
administrativos e tributários (artº 13.º e 73.º - A, do C.C.J., na redacção do
D.L. nº 324/2003, de 27 de Dezembro).
O C.C.J., na redacção do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, previa no
seu artº 13.º, nº 1, que “a taxa de justiça era a constante da tabela anexa,
sendo calculada sobre o valor das acções, dos incidentes ou dos recursos”, pelo
que a taxa fixa, proporcional ao valor da causa, não era necessariamente uma
taxa global do processo, podendo ser um somatório das taxas devidas pela acção,
pelos incidentes e pelos recursos, desde que as respectivas tramitações se
verificassem.
A procuradoria, na parte em que também constituía uma taxa, era fixada tendo
como ponto de referência o valor da taxa de justiça, nos termos do artº 41.º, do
C.C.J., na redacção do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro:
“1. A procuradoria é arbitrada pelo tribunal, tendo em atenção o valor e a
complexidade da causa, entre um quarto e metade da taxa de justiça devida.
2. Quando o tribunal a não arbitre, a procuradoria é igual a metade da taxa de
justiça devida”.
A tabela anexa ao C.C.J. previa expressamente valores situados entre 30.000$00 e
10.000.000$00, com taxas proporcionalmente correspondentes entre 6.000$00 e
136.000$00, respectivamente, acrescentando a seguinte regra de cálculo – “para
além de 10.000.000$00: por cada 1.000.000$00 ou fracção – 10.000$00 de taxa de
justiça” (as quantias referidas neste parágrafo em escudos foram convertidas em
euros, por força do disposto no Decreto-Lei nº 136/2002, de 16 de Maio).
Apesar da complexidade processual ter alguma conexão com o valor da causa e do
resultado puro do critério adoptado se encontrar atenuado por várias normas que
previam a redução da taxa de justiça, em função da natureza das espécies
processuais (artº 14.º e 15.º, do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26
de Novembro), da hierarquia do tribunal onde se processavam (artº 18.º, do
C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro), ou da fase em que
terminavam (artº 17.º, do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de
Novembro), o facto do valor da taxa de justiça acompanhar automática e
ilimitadamente o aumento do valor da causa, permitia que se atingissem taxas de
justiça de elevadíssimo montante, flagrantemente desproporcionadas relativamente
ao custo do serviço prestado, não podendo as mesmas, em regra, ser aferidas com
o benefício obtido, uma vez que no nosso sistema processual, em matéria de
responsabilidade pelo pagamento de custas, vigora o princípio da causalidade,
segundo o qual quem paga as custas é quem não obtém vencimento na causa, dela
não retirando qualquer benefício.
O C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, não previa
mecanismos, como a fixação de um limite máximo para a taxa de justiça ou a
possibilidade do juiz, a partir de determinado valor, reduzir o seu montante,
atendendo ao grau de complexidade da causa, os quais só foram posteriormente
introduzidos pelo Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de Dezembro (artº 73.º-A e
27.º, nº 3), que permitem evitar a cobrança de taxas desproporcionadas.
Mas a cobrança de taxas elevadas pela prestação dos serviços de justiça, não só
pode determinar a sua desproporcionalidade, afrontando o princípio
constitucional estruturante da proibição do excesso, como também pode pôr em
risco o próprio direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para
defesa dos seus direitos (artº 20.º, nº 1, da C.R.P.).
Na verdade, quando as taxas de justiça atingem um montante de tal modo elevado
que dificultem, de modo inexigível, a generalidade dos cidadãos de recorrer aos
tribunais para defesa dos seus direitos, estamos perante inequívocas violações
daquele direito constitucional.
Como escrevem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS:
“A lei não pode…adoptar soluções de tal modo onerosas que na prática, impeçam o
cidadão médio de aceder à justiça. Ou seja, salvaguardada a protecção jurídica
para os mais carenciados, as custas não devem ser incomportáveis em face da
capacidade contributiva do cidadão médio, não sendo constitucionalmente
admissível a adopção de soluções em matéria de custas que, designadamente nos
casos de maior incerteza sobre o resultado do processo, inibam os interessados
de aceder à justiça…
Concretamente, se é certo que nada impede que o montante das custas seja
variável, a verdade é que o estabelecimento de um sistema de custas cujo
montante aumente directamente e sem limite na proporção do valor da acção coloca
pelo menos, dois tipos de problemas.
Por um lado, não está excluído que, rompida a proporcionalidade entre as custas
cobradas e o serviço de administração da justiça prestado, se deixe de estar
perante verdadeiras taxas e se entre, pelo contrário, no domínio dos impostos.
Por outro lado, no plano estritamente material, a solução em causa pode, na
prática, consubstanciar-se na imposição de um sistema de custas excessivas
inaceitável em face do artº 20.º.” (Em “Constituição Portuguesa anotada”, tomo
I, pág. 183, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
E GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA:
“O reconhecimento do direito ao acesso ao direito e aos tribunais seria
meramente teórico para muitas pessoas se não se garantisse que o direito à
justiça não pode ser prejudicado por insuficiência de meios económicos (nº 1, in
fine)… Incumbe à lei assegurar a concretização desta norma, não podendo, por
exemplo, o regime das custas judiciais ser de tal modo gravoso que torne
insuportável o acesso aos tribunais…
A Constituição não determina a gratuitidade dos serviços de justiça, como sucede
em termos tendenciais, com os serviços de saúde (artº 64.º - 2/a) e o ensino
básico universal (artº 74º - 2 /a). Mas o direito de acesso à justiça proíbe
seguramente que eles sejam tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o
acesso aos tribunais.” (Em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol
I, da 4ª ed., da Coimbra Editora).
E a consagração de um sistema de apoio judiciário a quem tem uma situação
económica insuficiente para fazer face aos custos duma acção, através da
concessão de dispensa do pagamento total ou parcial das custas, não basta para
garantir o acesso aos tribunais, quando o regime de custas permite a cobrança de
valores muito elevados.
Na verdade, quando estas atingem valores exagerados, não são só aqueles que não
têm meios para os pagar que, se não forem dispensados de o fazer, se inibem de
solicitar a intervenção do tribunal, mas também os que, apesar de disporem duma
situação económica que lhes permite satisfazer tais montantes sem pôr em causa a
sua sobrevivência condigna, igualmente se abstêm de recorrer ao tribunal,
perante o risco de poderem ter de despender uma quantia exorbitante em custas.
Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 339/90 (pub. em
“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 17º, pág. 349):
“Estes preceitos (referindo-se às normas da assistência judiciária) deveriam
entender-se no sentido de que o critério de insuficiência económica era a
impossibilidade para o requerente, tendo em vista o seu rendimento…, de custear
as despesas normais do pleito para que era pedida a assistência. Não implicavam
a admissão, por parte do requerente, da sua indigência, ou incapacidade de
custear qualquer pleito.
Tal não bastará, contudo, para concluir, sem mais, que a legislação aplicável no
caso garante o acesso ao direito e aos tribunais. A garantia não deverá
considerar-se efectiva, se o sistema da assistência ou apoio, tendo sido
legislativamente concebido para prover a casos excepcionais de insuficiência
económica, tiver que ser aplicado em regra, por consequência do carácter
desproporcionado das custas. É então de prever, não só que o cidadão médio tenha
que recorrer à assistência para a generalidade dos processos, mas que então o
sistema de assistência não tenha capacidade de resposta efectiva, por não ter
sido concebido como forma generalizada de acesso. A Constituição não garante
melhor acesso ao cidadão médio do que ao pobre, mas garante a todos acesso
efectivo. E essa efectividade num sistema de assistência como remédio
excepcional não é garantida por custas que o cidadão em regra interessado em
processo de certo montante não possa suportar”.
Ou ainda no acórdão nº 495/96 (pub. em “Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º
vol., pág. 655):
“O instituto do apoio judiciário não é, pois, um instrumento generalizado, ou
pressuposto primário de acesso ao direito: é, antes, um remédio, uma solução a
utilizar, de forma excepcional, apenas pelos cidadãos economicamente carenciados
ou desfavorecidos, e não de forma indiscriminada pela globalidade dos cidadãos.
Isto implica, necessariamente, que também o sistema das custas judiciais tenha
que ser um sistema proporcional e justo, que não torne insuportável ou
inacessível para a generalidade das pessoas o acesso aos tribunais.”
O sistema de apoio judiciário não é, pois, suficiente para garantir o acesso
generalizado aos tribunais, nos casos em que se fixam taxas de justiça
exorbitantes face ao nível económico médio dos cidadãos.
Assim se conclui que o sistema de fixação das taxas de justiça do C.C.J., na
redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, acima exposto, permitia a
cobrança de taxas de justiça, cujo montante, exageradamente elevado, podia
atentar contra os referidos parâmetros constitucionais da proibição do excesso e
do direito de acesso aos tribunais.
Apesar de não caber a este Tribunal aferir qual o concreto patamar em que se
situa o limite em que a prestação pública se desliga dos custos da respectiva
actividade ou em que o cidadão fica inibido de recorrer aos tribunais, por força
do valor das custas, deve, contudo, velar pelo respeito pelos referidos
parâmetros constitucionais, perante o concreto valor das taxas cobrada num
determinado processo, como resultado da aplicação da tabela legal, segundo o
princípio do controlo da evidência.
Foi este controlo que o Tribunal Constitucional efectuou com resultados
diferentes, entre outros, nos acórdãos nº 1182/96 (em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 35º vol., pág. 447), nº 521/99 (em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 44º vol., pág. 793), nº 349/2002 (em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 53º vol., pág. 693), e nº 227/07 (no Diário da República, II
Série, de 22-5-07).
Na presente acção, que tinha o valor tributário de 1.598.350.814$00, foram
contadas à recorrida custas no montante de € 139.997,80, respeitando €
123.903,43 a taxas, correspondendo € 19.984,42, à taxa do incidente de apoio
judiciário, reduzida a ¼, nos termos do artº 15.º, nº 1, do C.C.J., na redacção
do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, € 39.968,85, à taxa de justiça da
acção, reduzida a ½, nos termos do artº 17.º, nº 2, do C.C.J., na redacção do
D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, € 39.968,85, à taxa de justiça do recurso,
reduzida a ½, nos termos do artº 18.º, nº 2, do C.C.J., na redacção do D.L. nº
224-A/96, de 26 de Novembro, e € 23.981,31, à procuradoria com natureza de taxa.
Foi a seguinte a tramitação desta acção:
- Em 13-11-1996 a recorrida propôs no Tribunal Administrativo do Círculo de
Lisboa acção, sob a forma ordinária, em que deduziu um pedido indemnizatório
contra o Município de Lisboa, no valor de 1.598.350.814$00, por atraso na
emissão de um alvará de loteamento. Requereu ainda que lhe fosse concedido apoio
judiciário, “na modalidade de dispensa prévia de pagamento de preparos e
custas”.
- Em 19-11-1996 foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de
apoio judiciário e ordenou a citação do demandado.
- Em 19-12-1996 o Município de Lisboa apresentou contestação.
- Em 7-1-1997 a Autora apresentou réplica.
- Realizou-se instrução documental relativamente ao pedido de apoio judiciário.
- Em 8-10-2002 foi proferida em simultâneo decisão sobre o mérito do pedido de
apoio judiciário e da acção, tendo ambos sido julgados improcedentes.
- Em 24-10-2002 a Autora interpôs recurso para o STA, o qual foi admitido como
de agravo, com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
- Em 4-12-2002 e 16-1-2003, respectivamente, foram apresentadas alegações e
contra-alegações de recurso, tendo a recorrente suscitado a nulidade da
sentença proferida.
- Em 19-2-2003 o tribunal recorrido proferiu despacho, considerando improcedente
a arguição da nulidade.
- Após emissão de parecer pelo M.P. e recolha dos vistos no S.T.A., foi
proferido acórdão em 15-6-2004, em subsecção, na 1ª Secção do S.T.A., que negou
provimento ao recurso.
Tendo em consideração a linearidade da tramitação da acção acima descrita e a
fase em que a mesma terminou na 1ª instância, a contagem de € 123.903,43 de
taxas é manifestamente desproporcionada às características do serviço público
concreto prestado, atendendo ao custo de vida em Portugal. Na verdade, este
montante exagerado resulta apenas do elevado valor da acção, sem qualquer
tradução na complexidade do processo, o qual decorreu com uma tramitação
simples, não existindo qualquer correspondência entre os custos dos meios do
Estado envolvidos e o valor total das taxas cobradas.
Só a ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção
moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação
ocorrida permitiu que estas atingissem aquele valor manifestamente
desproporcionado e injustificadamente inibidor da utilização dos serviços
públicos de justiça.
Essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia viola não só o principio
estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de
acesso aos tribunais, previsto no artº 20.º, nº 1, do C.R.P., pelo que deve
confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade efectuado pela decisão recorrida,
julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
*
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais,
consagrado no artº 20.º, da C.R.P., conjugado com o princípio da proibição do
excesso, decorrente do artº 2.º, da C.R.P., a norma que se extrai da conjugação
do disposto nos artigos 13.º, nº 1, 15.º, nº 1, o), 18.º, nº 2, e tabela anexa
do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em
que dela resulta que as taxas de justiça devidas por um processo, comportando
um incidente de apoio judiciário e um recurso para o tribunal superior, ascendem
ao montante global de € 123.903,43, determinado exclusivamente em função do
valor da acção, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em
que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no
caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do
processo e o carácter manifestamente desproporcionado desse montante;
b) Confirmar o juízo de inconstitucionalidade feito pela decisão recorrida e,
consequentemente, negar provimento ao recurso.
*
Sem custas.
*
Lisboa, 25 de Setembro de 2007
João Cura Mariano
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido
de acordo com a declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por não acompanhar o juízo de desproporcionalidade em que se
abona a decisão de inconstitucionalidade. Fundamentando conclusão diferente que
não mereceu acolhimento, e respigando apenas algumas das partes, escrevemos como
primitivo relator do processo:
«8. 5 – Mas, uma das mais complexas problemáticas que a teoria das
taxas tem enfrentado é a da definição dos termos e dos seus limites que são
demandados pela garantia jurídico-constitucional a que estão subordinadas,
ínsita na relação de bilateralidade ou de sinaglamaticidade entre as prestações.
Ora, a este respeito têm sido convocados, basicamente, dois
princípios: o princípio da equivalência jurídica (Aequivalenzprinzip) e o
princípio dos custos (Kostendeckungsprinzip).
Segundo o primeiro, não poderá deixar de existir entre as prestações
em presença uma equivalência jurídica.
Como diz Benjamim Rodrigues (op. cit. p. 187), “no mínimo, ao
conformar a taxa o legislador tributário não pode deixar de se orientar por um
pré-juízo abstractamente formulado sobre a existência dessa equivalência de
valoração jurídica entre ambas as prestações e fixar a taxa apenas no ponto em
que figure existir essa.
Enquanto paridade de valoração enformada pelas mais diversas
condicionantes, desde as éticas, morais, económicas, contenção ou impulso no
acesso ao tipo de bens em causa, essa equivalência terá forçosamente parâmetros
muito elásticos, os quais tornarão quase impossível surpreender um caso de
violação”.
De acordo com o segundo, a fixação das taxas deverá seguir um
princípio da cobertura dos custos: as taxas devem ser fixadas segundo critérios
que garantam a cobertura dos custos, com respeito pelos princípios da igualdade
e da proporcionalidade.
Qualquer que seja o critério dominante, só poderá falar-se, porém,
de qualquer modo, de taxa onde seja possível surpreender, ainda, a existência de
uma relação de proporção adequada ou ajustada entre as duas prestações, sob uma
perspectiva económica.
E é sob o ponto de vista económico que a aferição se deve fazer,
porque a prestação da entidade pública se traduz em bens satisfazentes de
necessidades humanas individuais ou individualizáves, surgindo o montante de
taxa enquanto contrapartida que tem de pagar-se pelo acesso ou uso desses bens.
Mas estando em causa, por um lado, bens “públicos”, e, por outro,
prosseguindo o fornecimento desses bens, em ultima ratio, interesses públicos
ou, no mínimo, gerais, é forçoso admitir que o equilíbrio entre as prestações
exigido pela garantia não tenha forçosamente de se situar, sempre, num patamar
equivalente ao do seu custo de produção.
Sendo assim, o montante da taxa, sob pena de se perder a relação
garantística decorrente da sua bilateralidade, nunca poderá alhear-se, quer do
valor de custo do serviço prestado, quer de uma ponderação, presente no momento
da sua fixação, sobre o grau possível ou desejável de satisfação das finalidades
sociais que justificam, sob tal via jurídica, o acesso ou o uso individualizado
a esse tipo de bens.
É a reflexão sobre este momento que justifica que o montante das
taxas possa ser fixado, pelo legislador, com intuitos de incentivo ao acesso e
uso dos bens públicos, ou, ao contrário, de desincentivo.
De qualquer jeito, nunca, nessa ponderação, o legislador pode
abandonar o critério de uma conexão necessária, razoável e adequada entre o
valor de custo para o ente público dos bens ou serviços que presta aos
particulares e a contrapartida que estes pagam.
A ausência de um tal referente deslocaria a causa jurídica da taxa
para o domínio, puro e simples, da capacidade de pagar o tributo fixado em tal
nível, ou seja para o domínio da capacidade contributiva de pagar tributos, e
que é totalmente alheia ao grau de utilização que se faça dos bens públicos
propiciados com os gastos dessas receitas.
Determinante, no controlo da relação de bilateralidade do tributo,
é, como não pode deixar de ser, a fundamentação aduzida pelo legislador ou pela
administração para fixar as taxas nos níveis elegidos.
O princípio da legalidade, a que as taxas estão sujeitas, não pode
deixar, assim, de reflectir os momentos de tensão e de reflexão sobre os
referidos elementos, devendo o controlo a efectuar pelos tribunais, respeitar “a
leitura” deles feita pelo legislador, salvo se a mesma for manifestamente
desadequada ou desproporcionada.
Embora, cingindo-se ao âmbito da administração local e às taxas das
autarquias locais, o legislador nacional orientou-se pelo princípio dos custos,
ao proceder à definição do regime geral das taxas das autarquias locais no art.º
4.º da Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, matizando-o, de algum modo, com o
princípio da equivalência jurídica.
Na verdade, e, precisamente sob a epígrafe “princípio da
equivalência jurídica”, este preceito dispõe:
“1 – O valor das taxas das autarquias locais é fixado de acordo com
o princípio da proporcionalidade e não deve ultrapassar o custo da actividade
pública local ou o benefício auferido pelo particular.
2 – O valor das taxas, respeitando a necessária proporcionalidade,
pode ser fixado com base em critérios de desincentivo à prática de certos actos
ou operações”.
E densificando, ainda, princípios susceptíveis de reflectir-se na
determinação das taxas, o mesmo legislador estabeleceu, no art.º 5.º do mesmo
diploma, e sob o título “princípio da justa repartição dos encargos públicos”
que:
“1 – A criação de taxas pelas autarquias locais respeita o princípio
da prossecução do interesse público local e visa a satisfação das necessidades
financeiras das autarquias locais e a promoção de finalidades sociais e de
qualificação urbanística, territorial e ambiental.
2 – As autarquias locais podem criar taxas para financiamento de
utilidades geradas pela realização de despesa pública local, quando desta
resultem utilidades divisíveis que beneficiem um grupo certo e determinado de
sujeitos, independentemente da sua vontade”.
Na enunciação do recente regime geral das taxas das autarquias
locais, o legislador continuou, ao fim e ao cabo, a trilhar o caminho que havia
começado a adoptar com a edição do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias
Locais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de Fevereiro), onde passou
a prever a obrigatoriedade de custos por funções como instrumento de gestão
financeira para a “determinação dos custos subjacentes à fixação das tarifas e
dos preços” (ponto 1.5) e ao dispor que “a contabilidade de custos é obrigatória
no apuramento dos custos das funções e dos custos subjacentes à fixação das
tarifas e preços de bens e serviços” (ponto 2.8.3.1), devendo esses custos “ser
apurados em função dos custos directos e indirectos relacionados com a produção,
distribuição, administração geral e financeiros” (ponto 2.8.3.2) e sendo a
“imputação de custos indirectos efectuado após o apuramento dos custos directos
por funções através de coeficientes” (ponto 2.8.3.3).
Caminho esse que, mais tarde, veio a prosseguir nas exigências
postas para a fixação da taxa pela realização, manutenção e reforço das
infraestruturas urbanísticas, no art.º 116.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 555/99,
de 16 de Dezembro, relativo ao regime jurídico da urbanização e da edificação,
dispondo que os projectos de regulamento municipal “devem ser acompanhados da
fundamentação do cálculo das taxas previstas”, tendo em conta, designadamente,
os elementos que refere (cf. Benjamim Rodrigues, op. cit. p. 191).
Pode, no entanto, dizer-se que a ideia de uma proporção adequada com
o custo do serviço e com a sua utilidade para o utente, nos termos acolhidos
pelo regime geral das taxas das autarquias locais, corresponde ao sentido de
grande parte da doutrina e da jurisprudência constitucional.
Assim – e, cingindo-nos apenas a alguns dos autores que já se
referiram – José Casalta Nabais (Direito Fiscal, 2.ª edição, 2003, cit. pp. 2º e
segs.) depois de falar de uma “verdadeira ‘summa divisio’, (…) divisão
dicotómica ou binária dos tributos, sendo estes, independentemente do nome que
ostentam, ou tributos unilaterais que integram a figura dos impostos, ou
tributos bilaterais que se reconduzem à figura das taxas”, defende que, “perante
um tributo, para sabermos se, do ponto de vista jurídico-constitucional, estamos
perante um tributo unilateral ou um imposto, ou perante um tributo bilateral ou
uma taxa, o que há a fazer é o teste da sua medida ou do seu critério, estando
pois perante um imposto se apenas pode ser medido ou aferido com base na
capacidade contributiva do contribuinte, ou perante uma taxa se é susceptível de
ser medido ou aferido com base na referida ideia de proporcionalidade” –
acrescentando (nota 38) que, “[e]m rigor há aqui dois testes: o da
bi/unilateralidade do tributo e, se neste se concluir pelo seu carácter
bilateral, o da sua medida ou critério de justiça, muito embora seja este último
teste o decisivo, já que, se a proporcionalidade entre o tributo e a respectiva
contraprestação específica estiver ausente, então estaremos perante um tributo
cujo regime constitucional não pode deixar de ser o dos impostos.”
Também, José G. Xavier de Basto e António Lobo Xavier (“Ainda a
distinção entre taxa e imposto: a inconstitucionalidade dos emolumentos
notariais e registrais devidos pela constituição de sociedades e pelas
modificações dos respectivos contratos”, Revista de Direito e de Estudos
Sociais, ano XXXVI, 1994, nºs. 1-2-3, esp. págs. 6 e segs.), defendem ser
essencial identificar a prestação pública que justifica o pagamento da taxa e a
existência de uma proporção adequada entre o montante desta e o valor daquele
serviço, sustentando deverem considerar-se impostos, para o efeito da aplicação
do princípio da legalidade tributária, “as receitas coactivas que, cobradas
aquando da prestação de serviços públicos individualizados, não se relacionam,
na determinação do seu montante, nem com o custo nem com o valor desse serviço,
antes com elementos relativos à capacidade contributiva dos utentes”.
No que importa à jurisprudência do Tribunal Constitucional, cabe
notar que, por exemplo, o Acórdão n.º 640/95 (in DR II Série, de 20 de Janeiro
de 1996), a propósito das portagens na ponte 25 de Abril, interrogou-se sobre se
“num caso de uma taxa de valor manifestamente desproporcionado, completamente
alheio ao custo do serviço prestado, não deverá entender-se que tal taxa há-de
ser tratada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, como um verdadeiro
imposto, de tal forma que tenha de ser o órgão parlamentar a decidir sobre o seu
quantum”, e, havendo prosseguido a indagação para avaliar se se verificava tal
desproporção manifesta, concluiu pela negativa (num sentido de ponderação das
prestações, cf., também, os Acórdãos nºs 410/2000, 1108/96, 1140/96 e 354/98,
publicados respectivamente em DR II Série, nºs 270, de 22 de Novembro de 2000,
294, de 20 de Dezembro de 1996, 34, de 10 de Fevereiro de 1997, e 161, de 15 de
Julho de 1998).
Na mesma linha, escreveu-se no Acórdão n.º 200/2001, publicado nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50.º, pp. 326-327:
“Na distinção entre taxa e imposto, o Tribunal Constitucional tem,
pois, seguido o critério da sinalagmaticidade: a taxa constitui, não uma receita
unilateral, mas um preço, autoritariamente fixado, correspondente a um bem ou
serviço, e mesmo que este seja de procura obrigatória (v., como exemplos
referidos em J. J. Teixeira Ribeiro, Lições de finanças públicas, 5ª ed.,
Coimbra, 1995, pp. 255-257, a hipótese das propinas no ensino obrigatório e o
caso dos emolumentos dos serviços de registo e do notariado, mesmo quando a sua
procura é obrigatória); o imposto constitui uma receita coactiva unilateral do
Estado, sem correspectividade num bem ou serviço.
Tal distinção não implica, porém, que o valor da taxa haja de corresponder
economicamente ao valor ou ao custo do bem ou serviço em questão — que tenha que
existir tal correspectividade económica para se poder afirmar a bilateralidade
da receita, enquanto taxa.
Na verdade, através da imposição de uma taxa podem prosseguir-se
finalidades de interesse público (como a limitação da procura de um bem)
conducentes a um montante diverso do correspondente a tal valor ou custo. E
ainda nesta hipótese ao pagamento da taxa corresponde a contraprestação de um
bem ou serviço por parte do Estado. Daí que, como escrevia Teixeira Ribeiro (op.
cit., p. 258), «quando a taxa exceda o custo dos bens, nem por isso tenhamos
imposto na parte sobrante, uma vez que, apesar de ser coactiva, ela mantém o seu
carácter de prestação bilateral».
Aliás, mesmo sem se excluir que a forma de determinação do montante
do tributo em causa possa funcionar como indício para a sua qualificação como
taxa ou imposto, entende este Tribunal que apenas a manifesta
desproporcionalidade entre o montante do tributo, por essa forma determinado, e
o custo do serviço público (o carácter «completamente alheio» a este) poderá
levar a que o tributo em questão deva ser encarado, de um ponto de vista
jurídico-constitucional, como verdadeiro imposto. Foi justamente isto que,
afirmando a desnecessidade de correspondência económica entre o custo do serviço
e o montante da taxa, este Tribunal disse também no citado Acórdão n° 410/2000
[publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º vol., pp. 141-163]:
«para a função da taxa pode ser menos relevante o custo e, por
exemplo, mais relevante a contenção da utilização de um serviço — o que
significa (e a jurisprudência constitucional tem-se comprometido nesse sentido)
que o carácter sinalagmático da taxa não exige a correspondência do seu montante
ao custo do bem ou serviço prestado: a bilateralidade que a caracteriza
mantém-se, mesmo na parte excedente ao custo (cfr., v. g., o Acórdão n° 205/87,
publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1987); não é, por si
só, de qualificar a taxa como imposto, ou de lhe conceder tratamento
constitucional de imposto, se o respectivo montante exceder o custo dos bens e
serviços prestados ao utente (cfr., v. g., o Acórdão n° 640/95, publicado
naquele Jornal Oficial, II Série, de 20 de Janeiro de 1996).
Já se o valor da taxa for manifestamente desproporcionado,
«completamente alheio ao custo do serviço prestado», então pode duvidar-se se a
taxa não há-de ser encarada de um ponto de vista jurídico-constitucional, como
verdadeiro imposto (citado Acórdão n° 640/95), porque desse modo, e nessa
medida, se afectaria a correspectividade. Assim, a desproporcionalidade,
desvirtuante da correspectividade, lesaria o critério legitimante da taxa,
enquanto a adequação à capacidade contributiva é característica do imposto (cfr.
Acórdão n° 1108/96).
Ou seja – e para acompanhar mais uma vez este último aresto – «[a]
base funcional da distinção entre taxa e imposto não impõe […] uma
sinalagmaticidade pré-jurídica, mas sim uma sinalagmaticidade construída
juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser entendido e
aceite como tal pelos cidadãos atingidos».
Tal entendimento do Tribunal mostra-se igualmente reflectido nos
diversos arestos que se debruçaram sobre a matéria da definição do montante das
taxas de justiça.
Também neles, se reconheceu que o legislador dispõe, nesse âmbito,
de uma larga margem de liberdade constitutiva, advertindo-se, no entanto, que
“essa liberdade não implica que as normas definidoras dos critérios de cálculo
sejam imunes a um controlo de constitucionalidade, quer no que toca à sua
aferição segundo regras de proporcionalidade, decorrentes do princípio do Estado
de Direito (artigo 2.º da Constituição), quer no que respeita à sua apreciação à
luz da tutela constitucional do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da
Constituição); em qualquer dos casos, sob a cominação de inconstitucionalidade
material” (Acórdãos nºs 1182/96, 352/91 e 349/02, publicados, respectivamente,
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 35.º, pp. 447-454, Diário da
República II Série, de 17 de Dezembro de 1991 e de 15 de Novembro de 2002).
Discorrendo sobre a apreciação da questão de constitucionalidade do
art.º 7.º, alínea h), do Código das Custas Judiciais, “na interpretação de que o
referido artigo deve ser aplicado independentemente do valor da acção para
efeito de custas e da maior ou menor actividade jurisdicional envolvida pela
acção, incidente ou recurso”, e relativamente a um caso em que a taxa de justiça
era do montante de 836.183.000$00, respeitante a um processo de jurisdição
voluntária de um pedido de autorização judicial para a redução do capital social
de 192.229.088.784$00 para 24.996.857.746$00, e no qual chegou a um juízo de não
inconstitucionalidade, o referido Acórdão n.º 349/02 discreteou do seguinte
modo:
«[…] 'o que é exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o
pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação – material, e não
meramente formal – na percepção de um dado serviço (cfr., designadamente, o
acórdão nº 1108/96, já citado).
Assim, não basta uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o
valor do serviço prestado, para que ao tributo falte o carácter sinalagmático.
Será necessário que essa desproporção seja manifesta e comprometa, de modo
inequívoco, a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática.
Como se escreveu recentemente no acórdão nº 115/02 – que acompanhou,
nesta parte, o que ponderado foi no acórdão nº 640/95, publicado no Diário da
República, II Série, de 20 de Janeiro de 1996 – 'pode assim dizer-se que o
Tribunal Constitucional rejeita o entendimento de que uma taxa cujo montante
exceda o custo dos bens e serviços prestados ao utente se deve qualificar como
imposto ou de que deve ter o tratamento constitucional de imposto: quando se
verifica a correspectividade ou o carácter sinalagmático entre a imposição e um
serviço divisível prestado não se está perante um imposto'.
14. Por outro lado, se é certo que o Tribunal já disse que a
existência de uma clara desproporção pode afectar a qualificação de um tributo
como taxa, também é verdade que sempre acrescentou que a clara desproporção que
afecta o carácter sinalagmático de um tributo não pode relacionar-se apenas com
o carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do
serviço; ela há-de igualmente ser aferida em função de outros factores,
designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. os
acórdãos nºs 1140/96 e 115/02, já citados).
Para demonstrar este ponto, escreveu-se recentemente no acórdão n.º
115/02:
'(...) E, o Tribunal Constitucional tem sido, no entanto, cauteloso na
apreciação dos excessos indicadores de uma falta de proporcionalidade enquanto
desvirtuantes da correspectividade.
Assim, para a função da taxa pode ser menos relevante o custo e, por
exemplo, mais relevante a contenção da utilização de um serviço – o que
significa (e a jurisprudência constitucional tem-se comprometido nesse sentido)
que o carácter sinalagmático da taxa não exige a correspondência do seu montante
ao custo do bem ou serviço prestado: a bilateralidade que a caracteriza
mantém-se, mesmo na parte excedente ao custo (cfr., v. g., o acórdão n.º 205/87,
publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1987); não é, por si
só, de qualificar a taxa como imposto, ou de lhe conceder tratamento
constitucional de imposto, se o respectivo montante exceder o custo dos bens e
serviços prestados ao utente (cfr., v.g., o acórdão n.º 640/95, publicado
naquele jornal oficial, II Série, de 20 de Janeiro de 1996).
(...)'
Como, então, mais se ponderou, em termos que ora interessa reter (e
reflectindo, de certo modo, o exposto precedentemente), '[a] base funcional da
distinção entre taxa e imposto não impõe, todavia, uma sinalagmaticidade
construída juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser
entendido e aceite como tal pelos cidadãos atingidos'.
Daí se retira que 'a consignação financeira de uma tal prestação
económica que surge como uma elevação de um preço estabelecido em convenção
poderá não afectar a natureza de taxa da referida prestação, na medida em que se
entenda que a elevação do preço tem o seu fundamento (a sua causa) num
determinado modo de relacionamento dos cidadãos com os custos (benefícios ou
utilidades) e a própria elevação do preço seja aceitável racionalmente como
contrapartida de um benefício'.».
8.6 – Neste domínio das custas judiciais, não pode, pois, o
legislador deixar de ponderar, dentro da referida avaliação das finalidades
públicas a satisfazer, a sua vinculação constitucional decorrente da previsão de
um direito fundamental de acesso aos tribunais constante do art.º 20.º da
Constituição.
É que em causa está um bem ou serviço público que visa satisfazer um
direito fundamental no Estado de direito democrático: a obtenção de tutela
judicial efectiva e plena dos direitos subjectivos e interesses legalmente
protegidos das pessoas.
Não se trata apenas de um serviço de utilização obrigatória, em
certos casos, mas de um bem essencial à própria realização e efectivação do
Estado de direito democrático, na sua expressão de garantia de resolução,
através dos tribunais, das controvérsias da vida em sociedade apenas segundo o
direito.
Debruçando-se sobre este ângulo da questão, escreveu-se o seguinte
no referido Acórdão n.º 352/91, que aqui se reitera:
«[…]
O direito de acesso aos tribunais não compreende [...] um direito a
litigar gratuitamente, pois [...] não existe um princípio constitucional de
gratuitidade no acesso à justiça (cfr., neste sentido, também o Acórdão n.º
307/90, Diário da República, 2ª Série, de 4 de Março de 1991).
O legislador pode, assim, exigir o pagamento de custas judiciais,
sem que, com isso, esteja a restringir o direito de acesso aos tribunais. E, na
fixação do montante das custas, goza ele de grande liberdade, pois é a si que
cabe optar por uma justiça mais cara ou mais barata.
Essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite
– limite que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos
cidadãos sem terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio
judiciário como algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos
economicamente carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das
pessoas de médios rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de
intervir em acções de muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há-de, pois, o legislador ter
sempre na devida conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não
tornar incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial,
pois se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou
especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa.
[…]
Como todas as decisões legislativas, as decisões que o legislador
toma em matéria de custas no que concerne ao quantum delas, são, obviamente,
sindicáveis sub specie constitucionis. Mas, ao menos em geral, (...) tais
decisões só haverão de ser taxadas de constitucionalmente ilegítimas quando
inviabilizem ou tornem particularmente oneroso o acesso aos tribunais para o
cidadão médio.».
E laborando dentro do mesmo pensamento, disse-se, também, no Acórdão
n.º 467/91, publicado no Diário da República II Série, de 2 de Abril de 1992:
«[…] esse espaço de conformação [o espaço de conformação do
legislador em matéria de custas] tem os limites que são dados pela irredutível
dimensão de defesa da tutela jurisdicional dos direitos, postulando soluções
legislativas que assegurem um acesso igual e efectivo aos tribunais. Então, o
princípio da proporcionalidade vem aqui «alicerçar um controlo
jurídico-constitucional da liberdade de conformação do legislador e situar
constitucionalmente o espaço de prognose legislativa» (J. J. Gomes Canotilho,
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra 1982, p. 274).
O asseguramento da garantia do acesso aos tribunais subentende uma
programação racional e constitucionalmente adequada dos custos da justiça: o
legislador não pode adoptar soluções de tal modo onerosas que impeçam o cidadão
médio de aceder à justiça.».
Face ao que vem de dizer-se, há-de convir-se que o legislador, no
estabelecimento do critério de determinação da taxa de justiça, não pode ir além
dos limites postulados pela garantia da bilateralidade.
Mas sendo assim, no estabelecimento das taxas de justiça, o sistema
não deve deixar de atender aos custos reais de administração de justiça e as
taxas fixadas não devem, também, deixar de corresponder, com observância do
princípio da igualdade na aplicação do critério, a uma refracção desses custos
reais.
É que o Estado pode optar por uma justiça mais barata ou mais cara,
desde que não ultrapasse os custos de uma tal função.
Mas, por outro lado, há, também, que não esquecer que incumbe, ao
Estado, a realização de um “equilíbrio entre a consagração do direito de acesso
ao direito e aos tribunais [em condições de igualdade] e os custos inerentes a
tal exercício” (Acórdão n.º 608/99, publicado no Diário da República II Série,
de 16 de Março de 2000).
Todavia, nada obriga a que esse equilíbrio, que forçosamente deve
assegurar uma igualdade das partes no acesso à justiça, haja de ser conseguido
exclusivamente através da adopção de uma grelha de taxas de justiça, até porque
a facilidade em as pagar anda na razão inversa dos meios de fortuna que se
tenha.
A concretização de uma igualdade material, no acesso aos bens
públicos, passará, antes, pela previsão de mecanismos de isenção ou de redução
das taxas de justiça ou de concessão de apoios ou de benefícios financeiros a
quem não possa suportar as custas reflectoras do sistema mais caro ou mais
barato de administração de justiça por que o legislador optou, aí acautelando os
referidos interesses públicos e o direito fundamental de acesso aos tribunais.
Quer isto dizer que o grau de tributação das custas judiciais, que
será, ainda, tolerável, de acordo com um critério de exigibilidade de uma
relação de bilateralidade, apenas terá de ser afastado, para realizar o acesso à
justiça em condições de igualdade, quando esse acesso não esteja assegurado
mediante a previsão de um sistema de mecanismos de apoio judiciário ou em que o
nível de tributação adoptado, conjugadamente com a existência desses meios de
apoio, inviabilize ou torne particularmente oneroso ou inibidor, segundo uma
regra de controlo de evidência, o acesso aos tribunais para o cidadão médio,
garantido pelo art.º 20.º da CRP.
Por outro lado, sendo, embora, certo que prestação de administração
de justiça se consubstancia na obtenção de uma decisão judicial, não se segue
daí que o legislador não possa adoptar como critério conformador das taxas
judiciais um princípio assente sobre a consideração do valor da causa, seja por
patamares, seja recorrendo ao simples método proporcional, com isso entrando em
linha de conta com o valor mediato da prestação de justiça, como acontece na
norma constitucionalmente impugnada.
É que não há dúvida que a utilidade sentida pelo utilizador do
serviço de administração de justiça reside, essencialmente, no valor dos
direitos ou interesses que são reconhecidos pela decisão judicial e não tanto na
decisão judicial em si própria, sendo que, numa perspectiva económica, a
prestação pública vale pelos direitos ou bens que garante.
Nesta medida, não pode considerar-se desadequada a opção do
legislador em erigir o valor da acção ou da sucumbência no recurso em elemento
base de construção do critério de tributação ou enquanto regra de repartição,
com respeito pelo princípio da igualdade, dos custos públicos com a obtenção do
reconhecimento judicial desses direitos e interesses legítimos.
Ponto é que o montante das taxas de justiça, nele relevado o valor
dos benefícios, não vá além dos custos de administração de justiça e que seja
estabelecido com respeito pelos princípios de igualdade material e de
proporcionalidade, em termos tais que se não se perca a relação de conexão
material entre as prestações, passando o sujeito a ser tributado, antes, em
função da sua capacidade contributiva.
A consideração do valor da causa ou da sucumbência no recurso
mostram-se ainda justificados, materialmente, perante outras circunstâncias do
sistema legal, como sejam o facto de as formas das acções judiciais, a
admissibilidade dos recursos e as alçadas dos tribunais serem, por regra geral,
estabelecidos em função de tais elementos e de estes induzirem maiores ou
menores custos da actividade de prestação de justiça.
Por outro lado, não pode, ainda, ignorar-se que o bem público
utilizado pode demandar uma maior ou menor actividade do órgão jurisdicional,
que seja fundada não só na maior ou menor complexidade da causa, mas também nos
comportamentos dos particulares na acção e nos recursos.
Não se trata, pois, de uma prestação cuja utilização aconteça,
sempre, dentro do mesmo estádio de formação dos custos de administração da
justiça, nem que satisfaça, sempre, de um modo definitivo as necessidades de
tutela quem recorre aos tribunais.
Na ausência da demonstração de qual o concreto patamar em que a
prestação pública se desliga dos custos da respectiva actividade, o Tribunal
Constitucional apenas poderá operar com o princípio da proporcionalidade, na sua
dimensão de respeito por uma justa medida ou de justiça material, e segundo um
princípio de controlo de evidência, repudiando o critério de tributação apenas
nos casos em que, para o cidadão médio, ele se apresente objectivamente como
intoleravelmente inibidor ou constrangente do acesso à justiça, principalmente
nos casos de maior incerteza sobre o resultado do processo, de defesa de
direitos fundamentais ou de direitos próprios perante o próprio credor da taxa
de justiça, etc.
Ora, no caso em apreço, não pode considerar-se violar o princípio da
proporcionalidade o critério normativo de cuja aplicação resultou que, numa
pronúncia judicial prolatada em duas instâncias, numa acção ordinária, sobre um
pedido de indemnização, no valor de € 7.972.540,25, a título de responsabilidade
civil de um município por actos de gestão pública, o montante de custas devidas
se quedou pelo valor de €120.013,38 (sejam €139.997,80 de custas totais da
acção, menos €19.984,42 correspondentes às custas do incidente de apoio
judiciário que está fora do objecto do recurso).
Na verdade, não se vê que, não obstante a ausência de
estabelecimento, no sistema de taxas de justiça, de um limite de tributação que
corresponda à quebra da relação de bilateralidade de prestações ínsita na taxa,
o critério normativo se apresente manifestamente desproporcionado, de modo a
fazer prevalecer o juízo do Tribunal Constitucional sobre o juízo do legislador.
A ausência de um limite no estabelecimento da grelha das taxas de
justiça não postula que as taxas estabelecidas sejam inexoravelmente violadoras
da Lei fundamental e que a concreta taxa de justiça não se situe dentro desse
limite tolerável.
A questão está em saber se as taxas exigidas ultrapassam os custos
de administração de justiça, se o montante de custas exigido é de tal modo
elevado que se possa afirmar inexistir uma relação material entre as duas
prestações ou se é razoavelmente de admitir a existência de efeito inibidor
situado fora de uma qualquer atitude do demandante claramente temerária.
Ora, nenhuma destas situações pode ser afirmada, sem reserva de
dúvida.
Na verdade, o nosso sistema de administração de justiça é altamente
deficitário, representando as custas cobradas apenas uma pequena parcela dos
seus custos.
Por outro lado, quedando-se as custas da acção apenas por cerca de
1/50 avos do valor da acção, correspondendo este à utilidade que dela poderia
retirar a parte vencida, e não sendo caso para considerar, até por lhe ter sido
desatendido o pedido de apoio judiciário, que as taxas estabelecidas
inviabilizaram ou impediram, por qualquer jeito, a devedora das custas de aceder
aos tribunais para fazer valer os direitos que entendia ter, não pode
concluir-se em outro sentido que não seja a da presunção da sua conformidade
constitucional.
A este propósito, deve, ainda, ter-se presente que, nas situações em
que a avaliação da limitação ou restrição pelo critério da proporcionalidade se
revele complexa, como é o caso, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao
legislador uma prerrogativa de avaliação ou crédito de confiança, reservando a
sua intervenção apenas para as situações de ultima ratio.
Escreveu-se, com efeito, no Acórdão n.º 187/01, publicado no
Diário da República II Série, de 26 de Junho de 2001:
«[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente
da administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do
legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se
importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é
social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem
fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…]
em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma
sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os
efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias
geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de
apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem
sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a
posição do legislador.
[…]
a própria averiguação jurisdicional da existência de uma
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma
determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de
apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve
deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e
economicamente complexa.».
Foi um juízo destes que suportou, ao fim e ao cabo, o julgamento de
não inconstitucionalidade prolatado no referido Acórdão n.º 349/02, em que
estava em causa uma taxa de justiça de valor muitíssimo superior.
A circunstância de o legislador ter actualmente estabelecido um
critério de tributação mais favorável não quer dizer que esse seja o patamar em
que o montante de custas se deve considerar conectado com a utilidade da
prestação.
Basta notar que o legislador pode, sem converter a administração de
justiça em uma actividade lucrativa, o que lhe estará constitucionalmente
vedado, suportar em maior medida os custos de justiça, desonerando quem a ele
acede.
Benjamim Rodrigues