Imprimir acórdão
Processo nº 735/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
em sede de recurso interposto de Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que
indeferiu o pedido de recusa da juíza legalmente encarregue de processo-crime,
no qual o recorrente é arguido, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu Acórdão,
em 11 de Abril de 2007, nos termos do qual considerou que “não é admissível o
recurso para este Supremo, do acórdão da Relação que indeferiu o pedido de
recusa da Srª Juíza Dra Ascensão Abrantes para intervir no processo comum
(Tribunal Colectivo) n.º 548/05.=TACHV do 2º Juízo do Tribunal Judicial de
Chaves” (fls. 412).
2. O referido Acórdão foi precedido de despacho do Juiz-Relator que, em sede de
exame preliminar, enviou o processo para vistos da conferência com o seguinte
considerando:
Parece-me não ser admissível recurso do acórdão da Relação do Porto, atento o
objecto do mesmo e os respectivos dispositivos legais processuais.
Assim, a vistos (…) e depois à secção. (fls. 402-verso)
3. Em sede de resposta à motivação do recorrente, o Ministério Público junto do
Tribunal da Relação do Porto já havia aderido à jurisprudência minoritária
espelhada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Setembro de 2006,
(Proc. n.º 06P2332), tendo considerado que “seguindo esta jurisprudência, que
nos parece ser a que melhor interpreta as disposições legais que determinam o
âmbito dos recurso[s] para o Supremo Tribunal de [J]ustiça, afigura-se-nos que,
no caso concreto, é irrecorrível a decisão proferida por este Tribunal da
Relação do Porto, que indeferiu o pedido de recusa de juiz em causa (artº 414º,
nº 2 – 1ª parte – do CPP)” (fls. 393).
Contudo, em sede de vista, para os efeitos previstos no artigo 416º do CPP, o
representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça viria a
contrariar esta tese, porque “apesar de se reconhecer ser duvidosa a
admissibilidade do recurso da decisão que conhece o incidente de recusa, temos
por fundada, na perspectiva do critério de favor do recurso, a orientação
largamente maioritária deste STJ no sentido da sua admissão e consequente
conhecimento (quer nos acórdãos que se pronunciaram especificamente sobre esta
questão, quer nos demais, que conheceram do respectivo objecto)” (fls. 402).
4. Notificado do referido Acórdão, o recorrente viria a deduzir em juízo um
requerimento de arguição de nulidade do mesmo, através do qual suscita o
seguinte incidente de inconstitucionalidade, “ad cautelam”, solicitando que o
Supremo Tribunal de Justiça explicite qual a norma jurídica concreta sobre a
qual fundou a respectiva decisão de não conhecimento do recurso:
C) Por mera cautela e ignorando-se qual o normativo que está subjacente à
atitude concreta de decidirem questão prévia no sentido proposto pelo Mº Pº, sem
audição sobre a mesma do recorrente,
com desrespeito nítido pelo princípio do contraditório, arguir a
inconstitucionalidade da interpretação de tal norma, qualquer que seja a que
venham a concretizar, se o vierem a fazer, por violação do artigo 32º da CRP
(fls. 415).
5. Por Acórdão, de 06 de Junho de 2007, a 3ª Secção do Supremo Tribunal de
Justiça, em conferência, viria a indeferir a arguição de nulidade e a afastar a
alegada inconstitucionalidade da interpretação da norma que sustentou
juridicamente o não conhecimento do recurso – “in casu”, a constante do n.º 3 do
artigo 417º do CPP –, considerando que:
O despacho em que se procede a exame preliminar [] engloba-se na competência
legal própria do relator, como resulta do artº 417º nº 3 do CPP, não se
encontrando submetido ao princípio do contraditório, por representar uma
apreciação oficiosa de pressupostos legais sobre a viabilidade de prossecução do
recurso, e, por isso, não é caso de notificação do mesmo aos sujeitos
processuais (fls. 421).
6. Em 26 de Junho de 2007, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional [LTC],
solicitando a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 399º, 414º, n.º 2, 417º, n.º 3, 420º, n.º 1, 432º e 433º, todos do CPP.
7. Notificado para alegar, o recorrente veio a produzir as seguintes alegações,
em 08 de Agosto de 2007:
I – No presente recurso pretende ver-se apreciada dupla inconstitucionalidade, a
saber:
– Do artigo 417º, nº 3 do CPP, interpretado no sentido com que o foi na decisão
recorrida, isto é, que tendo o M° P°, em sede de contra-motivação de recurso, a
que nunca pode responder nos autos, por não haver oportunidade processual para
isso, levantado como questão prévia a da irrecorribilidade de determinada
decisão do Tribunal da Relação, o Juiz Relator pode no despacho do exame
preliminar tomar posição sobre a questão prévia levantada pelo M° P°, dando
origem a acórdão que rejeita o recurso, sem que alguma vez o recorrente tenha
oportunidade de se pronunciar sobre tal questão prévia.
– Dos artigos 399°, 414°, nº 2, 420º, nº 1, 432° e 433°, todos do CPP, quando
interpretados no sentido com que o foram na decisão recorrida, isto é, de que
não é admissível recurso de decisão do Tribunal da Relação proferida em
incidente de recusa de juiz.
II – Ponderando, especificadamente, cada uma das situações:
A) A do artigo 417°, n°3 do CPP
1 – O M° P°, em sede de contra-motivação da decisão da Relação, concluiu que o
recurso deve ser rejeitado, por a decisão não ser recorrível.
2 – O acórdão de 11 de Abril de 2007 tomou posição sobre tal questão
introduzindo-a da seguinte forma:
Sobre a questão prévia já suscitada pelo Exm° Magistrado do Ministério Público
junto da Relação do Porto:
3 – O recorrente jamais foi ouvido sobre tal questão prévia e, segundo o acórdão
de 6 de Junho de 2007, oportunidade em que o recorrente teve conhecimento do
normativo invocado para tão estranha tramitação, não tinha que o ser já que o
despacho em que se procede a exame preliminar, engloba-se na competência legal
própria do relator, como resulta do art. 417° nº 3 do CPP, não se encontrando
tal despacho submetido ao principio do contraditório, por representar uma
apreciação oficiosa de pressupostos legais sobre a viabilidade de prossecução do
recurso, e, por isso, não é caso de notificação do mesmo aos sujeitos
processuais.
4 – Tenha-se em atenção que, no caso concreto, o STJ assumiu como questão prévia
a rejeição do recurso, nos termos defendidos pelo M° P° na contra-motivação,
peça processual não passível de resposta.
5 – A questão colocada não é diferente da decidida no Ac. 469/97 e da Doutrina
subjacente aos acórdãos 651/93 e 396/94.
6 – Efectivamente, não é diferente o problema presente do ali colocado.
7 – Por iniciativa do M° P°, e na linha do por si defendido na contra‑motivação,
o Sr Juiz Relator vislumbrou uma questão prévia, questão impeditiva do
conhecimento do recurso do recorrente e decidiu, segundo tal sentido, sem que o
recorrente tenha sido ouvido.
8 – Ao ter interpretado o artigo 417°, nº 3 do CPP no sentido de que tal
comportamento processual é possível, violou a decisão recorrida quer o princípio
do contraditório, quer o princípio que assegura todas as garantias de defesa em
processo penal, isto é, o artigo 32° da CRP.
B) A dos artigos 399°, 414°, n° 2, 420º, n° 1, 432° e 433°, todos do CPP
1 – O artigo 399° do CPP prevê a recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e
dos despachos cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei.
2 – Não está prevista na lei a irrecorribilidade das decisões similares às do
caso presente, sendo que, antes pelo contrário, a mesma está prevista (artigo
42°, nº 3 do CPP).
3 – Assim, carece de sentido, mesmo em sede de lei ordinária, a interpretação
normativa que a decisão recorrida fez do aludido artigo 399° do CPP.
4 – Mas, muito mais que isso, o artigo 32°, nº 1 da CRP assegura, em processo
penal, todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
5 – Ora, o Tribunal da Relação conheceu da matéria que lhe foi colocada, em
sede, em 1ª Instância.
6 – Tal significa que a decisão por si assumida tem de ser passível de recurso.
Tal é imposto pelo artigo 32°, nº 1 da CRP.
7 – Recorde-se que o direito ao recurso foi acrescentado na revisão de 1997 e,
exactamente, para clarificar a questão do duplo grau de jurisdição.
8 – Face ao texto vigente, o direito a pelo menos um grau de recurso, em termos
amplos, abrangendo questões de direito e de facto, é agora constitucionalmente
garantido. Isto implica que o processo deve ser estruturado para tornar efectivo
o recurso em matéria de facto e de direito, o que no que àquele respeita
pressupõe o registo integral da prova produzida em julgamento, sem o que não há
recurso efectivo para apreciação da decisão sobre os factos.
Dado que o direito ao recurso é uma garantia estabelecida pela Constituição não
parece que o arguido possa renunciar antecipadamente ao seu exercício futuro e
por isso se nos afiguram de muito duvidosa constitucionalidade as regras
processuais que permitam que, por renúncia antecipada ou por vício processual
não arguido atempadamente, o arguido fique privado do direito de recorrer de
qualquer decisão.
(Jorge Miranda e Outro, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, 355)
9 – Ao ter entendido de outra forma, a decisão recorrida interpretou os artigos
399°, 414°, n°2, 420º, nº 1,432° e 433°, todos do CPP, com violação do imposto
pelos artigos 20°, nº 1 e 32°, nº 1, ambos da CRP.
Pelo que, em conclusão:
1 – Em sede de contra-motivação de recurso, que não é passível de resposta, o M°
P° defendeu a tese de que o recurso a que respondia deveria ser rejeitado, por
não ser admissível.
2 – O Sr Juiz Relator aceitou tal tese e promoveu a elaboração de acórdão nesse
sentido, sem que tenha dado oportunidade ao recorrente de se opor a tal opção,
que tratou como questão prévia.
3 – Tal entendimento do artigo 417°, nº 3 do CPP viola o disposto no artigo 32°,
nº 1 da CRP por cercear as garantias de defesa e o direito ao recurso.
4 – A decisão sobre incidente de recusa de juiz é tomada, como o foi, em 1ª
sede, em 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação.
5 – Segundo a lei ordinária, são recorríveis todos os acórdãos, sentenças e
despachos cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei.
6 – Não está prevista na lei a irrecorribilidade da decisão da Relação que tome
posição sobre incidentes de recusa. Antes pelo contrário, a mesma está prevista
(artigo 42°, n°3 do CPP).
7 – Assim, carece de sentido a interpretação que a decisão recorrida fez dos
artigos 399°, 414°, n°2, 420°, nº 1, 432° e 433º, todos do CPP.
8 – Mas, para além disso, tal interpretação é violadora, nomeadamente, dos
artigos 20°, nº 1 e 32°, nº 1 ambos da CRP, por impedir quer a defesa dos
direitos, quer o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição, que
consubstancia aquele, garantido constitucionalmente desde a revisão de 1997.
9 – Impõe-se, pois, que sejam proferidos juízos de inconstitucionalidade das
interpretações dos normativos questionados nos termos reclamados.
10 – Assim se fará justiça.
8. Por sua vez, através de contra-alegações, o representante do Ministério
Público junto deste Tribunal explanou a argumentação que de seguida se reproduz:
1. Questão prévia: a inverificação dos pressupostos do recurso quanto à questão
reportada à norma do art. 417º, nº 3, do CPP.
Como decorre expressamente do acórdão, proferido pelo Supremo a fls. 421, foi
por despacho do relator, em exame preliminar, que se suscitou oficiosamente a
questão prévia da irrecorribilidade da decisão da Relação que havia rejeitado o
pedido de recusa do juiz – e não por “adesão” à posição expressa nos autos pelo
representante do MºPº: na verdade a posição tomada pelo representante do MºPº
junto do STJ, sustentando a admissibilidade do recurso de tal decisão (e sendo,
nessa medida, favorável ao arguido) pretendia naturalmente a tese sustentada na
contramotivação, apresentada no Tribunal “ a quo”.
Aliás, tal contramotivação do recurso foi notificada ao recorrente (cf. fls.
400), pelo que – se este entendia ser essencial ao respeito pelo princípio das
garantias de defesa a apresentação de “réplica” a tal peça processual – deveria
tê-la deduzido, sustentando naturalmente a inconstitucionalidade das normas que
inviabilizam tal resposta do arguido.
Neste concreto circunstancialismo processual – e sendo a “última palavra” do
MºPº nos autos no sentido da admissibilidade da impugnação deduzida para o STJ –
a única questão de constitucionalidade que poderia fazer sentido suscitar era a
da interpretação normativa do preceito em causa que permite ao relator suscitar
oficiosamente uma “questão prévia”, em exame preliminar, sendo a mesma dirimida
pela conferência sem prévio contraditório do recorrente.
Sucede, porém, que o recorrente – ao delimitar o objecto do recurso – tomou
opção diferente, coligando a decisão do relator à prévia suscitação pelo MºPº da
questão prévia da irrecorribilidade – sendo manifesto que, como se referiu, não
foi com este sentido que, na peculiar e específica situação procedimental dos
autos, a norma questionada foi aplicada pelo Supremo.
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
Não compete obviamente ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual a
melhor interpretação das normas de direito infraconstitucional com incidência na
questão da recorribilidade até ao Supremo da decisão que rejeite o incidente do
recusa do Juiz, tomando posição sobre a querela jurisprudencial reflectida nos
autos – mas tão somente verificar se a interpretação normativa “restritiva”
adoptada viola, porventura, as normas ou princípios constitucionais invocados
pelo recorrente.
Como dá nota a decisão recorrida, a jurisprudência constitucional tem entendido,
de forma reiterada, que não pode extrair-se do “direito ao recurso”, proclamado
pelo nº 1 do art. 32º da Constituição, a possibilidade de aceder ao Supremo para
exercer o duplo grau de jurisdição sobre todas as decisões, mesmo que de
carácter interlocutório ou procedimental, proferidas pelas instâncias: na
verdade, tal garantia apenas se pode considerar consagrada relativamente às
decisões (finais) condenatórias e às decisões (interlocutórias) atinentes à
aplicação ao arguido de medidas privativas ou restritivas da liberdade ou de
outros direitos fundamentais.
Não sendo este naturalmente o caso dos autos, é manifesto que não viola o
“direito ao recurso” a corrente jurisprudencial que rejeita o acesso ao Supremo
quanto à decisão, proferida pela Relação, que rejeite o incidente de recurso de
Juiz, suscitado pelo arguido.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º
Na específica e peculiar situação procedimental dos autos, a norma constante do
art. 417º, nº 3, do CPP não foi interpretada e aplicada com o sentido definido
pelo recorrente, consubstanciado na ocorrência de uma “adesão” do relator à
“questão prévia” da irrecorribilidade, levantada no processo pelo MºPº.
2º
Na verdade, sendo a “última palavra” do MºPº - exarada pelo representante de tal
magistratura junto STJ – no sentido da recorribilidade, estava naturalmente
precludida e anterior (e oposta) posição, assumida no âmbito da contramotivação
do recurso, pelo que a suscitação da dita questão prévia correspondeu
inteiramente a uma actuação oficiosa do relator, dissonante com o sentido do
“visto” exarado pelo representante do MºPº junto do Supremo.
3º
Não viola o “direito ao recurso”, incluído no principio constitucional das
garantias de defesa, a interpretação normativa que inviabiliza a impugnação
perante o STJ, do acórdão da relação que haja rejeitado o incidente de recurso
do Juiz, suscitado pelo arguido.
4º
Termos em que não deverá conhecer-se da primeira questão de
constitucionalidade, por a norma questionada não ter sido aplicada com o sentido
definido pelo recorrente; e deverá julgar-se improcedente o recurso,
relativamente à segunda questão colocada pelo recorrente.”
9. Atenta a suscitação de questão que obstaria, ainda que parcialmente, ao
conhecimento do recurso interposto, a Relatora notificou o recorrente, para os
efeitos previstos nos artigos 702º, n.º 2, e 704º, n.º 2, do CPC, aplicáveis “ex
vi” artigo 69º da LTC, tendo este, em suma, respondido que “a questão sobre a
qual o STJ tomou posição, em 11 de Abril de 2007, foi, inequivocamente, a
questão levantada pelo Mº Pº na sua contra-motivação” (fls. 442).
10. Tendo havido mudança de Relator, cumpre decidir.
II
Fundamentos
A)
Da delimitação do objecto do recurso
11. Pede-se, no presente recurso, que o Tribunal aprecie uma ‘dupla
inconstitucionalidade’: a da norma contida no nº 3 do artigo 417º do Código de
Processo Penal e a da ‘conjunto normativo’ contido nos artigos 399º, 414º, nº 2,
420º nº 1, 432º e 433º do mesmo Código. O pedido, que é feito ao abrigo da
alínea b) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (que replica, por seu
turno, a alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição), incide sobre a
particular interpretação que, no caso, terá sido dada a cada uma das normas ou
‘conjuntos normativos’ atrás identificados.
Assim, e quanto à norma contida no nº 3 do artigo 417º do CPP, diz-se que se
questiona a sua constitucionalidade «quando interpretada no sentido que o foi na
decisão recorrida, isto é, que tendo o Mº Pº, em sede de contra-motivação de
recurso, a que nunca pode responder nos autos, por não haver oportunidade
processual para isso, levantado como questão prévia a da irrecorribilidade de
determinada decisão do Tribunal da Relação, o Juiz Relator pode no despacho do
exame preliminar tomar posição sobre a questão prévia levantada pelo MºPº, dando
origem a acórdão que rejeita o recurso, sem que alguma vez o recorrente tenha
oportunidade de se pronunciar sobre tal questão prévia.» Relativamente a esta
norma, assim interpretada, vem o pedido de apreciação da constitucionalidade
fundado, quer na violação do princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5 da
CRP), quer na violação do princípio da plenitude das garantias de defesa em
processo criminal (artigo 32º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, e quanto ao «conjunto normativo» decorrente dos já mencionados
artigos 399º, 414º, nº 2, 420º, nº1, 432º e 433º do CPP, alega-se a sua
inconstitucionalidade, na medida em que tal «conjunto» terá sido interpretado no
sentido de se considerar irrecorrível, em processo penal, a decisão que tenha
julgado o incidente de recusa de juiz. A alegação de inconstitucionalidade
funda-se, uma vez mais, na violação do princípio da plenitude das garantias de
defesa em processo criminal (artigo 32º, 1), e, em especial, na lesão do
«direito ao recurso», hoje aí expressamente consagrado (depois da revisão
constitucional de 1997).
Nas suas contra-alegações, veio o representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional sustentar que se não deveria conhecer do objecto do
recurso quanto à primeira questão de constitucionalidade que fora colocada. Com
efeito – diz-se – a norma contida no nº 3 do artigo 417º não foi aplicada pela
decisão recorrida no sentido identificado pelo recorrente durante o processo (e
mantido, quer no requerimento de recurso de constitucionalidade, quer nas
alegações apresentadas ao Tribunal).
Não se vê como não dar razão, quanto a este ponto, aos argumentos invocados pelo
Ministério Público.
Com efeito, a sentença de que se recorre ( in casu, o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 6 de Junho de 2007), invoca o nº 3 do artigo 417º do CPP
como sendo a base da «competência legal própria do relator» para proceder à
«apreciação oficiosa de pressupostos legais sobre a viabilidade de prossecução
do recurso» (cfr. folha 421 dos autos). A «dimensão normativa» que, deste modo,
é conferida pelo tribunal o quo ao nº 3 do artigo 417º do CPP é bem diversa
daquela outra que o recorrente identifica como sendo inconstitucional (desde
logo, por violação do princípio do contraditório), e que, recorde-se, é sempre
formulada do modo que segue: «o Juiz Relator pode no despacho do exame
preliminar tomar posição sobre a questão prévia levantada pelo MºPº, dando
origem a acórdão que rejeita o recurso, sem que alguma vez o recorrente tenha
oportunidade de se pronunciar sobre tal questão prévia».
O ‘facto’ de não haver coincidência entre a norma que foi aplicada pela sentença
de que se recorre e aquela outra cuja inconstitucionalidade se alega é em si
mesmo – e como muito bem se sabe – um quid impeditivo do conhecimento do recurso
por parte do Tribunal. É que em tais circunstâncias se não encontra perfeito o
pressuposto do recurso que, desde logo, é imposto pela Constituição: a sentença
de que se recorre não aplicou norma «cuja inconstitucionalidade [haja] sido
suscitada durante o processo».
Assim, e quanto à «dimensão normativa» contida no nº 3 do artigo 417º do Código
do Processo Penal, decide o Tribunal não conhecer do objecto do recurso.
Fica portanto o mesmo limitado à segunda questão de constitucionalidade que é
colocada. É inconstitucional – por violação do nº 1 do artigo 32º da
Constituição – «norma» que sustente a irrecorribilidade da decisão que julga, em
processo penal, o incidente de recusa de juiz?
B)
Direito ao recurso e duplo grau de jurisdição
12. É antiga, e firme, a jurisprudência que tem respondido negativamente à
questão atrás equacionada.
Desde a década de oitenta que o Tribunal tem dito que não é constitucionalmente
intolerável que haja, em processo criminal, decisões judiciais irrecorríveis; e
que a recorribilidade só é constitucionalmente imposta para as sentenças
condenatórias e para aqueles outros actos que, durante o processo, tenham como
efeito a privação ou restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
[Vejam-se, antes e depois da revisão de 97 – e apenas a título de exemplo – os
Acórdãos nºs. 31/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9ºVol, pp. 463-9); nº
178/88 (Acórdãos, 12º Vol., pp. 569-75); e nºs 265/94, 30/2001 e 390/2004, estes
últimos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Sendo o incidente de
recusa de juiz uma decisão interlocutória que não tem por efeito nem a privação
ou restrição de liberdade nem a restrição de outros direitos fundamentais, é-lhe
inteiramente aplicável toda esta jurisprudência firme, cuja fundamentação, para
a qual se remete – e por suficientemente conhecida – se desiste de repetir aqui.
Além do mais, cabendo (nos termos do artigo 45º do CPP) a decisão sobre
incidente de recusa de juiz ao tribunal imediatamente superior [face àquele a
que pertence o juiz cuja recusa é requerida], também não há que duvidar sobre o
cumprimento, in casu, do direito de acesso ao direito e aos tribunais,
consagrado no artigo 20º da CRP. É que a ordem infraconstitucional, ao atribuir
a competência para a decisão ao tribunal imediatamente superior, garante com
inquestionável suficiência que tal incidente possa vir a ser validamente
julgado.
III
Decisão
Assim, e por estes motivos, decide-se
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto à norma contida no nº 3 do artigo
417º do Código de Processo Penal;
b) Não conceder provimento ao recurso, na parte que dele se conhece.
Custas pelo recorrente, fixadas em 25 ucs. de taxa de justiça.
Lisboa, 7 de Novembro de 2007
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins (vencida, conforme declaração que junta)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto às duas questões objecto do presente recurso pelas razões
que passo a expor.
I) Quanto à primeira questão, considero que o artigo 417º, nº 3, CPP foi
aplicado no caso sub judice, uma vez que o juiz relator tomou partido por uma
posição anteriormente expressa pelo recorrido – neste caso concreto, o
Ministério Público, enquanto prossecutor da acção penal –, em sede de exame
preliminar, sem que o recorrente (arguido no caso) tivesse ouvido em momento
prévio à decisão final, qualificando-se na própria decisão recorrida a questão
da eventual irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação do Porto como
“(…) questão prévia já suscitada pelo Exmº Magistrado do Ministério Público
junto da Relação do Porto”. Assim sendo, independentemente da posição do
Representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, a
decisão ora recorrida tomou efectivamente posição sobre questão suscitada pelo
Ministério Público, actuando enquanto sujeito processual – “in casu”, como
recorrido.
Com efeito, nestes autos, o visto do Representante do Ministério Público junto
do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 402) não foi notificado ao ora recorrente,
na medida em que a posição do Ministério Público junto daquela instância não
conflituou com o interesse processual do recorrente, por ter sido favorável ao
conhecimento do objecto do recurso interposto. Contudo, ao arrepio do visto do
Ministério Público, o próprio juiz-relator optou por conceder provimento à
resposta à motivação do recurso, apresentada pelo representante do Ministério
Público junto do Tribunal da Relação do Porto, sem que tivesse concedido ao ora
recorrente a oportunidade processual de se pronunciar sobre tal questão.
Tal interpretação da norma em apreço conflitua, em meu entender, com o direito
processual ao contraditório, o qual constitui uma verdadeira emanação do
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP), sendo configurável
como uma trave-mestra de qualquer Estado de Direito Democrático (artigo 2º da
CRP). Tal princípio, no que diz respeito ao processo penal, encontra expresso
acolhimento nas “garantias de defesa” mencionadas no n.º 1 do artigo 32º da Lei
Fundamental e, em especial, no n.º 5 da mesma norma constitucional.
Conforme notam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o direito ao contraditório, em
processo penal, não pode ser restringido à fase de audiência e julgamento,
devendo ser extensível a todos os actos que possam influenciar negativamente a
esfera de protecção jurídica do arguido:
“Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os actos
susceptíveis de afectar a sua posição, e em especial a audiência de discussão e
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar, devendo estes ser
seleccionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa
do arguido” (cfr., com sublinhado nosso, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA,
“Constituição da República Portuguesa Anotada – Artigos 1º a 107º”, Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, p. 523).
No caso concreto dos autos, é inegável que o recorrente foi privado de qualquer
resposta à questão prévia sobre a alegada impossibilidade de conhecimento do
recurso, por força de visto do Ministério Público que – ironicamente – foi
favorável à posição processual do ora recorrente. Ora, ainda que o Ministério
Público não tenha sufragado a tese da impossibilidade de conhecimento (razão
pela qual, aliás, o ora recorrente nem sequer tenha sido notificado do visto),
afigura-se evidente que o tribunal recorrido nestes autos tomou posição sobre
questão previamente suscitada pelo Ministério-Público recorrido, sobre a qual o
recorrente não teve oportunidade de se pronunciar, por ausência de mecanismo
processual legalmente fixado.
Ainda que tenha vindo posteriormente, através do Acórdão de 06 de Junho de 2007,
a configurar a intervenção do juiz-relator como uma “apreciação oficiosa de
pressupostos legais sobre a viabilidade da prossecução do recurso” (fls. 421), o
tribunal recorrido não deixou de ter sido alertado para tal questão por força da
resposta do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 413º do CPP.
A circunstância de o n.º 3 do artigo 417º do CPP ter sido interpretado de modo a
dispensar a notificação do recorrente para exercer o direito ao contraditório
configura uma evidente violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental,
por permitir a negação do conhecimento de recurso penal sem que o respectivo
recorrente tenha tido oportunidade de sobre ele se pronunciar. Tal interpretação
impossibilitou o recorrente de fazer valer os seus argumentos jurídicos perante
o tribunal ora recorrido, constituindo uma restrição desproporcionada do
respectivo direito ao contraditório.
Em suma, a privação do direito do recorrente penal a pronunciar-se sobre questão
relativa ao não conhecimento de recurso por si interposto, ponderada em sede de
exame preliminar, configura uma violação do direito ao contraditório, assegurado
pelos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
II) Quanto à segunda questão, considero que, apesar de, como se afirmar no
presente acórdão, ser “antiga, e firme, a jurisprudência” deste Tribunal que diz
que “não é constitucionalmente intolerável que haja, em processo criminal,
decisões judiciais irrecorríveis”, essa jurisprudência não deve ser aplicável ao
caso de incidente de recusa de juiz, por manifesta ausência de simetria entre as
questões controvertidas nos processos objecto dessa jurisprudência e o caso ora
em apreço.
Conforme decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 45º do CPP, o incidente de
recusa de juiz criminal configura uma situação processual pendente de decisão,
em primeira instância, pelo tribunal imediatamente superior ao tribunal do juiz
recusando. No caso de incidente de recusa, o juiz criminal alvo do pedido não
dispõe de poderes legais para aceitar – “de per si” – o pedido de afastamento do
processo, limitando-se a pronunciar-se, por escrito, sobre o requerimento, nos
termos previstos no n.º 2 do artigo 45º do CPP, pelo que os tribunais das
relações que decidem sobre incidente de recusa de juiz criminal actuam como
tribunais de primeira instância. Deste modo, e para os efeitos da apreciação da
constitucionalidade no caso sub judice, a decisão proferida pelo Tribunal da
Relação do Porto deve ser configurada como uma decisão adoptada em primeira
instância. Como tal, impõe-se determinar se é constitucionalmente admissível que
a parte prejudicada por uma decisão adoptada em primeira instância fique privada
do direito de recorrer da referida decisão.
Na senda do Acórdão nº 265/94, o Tribunal Constitucional tem-se esforçado por
esclarecer que o direito a um duplo grau de jurisdição não pode ser configurável
como um direito absoluto ou irrestringível, devendo ser devidamente ponderados
outros direitos e princípios constitucionais conflituantes, tais como o direito
subjectivo dos particulares a uma Justiça Penal célere e como o princípio do
Estado de Direito Democrático, que pressupõe um interesse da comunidade na
aplicação célere e criteriosa da justiça. Como tal, esse direito a um duplo grau
de jurisdição apenas é alvo de protecção pelo Estado português quando estejam em
causa decisões penais condenatórias ou quaisquer outras decisões respeitantes à
situação do arguido que envolvam a restrição de direitos fundamentais, incluindo
o direito à liberdade pessoal.
Significaria isto que, no caso em apreço, a interpretação conferida às normas
constantes dos artigos 399º, 414º, nº 2, 420º, n.º 1, 432º e 433º do CPP, pela
decisão recorrida, não deveria ser reputada de inconstitucional, por não
constituir uma decisão penal condenatória, nem sequer uma decisão penal
interlocutória que tivesse determinado a privação da liberdade pessoal do
recorrente.
Mas a verdade é que ela não é desprovida de efeitos jurídicos sobre a esfera de
protecção juridicamente concedida ao recorrente. Com efeito, o incidente de
recusa de juiz criminal visa precisamente dar plena execução ao direito
fundamental de acesso a um processo jurisdicional imparcial e equitativo. Tal
direito fundamental encontra-se consagrado, quer no texto constitucional
português (cfr. n.º 4, “in fine” do artigo 20º da CRP), quer em diversos outros
textos internacionais que vinculam o Estado português, nos termos do n.º 2 do
artigo 8º da Lei Fundamental (cfr. nº 1 do artigo 14º do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos; n.º 1 do artigo 6º da Convenção Europeia para
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) e ainda o artigo
47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Ora, independentemente da bondade do sentido decisório nela plasmado, uma
decisão de um tribunal superior que indefira um incidente de recusa de juiz
criminal configura uma decisão relativa ao estatuto do arguido que afecta o
sentido útil do respectivo direito fundamental a um processo imparcial e
equitativo. Independentemente da falta de prova da parcialidade do juiz alvo do
incidente de recusa, a reforçada intensidade do grau de protecção do direito a
um processo imparcial e equitativo impede que as normas processuais penais
possam ser interpretadas no sentido de privar o arguido de recorrer para uma
instância superior de uma decisão que apenas foi apreciada por um tribunal de
relação, em primeira instância.
Estando em causa um direito fundamental do recorrente, de natureza análoga aos
direitos, liberdades e garantias (cfr. artigos 17º e 20º, n.º 4 da CRP) e, como
tal, dotado de uma particular intensidade garantística, torna-se evidente que o
direito fundamental de recurso, decorrente do n.º 1 do artigo 32º da CRP
determina a inconstitucionalidade dos artigos 399º, 414º, nº 2, 420º, n.º 1,
432º e 433º do CPP, quando interpretados no sentido de que impedem o recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão de um tribunal de Relação que haja
indeferido um pedido de recusa de juiz criminal.
Pelo contrário, uma interpretação conjugada do artigo 399º e da alínea a) do
artigo 432º do CPP que fosse conforme à Lei Fundamental sempre exigiria que
aquelas decisões fossem alvo de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça por
constituírem “decisões das relações proferidas em 1.ª instância” que envolvem a
determinação do estatuto processual do arguido, restringindo e configurando o
seu direito fundamental a um processo imparcial e equitativo.
Lisboa, 7 de Novembro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
[1] rectificado através do acórdão n.º 557/2007, face à omissão da data