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Processo nº 854/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÒRIO
1. Nos presentes autos A. veio, nos termos do artigo 103º-D da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, impugnar a
deliberação da Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista que
indeferiu a impugnação da deliberação da Comissão Política Nacional do mesmo
Partido, referente às listas de deputados às eleições de 20 de Fevereiro de
2005, pedindo que, na sequência da procedência da presente acção, fosse:
«1°-Declarada a ilegalidade da decisão da Comissão Política Nacional que
ratificou as listas para deputados às eleições de 20 de Fevereiro de 2005;
2°-Condenado o Partido Socialista, nos termos do art. 40° da Lei n°2/03,
ordenando-lhe que, no prazo de 30 dias, sejam alterados os seus Estatutos, de
modo a compaginar-se com a legalidade constitucional, mormente o estatuído no n°
1 do art. 92°, elaborando-se uma redacção clarificadora, tendo em conta o
direito de todos os militantes do PS, com capacidade electiva, a apresentar
candidaturas a deputados no âmbito das secções de residência e, simultaneamente,
poderem escolher os membros do partido ou independentes, a serem sufragados pela
população, como deputados do país, certo sendo que para o efeito já decorreu o
prazo de dois anos estipulado naquele diploma, com vista a proceder às
alterações dos Estatutos acima referidos.»
2. A Relatora proferiu o seguinte despacho:
«Ora, este Tribunal não pode conhecer do objecto da presente acção, devido à
total inutilidade da mesma quanto ao primeiro pedido e à sua incompetência para
apreciar o segundo pedido, proferiu um despacho em que indeferiu a referida
acção.
Com efeito, no que se refere ao primeiro pedido, fosse qual fosse a decisão
deste Tribunal, neste momento, ela seria totalmente inútil, uma vez que a lista
de deputados do Partido Socialista às eleições de 2005 já nunca poderia ser
alterada.
No que diz respeito ao segundo pedido, ele extravasa completamente dos poderes
de cognição do Tribunal Constitucional, bastando ler o artigo 103º-D da sua Lei
Orgânica para se ver que este não lhe confere qualquer competência para ordenar
a alteração dos Estatutos dos Partidos Políticos.
Nestes termos, indefere-se liminarmente a presente acção.»
3. Inconformado com esta decisão, vem o impugnante reclamar para a conferência
com os seguintes fundamentos:
«II
QUESTÃO PRÉVIA
a)-Sem embargo de melhor entendimento, estamos em crer que às acções de
impugnação observadas no art. 103° e seguintes da LOTC, e referidas na al.d) do
art.9° da mesma Lei, sejam aplicáveis as normas do Código do Processo Civil,
b)-É que, enquanto para os processos de fiscalização concreta avistados no art.
69°, a lei diz expressamente que á tramitação dos recurso para o Tribunal
Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código do Processo
Civil, em especial as respeitantes aos recursos de apelação.
c)-Já a formulação do art. 103° do Subcapítulo III da mesma Lei que trata dos
processos relativos a partidos políticos e coligações, é omissa quanto a essa
matéria, pelo que, nos termos do regime geral, deverá, a nosso ver, ao caso dos
autos ser aplicável o diploma acima referido, no pressuposto de ser o regime que
melhor acautela os valores do direito, com vista a uma melhor decisão da questão
controvertida.
(…)
IV
A QUESTÃO DE DIREITO
3-O disposto no n°5 do art. 103°-C da LTC, preconiza que:
“Distribuído o processo no Tribunal Constitucional, a relatar ordenará a citação
do partido politico para responder, no prazo de cinco dias, com advertência de
que a resposta deve ser acompanhada da acta da eleição, dos requerimentos
apresentados nas instâncias internas pelo impugnante, das deliberações dos
competentes órgãos e de outros documentos respeitantes à impugnação.”
4-Pois bem, como acaba de ver-se, ao contrário da lei, a Exrna. Senhora Relatora
limitou-se a uma leitura sumária do peticionado e, em consequência, resolveu ab
initio indeferi-lo liminarmente, omitindo qualquer fundamentação de facto e de
direito que sustente a decisão proferida.
5-Por isso, salvo melhor opinião, não vale dizer-se apenas nos autos que, “fosse
qual fosse a decisão deste Tribunal, neste momento, ela seria totalmente inútil,
uma vez que a lista de deputados do Partido Socialista às eleições de 2005 já
nunca poderia ser alterada” e que basta ler-se o artigo 103°-D da Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional “para se ver que este não lhe confere competência
para ordenar a alteração dos Estatutos dos Partidos Político”.
6-Para o Impugnante a ciência do direito é necessariamente mais do que a vontade
instrumental do intérprete que, em cada momento, detém casuisticamente o poder
de decidir.
Senão vejamos:
7-Nos termos do nº 1 do art. 2° do CPC a “protecção jurídica através dos
tribunais implica o direito de obter, em tempo razoável, uma decisão judicial
que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em
juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.”
8-Por sua vez, de harmonia com as disposições do n°1 do art.264° do mesmo
diploma, é dito que:
“Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que
baseiam as excepções”, sendo que, face ao disposto no art. 664°, o “juiz não
está Sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e
aplicação das regras do direito, mas só pode servir-se dos factos articulados
pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.264°”. Sabendo-se, por seu turno,
que a “sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diferente
do que se pedir” e se “não houver elementos para fixar o objecto ou a
quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de
condenação imediata na parte que já seja liquidada.” (Art. 661°).
9-Por outro lado, o art. 662°, sobre a epigrafe, “Julgamento no caso de
inexigibilidade da obrigação”, refere-nos o seguinte:
“O facto de não ser exigível, no momento em que a acção foi proposta, não impede
que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que
seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio.”
10-Tudo isto serve para dizer que em nosso entendimento, nos autos sub judice, o
Tribunal não deveria ter decidido nos termos observados na prolação reclamada,
porquanto se relativamente ao primeiro pedido, é certo que uma sentença não iria
alterar a composição da lista dos deputados, dado que isso, no domínio dos
factos reais, seria hoje impossível. Todavia, diga-se em abono da verdade que
essa decisão jamais seria um acto inútil.
1°- Porque sindicar a legalidade da vida dos partidos políticos é uma
tarefa de relevância primordial para a transparência e saúde da vida democrática
portuguesa, a qual está cometida ao Tribunal Constitucional pela Constituição e
pela lei, sendo certo que os mesmos se alimentam do orçamento do Estado, que o
mesmo é dizer do dinheiro dos contribuintes e por isso lhe estão adstritas
funções especificas, cujo cumprimento carece de ser fiscalizado. Motivo pelo
qual, nos termos da lei acima observada, o Tribunal não pode recusar pronúncia à
questão que lhe é requerida
2°- Sendo o Tribunal Constitucional um órgão jurisdicional de referência
tutelar, isto significa que se o mesmo declarar-se a ilegalidade daquela lista
de deputados, logo nas próximas eleições legislativas ou europeias, o próprio
Secretário Geral, ordenaria que os Estatutos fossem alterados de acordo com a
Constituição, por forma a que o partido trilhasse o caminho da legalidade. Ou
seja, a declaração do Tribunal teria, por certo, um efeito pedagógico
Vicissitude que não será conseguida se, ao invés, o mesmo recusar a aplicar a
lei, consentindo manter o statu quo.
13-De resto, a propósito da redacção do nº 5 do art. 51° da CRP, escrevem Jorge
Miranda e Rui Medeiros nº 1 volume da sua Constituição anotada, paginas 492 da
Coimbra Editora, dizendo que:
“O nº 5 é o corolário necessário dos principias fundamentais da Constituição. Se
o método democrático se impõe mesmo em associações de Direito privado, por
maioria de razão há-se impor-se às associações que interferem no funcionamento
do Estado.
Daí urna consequência necessária: a susceptibilidade de apreciação da
conformidade dos estatutos dos partidos com este preceito por parte dos
tribunais em geral e do Tribunal Constitucional.
É isso mesmo que foi requerido a este Tribunal Constitucional.
12-No que tange à segunda questão, não vai sem dizer-se que embora o Tribunal
não seja depositário de poderes para condenar os partidos a proceder á alteração
dos seus Estatutos, o certo é que possui competência para declarar a ilegalidade
dos mesmos, porque é isso que importa a uma boa solução da causa, visto caber ao
Tribunal subsumir ao direito os factos alegados pelas partes, sendo isso mesmo
que nos dizem os termos da al. d) do art.9° da LOTC.
13-Ao referir que compete ao Tribunal Constitucional “Julgar as acções de
impugnação de eleições e de deliberações de órgãos de partidos políticos que,
nos termos da lei, sejam recorríveis”, razão pela qual não pode o Tribunal ab
initio indeferir liminarmente o pedido regularmente formulado, de acordo com o
estabelecido no art°. 467° do CPC, tanto mais que a figura jurídica do
“indeferimento liminar” faz hoje parte do bronze da história do direito, no que
respeita ao peticionado inicial em processo civil, uma vez que o inciso do
art.474° do CPC foi revogado pelo D.L.n°392°-A!95/12/12, sendo que a petição
inicial nos dias de hoje só pode ser recusado pela secretaria, face ao
estipulado na nova redacção do preceito.
V
EM CONCLUSÃO
Pelo exposto, e no mais que doutamente seja suprido pelos Exmos. Venerandos
Juízes Conselheiros em conferência, deve revogar-se o douto despacho reclamado
e, em consequência, admitir-se o peticionado e:
1º-Declarar a ilegalidade da decisão da Comissão Politica Nacional que ratificou
as listas para deputados às eleições de 20 de Fevereiro de 2005;
2°-Julgar a ilegalidade do estatuído no n°1 do art.92°, dos Estatutos do Partido
Socialista, declarando-se que o actual texto não acautela o direito de todos os
seus militantes com capacidade electiva, de poderem apresentar candidaturas a
deputados e simultaneamente, não lhes permite escolher os membros do partido ou
independentes, a serem sufragados pela população, como deputados à Assembleia da
República e ao Parlamento Europeu.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Questão prévia: a admissibilidade do despacho de indeferimento
4. Em primeiro lugar, cumpre apreciar a questão prévia suscitada pelo reclamante
de que «este Tribunal não pode “ab initio” indeferir liminarmente o pedido
regularmente formulado».
É certo que não existe um preceito expresso na Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional que confira ao/à Relator(a) de uma acção
de impugnação de deliberação tomada por órgãos de partidos políticos, ao abrigo
do artigo 103ºD, poderes para proferir despacho de indeferimento liminar, quando
a acção seja manifestamente inadmissível, como é o caso da presente acção.
Mas a verdade é que o/a Relator(a) não pode deixar de ter tais poderes, uma vez
que o processo lhe é concluso, a fim de, segundo o estabelecido no artigo 103ºC
da Lei Orgânica deste Tribunal, ordenar a citação do partido político para
responder. Ora, a conclusão do processo ao/à Relator(a) só faz sentido, se esta
citação não for automática, e se destinar a um controlo prévio da apreciação dos
pressupostos de admissibilidade da acção.
Não há, portanto, aqui paralelismo com as regras gerais do processo civil, as
quais, aliás, só são aplicáveis ao processo constitucional, quando a lei assim o
determinar (o que não é o caso) ou quando não são manifestamente contrárias à
teleologia subjacente ao processo em causa (o que também não é o caso).
Além disso, sempre se dirá que o próprio processo civil admite ainda a figura do
indeferimento liminar, no artigo 234ºA do Código de Processo Civil, a qual,
portanto, não faz parte do “bronze da história do Direito”.
Em suma, é perfeitamente possível proferir despacho de indeferimento liminar num
caso destes, o que, de resto, este Tribunal tem feito em casos análogos.
B) Quanto à declaração de ilegalidade da decisão da Comissão Política
Nacional que ratificou as listas para deputados às eleições de 20 de Fevereiro
de 2005
5. No que diz respeito ao primeiro pedido, o próprio reclamante admite que “(…)
uma sentença [deste Tribunal] não iria alterar a composição da lista dos
deputados, dado que isso, no domínio dos factos reais, seria hoje impossível”.
Ora, se assim é, não se compreende a conclusão seguinte do reclamante de que a
acção não seria inútil, ao que parece por razões pedagógicas. Estas razões, como
é bom de ver, não podem motivar este Tribunal.
O que tem de motivar a decisão é o facto de que decorridos mais de dois anos
sobre a deliberação objecto de impugnação neste processo, a lide em causa é
totalmente inútil, porque fosse qual fosse a conclusão deste Tribunal, os factos
que estão na base do litígio não se poderiam alterar nem da decisão poderia
advir qualquer outra consequência jurídica.
Acrescente-se ainda que nenhum dos preceitos do Código de Processo Civil
invocados na reclamação (artigos 2º; 264º, nº 1; 662º) contradiz o que acaba de
ser afirmado.
Logo, mantém-se o decidido pela relatora no despacho ora reclamado quanto a este
aspecto.
C) Quanto à ilegalidade do estatuído no n° 1 do art. 92° dos Estatutos do
Partido Socialista
6. Relativamente ao segundo pedido, cumpre afirmar que o mesmo sofreu uma
modificação substancial da petição para a reclamação, pois enquanto na petição
da acção de impugnação se pedia “a condenação do Partido Socialista, nos termos
do art. 40° da Lei n°2/03, ordenando-lhe que, no prazo de 30 dias, sejam
alterados os seus Estatutos”, na reclamação pede-se para “julgar a ilegalidade
do estatuído no n°1 do art.92°, dos Estatutos do Partido Socialista,
declarando-se que o actual texto não acautela o direito de todos os seus
militantes com capacidade electiva, de poderem apresentar candidaturas a
deputados e simultaneamente, não lhes permite escolher os membros do partido ou
independentes, a serem sufragados pela população, como deputados à Assembleia da
República e ao Parlamento Europeu.”
O reclamante parece, pois, ter ficado convencido de que o seu primeiro pedido
não cabia nos poderes de cognição deste Tribunal e, por isso, o altera na
reclamação. Fá-lo, porém, tarde demais, uma vez que o objecto da acção é fixado
na petição inicial, não podendo alterar-se posteriormente, na fase da reclamação
da decisão que pôs termo à instância.
Acresce ainda que quem tem legitimidade processual para requerer a apreciação e
declaração da ilegalidade de qualquer norma dos estatutos dos partidos políticos
é o Ministério Público, de acordo com o artigo 16º, nº 3, da Lei Orgânica nº
2/2003, de 22 de Agosto (Lei dos Partidos Políticos), pelo que o reclamante
carece de legitimidade processual para o efeito.
Assim sendo, não pode este Tribunal conhecer do novo pedido apresentado.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação,
confirmando o despacho reclamado de não conhecimento do objecto da acção.
Lisboa, 8 de Outubro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão