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Processo n.º 119/DPR
Plenário
ACTA
Aos dias dez do mês de Outubro de dois mil e sete, achando-se presentes o
Excelentíssimo Conselheiro Presidente Rui Manuel Gens de Moura Ramos e os Exmos.
Conselheiros José Manuel Cardoso Borges Soeiro, Gil Manuel Gonçalves Gomes
Galvão, Carlos José Belo Pamplona de Oliveira, Maria João da Silva Baila Madeira
Antunes, Ana Maria Guerra Martins, Joaquim José Coelho de Sousa Ribeiro, Mário
José de Araújo Torres, Maria Lúcia Amaral, Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Carlos
Alberto Fernandes Cadilha, Benjamim Silva Rodrigues e João Eduardo Cura Mariano
Esteves, foram trazidos à conferência os presentes autos, para apreciação.
Após debate e votação, foi ditado pelo Excelentíssimo Conselheiro Presidente o
seguinte:
I. Relatório.
1. O Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas oficiou ao Presidente do
Tribunal Constitucional em 2 de Abril do ano corrente, suscitando dúvidas sobre
a respectiva vinculação, enquanto membro do Conselho Superior de Defesa
Nacional, ao dever de apresentação das declarações de património e rendimentos,
previsto na Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com a redacção conferida pela Lei n.º
25/95, de 18 de Agosto, e solicitando a prestação do correspondente
esclarecimento.
Questionando a inclusão dos membros do Conselho Superior de Defesa Nacional no
universo dos sujeitos abrangidos pela primeira parte da previsão da alínea l) do
n.º 1 do art. 4 º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei
n.º 25/95, de 18 de Agosto, manifestou expressas reservas quanto à possibilidade
de, na ausência de uma definição legal do conceito de órgãos constitucionais,
como tal serem havidos todos os órgãos mencionados ao longo da Constituição da
República Portuguesa e como políticos assim se qualificarem os cargos exercidos
pelos respectivos membros.
No que em particular concerne ao Conselho Superior de Defesa Nacional, a tal
possibilidade contrapôs a circunstância de os respectivos membros exercerem o
correspondente cargo por inerência legal de outros de que são titulares e de
estes, no caso específico dos Chefes de Estado-Maior, serem cargos de comando
militar (arts.3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48/93, de 26 de Fevereiro, 6º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 49/93, da mesma data, 9º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
61/2006, de 21 de Março, e 5º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 51/93, de 26 de
Fevereiro) e, como tal, por natureza não políticos.
Através de ofício datado de 4 de Abril de 2007, idênticas dúvidas foram
expressas pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, fundamentadas estas, quer na
própria questão da suficiência, para efeitos da respectiva classificação como
órgão constitucional, da referência feita ao Conselho Superior de Defesa
Nacional pelo art. 274º da Constituição da República Portuguesa, quer na
evidenciada circunstância de os Chefes de Estado-Maior serem membros do Conselho
Superior de Defesa Nacional por inerência dos seus cargos e estes, enquanto de
comando militar, se subordinarem a um princípio de isenção política.
Sob invocação de «unânime e reiterado entendimento» segundo o qual as chefias
das Forças Armadas não são detentoras de cargos políticos e, como tal, se não
encontram abrangidas pelo âmbito pessoal do art. 1º da Lei n.º 4/83, de 2 de
Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, os mesmos
esclarecimentos foram solicitados, através de ofício datado de 4 de Abril de
2007, pelo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.
Por meio de ofício datado de 10 de Abril de 2007, idêntico pedido foi formulado
pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, relevando este da apontada necessidade
de clarificação do «fundamento jurídico» da obrigatoriedade de apresentação
pelos membros do Conselho Superior de Defesa Nacional da declaração prevista no
art. 1º da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95,
de 18 de Agosto.
Para este último signatário, a questão a ponderar consiste em saber se «um
militar no activo e na efectividade de serviço – obrigado que está ao princípio
legal da isenção política em todos os actos em que participa ou intervenha - ao
passar a exercer um cargo que é, na sua essência, não político – Chefe do
Estado-Maior do Exército -, deverá, afinal, ser considerado como titular de um
cargo político, pela circunstância de desempenhar funções, por inerência, no
Conselho Superior de Defesa Nacional».
2. Autuados os referidos ofícios, foi concedida vista ao Ministério Público,
tendo o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitido o seguinte parecer:
«A questão suscitada prende-se com a definição do conceito de “cargo político”,
para o efeito particular e específico da delimitação do universo dos titulares
de cargos ou funções obrigados à entrega da declaração de património e
rendimentos: será obrigatório interpretar o elenco constante do art. 4º da Lei
n.º 4/83 (na versão emergente da Lei n.º 25/95) à luz de um conceito
“substancial” de exercício de “funções políticas” ou, pelo contrário, deverá
admitir-se que, nesta matéria, goza o legislador de uma ampla margem de
discricionariedade legislativa, que lhe permita incluir naquele elenco – que
apenas releva para a definição dos titulares de cargos que devem apresentar tal
declaração – entidades que não exerçam qualquer função política, no sentido
“estrito” e “normal”, pressuposto, por exemplo, no art. 117º da Constituição da
República Portuguesa?
Como notam os Requerentes, a participação em determinados “órgãos
constitucionais” – nomeadamente, órgãos que exercem funções consultivas como
decorrência de uma “inerência” com o desempenho de cargos que envolvem um dever
de “isenção política” – não traduz efectivamente o exercício de uma “função
política” – sendo, todavia, certo que o legislador sujeitou ao referido dever de
apresentação da declaração de património e rendimentos os “membros” de tais
“órgãos constitucionais”.
Não é, aliás, esta a única situação em que a lei, ao delinear o elenco de
“cargos políticos”, para o referido e específico efeito, amplia
significativamente o leque de sujeitos e entidades abrangidas, nele incluindo
manifestamente casos que não envolvem o exercício de funções de natureza
política: é o que sucede, manifestamente, com a situação tipificada na alínea g)
do n.º 1 do artigo 4º, vinculando os “membros do Tribunal Constitucional” à
apresentação da referida declaração, apesar de ser inquestionável que exercem,
não funções políticas, mas jurisdicionais, e, bem assim, com a situação
tipificada na 2ª parte da alínea l), ao obrigar à apresentação da mesma
declaração os “membros de entidades públicas independentes”, legalmente
previstos.
Sendo naturalmente discutível esta opção legislativa consubstanciada na
definição de um conceito “impróprio” e ampliativo de “cargo político”, não
vemos, todavia, que ela se revele incompatível com a Lei Fundamental, já que
apenas põe em causa – não as condições substanciais de exercício dos referidos
cargos, de natureza “não política”, mas a mera apresentação de uma declaração de
património e rendimentos, estendida por lei a pessoas e entidades que não
exercem uma função política em sentido próprio e específico.
Ora, face a tais considerações, e sendo efectivamente o Conselho Superior de
Defesa Nacional um “órgão constitucional”, face ao preceituado no artigo 274º da
Constituição da República Portuguesa, integrado pelos Exmos. requerentes, somos
de parecer que o artigo 4º, n.º 1, alínea l), da Lei n.º 4/83, na redacção da
Lei 25/95, impõe efectivamente a apresentação neste Tribunal da declaração de
património e rendimentos.
3. Afigurando-se pertinente a dúvida sobre se, enquanto membros do Conselho
Superior de Defesa Nacional, se encontram os Requerentes subordinados ao dever
imposto pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95,
de 18 de Agosto, importa resolvê-la, ao abrigo do disposto no art. 109º, n.º 2,
da Lei do Tribunal Constitucional.
II. Fundamentação.
É sabido que, ao proceder à revisão do regime jurídico do controle público da
riqueza dos titulares de cargos políticos instituído pela Lei n.º 4/83, de 2 de
Abril, a Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, a par de outras alterações produzidas,
ampliou o elenco dos cargos cujos titulares se encontram obrigados a apresentar,
nos prazos para o efeito estabelecidos, uma “declaração dos seus rendimentos,
bem como do seu património e cargos sociais” (cfr. art. 1º).
Mercê da entrada em vigor da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, o elenco dos
sujeitos vinculados pelo dever de apresentação da referida declaração passou,
assim, a integrar os “membros dos órgãos constitucionais e os membros das
entidades públicas independentes previstas na Constituição e na lei”, uns e
outros expressamente contemplados na alínea l) do n.º 1 do respectivo artigo 4º.
Por força da alteração introduzida na originária previsão do art. 4º, passaram,
pois, a ser considerados cargos políticos, para os efeitos da presente lei (a
Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto), os “membros dos órgãos constitucionais e os
membros das entidades públicas independentes previstas na Constituição e na
lei”.
Ora, é justamente em torno da definição do âmbito subjectivo de
aplicação da lei a partir desta fórmula normativa inovatória que ocorre a dúvida
que nos presentes autos importa esclarecer.
Façamo-lo então.
Preceitua o art. 1º, n.º 1, da Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão resultante
da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, que “os titulares de cargos políticos
apresentam no Tribunal Constitucional, no prazo de 60 dias contado do início do
exercício das respectivas funções, declaração dos seus rendimentos, bem como do
seu património e cargos sociais […]».
Sob a epígrafe «elenco», dispõe-se no respectivo art. 4º o seguinte:
«1 – São cargos políticos para os efeitos da presente lei:
[…]
l) Os membros dos órgãos constitucionais e os membros das entidades públicas
independentes previstas na Constituição e na lei.
[…]».
O problema da delimitação do conceito de órgãos constitucionais constante da
previsão da alínea l) do n.º 1 do art. 4º não é absolutamente inédito na
jurisprudência deste Tribunal.
Com efeito, confrontado então com a necessidade de esclarecer «a dúvida sobre se
o dever de declaração de património e rendimentos estabelecido pela Lei n.º 4/83
passou a abranger, na versão que a este diploma foi dada pela Lei n.º 25/95, os
Juízes do Tribunal de Contas […]», o Plenário deste Tribunal, no seu Acórdão n.º
324/2001, embora sem ter chegado a «apurar positivamente o que sejam e quais
sejam os órgãos constitucionais de que se trata na alínea l) do n.º 1 do art. 4º
da Lei n.º 4/83», não deixou de proceder a uma delimitação negativa do conceito,
designadamente em ordem a dele excluir os titulares de outros órgãos de
soberania para além dos constantes eo nomine do elenco.
Para suportar tal conclusão aí se escreveu, além do mais, o seguinte:
«A resposta à pergunta acabada de formular não poderia deixar de ser afirmativa
tomada a expressão “órgãos constitucionais” num ou até em mais do que um dos
sentidos que ela é susceptível de receber, ao menos literalmente: assim, se a
expressão fosse entendida como pretendendo abranger todo e qualquer órgão
previsto e definido pela Constituição, ou então, ao menos alguns desses órgãos,
maxime os “órgãos de soberania”.
Não é em nenhum destes sentidos, porém, que a alínea l) do n.º 1 do art. 4º da
Lei n.º 4/83 passou a referir os “órgãos constitucionais”: E isso, porque, de um
lado, nas alíneas anteriores e seguintes do mesmo n.º 1 se enumera, desde logo,
toda uma série de titulares de órgãos previstos na Constituição, mas sobretudo
de órgãos de soberania, que ficam sujeitos à disciplina da lei; e, de outro
lado, manifestamente não se concebeu a alínea l) em causa como uma cláusula
residual (destinada a abranger os titulares de outros órgãos daquela natureza)
como ela o seria se, por exemplo, se referisse aos membros dos restantes órgãos
constitucionais”.
Ou seja: a lei (o dito n.º 1 do art. 4º) começa por enunciar um conjunto de
titulares de órgãos de soberania que ficam adstritos aos deveres de declaração
nela previstos; e, depois, sujeita ainda aos mesmos deveres um conjunto de
titulares de outros órgãos (quer previstos ou referidos pela Constituição, quer
não, ou não necessariamente) entre os quais os que designa por “órgãos
constitucionais”: Ora, num tal contexto, claro que este último conceito ou
categoria assume um sentido próprio e específico e seguramente não abrange na
sua extensão os “órgãos de soberania”».
Pois bem.
Ainda que por via da delimitação negativa do conceito, a doutrina seguida pelo
Acórdão acabado de citar permite uma primeira aproximação ao significado a
atribuir à categoria “órgãos constitucionais” que é útil aqui retomar: a par da
rejeição da possibilidade de, por incidência da tipificação resultante da alínea
l) do n.º 1 do art. 4º, vir a sujeitar ao regime jurídico do controle público da
riqueza em função do cargo titulares de outros órgãos de soberania para além dos
expressamente nomeados, recusa-se, por insuficiente e inidóneo, um critério de
identificação que, emergindo da formalidade pura, fizesse convergir o conceito
com a literalidade do texto fundamental de tal forma que como órgão
constitucional fosse de considerar todo e qualquer órgão referido ou nomeado
pela Constituição.
A simples circunstância de determinado órgão ser mencionado pela Constituição,
embora necessária no sentido que seguidamente se exporá, não constitui, pois,
requisito suficiente para a sua classificação como órgão constitucional.
Conforme evidenciado no mencionado aresto, o conceito de órgão constitucional é
definível substancialmente, consistindo tal definição no estabelecimento do
conteúdo próprio que especificamente lhe cabe.
Recorrendo a consolidada conceptualização doutrinal, pode dizer-se
que, se por órgão de Estado deverá entender-se o «centro autónomo
institucionalizado de emanação de uma vontade que lhe é atribuída», órgãos
constitucionais serão justamente aqueles através dos quais «o Estado actua
constitucionalmente» (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, volume V,
3ª ed. Coimbra Editora, 2004, pg. 45, 46).
Nesta perspectiva, órgãos constitucionais corresponderão àqueles
cuja existência a Constituição impõe em função do modelo organizativo instituído
e, portanto, sem os quais o Estado não poderá subsistir enquanto ser
juridicamente constituído em consonância com a matriz definida na Lei
Fundamental.
Assim caracterizado, o postulado de que se parte propiciará a convocação de
alguns dos critérios classificativos recorrentemente sistematizados na doutrina,
com vantagens do ponto de vista da densificação do conceito e, por consequência,
da respectiva operatividade.
O primeiro desses critérios é de natureza estrutural.
Dizendo respeito à instituição e aos titulares dos cargos, tal critério conduz a
que por órgãos constitucionais sejam havidos «aqueles que a Constituição cria e
que não podem, por conseguinte, ser extintos ou eventualmente modificados por
lei ordinária» (Jorge Miranda, ob. cit., pg. 65-66).
A susceptibilidade de recondução genealógica do órgão ao texto fundamental e a
consequente inderrogabilidade da modelação resultante do preceito criador por
acto de inferior posição hierárquico-normativa constituirá, assim, uma via para
a identificação, no universo dos órgãos referidos ou nomeados pela Constituição,
daqueles que deverão integrar a categoria de órgãos constitucionais.
Conforme facilmente se perceberá, o resultado classificativo que assim for de
atingir manter-se-á inalterado se, na tradução funcional do que vem sendo dito,
for feito intervir um outro critério, este respeitante à competência do órgão a
qualificar.
Partindo do chamado «princípio da prescrição normativa da competência» –
princípio segundo o qual, «sendo a competência definida pelo Direito objectivo,
o órgão não pode ter outra competência além da que a norma estipula», este
critério conduzirá a que ao conceito de órgãos constitucionais apenas possam ser
reconduzidos aqueles que, para além de figurarem no texto fundamental, sejam
«dotados tão somente de poderes constituídos – constituídos pela Constituição» –
ou ainda de poderes derivados directamente da lei ordinária, contando que estes
possam ser entendidos como «poderes implícitos» contidos nos primeiros,
dispondo, neste sentido, de «“base constitucional”» (Jorge Miranda, ob. cit.,
pg. 57 e 59).
Ao Conselho Superior de Defesa Nacional refere-se o art. 274º da Constituição,
aí se dispondo o seguinte:
«1. O Conselho Superior de Defesa Nacional é presidido pelo Presidente da
República e tem a composição que a lei determinar, a qual incluirá membros
eleitos pela Assembleia da República.
2. O Conselho Superior de Defesa Nacional é o órgão específico de consulta para
os assuntos relativos à defesa nacional e à organização, funcionamento e
disciplina das Forças Armadas, podendo dispor da competência administrativa que
lhe for atribuída por lei.»
Perante a formulação de sentido extraível do próprio texto fundamental, parece
segura a afirmação de que o Conselho Superior de Defesa Nacional, não somente se
inscreve, mas verdadeiramente emerge da estrutura organizatório-funcional
delineada pela Constituição, apresentando-se como órgão dotado, quer do ponto de
vista formal, quer do ponto de vista material, de uma identidade definida
constitucionalmente.
Com efeito, para além de, enquanto centro formador de uma vontade imputável ao
Estado, se materializar numa composição cuja matriz a Constituição não deixou de
instituir, o Conselho Superior de Defesa Nacional «exerce funções consultivas
por expressa determinação constitucional» e, embora a Constituição não
individualize os assuntos carecidos de consulta pelo mesmo, a respectiva
intervenção registar-se-á em áreas de competência consultiva determinadas
constitucionalmente: defesa nacional e organização, funcionamento e disciplina
das Forças Armadas (cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pg. 960).
Quer isto significar que, tal como é próprio dos órgãos constitucionais, quer o
status, quer a competência do Conselho Superior de Defesa Nacional derivam
directamente da Constituição, derivação esta que, na terminologia de alguns
autores, justificará, por seu turno, a respectiva classificação, tal como a dos
restantes órgãos da mesma categoria, como “órgão imediato” (neste sentido,
quanto ao conceito de órgãos constitucionais, J.J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, 2003, pg. 564).
A circunstância de o Conselho Superior de Defesa Nacional ser, no sentido
acabado de expor, um órgão imediatamente derivado da Constituição explica,
finalmente, que as competências que lhe são atribuídas pela lei ordinária
constituam mera explicitação de faculdades implicitamente contidas no núcleo de
poderes pré-estabelecidos constitucionalmente.
Com efeito, conforme facilmente se poderá concluir perante o disposto nas
diversas alíneas que integram o nº. 1 do art. 47º, n.º 1, da Lei n.º 29/82, de
11 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2007, de 16 de
Abril, as competências aí atribuídas ao Conselho Superior de Defesa Nacional,
para além de respeitarem a funcionalidade definida no art. 274º, n.º 2, da
Constituição, são, na sua totalidade, tematicamente reconduzíveis às áreas de
jurisdição consultiva estabelecidas constitucionalmente.
Estamos, em suma, em presença de competências que, não obstante especificadas
por lei ordinária, dispõem, no sentido que acima ficou exposto, de génese
constitucional.
É certo que as competências a que nos vimos referindo são aquelas que a lei
comete ao Conselho Superior de Defesa Nacional enquanto órgão consultivo. E
certo é também que, nos termos que resultam do disposto no n.º 4 do art. 46º, da
Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro, igualmente por referência à versão introduzida
pela Lei Orgânica n.º 2/2007, de 16 de Abril, o Conselho Superior de Defesa
Nacional funciona ainda como órgão administrativo, correspondendo-lhe, neste
caso, uma formação mais reduzida.
Embora assim ocorra de facto, a distinção entre dois formatos em que o Conselho
Superior de Defesa Nacional pode funcionar sempre se revelaria aqui
inconsequente já que, conforme resulta do disposto nos n.ºs 3, alíneas d) e h),
e 4º do art. 46º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro, na redacção conferida pela
Lei Orgânica n.º 2/2007, de 16 de Abril, qualquer um dos Requerentes tem assento
em ambas as formações possíveis do órgão.
O Conselho Superior de Defesa Nacional é, portanto, um órgão constitucional,
classificação que, de resto, expressamente lhe é atribuída na doutrina
(qualificando-o como órgão constitucional, J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pg. 960).
Aceite, pelos fundamentos expostos, a classificação do Conselho
Superior de Defesa Nacional como órgão constitucional, a questão que
seguidamente se coloca em face da argumentação apresentada é justamente a de
saber se alguma razão obstará à qualificação dos Requerentes, enquanto elementos
integrantes daquele órgão, como «titulares de cargos políticos» para os efeitos
previstos na Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, na versão aprovada pela Lei n.º 25/95,
de 18 de Agosto.
Consistindo a interpretação da lei no estabelecimento do sentido atribuível a
determinado enunciado linguístico, pode começar por dizer-se, em face da
estrutura de formulação empregue, que o texto legal em presença (art. 4º do
diploma mencionado) consente a ilação segundo a qual aí se socorreu o legislador
de um conceito funcionalizado de cargo político, ou seja, de um conceito que, na
economia do diploma em que se insere, surge pré-ordenado à delimitação do
conjunto dos sujeitos vinculados pelo dever de apresentação da declaração de
património e rendimentos a que se refere o art. 1º do diploma.
Subordinado que assim se encontra à definição do âmbito subjectivo de aplicação
da lei, o conceito de cargo político ter-se-á, pois, revelado ao legislador com
suficiente plasticidade para, numa modelação especificamente dirigida à
delimitação do universo dos sujeitos vinculados pelo regime do controlo público
da riqueza em função do cargo titulado, transcender a acepção substancial do
termo e, para esse mesmo preciso e limitado efeito, compreender o conteúdo,
ainda que em tal sentido ampliativo, resultante da densificação das categorias
que integram o elenco previsto no art. 4º.
Independentemente da qualificação que mereça a natureza das funções
concretamente exercidas pelo Requerentes, a ideia que assim se pretende colocar
em evidência é a de que, no plano da actividade subsuntiva, o resultado
interpretativo possível não se achará condicionado pela prévia e forçosa
assunção de um conceito de cargo político subordinado à natureza da função
correspondente, designadamente ao ponto de, no que aos membros dos órgãos
constitucionais respeita, conduzir à exclusão, em primeiro plano e com
precedência sobre a própria definição positiva da categoria, dos membros de
órgãos que porventura não exerçam qualquer função política no sentido “estrito”
e “corrente” do termo.
A este entendimento conduz, de resto, o postulado hermenêutico da coerência
intrínseca do próprio enunciado interpretando, por força do qual não deixará o
intérprete de reconhecer no texto legal convocado a expressão de um pensamento
unitário.
Nesta perspectiva, o art. 4º da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, constituirá, na
totalidade dos seus números e alíneas, uma unidade de sentido, funcionando esta
como um subsídio interpretativo indeclinável quando se trate de estabelecer o
significado e alcance dos vários preceitos que a integram.
Daí que, em matéria de superação da polissemia que ao enunciado legal aplicável
vem imputada por via da confrontação dos conceitos de cargo político e membro de
órgão constitucional, não possa deixar de se fazer notar, como bem faz o
Ministério Público, que o elenco dos cargos políticos assim qualificados para os
efeitos previstos na lei, integra, eo nomine, os “membros do Tribunal
Constitucional”, os quais, por força do estatuído na alínea g) do n.º 1 do
artigo 4º, se encontram assim expressamente vinculados pelo dever de
apresentação da declaração de património e rendimentos prevista no art. 1º.
Ora, sendo incontestável que as funções exercidas pelos membros do Tribunal
Constitucional são, não políticas, mas jurisdicionais, parece que a consonância
do segmento normativo interpretando com a racionalidade do conjunto em que se
insere apontará necessariamente para o reconhecimento de um conceito impróprio
de cargos políticos, compreendendo este, para o específico e particular efeito
de definição dos sujeitos abrangidos pelo regime jurídico do controlo público da
riqueza em razão do cargo, entidades que exercem funções de natureza
substancialmente diversa.
Isto posto, pode afirmar-se agora que, se a densificação da cláusula integradora
do âmbito subjectivo de aplicação da Lei colocada pela primeira parte da
previsão da aliena l) do n.º 2 do art. 4º não se encontra subordinada, quanto ao
seu alcance possível, a um conceito de cargo político substantivamente
coincidente com o exercício das funções que, em sentido estrito, juridicamente o
são, não excluirá a obrigação questionada pelos Requerentes a circunstância de
serem membros do Conselho Superior de Defesa Nacional por inerência dos seus
cargos de Chefes de Estado-Maior e de estes, enquanto de comando militar, se
subordinarem, na perspectiva que vem defendida, a um princípio de isenção
política.
Do mesmo modo, também não constituirá óbice à inclusão de outras entidades no
círculo dos destinatários da obrigação de apresentação da declaração de
património e rendimentos a circunstância de igualmente sobre elas impender um
dever de isenção política – é o que sucede com os membros do Tribunal
Constitucional que, não obstante sujeitos a este dever, se encontram, conforme
referido já, subordinados àquela obrigação por força da tipificação constante
da alínea g) do n.º 1 do art. 4º.
Embora vinculados por um dever de isenção política, ambos os referidos cargos
são considerados políticos para o específico e lateral efeito de aplicação do
regime do controlo público da riqueza, inserindo-se tal classificação – como bem
nota o Ministério Público junto deste Tribunal – no âmbito de uma opção que,
justamente por não interferir com as «condições substanciais de exercício dos
referidos cargos», se inscreve pacificamente na margem de discricionariedade
cometida ao legislador, sendo, também por essa razão, constitucionalmente
insindicável.
Vejamos mais de perto.
Sob a epígrafe “Estatuto dos titulares de cargos políticos”, dispõe o 117.º da
Constituição:
«1. Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente
pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções.
2. A lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos
titulares de cargos políticos, as consequências do respectivo incumprimento, bem
como sobre os respectivos direitos, regalias e imunidades.
3. A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos
políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem
incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato.»
No âmbito da determinação do conteúdo semântico do texto constitucional em
presença – é útil recordá-lo aqui – diferentes aproximações ao conceito de
«cargos políticos» vêm sendo propostas pela doutrina.
Assim, havendo quem sustente o entendimento segundo o qual o conceito de «cargos
políticos» se caracteriza «não tanto pelo exercício da função política ou
governativa do Estado (contraposto à função jurisdicional) quanto pelo
significado político da designação dos seus titulares» (Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2006, tomo II, pg.
319), igualmente há quem considere que «a noção que melhor parece corresponder à
razão de ser deste preceito constitucional é aquela que considera cargos
políticos todos aqueles aos quais estão constitucionalmente confiadas funções
políticas (sobretudo as de direcção política)» (J.J. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pgs. 541-542).
Até com apoio nas incoincidentes propostas de mediação semântica que
vimos de sintetizar, pode dizer-se que, também do ponto de vista da
hermenêutica jurídico-cons titucional, o conceito de cargos políticos se
inscreve na categoria dos conceitos vagos ou indeterminados, ou seja, daqueles
que, por não apresentarem um conteúdo preciso e unívoco, nem uma extensão
pré-determinada, comportam uma certa multivalência funcional, admitindo por
isso, ainda que dentro de certos limites, intelecções e modelações
diferenciáveis.
Tais limites são, desde logo, os limites colocados pelas próprias zonas de
intensidade semântica que integram a estrutura do conceito.
Com efeito, conforme assinalado na doutrina, todo o conceito indeterminado, por
maior que seja a vaguidade que manifeste, é integrado por um núcleo de
significado seguro em cujo âmbito não podem deixar de caber determinados
elementos ou realidades; a par desta zona de certeza positiva, existe uma outra,
de certeza negativa, constituída por situações que se encontram claramente
excluídas da extensão máxima possível do conceito (neste sentido, vide, por
todos, Germana de Oliveira Moraes, Controle Jurisdicional da Administração
Pública, Dialética, São Paulo, 1999, pg. 58).
Entre uma e outra – cremos poder afirmá-lo –, interpor-se-á por vezes uma certa
zona de neutralidade ou indiferenciação que, em se tratando de conceito
indeterminado inscrito no texto constitucional, consente alguma margem de
intervenção conformadora por parte do legislador ordinário, margem essa que será
particularmente ampla nos casos em que diminuto se apresentar o conteúdo de
informação do conceito (a propósito do espaço de conformação para os órgãos
concretizadores relativamente aos conceitos vazios, vide J.J. Gomes Canotilho,
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 2001, pg.
437).
A modelação concretizadora a que assim houver lugar tenderá, por seu turno, a
legitimar-se constitucionalmente se, dispondo de suficiente base racional, não
for de considerar, em função das finalidades concretamente prosseguidas,
irrazoável, excessiva ou arbitrária.
Ora, a modelação ampliativa do conceito de «cargos políticos» constante do art.
117º da Constituição para o específico efeito de delimitação do conjunto dos
sujeitos vinculados pelo regime do controlo público da riqueza em função do
cargo corresponde, justamente, ao efeito de uma intervenção concretizadora
naquela apontada zona de neutralidade conceptual e o resultado extensivo a que,
por efeito da integração das categorias que formam o elenco previsto no art. 4º,
pudesse conduzir na situação sub judice não seria de qualificar, no confronto
com a teleologia do diploma em presença, de excessivo, irrazoável ou arbitrário.
Serve tudo isto para dizer que, ainda que as funções exercidas pelos
Requerentes, enquanto membros do Conselho Superior de Defesa Nacional, não
fossem de considerar políticas na acepção correspondente à zona de certeza
positiva do conceito, o certo é que tal circunstância não excluiria a aplicação
do diploma questionado, uma vez que, conforme se vem afirmando, o conceito de
cargo político integrador do âmbito subjectivo de aplicação do regime de
controle público da riqueza em razão do cargo é, por legítima opção legislativa,
um conceito ampliativo relativamente à titularidade das funções que, em sentido
estrito, substancialmente o são e, no caso sob apreciação, o resultado
interpretativo que assim fosse alcançado não conduziria, também por esta via, a
solução jurídica excluída pela teleologia do diploma.
III. Decisão.
Em face do que precede, o Tribunal Constitucional decide que o Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas, e os Chefes dos Estados Maiores dos
três ramos das Forças Armadas, enquanto membros do Conselho Superior de Defesa
Nacional, se acham adstritos ao dever de apresentação da declaração de
património e rendimentos, previsto na Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com a
redacção da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto.
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração)
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido, conforme
declaração
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanhei a decisão. Quanto à fundamentação, entendo que, no caso, eram
dispensáveis as considerações respeitantes ao conceito ampliativo de “cargo
político” utilizado no artº 4º da Lei nº 4/83, não coincidente com “ a acepção
substancial do termo” e não “subordinado à natureza da formação correspondente”.
Isto porque julgo não ser contestável que o Conselho Superior de Defesa Nacional
desempenha, ainda que com competência meramente consultiva, uma primordial
função política: a de definição da política de defesa nacional (artº 274º, nº 2,
da CRP).
Enquanto membros desse órgão constitucional, e nessa estrita qualidade, os
Senhores Chefes dos Estados–Maiores estão obrigados à declaração de património e
rendimentos.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, pelas razões que sumariamente passo a expor:
O legislador, quando quis identificar de forma expressa as funções cujo
exercício implicaria a submissão do seu titular ao controlo instituído pela Lei
n.º 4/83 de 2 de Abril, na actual versão da Lei n.º 25/95 de 18 de Agosto, optou
claramente por não incluir os Chefes militares no elenco desses 'cargos
políticos' (não há, no artigo 4º da Lei n.º 25/95 de 18 de Agosto, qualquer
referência a cargos militares).
É certo que a alínea l) do n.º 1 do apontado artigo 4º acrescenta genericamente
que 'os membros dos órgãos constitucionais' se devem considerar, para o efeito,
titulares de 'cargos políticos', e que, por inerência imposta pela Lei das
Forças Armadas, os Chefes de Estado Maior integram o Conselho Superior de Defesa
Nacional, que é um órgão especificamente previsto na Constituição.
Todavia, não se descortinando fundamento bastante para que os cidadãos que detêm
os mais elevados cargos da hierarquia militar se achem obrigados à apresentação
da declaração de rendimentos e património não pelas funções próprias dos cargos
exercidos a título principal, mas por integrarem, por inerência, um órgão de
consulta do Presidente da República, entendo, com ressalva do muito respeito que
me merece a opinião maioritária do Tribunal, que, ao referir-se aos 'membros dos
órgãos constitucionais', a alínea l) do n.º 1 do já mencionado artigo 4º visa
unicamente abranger as entidades que a Constituição expressamente designa como
tal, o que – ao contrário do que se passa, por exemplo, quanto ao Conselho de
Estado, cfr. artigo 142º da Constituição – não acontece no caso em presença,
pois atribuiu à lei ordinária a tarefa de determinar a composição deste órgão –
artigo 274º da Constituição.
Entendo, por isso, que o controlo público da riqueza dos titulares dos cargos
políticos – instituído pela Lei n.º 4/83 de 2 de Abril, na actual versão da Lei
n.º 25/95 de 18 de Agosto – não abrange os Chefes militares.
Carlos Pamplona de Oliveira