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Processo n.º 512/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, em que figura como recorrente o
MINISTÉRIO PÚBLICO e como recorrida A., foi proferida a seguinte Decisão Sumária
(cfr. fls. 65 e seguintes dos autos):
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO e recorrido A.,
o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, ao abrigo da al. a) do nº
1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, da decisão do Tribunal do Comércio de Lisboa (cfr. fls. 48 a 52
dos autos) que recusou a aplicação da norma da al. a) do nº 1 do artigo 89º da
Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção dada pelo artigo 29º do DL nº
76-A/2006 de 29 de Março, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por
violação do artigo 165º, nº 1, al. p) da CRP (cfr. fls. 56 dos autos).
Cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso
já foi apreciada por este Tribunal em diversos acórdãos (nºs 690/06; 692/06;
43/07; 85/07; 88/07; 130/07 e 131/07).
No primeiro deles – o Acórdão nº 690/2006, DR, 2ª Série, nº 22, de 31 de Janeiro
– pode ler-se:
«(…)
2. Por intermédio do art.º 8º do Decreto-Lei nº 53/2004,
de 18 de Março, diploma editado ao abrigo da Lei nº 39/2003, de 22 de Agosto, e
na sequência do que se prescreveu no art.º 11º desta última, foi alterada a
redacção da alínea a) do art.º 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), vindo a ser conferida aos
tribunais de comércio competência para o processo de insolvência se o devedor
for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
Em 30 de Dezembro de 2005 foi editada a Lei nº 60-A/2005
(Lei do Orçamento de Estado para 2006), a qual, no que ora interessa, dispôs no
seu art.º 95º: –
Artigo 95.0
Dissolução e liquidação de entidades comerciais
1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para
que possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através
de um procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo artigo
95.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (cfr. palavras finais do seu
exórdio), foi, em 29 de Março de 2006, publicado o Decreto-Lei nº 76-A/2006, o
qual, no seu art.º 29º, veio a dispor: –
Artigo 29.º
Alteração à Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais
O artigo 89. ° da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.º 101/99,
de 26 de Julho, pelos Decretos-Leis nºs 323/2001, de 17 de Dezembro, e 38/2003,
de 8 de Março, pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de Março, e pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto, passa a ter a
seguinte redacção:
«Artigo 89.º
[...]
1 - Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
b) ……………………………………………………………………………
c) ……………………………………………………………………………
d) …………………………………………………………..……………….
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) …………………………………………………………………………….
g) ……………………………………………………………………………
h) ……………………………………………………………………………
2 – Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a)..……………………………………………………………………………
b) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem
como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos
procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades
comerciais;
c) ……………………………………………………………………….……
3 – …………………………………………………………………………..»
Com a alteração de redacção dada à alínea a) do nº 1 do
art.º 89º da Lei nº 3/99 ficou, pois, cometida aos tribunais de comércio
competência para, na área da respectiva jurisdição, curarem dos processos de
insolvência, «alargando-se», desta sorte, a competência de que, no domínio
daquela Lei, anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006 e
posteriormente à vigência do Decreto-Lei nº 53/2004, e para os processos em
causa, desfrutavam. E isso, justamente, porque, com a referência esses
processos, aquela espécie de tribunais tão só era competente para curar daqueles
em que o devedor fosse uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrasse
uma empresa. O mesmo é dizer que, se em causa se postasse a insolvência de uma
pessoa singular e em que a massa insolvente não fosse considerada como
integrando uma empresa, a competência para a preparação e julgamento do
respectivo processo era cometida ao tribunal de competência genérica [cfr.
alínea a) do nº 1 do art.º 77º da Lei nº 3/99], ainda que de competência
específica, e não a um dado tribunal de competência especializada.
A questão que se coloca reside, consequentemente, em
saber, em primeiro lugar, se dispunha o Governo, desacompanhado de credencial
parlamentar, de competência para editar uma norma tal como a ínsita no art.º 29º
do Decreto-Lei nº 76-A/2006, e, em segundo, caso se confira resposta negativa à
primeira questão, se a autorização concedida pelo art.º 95º da Lei nº 60-A/2005
pode ser considerada como abarcando a devida autorização para uma tal edição.
2.1. Como resulta evidente, a alteração de redacção
introduzida na alínea a) do nº 1 do art.º 89º da Lei nº 3/89 pelo Decreto-Lei nº
76-A/2006 consequenciou uma «inovação» na competência material dos tribunais de
comércio relativamente à que detinham antes de se operar a vigência deste último
diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva
relativa de competência da Assembleia da República [nos termos da alínea p) do
nº 1 do artigo 165º da Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente
desde a Lei Constitucional nº 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma
em causa] a edição de legislação sobre a competência material dos tribunais,
onde se inclui, “para além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos
tribunais judiciais e a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais
administrativos e fiscais – … a distribuição das matérias da competência dos
tribunais judiciais pelos diferentes tribunais de competência genérica e de
competência especializada ou específica” (cfr., verbi gratia, os Acórdãos
números 36/87, 356/89, 72/90, 271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados,
respectivamente, no Diário da República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de
Maio de 1989 e 2 de Abril de 1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de
Novembro de 1992, 8 de Junho de 1992, 22 de Junho de 1995 e 22 de Maio de 1997).
Ou, como se referiu no Acórdão nº 476/98 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), “inclui-se na reserva parlamentar a definição de
toda a competência judiciária ratione materiae – ou seja: a distribuição das
matérias pelas diferentes espécies de tribunais dispostos horizontalmente, no
mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam relações de supra-ordenação e de
subordinação”.
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei nº 76-A/2006
veio invocar o uso da autorização legislativa concedido pelo art.º 95º da Lei nº
60-A/2005, claramente que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de
enfrentar a questão de saber se, ponderando o que se prescreve no nº 2 do artigo
165º da Lei Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para
2006 (acima transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para
habilitar o Governo a emitir a norma ínsita no art.º 29º do mencionado
Decreto-Lei nº 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e
extensão (que, como sabido é, para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui
Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537,
significam a concretização do “objectivo e o critério da disciplina legislativa
a estabelecer a condensação dos princípios ou a orientação fundamental a seguir
pelo decreto-lei”) da autorização legislativa constante do aludido art.º 95º e
enunciados no seu nº 2, não podem comportar um entendimento que conduza a
considerar que nela foi delineado, por entre o mais, um programa legislativo que
implicasse a atribuição de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o
caso, afectando-a a determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a
introdução de um programa legislativo que consubstanciasse uma real
«desjudicialização» do regime de dissolução e liquidação das entidades
comerciais – a operar por via administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de
possibilitação da impugnação das decisões tomadas por essa via, em passo algum
se descortina se surpreende a atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do nº 2 do citado artigo,
torna-se patente que a autorização para o editando diploma governamental
estabelecer as situações em que a dissolução e a liquidação judicial das
entidades comerciais pode ter lugar não pode comportar um sentido de onde se
extraia qual a atribuição de competência a uma dada espécie de tribunal, pois
que o «estabelecimento das situações» significa, inequivocamente, a definição
dos casos e condicionalismos em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas
por via jurisdicional e não a definição do órgão judicial que vai aferir deles.
Neste contexto, o normativo em apreço, ao ser editado
pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria
que regula, enferma do vício de inconstitucionalidade orgânica.
3. Pelo que se deixa dito, o Tribunal decide: –
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na
alínea p) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do art.º 29º
do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio conferir nova
redacção à alínea a) do nº 1 do art.º 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.»
3. Esta jurisprudência foi, como se disse, reiterada nos Acórdãos supra
mencionados, pelo que, sendo inteiramente aplicável ao caso sub judice, e não se
suscitando aqui qualquer questão nova, pode a Relatora proferir decisão sumária,
ao abrigo do Artigo 78º-A, nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional, a qual pode
consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, constantes dos Acórdãos nºs 690/06;
692/06; 43/07; 85/07; 130/07 e 131/07 proferidos por este Tribunal, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do nº 1
do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artigo 29º do Decreto-Lei
nº 76-A, na parte em que veio conferir nova redacção à alínea a) do nº 1 do
artigo 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro;
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO vem
agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da LTC, com
os seguintes fundamentos (cfr. fls. 73 dos autos):
«1º
Por lapso manifesto, a decisão reclamada não se pronunciou sobre a totalidade do
objecto de recurso que – no caso – envolve também, como dimensão normativa
aplicada, o artigo 89º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 3/99, na sua versão
actualmente em vigor, resultante do artigo 14º, do Decreto-Lei n.º 8/2007, de
17/01.
2º
Não existindo ainda jurisprudência sobre a questão da invocada
inconstitucionalidade orgânica deste último diploma legal, afigura-se que –salvo
melhor opinião – os autos deverão prosseguir a sua normal tramitação, com
produção de alegações.»
3. Notificada para responder ao requerimento de reclamação, a recorrida não
procedeu à entrega de qualquer resposta dentro do prazo legalmente fixado.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A decisão recorrida recusou tanto a aplicação da norma contida no artigo 29º
do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, como o próprio artigo 14º do
Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, tendo o recorrente fixado o respectivo
objecto processual em torno das duas referidas disposições normativas (fls. 56).
Conforme notado pelo reclamante, a decisão reclamada limita-se a dar por
reproduzida jurisprudência constante do Tribunal Constitucional sobre a redacção
da alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da LOFTJ introduzida pelo Decreto-Lei n.º
76-A/2006, mas não se pronuncia sobre a redacção da mesma norma introduzida pelo
Decreto. Lei n.º 8/2007.
5. Com efeito, a norma inserta no preceito legal corporizado pelo artigo 14º do
Decreto-Lei n.º 8/2007 corresponde integralmente à redacção da alínea a) do n.º
1 do artigo 89º da LOFTJ vigente até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º
76-A/2006, pelo que aquela intervenção legislativa, por via de decreto-lei, não
se reveste de natureza inovadora. No fundo, o artigo 14º do Decreto-Lei n.º
8/2007 limita-se a repor em vigor o regime aprovado pelo artigo 8º do
Decreto-Lei n.º 53/2004, aprovado ao abrigo da autorização legislativa concedida
pela Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, que dispõe o seguinte:
“Artigo 89º
(…)
1- Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) O processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa
insolvente integrar uma empresa; (…)”.
Daqui decorre que, ainda que esteja em causa um preceito legal novo – “in casu”,
o artigo 14º do Decreto-Lei n.º 8/2007 – a norma revelada por tal preceito
corresponde na íntegra à norma anteriormente autorizada pela Assembleia da
República, através da Lei n.º 39/2003, e vigente anteriormente ao Decreto-Lei
n.º 76-A/2006 – desta feita, o artigo 8º do Decreto-Lei n.º 53/2004. Em suma, só
aparentemente se trata de um preceito novo.
Assim sendo, uma eventual decisão deste Tribunal sobre aquela norma não se
reveste de utilidade processual. Isto porque, ainda que se viesse a julgar
inconstitucional a norma vertida no preceito legal em causa – o artigo 14º do
Decreto-Lei n.º 8/2007 –, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, a
única consequência que daí adviria seria a repristinação de norma integralmente
idêntica, ou seja, a constante do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 53/2004.
Neste mesmo sentido já decidiu a 1ª Secção deste Tribunal, no Acórdão nº 482/07,
de 26 de Setembro de 2007.
6. Ainda que formalmente, o Ministério Público tenha razão quando afirma que “a
decisão reclamada não se pronunciou sobre a totalidade do objecto de recurso”,
não faria agora sentido notificar o recorrente para proferir alegações
relativamente à questão de inconstitucionalidade do artigo 14º do Decreto-Lei nº
8/2007, quando já se chegou à conclusão que se trata de uma questão inútil, que
não teria qualquer efeito sobre a decisão recorrida.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Outubro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão