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Processo n.º 643/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1ª Secção, do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
O A., SA veio requerer a declaração de insolvência de B. e de C..
O Exmo. Juiz dos juízos cíveis da comarca de Cascais viria a recusar a aplicação
do disposto no artigo 14.° do Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, por
inconstitucional e declarou o mencionado tribunal incompetente, em razão da
matéria, sendo competente o Tribunal de Comércio de Lisboa e, em consequência
absolveu os Réus da instância nos termos do artigo 105.º, n.° 1 do Código de
Processo Civil.
Fundou a sua decisão na argumentação que se transcreve:
“Importa, pois, apreciar da competência deste Tribunal para conhecer destes
autos e, por conseguinte, da constitucionalidade da norma contida no artigo 14º
do Decreto-Lei nº 8/2007, de 17 de Janeiro.
Em conformidade com o artigo 11º nº 1 da Lei 39/2003 de 22 de Agosto (que
autorizou o Governo a legislar sobre a insolvência de pessoas singulares e
colectivas), o artigo 8º do DL nº 53/2004 de 18 de Março, veio introduzir uma
alteração na competência dos tribunais de comércio, os quais apenas passaram a
preparar e julgar o processo de insolvência se o devedor fosse uma sociedade
comercial ou a massa insolvente integrasse uma empresa – artigo 89º nº 1, alínea
a) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais.
Assim, com a entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas (CIRE), os juízos cíveis ou de competência genérica sedeados na área de
jurisdição dos tribunais de comércio, passaram a ter competência para preparar e
julgar os processos de insolvência das entidades que não sejam sociedades
comerciais ou em que a massa insolvente não integre uma empresa – artigo 5º do
CIRE.
Contudo, com a entrada em vigor (em 1 de Julho de 2006) do art. 29° do DL n°
76-A/2006, de 29 de Março, a norma de competência dos tribunais de comércio foi
objecto de nova alteração, estabelecendo-se apenas que estes preparam e julgam
os processos de insolvência (art. 89° n° 1 al. a) da Lei 3/99 de 13/01, na
redacção dada pelo diploma referido).
Logo, com a entrada em vigor desta alteração, nos processos de insolvência que
deram entrada em juízo a partir de 1 de Julho de 2006, os tribunais de
competência especializada cível ou de competência genérica sedeados na área de
jurisdição dos tribunais do comércio deixaram de ter competência para preparar e
julgar quaisquer processos de Insolvência, nomeadamente os processos de
insolvência de pessoa singular.
O art. 14° do DL n° 8/2007 de 17 de Janeiro, veio alterar, de novo, o art. 89°
n° 1, al a) da Lei 3/99 de 13 de Janeiro, estabelecendo que compete aos
tribunais de comércio preparar e julgar o processo de insolvência se o devedor
for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa,
retomando-se a fórmula anterior, o que remeteu o conhecimento da insolvência das
pessoas singulares para os tribunais de competência especializada cível ou de
competência genérica da área de jurisdição dos tribunais do comércio.
O diploma em análise (DL n° 8/2007 de 17/01) foi elaborado no uso da autorização
legislativa concedido pela lei 22/2006 do 23 de Junho, que autoriza o Governo a
legislar sobre a redução do capital social do sociedades comerciais, eliminando
a intervenção judicial obrigatória, enquanto medida integrada nas iniciativas de
simplificação e eliminação de actos e procedimentos notariais e registrais, para
fomentar o desenvolvimento económico e o investimento em Portugal
O art. 10 n° 2 al. c) da Lei 22/2006 estabelece que um dos sentidos e extensão
da autorização legislativa concedida consiste na determinação do tribunal
competente para a impugnação judicial da posição dos sócios ou credores à
redução do capital social.
Logo, o sentido e a extensão da autorização legislativa não configura o mesmo
objecto determinado na alteração legislativa efectuada pelo art. 14° do DL n°
8/2007 de 17 de Janeiro, pelo que se suscitam questões de natureza
constitucional
Ora dispõe o artigo 165° n° 1 al. p), da Constituição da República Portuguesa,
que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao
Governo, legislar sobre organização e competência dos Tribunais.
A repartição da competência dos Tribunais na ordem interna, no âmbito da qual se
insere a competência dos Tribunais, em razão da matéria, insere-se na matéria de
reserva relativa da Assembleia da República.
Nesta conformidade, entende-se que o artigo 14°, do Decreto-Lei n° 8/2007 de 17
de Janeiro, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto
no artigo 165º nº 1 al. p), da Constituição da República Portuguesa – artigo
277° do mesmo diploma legal (...).”
O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto daquela comarca, vem interpor
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.°,
n.ºs 1 alínea a) e 3, e 78.°, n.° 4 da Lei do Tribunal Constitucional.
Posteriormente, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal, veio a
juntar alegações, concluindo pela seguinte forma:
“1º
É organicamente inconstitucional a norma constante do artigo 29° do Decreto Lei
n° 76-A/06, na parte em que conferiu nova redacção à alínea e) do n° 1 do artigo
89° da Lei nº 3/99 de 13/01, conforme este Tribunal Constitucional vem
reiteradamente julgando.
2º
Não é inconstitucional a versão do tal preceito legal, decorrente do artigo 14°
do Decreto-Lei n° 8/07, de 17/01, já que a nova redacção da citada alínea se
limita, sem qualquer carácter inovatório a ‘repristinar’, nos seus precisos
termos, a versão normativa que já decorria do Decreto Lei nº 53/04, sem inovar,
consequentemente, na definição do âmbito da competência dos tribunais do
comércio, em matéria de insolvência.
3º
Termos em que deverá proceder o presente recurso quanto à questão de
constitucionalidade suscitada quanto à versão normativa, decorrente do referido
artigo 14° do Decreto-Lei n° 8/2007.”
Não foram produzidas contra-alegações.
Decidindo.
II – Fundamentação
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida pelo Tribunal Judicial de Cascais, em processo de insolvência
de pessoa singular, que julgou organicamente inconstitucional a norma constante
do artigo 89.°, n.° 1, alínea a) da Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais, na redacção resultante do artigo 14.° do Decreto- Lei n.°
8/2007, de 17 de Janeiro.
Relativamente à versão ou dimensão normativa decorrente do Decreto-Lei n.°
76-A/2006, a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem reiteradamente
entendendo que o regime normativo introduzido em 2006 padece de evidente
inconstitucionalidade orgânica (cf., entre outros, os acórdãos n.ºs 690/06,
publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de 2007, e 692/06,
43/07 e 131/07, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Decidiu-se, efectivamente no primeiro dos arestos mencionados que:
“Como resulta evidente, a alteração de redacção introduzida na alínea a) do nº 1
do art. 89° da Lei n° 3/89 pelo Decreto-Lei n° 76-A/2006 consequenciou uma
‘inovação’ na competência material dos tribunais de comércio relativamente à que
detinham antes de se operar a vigência deste último diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva relativa de competência da
Assembleia da República [nos termos da alínea p) do nº 1 do artigo 165° da
Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente desde a Lei Constitucional
n° 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma em causa] a edição de
legislação sobre a competência material dos tribunais, onde se inclui ‘para além
da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a
daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais — a
distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos
diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou
específica”’ (cfr, verbi gratia, os Acórdãos números 36/87, 356/89, 72/90,
271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados, respectivamente, no Diário da
República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de
1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de Novembro de 1992, 8 de Junho de
1992, 22 de Junho do 1995 e 22 de Maio de 1997). Ou, como se referiu no Acórdão
n° 476/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), ‘incluí-se na reserva
parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione materiae – ou
seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais
dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam
relações de supra-ordenação e de subordinação’.
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei n° 76-A/2006 veio invocar o uso da
autorização legislativa concedido pelo art. 95° da Lei n° 60-A/2005, claramente
que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de enfrentar a questão de
saber se, ponderando o que se prescreve no n° 2 do artigo 165° da Lei
Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para 2006 (acima
transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para habilitar o Governo
a emitir a norma ínsita no art. 29° do mencionado Decreto-Lei n° 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que, como sabido é,
para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da
República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a concretização do
‘objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer a condensação
dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo decreto-lei’) da
autorização legislativa constante do aludido art. 95º e enunciados no seu n° 2,
não podem comportar um entendimento que conduza a considerar que nela foi
delineado, por entre o mais, um programa legislativo que implicasse a atribuição
de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o caso, afectando-a a
determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de um programa
legislativo que consubstanciasse uma real ‘desjudicialização’ do regime de
dissolução e liquidação das entidades comerciais – a operar por via
administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do n° 2 do citado artigo, torna-se patente que a
autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações em
que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar
não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de
competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o ‘estabelecimento das
situações’ significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos
em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não
a definição do órgão judicial que vai aferir deles.
Neste contexto, o normativo em apreço, ao ser editado pelo Governo a descoberto
de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula, enferma do
vício de inconstitucionalidade orgânica.”
É esta jurisprudência que seria aplicável à situação em apreço caso não tivesse
ocorrido a alteração legislativa com a natureza não inovatória relativa à
competência dos tribunais de comércio, decorrente do Decreto-Lei n.º 8/2007, de
14 de Janeiro.
Com efeito, a mencionada alteração legislativa limitou-se a voltar a dar ao
preceito em causa a redacção que lhe havia sido conferida pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de Março (artigo 8.°), no âmbito da autorização parlamentar
devida constante do artigo 11.º da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, firme e reiteradamente, no sentido
de que, ainda que se comprove a ausência da autorização legislativa parlamentar,
não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica sempre que o Governo se
limite a, no exercício da função legislativa que lhe compete, proceder à
reprodução de normatividade já existente. Tal entendimento remonta à Comissão
Constitucional que em vários pareceres se pronunciou no sentido da não
verificação de inconstitucionalidade orgânica sempre que as normas em análise
não ostentavam carácter inovatório.
Assim, escreveu-se no Parecer n.º 2/79 (publicado nos Pareceres da Comissão
Constitucional, 7.º volume, pp.192-193), a propósito da apreciação de norma do
Estatuto da Administração-Geral do Açúcar e do Álcool, E.P., que estabelecia a
reserva do sector público no mercado de produção, importação, exportação e
distribuição de álcool etílico bem como da importação e compra no mercado
interno das matérias primas destinadas à sua produção, o seguinte:
“(…) o Decreto-Lei n.º 33/78, na parte em discussão nada inovou, limitando-se a
manter o que já vinha de trás. (…) não se verifica, pois, a existência de uma
vontade nova do legislador; o Governo limitou-se a reproduzi-la nos estatutos
actuais sem que tenha procedido a qualquer criação normativa.”
Também no Parecer n.º 17/82 (publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional,
10.º volume, p. 256), em análise sobre diploma destinado a regulamentar o artigo
XXI da Concordata assinada entre o Estado Português e a Santa Sé, se referiu
que:
“(…) desde que o Governo não crie uma outra normatividade e se limite a repetir
no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do órgão de
soberania competente, é de entender que, em tais casos, não há intromissão no
sector de reserva legislativa do Parlamento. É que esta reserva é de ordem
substancial; não de ordem formal. O Governo, ainda em zona de reserva, é livre,
e desde que não toque no fundo, para dar novas vestes à legislação vigente e
organicamente não viciada, coligindo-a, sistematizando-a ou simplesmente
reproduzindo-a.”
O Tribunal Constitucional também já se pronunciou diversas vezes no sentido de
o carácter não inovatório de normas emanadas pelo Governo relevar para efeitos
de não se considerar procedente a verificação de inconstitucionalidade orgânica
assente na respectiva ausência de autorização legislativa por parte da
Assembleia da República.
Assim, escreveu-se no Acórdão n.º 1/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 2.º volume, pp. 173 e seguintes) que
“ (…) para hipóteses deste teor de pura reprodução de um normativo organicamente
inconstitucional tem sido entendido que não há fundamento bastante para que
nelas se detecte uma inconstitucionalidade orgânica.”
Também no Acórdão n.º 423/87, publicado no Diário da República, I Série, de 26
de Novembro de 1987, se pode ler que
“(…) o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias
inscritas no âmbito da competência parlamentar não determina, por si só e
automaticamente, a verificação de inconstitucionalidade orgânica. Com efeito,
desde que tais normas não criem um ordenamento diverso do já existente,
limitando-se a retomar e reproduzir substancialmente o que já constava de textos
legais anteriores emanado do órgão de soberania competente, é de entender, em
tais circunstâncias, não existir invasão daquela esfera de competência
reservada.”
De igual modo, mais recentemente, no Acórdão n.º 137/2003 (publicado no Diário
da República, II Série, de 24 de Maio de 2003) adiantou-se que
“(…) tal como tem sido entendido por este Tribunal, o eventual juízo de
inconstitucionalidade tem por consequência a repristinação das normas
anteriores, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 282.º da Constituição – o
qual, embora referido aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não
deixa de ser aplicável aos processos de fiscalização concreta da
constitucionalidade, como no caso presente (cf., entre outros, Acórdão n.º
103/87, cit., e Acórdão n.º 490/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º
vol., pp. 197 e segs.). Ora, o que se verifica é que a norma em causa não é
inovatória, antes se limita a reproduzir o que a norma anterior – ou seja, a
norma a repristinar – já dispunha na matéria.”
A norma objecto do presente recurso não apresenta carácter inovatório,
reproduzindo o conteúdo conferido ao artigo 89.º da Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais pelo citado Decreto-Lei n.º 53/2004, na sequência da autorização
parlamentar constante da também já citada Lei n.º 39/2003. Assim, revogando a
alteração consumada pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, a qual foi
objecto de diversos juízos de inconstitucionalidade orgânica, manteve-se o
regime anteriormente em vigor.
Destarte, perante tal carácter manifestamente não inovatório e, considerando,
como bem refere o Exmo. Procurador Geral Ajunto na sua alegação, que tal versão
normativa pode ter-se por “repristinada” face ao reiterado julgamento de
inconstitucionalidade da redacção resultante do Decreto-Lei n.º 76-A/2006,
torna-se irrelevante a “ausência de credencial parlamentar” que fundasse o
inciso constante do artigo 14.º do citado Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de
Janeiro.
Procede, pois, o recurso.
III – Decisão
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, acordam, no Tribunal
Constitucional, em conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida
ser reformada de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade formulado.
Não são devidas custas.
Lisboa, 26 de Setembro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos