Imprimir acórdão
Processo n.º 457/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
( Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha)
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO,
o primeiro vem invocar a inconstitucionalidade do artigo 188º, nº 3, do Código
de Processo Penal, «na medida e quando prevê a desmagnetização das escutas
telefónicas antes do arguido ter acesso às mesmas, por violação do artigo 32° da
Constituição», e ainda a inconstitucionalidade dessa norma «na parte referente à
transcrição da matéria seleccionada como foi interpretada e aplicada pela
decisão recorrida, violando os princípios contidos nos artigos 32°, n° 8, 34°,
n°s 1 e 4, e 18°, n° 2, da CRP».
2. Aquando dos autos de instrução criminal que correram termos no 2º Juízo
Criminal da Comarca do Barreiro, o ora recorrente invocou a nulidade da prova
recolhida por intercepção e gravação de comunicações telefónicas, alegando, além
do mais, que a eliminação de certos elementos constantes das gravações,
determinada pelo juiz de instrução, por se considerar não serem relevantes para
a prova, sem que o arguido a eles pudesse ter tido acesso, violaria as garantias
de defesa a que se refere o artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República.
O juiz de instrução julgou improcedente a arguição, por despacho de fls 70 e
segs., com fundamento em que o acesso do arguido ao conteúdo das conversações
interceptadas «é contrário aos princípios subjacentes à fase de inquérito, fase
essa obrigatória, secreta e escrita, regida predominantemente pelo princípio do
inquisitório, sendo regra haver apenas lugar a contraditório nos termos e para
os efeitos do disposto nos artigos 271.º e 194.º, ambos do Código de Processo
Penal», e, caso se «desse conhecimento ao arguido, antes de proceder à
destruição dos elementos recolhidos tal tornaria evidentemente inócua a
investigação em curso, uma vez que este, alertado que estaria sobre o facto de
estar a ser investigado, mormente com o recurso a escutas telefónicas,
perturbaria o decurso do inquérito, nomeadamente quanto à conservação ou
aquisição da prova».
3. Inconformado com esta decisão, o ora recorrente dela interpôs recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa, invocando que «a norma constante do n° 3 do
artigo 188º do Código de Processo Penal, ao ordenar a destruição do material não
seleccionado, numa fase anterior às partes interessadas, terem total acesso às
escutas, está ferida de inconstitucionalidade material por violação expressa das
garantias de defesa por parte do arguido nos termos do artigo 32º, n°1, da
Constituição da República» e, assim sendo, «as escutas telefónicas são nulas e
consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas
nos termos do artigo 188º, n°s 1 e 3, 189º e 126º do Código de Processo Penal»,
o qual por acórdão de fls 152 e segs., negou provimento ao recurso, com base nos
seguintes fundamentos:
«Insurge-se o recorrente contra o facto de, antes das partes terem total acesso
às escutas, ter sido ordenada a destruição do material não seleccionado, o que,
na sua perspectiva, viola os seus direitos de defesa.
O procedimento adoptado, porém, é o que de forma clara resulta da lei, prevendo
o n° 3 do artigo 188º, que o juiz ordene a destruição dos elementos recolhidos
que não sejam considerados relevantes.
O recorrente não questiona o facto dos elementos seleccionados serem relevantes,
mas tão só o facto de terem sido seleccionados numa perspectiva de investigação,
afirmando que foram eliminadas conversações que seriam importantes para
explicarem certos factos, embora não os concretize com rigor.
Segundo o recorrente, tudo o que vai sendo adquirido pelo processo, no seu
decurso, tem de permanecer nele até as partes poderem exercer em relação a esses
elementos o contraditório, porque o arguido poderá, eventualmente, detectar
nesses meios de prova, elementos factuais relativos aos próprios meios de prova
ou à realidade cuja existência os mesmos tendem a demonstrar de que poderá
beneficiar na sua defesa.
Ora, o nosso processo penal não está estruturado sobre esse princípio, que
pressuporia a obrigação de quem tem a direcção do processo de acautelar uma
hipotética, eventual e indeterminada estratégia de defesa do arguido.
As escutas telefónicas representam sempre uma intromissão na reserva da
intimidade da vida privada, que só pode ocorrer nos casos e termos previstos na
lei (artigo 26º, n° 4, da C.R.P.) e como forma de salvaguarda de outros
interesses, em particular, o interesse público de administração da justiça penal
(artigo 34º, n° 4, da C.R.P.).
Não tendo interesse para a investigação, devem essas passagens ser destruídas,
em nome dos direitos fundamentais dos escutados, muitas vezes terceiros sem
qualquer relação com o processo, o que se traduz em correcção pelo tribunal da
intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada. Manter essas
gravações, com perigo de ofensa para direitos fundamentais dos escutados, só
porque pode vir o arguido a ter interesse nas mesmas, apresentar-se-ia como uma
compressão injustificada de direitos fundamentais, procedimento inadmissível
face ao artigo 26º da Constituição.
Aliás, estando o juiz obrigado a um critério de objectividade, devendo
seleccionar os elementos «…relevantes para a prova...», deve seleccionar as
conversações necessárias à compreensão do contexto em que ocorreram, o que não
está demonstrado que não tenha ocorrido no caso concreto, já que o recorrente
não refere qualquer conversação concreta que permitisse dar às seleccionadas
sentido diferente do que lhe é atribuído pela acusação, mencionando, apenas, que
não foram seleccionadas conversações que ilustrassem a sua actividade
profissional, questão que, manifestamente, pode ser provada por ele com recurso
a outros meios de prova, menos ofensivos para direitos fundamentais.
Por outro lado, o invocado princípio do contraditório, não justifica o
procedimento defendido pelo recorrente, pois a Constituição apenas garante esse
princípio em relação à audiência de discussão e julgamento e aos actos
instrutórios que a lei determinar (artigo 32º, n° 5, da Constituição), o que não
abrange a obtenção deste meio de prova em fase de inquérito.
Não pode ser ignorado, também, que a ofensa aos direitos fundamentais não
ocorre, apenas, com a captação da conversação e sua audição pelos órgãos de
polícia criminal e autoridades judiciárias, sendo manifesto que a conservação
dessas conversações gerará sempre um perigo acrescido de reprodução e de
devassa, como tem revelado a experiência recente em certos processos envolvendo
figuras públicas, através da violação do segredo de justiça, o que aconselha a
destruição, o mais rápido possível, de todo o material que na análise do juiz de
instrução não seja relevante, o que se traduz, precisamente, na concretização da
sua principal função de assegurar os direitos, liberdades e garantias do
arguido, de outros sujeitos processuais e de quaisquer terceiros, como decorre
do n° 4 do artigo 32° da Constituição.
Fazer depender, da vontade do arguido, a destruição dos elementos recolhidos por
escutas telefónicas, significava colocar direitos de terceiros, merecedores de
protecção constitucional, na mão deste, por vezes ficando sujeitos aos seus
caprichos, o que abriria caminho para violações de direitos fundamentais, o que
não pode ser admitido e retiraria sentido à nulidade cominada pelo n° 8 do
artigo 32º, da C.R.P., pois apesar de estar assente que determinada escuta
representou uma intromissão injustificada na vida privada de uma pessoa,
nomeadamente de um terceiro, poderia ser aproveitada se o arguido alegasse que
interessava à sua defesa, o que seria suficiente para legitimar tal ofensa a
direitos constitucionalmente protegidos.
Em conclusão, existiu controlo judicial em relação às escutas telefónicas
efectuadas, a execução da transcrição das passagens seleccionadas pelo juiz de
instrução criminal não está sujeita ao imediatismo previsto para aquele
controlo, no n°1 do artigo 188º do CPP, e foi efectuada a destruição dos
elementos sem interesse, de acordo com o regime legal e constitucional aplicável
a este meio de obtenção de prova, razão por que o despacho recorrido não merece
censura».
4. Na sequência desta decisão, o ora recorrente interpôs recurso de
constitucionalidade nos seguintes termos:
«O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n°1 do artigo 70º da Lei n°
28/82, com as alterações posteriores (Lei n° 13-A/98).
Pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 188º, n° 3, do
CPP, na medida e quando prevê a desmagnetização das escutas telefónicas antes do
arguido ter acesso às mesmas, por violação do artigo 32° da CRP.
Também a inconstitucionalidade da norma do artigo 188°, n° 3, do CPP na parte
referente à transcrição da matéria seleccionada como foi interpretada e aplicada
pela decisão recorrida, violando os princípios contidos nos artigos 32°, n° 8,
34°, n°s 1 e 4, e 18°, n° 2, da CRP.
Estas questões foram já suscitadas na motivação de recurso e respectivas
conclusões».
O então Relator, por despacho de fls. 169, determinou que o processo seguisse
para alegações quanto à primeira interpretação normativa identificada no
requerimento de interposição de recurso, sendo que em relação à segunda
interpretação (a referente à transcrição da matéria seleccionada), o recorrente
não cumpriu o ónus de suscitação da questão no decurso do processo, pelo que não
se encontram preenchidos quanto a essa matéria os pressupostos processuais do
recurso de constitucionalidade.
Nas alegações de recurso, o recorrente apoia-se, essencialmente, na orientação
seguida no acórdão n.º 660/2006, de 28 de Novembro de 2006, deste Tribunal de
que faz uma extensa transcrição, formulando a final as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal da Relação interpretou o n° 3 do artigo 188º do CPP como não
sendo inconstitucional o entendimento de permitir ao JIC destruir todo o
material não seleccionado sem antes o arguido dele ter conhecimento e
consequentemente pronunciar-se sobre a sua relevância;
2. Foram postos em escutas vários números de telefone, entre eles os 917417354 e
912327155, referentes ao arguido tendo o material sido destruído pôr não
interessar à investigação;
3. Se tivessem sido escutados pelo JIC, órgão imparcial, por certo que teriam
eventualmente sido seleccionados também;
4. Os registos escutados unicamente pela parte acusatória incidem somente sobre
o que interessa à investigação, denotando a perspectiva policial da
investigação;
5. A ilustração da actividade profissional do arguido, não era tarefa relevante
para os autos, pelo que foram eliminadas conversações que seriam importantes
para explicarem certos factos;
6. Assim, muita matéria existiria quer nestes números, quer naqueles que foram
escutados que poderiam interessar à defesa;
7. Pelo que, o momento adequado para se acautelar a eliminação de todo o
material escutado, será após ter sido dada oportunidade às partes
intervenientes, de delas tomarem conhecimento e exercerem o contraditório, caso
o queiram;
8. A norma constante do nº 3 do artigo 188º do CPP, ao ordenar a destruição do
material não seleccionado numa fase anterior às partes interessadas terem total
acesso às escutas está ferido de inconstitucionalidade material por violação
expressa das garantias de defesa por parte do arguido nos termos do artigo 32°,
n° 1, da CRP;
9. Deve ser declarada inconstitucional o nº 3 do artigo 188° do CPP, devendo
este Tribunal decidir que, para garantir o direito de defesa do arguido,
deve-lhe ser garantido acesso às gravações integrais ordenadas pelo JIC, de modo
a respeitarem-se, entre outras, as normas dos artigos 11º, n.º 1°, da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e 32°, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP.
10. A interpretação a dar ao nº 3 do artigo 188° do CPR terá de ser outra que
não aquela que foi dada pelo Tribunal da Relação;
11. Terá de ser aquela que já foi dada por esse Tribunal no acórdão já citado
n.º 660/06;
12. Devem pois ser declaradas inválidas as intercepções e todos os actos que
dependerem das mesmas, nos termos dos artigos 122º e 189º do CPP.”
Por sua vez, nas suas contra-alegações, o Exmo Procurador-Geral Adjunto,
louvando-se no entendimento sufragado nos votos de vencido que acompanham o
citado acórdão do Tribunal Constitucional, concluiu que «não é inconstitucional
a norma do n° 3 do artigo 188° do Código de Processo Penal, no segmento em que
estabelece a destruição dos elementos considerados não relevantes, quando
interpretada no sentido de que o arguido não tem que deles tomar conhecimento».
Aqui chegados, cumpre, pois, apreciar e decidir, após inscrição do processo em
tabela, e mudança de Relator.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Delimitação do objecto do recurso
5. Como se acabou de ver, o recorrente interpôs recurso de constitucionalidade
com fundamento no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional (LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade
da norma do artigo 188º, n° 3, do Código de Processo Penal, na medida em que
prevê a desmagnetização das escutas telefónicas antes de o arguido ter acesso às
mesmas, por violação do artigo 32° da Constituição, e ainda a
inconstitucionalidade dessa norma numa outra interpretação, referente à
transcrição da matéria seleccionada, neste caso por violação dos princípios
contidos nos artigos 32°, n° 8, 34°, n°s 1 e 4, e 18°, n° 2, da Constituição.
Não estando esta última questão suficientemente identificada, desconhecendo-se
qual o sentido interpretativo que terá sido adoptado, quanto a essa matéria, na
decisão recorrida, não tendo tal questão chegado a ser suscitada de modo
processualmente adequado no decurso do processo, como impõem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da LTC, e não tendo o recorrente nada a objectar ao
despacho do primitivo Relator que circunscreveu o objecto do recurso à
interpretação normativa do artigo 188º, n.º 3, do Código de Processo Penal no
ponto em que impede o arguido de aceder ao conteúdo das conversações telefónicas
interceptadas antes de ser ordenada a sua destruição, é apenas esta questão de
constitucionalidade que se vai apreciar.
B) Questão de constitucionalidade
6. A matéria das escutas telefónicas tem vindo a ser objecto de vários acórdãos
por parte deste Tribunal (Ver Acórdãos nºs 407/97; 347/2001; 528/2003; 379/2004;
223/2005, 426/2005, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Deve, todavia, sublinhar-se que relativamente à questão de constitucionalidade
ora em apreço, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no Acórdão n.º 660/06,
de 28 de Novembro de 2006, que decidiu “julgar inconstitucional, por violação do
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código
de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição de
elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão
de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados
irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento
e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância” e em Acórdão desta secção
proferido no proc. nº 452/07 decidiu “julgar inconstitucional, por violação do
artigo 32º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 188º, nº 3, do Código de
Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição de
elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o orgão
de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados
irrelevantes pelo juíz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento
e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância”.
7. Recapitulemos, sumariamente, a jurisprudência destes acórdãos, com o
objectivo de averiguar se a mesma se deve aplicar ao caso sub judice.
O acórdão n.º 660/2006 excluiu que, em caso de intercepção e gravação de
conversações telefónicas, e para efeito da eliminação dos conteúdos das
comunicações interceptadas, as garantias de defesa do arguido se bastem com o
controlo da relevância dos elementos de prova, por parte do juiz de instrução.
Para assim concluir, o Tribunal ponderou que a destruição, apenas por decisão do
juiz de instrução, sem conhecimento pelo arguido, dos elementos de prova obtidos
por intermédio da intercepção de telecomunicações, constitui, por si só, uma
compressão inaceitável e desnecessária das garantias de defesa e que é
particularmente notória na comparação da sua posição com a da acusação. Isso
porque o arguido, que sofreu uma intervenção restritiva nos seus direitos
fundamentais ao ser objecto de escutas telefónicas, acaba por ver eliminados os
registos dessas comunicações, sem poder tomar conhecimento do seu conteúdo e
sobre eles se pronunciar, enquanto que a acusação (ou seja, o órgão de polícia
criminal e o Ministério Público) tem acesso ao conteúdo integral e completo das
comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes que considera
relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma intervenção substancial
anterior à apreciação do juiz e podendo influenciar a sua decisão sobre a
relevância dos elementos coligidos. Verifica-se, portanto, uma desigualdade de
armas entre a acusação e a defesa.
O Acórdão entende, por outro lado, que não é possível contrapor, como
justificação para a destruição dos registos tidos como irrelevantes, a ideia de
que essa operação visa a própria protecção de direitos fundamentais de terceiros
ou do próprio arguido, por se tratar de dados que, resultando da intercepção de
comunicações, representam em si uma devassa da intimidade da vida privada. Neste
plano de consideração, o tribunal chama a atenção para a circunstância de a
destruição dos registos, com fundamento no disposto no artigo 188º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, ter por base exclusivamente a apreciação da relevância
das conversações para efeito de prova, por parte do juiz, e não a ilegalidade
das escutas ou a protecção dos direitos de terceiros ou do arguido. E, assim, a
invocação da protecção de terceiros contra intromissão na vida privada só
poderia colocar-se no plano abstracto, da presunção de que todas e quaisquer
escutas podem pôr em causa esses direitos de terceiros.
O Tribunal baseou a conclusão no sentido da inconstitucionalidade da dimensão
normativa do preceito em apreciação, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, na comparação com outras ordens jurídicas europeias mais
próximas da nossa, e ainda no desenvolvimento da sua jurisprudência anterior em
matéria de escutas telefónicas.
No Acórdão tirado por esta Secção, no proc. nº 452/07, o Tribunal Constitucional
confirma esta jurisprudência, acrescentando alguns novos argumentos no sentido
da inconstitucionalidade desta dimensão normativa do preceito, baseados, por um
lado, na coerência do sistema e, por outro lado, na garantia constitucional do
direito à palavra e do direito a um processo equitativo.
Em primeiro lugar, a coerência do sistema exige que «… como já disse o Tribunal
no Acórdão nº 426/2005 (DR, II Série, nº 232, p. 17006) – “seja facultada à
defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer que a transcrição de
mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por
entenderem que as mesmas assumem relevância própria quer por se revelarem úteis
para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens anteriormente
seleccionadas”». E prossegue o Acórdão proferido no proc. nº 452/07 «Para que
esta ‘arquitectura’ judicial mantenha coerência, necessário é que se entenda que
o exercício do direito que é conferido ao arguido no nº 5 do artigo 188º do
Código de Processo Penal pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à
integralidade das gravações efectuadas no decurso das intercepções telefónicas».
Em segundo lugar, este Acórdão considera que a garantia constitucional do
direito à palavra e do direito a um processo equitativo implicam que o «acesso
[às escutas] seja constitucionalmente imposto, não dependendo da livre
disposição do legislador ordinário facultá-lo, ou não, à defesa».
Retirando o regime fixado nos artigos 187º e 188º do CPP de uma autorização
constitucional expressa — conferida ao legislador — para restringir, «em matéria
de processo criminal», o direito ‘inviolável’ do sigilo dos meios de comunicação
privada (artigo 34º, nº 4 e nº 1) e considerando que o bem jurídico protegido
por tal direito é refracção de outros bens jurídicos, nomeadamente dos
protegidos pelo «direito à palavra» e pelo direito à «reserva de intimidade da
vida privada» (artigo 26° da CRP), o Acórdão diz o seguinte:
«(…) O direito à palavra a que se refere o artigo 26° da CRP — próximo do
direito à imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente distinto
do direito à liberdade de expressão (artigo 37°) — pressupõe a existência de uma
«liberdade de disposição na área da comunicação não pública», em que o que é
dito — justamente por ser dito fora do espaço público, ou seja, não com o
intuito de ser escutado — faz parte da «acção comunicativa» espontânea,
«inocente e autêntica» (veja-se MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de
prova em Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A esta esfera
da comunicação humana pertencem os discursos fragmentários, a «expressão não
reflectida nem contida», ou a «formulação apenas compreensível no contexto de
uma situação especial» (Tribunal Constitucional Federal Alemão, apud MANUEL
COSTA ANDRADE, ob. e loc. cit.). Quem «escuta» um discurso assim, feito para não
ser escutado, infere sentidos. A decisão unilateral e externa (isto é, tomada
sem o conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e ao modo da
descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido iniciais se
venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de redução da
compreensibilidade do que foi dito.
Um «processo devido em direito» — ou, como diz a Constituição no nº 1 do artigo
32°, um processo que «assegura todas as garantias de defesa» —, não pode ignorar
que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe-se porque tal já
foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável que a acusação,
que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações, sugira ao juiz quais
as ‘partes’ das gravações a transcrever, por serem essas as partes consideradas
relevantes para a prova (artigo 188°, nº 1, in fine do CPP), e que a sugestão
seja acolhida «não com base em prévia audição das mesmas [por parte do JIC] mas
por leitura de textos contendo a sua reprodução… acompanhados das fitas gravadas
ou elementos análogas» (Fórmula decisória do Acórdão nº 426/2005). Sabendo-se
tudo isto, difícil é não concluir que, no âmbito de ‘todas as garantias de
defesa’ a que se refere o nº 1 do artigo 32° da CRP, se conta também a
possibilidade de acesso do arguido à integralidade das gravações efectuadas no
decurso de operações de «escutas telefónicas», antes que seja dada a ordem da
sua destruição parcial.
Sustentar-se-á em contrário que uma tal leitura das coisas desconhece que, nos
termos do nº 5 do artigo 32° da Constituição, o princípio do contraditório vale
apenas para as fases de audiência de julgamento e para os «actos instrutórios
que a lei determinar», pelo que argumentar como se argumentou implicaria uma
visão radicalmente acusatória de todo o processo penal, em que o principio do
contraditório dominaria, também, todo o inquérito — visão essa que, como se
sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note-se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para a fase do
inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração da prova —
princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à fase de
audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata-se apenas de
garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve cumprir, ou
seja, «de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da
defesa» (assim mesmo, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1ª
ed., 1974, reimp. 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p. 150), de tal forma que o
arguido tenha uma posição processual equiparada quanto possível à do acusador
(ibidem p. 149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar um processo
penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura radicalmente
acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao principio contido no
nº 1 do artigo 32° da Constituição, pois que, «[e]m todas as garantias de defesa
engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários para o
arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical
desigualdade material de partida entre acusação (normalmente apoiada pelo poder
institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante
específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.» (J.J. GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516.»
8. A destruição parcial dos registos magnéticos das escutas telefónicas pode,
todavia, justificar-se para assegurar os valores e interesses
constitucionalmente consagrados atinentes à reserva da intimidade da vida
privada do próprio arguido ou de terceiros.
Mas, nesse caso, como se afirma no Acórdão proferido no proc. nº 452/07 já
mencionado:
«Colocar-se-á então o problema de saber se, nesses casos, não será (precisamente
ao contrário do que até agora se tem vindo a defender) constitucionalmente
devida a ordem do JIC de destruição de parte das gravações efectuadas, por
corresponder ela «à possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão
injustificada na reserva de intimidade da vida privada do arguido ou de
terceiros (artigo 26°, nº 2 da Constituição).» (DR, II série, nº 7, 10/1/2007,
p. 757, Itálico aditado).
Não existem dúvidas quanto à inevitabilidade da colocação do problema.
Por serem expressão da «liberdade de disposição da comunicação não pública»,
inscrita no exercício do «direito à palavra», as comunicações privadas que são
interceptadas pelas «escutas» não contêm só discursos potencialmente
fragmentários, cujo sentido só pode ser, para quem «escuta», apenas inferido.
Faz parte também da especial estrutura comunicativa deste tipo de discurso, com
as suas fronteiras fluidas, que ele raramente se restrinja à esfera pessoal
daqueles que nele participam. Enquanto devassa da privacidade — na sua esfera
mais íntima — as «escutas» são por isso, frequentemente, manchas que alastram:
muitas vezes e por seu intermédio, «a revelação do segredo só se torna possível
com a revelação de segredos de terceiros.» (MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. p.
50).
Deve por isso ter-se em conta que o problema que nos ocupa — ou seja, a questão
de saber se será constitucionalmente admissível que o Juiz de Instrução ordene a
destruição de parte do material gravado, sem que dessa parte tenha conhecimento
o arguido — poderá em certos casos (que não seguramente o agora em juízo) ser
equacionado como um problema de colisão de direitos: o direito do arguido a um
processo equitativo, com todas as garantias de defesa, e que inclui, como já
vimos, a faculdade de acesso à integralidade das gravações efectuadas, pode
conflituar, no modo concreto do seu exercício, com direito ou direitos de
outrem, afectando os bens jurídicos por estes últimos protegidos. (Sobre a
colisão de direitos, em geral, J.J. GOMES CANOTILHO, ob. cit., p. 1270). No
entanto, tal em nada legitima que se conclua que a ordem judicial de destruição
de parte das gravações efectuadas será sempre constitucionalmente devida, por
corresponder à correcção, feita pelo tribunal, da devassa da intimidade de
terceiros. Uma tal conclusão só seria sustentável se os problemas de colisão de
direitos pudessem ser resolvidos através do sacrifício unilateral de um deles —
como se tivera o juiz constitucional uma habilitação genérica para declarar, em
situações de conflito, qual o direito a sacrificar e qual o direito a tutelar.
Nada permite sustentar que assim seja. O que não é de excluir é que, nas
circunstâncias em que a colisão ocorra, se deva fazer a ponderação entre o
direito do arguido a um processo devido e os direitos de terceiros ao segredo e
à reserva, podendo por isso vir a ser constitucionalmente permitida a
destruição, sem a audição do arguido, daquela parte das gravações que lesem
especialmente o segredo ou a intimidade de terceiros. Em última análise, porém,
caberá ao legislador ordinário identificar os casos em que deva ser feita a
ponderação.
Face ao regime legal vigente — e tendo em conta que ele obriga que todos os
participantes nas operações de «escutas» fiquem «ligados ao dever de segredo
relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento» (nº 3, in. fine, do
artigo 188º do Código de Processo Penal) — não pode deixar de se julgar
inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º, da Constituição, a norma
contida na primeira parte do referido preceito, quando entendida no sentido de
permitir que o juiz de instrução ordene, por considerar relevantes para a prova,
a transcrição parcial das gravações de conversas telefónicas interceptadas, e
prescreva a destruição das partes restantes, antes de o arguido as ter ouvido e
controlado.»
9. Esta jurisprudência é integralmente aplicável ao caso dos autos, sendo
irrelevante que a destruição do material não seleccionado o tenha sido na
totalidade em relação a dois telefones, uma vez que o não conhecimento pela
defesa do material em causa a impede tanto num caso destes, como se apenas
tivessem sido destruídos parcialmente os registos de um dado telefone de se
pronunciar sobre a sua relevância.
Pelos fundamentos expostos, e pelos mais amplos, constantes dos Acórdãos
mencionados, inteiramente transponíveis para a discussão do problema de
constitucionalidade suscitado no presente recurso, para os quais se remete,
conclui-se que a norma do artigo 188º, nº 3, do Código Penal, no segmento em que
estabelece que a destruição dos elementos considerados não relevantes, quando
interpretada no sentido de que o arguido não tem que deles tomar conhecimento, é
contrária ao artigo 32º, nº 1, da Constituição.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer do recurso na parte que tem por objecto a
inconstitucionalidade da norma do artigo 188º, n° 3, do Código de Processo
Penal, na interpretação referente à transcrição da matéria seleccionada;
b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da
Constituição, a norma do artigo 188º, nº 3, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações, que o orgão de polícia criminal e o
Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juíz de
instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa
pronunciar sobre a sua relevância;
c) Consequentemente, conceder parcial provimento ao recurso e determinar
a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juizo de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Setembro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes (Vencido, quanto à alínea b) da decisão, nos
termos da declaração de voto do Senhor Conselheiro Carlos
Fernandes Cadilha, para que, no essencial, remeto).
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à alínea b) da
decisão, nos termos da declaração de voto em anexo)
Gil Galvão
Declaração de voto
No projecto de acórdão que elaborei pronunciei-me pela não inconstitucionalidade
da norma do artigo 188º, n° 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada
no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através
de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o
arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse
para a sua defesa, e, consequentemente, propunha, nessa parte, que se negasse
provimento ao recurso.
Baseie-me essencialmente nas seguintes ordens de considerações, aqui apenas
sintetizadas.
O sentido lógico que é possível atribuir às disposições conjugadas dos n.ºs 1 e
3 do artigo 188º do Código de Processo Penal, numa interpretação conforme à
Constituição (que tenha presente o carácter excepcional dos meios de prova que
envolvam a violação de direitos fundamentais dos cidadãos), é aquele que entrevê
o procedimento judiciário aí previsto, nas suas diversas fases, como
finalisticamente dirigido à obtenção de elementos relevantes para a investigação
(e apenas desses), com a salvaguarda possível da protecção da intimidade da
vida privada. Assim se compreende que a diligência seja ordenada ou autorizada
por um juiz, que os seus resultados lhe sejam imediatamente comunicados e que
este desde logo possa efectuar o controlo da relevância probatória dos elementos
recolhidos.
Neste contexto, a faculdade processual que é atribuída ao arguido no n.º 5 do
mesmo artigo 188º, não poderá deixar de ser entendida em sintonia com o que
prevê o n.º 3 desse preceito. O arguido e o assistente, bem como as pessoas
cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição
para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem cópia desses
elementos. Mas naturalmente que o exame apenas incide sobre os elementos
transcritos, isto é, aqueles que, nos termos do n.º 3, foram, considerados úteis
para a investigação e que poderão ser avaliados pelos interessados (incluindo o
arguido) para exercerem os direitos processuais que lhe correspondem.
A consulta não abrange os elementos não transcritos pela linear razão de que
esses elementos, em ordem ao princípio da menor intervenção possível e da
proporcionalidade, deverão ser destruídos, por determinação do juiz, como impõe
o n.º 3 desse artigo, por não terem qualquer interesse para o processo e não
justificarem de per si qualquer reacção defensiva por parte de quem tenha sido
objecto de escuta.
A destruição de registos não representa, por outro lado, uma
qualquer violação das garantias de defesa do arguido e especificamente do
direito do contraditório a que se referem os n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da
Constiruição da República.
As garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional, não vão além, na
parte que agora mais interessa considerar, da previsão de um processo criminal
com estrutura acusatória em que apenas a audiência de julgamento e certos actos
instrutórios especialmente previstos na lei é que estão subordinados ao
princípio do contraditório.
Como bem se compreende, o arguido não pode interferir na actividade de
investigação, nem discutir, nessa fase, a relevância das diligências que tenham
sido efectuadas ou a importância dos resultados probatórios alcançados. Seria,
aliás, inexequível, e inteiramente contrário aos interesses da investigação, que
o arguido, ainda na fase do inquérito, pudesse examinar e pronunciar-se sobre os
registos de gravação de escutas telefónicas, quando é certo que a autoridade
policial tem de dar imediato conhecimento ao juiz da existência das gravações
para o aludido efeito de se efectuar a transcrição em auto ou se ordenar a sua
destruição. Nesse contexto, a audição do arguido teria de ser feita em tempo
útil (e, portanto, também, imediatamente), o que lhe permitiria o acesso também
imediato às provas já existentes, com a completa inviabilização da ulterior
realização de outras operações de intercepção de comunicações.
O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem,
pois, o sentido de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores
do processo, contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele
coligidas e tomar também iniciativas instrutórias e de realização de prova que
considerar pertinentes.
No entanto, como é bem de ver, esse direito de contraditório existe em relação
às provas em que se funda a acusação, as mesmas que serão ponderadas pelo juiz
de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a
julgamento, para efeito a condenação do réu.
É só em relação a essas provas – e não a quaisquer outras que os investigadores
tenham considerado irrelevantes ou tenham abandonado por considerarem (bem ou
mal) imprestáveis para os fins de indiciação da prática de ilícito -, que o
arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados
probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar
esses resultados.
É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação,
que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à
acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E é esse – e
apenas esse – o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no
artigo 32º, n.º 5, da Constituição.
É essa também a essência do processo equitativo ou do due process af law, que
justamente envolve como um dos seus aspectos fundamentais (para além da
independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a
consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as
possibilidades de contrariar a acusação.
Todavia, o arguido não tem o direito nem interesse processual a contraditar as
provas produzidas no inquérito que foram consideradas irrelevantes (e que não
servem de fundamento à acusação), como não tem direito nem interesse processual
em conhecer todos os expedientes ou diligências de que os órgãos de polícia
criminal se serviram, segundo as estratégias de investigação que consideraram em
cada momento adequadas ao caso e que podem, entretanto, ter sido abandonados.
Acresce que a não audição do arguido relativamente à relevância das provas
recolhidas não agrava nem afecta especialmente a sua posição no processo. Na
verdade, as deficiências que puderem ser apontadas à investigação, assim como a
insuficiência ou a descontextualização das passagens das gravações, na medida em
que dificultam ou impedem a prova dos factos que constam da acusação relevam a
favor do arguido, que poderá justamente utilizar a fase de instrução e de
audiência de julgamento para fazer valer, em contraditório, as imprecisões e
fragilidades das provas em que se funda a acusação.
Sendo assim, ainda que possa considerar-se aconselhável de jure condendo
assegurar a integralidade das conversações telefónicas interceptadas, por razões
de política legislativa que considerem prevalecentes as vantagens daí
advenientes para a justiça do caso concreto, tais considerações não justificam
um juízo de inconstitucionalidade relativo à norma do artigo 188º, n.º 3, do
CPP, na sua versão actual, que, por tudo o que foi dito, não representa uma
violação das garantias de defesa do arguido.
Ou seja, tendo em conta o sentido jurídico-constitucional do princípio
acusatório e a possibilidade de colisão entre o interesse processual em manter
intactas as provas coligidas através de intercepção e gravação de comunicações e
o correspondente risco de devassa da reserva de intimidade da vida privada, cabe
na liberdade de conformação legislativa adoptar um critério mais ou menos
restritivo no que se refere ao momento em que, no decurso do processo penal,
deverá efectuar-se a destruição dos elementos de prova considerados
irrelevantes.
Nada obstava, nesta perspectiva, a que se formulasse um juízo
de não inconstitucionalidade da apontada norma do artigo 188º, n.º 3, do Código
de Processo Penal.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha