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Processo n.º 530/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.
A fls. 782 foi proferida neste processo a seguinte decisão sumária:
A. recorre do acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Março de 2007 ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro. Pretende
impugnar a norma que retira do artigo 428º n.º 1 do Código de Processo Penal, e
que o Tribunal recorrido alegadamente aplicara, segundo a qual:
'decidindo o tribunal de 1ª instância de acordo com o princípio da livre
apreciação da prova que perante ele é produzida (nos termos do artigo 127º do
Código de Processo Penal) o tribunal de recurso apenas poderá/deverá apreciar a
matéria de facto que aquele considerou provada, quando o referido tribunal de 1ª
instância tenha violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção,
nomeadamente, quando não existam os dados objectivos que se apontam na sua
fundamentação, quando haja falhas no processo lógico racional utilizado na
apreciação das provas constantes da decisão ou quando não tenha existido
liberdade na formação da convicção, devendo abster-se de fazer uma nova
apreciação dos factos e de toda a prova produzida ou gravada, restringindo-se
aos factos e à apreciação da prova constante da decisão da 1ª instância.'
O citado n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe
'Poderes de cognição' diz apenas o seguinte: 'As relações conhecem de facto e de
direito'. É, assim, patente que o juízo que a Relação de Lisboa formulou sobre a
impugnação da matéria de facto que, em concreto, devia decidir, se fundamentou
em outros preceitos do aludido Código, designadamente na parte relativa ao
julgamento em conferência – pois entendeu haver razões para determinar a
rejeição do recurso interposto pelo recorrente – e na parte relativa à
modificabilidade da decisão recorrida, cujos pressupostos se não verificariam.
Por outro lado, a 'norma' que o recorrente pretende incluir no objecto do
recurso é, na verdade, uma determinação jurídica de natureza decisória,
inevitavelmente ligada a ponderações casuísticas concretas, à qual se tem que
recusar natureza normativa.
E, finalmente, não é inteiramente certo que a Relação de Lisboa, tenha adoptado,
na sua decisão, o entendimento que resulta da enunciação que o recorrente
formula.
Aliás, a falta destes requisitos, essenciais ao conhecimento do recurso, explica
que o recorrente nunca tenha suscitado neste processo qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa – ao contrário do que impõe o n.º 2 do artigo
72º da LTC –, porque verdadeiramente o que pretende contestar neste recurso é a
decisão da Relação que manteve inalterada a matéria de facto dada por assente na
decisão da 1ª instância, e não uma qualquer norma jurídica aplicada na decisão
recorrida, razão pela qual é totalmente inaplicável ao caso a jurisprudência do
Tribunal quanto à suscitação tardia da questão de inconstitucionalidade.
Em suma, não pode conhecer-se do recurso, o que se decide ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78º-A d.
2.
Contra esta decisão reclama A., dizendo:
1. Salvo o devido respeito, que muito é, não pode o recorrente conformar-se com
a decisão sumária proferida ao abrigo do n.º 1, do art. 78.º-A, da LTC, já que o
Tribunal da Relação de Lisboa, no seu douto acórdão, embora tenha feito
referência a outras normas jurídicas, a verdade é que, pelo menos,
implicitamente, refere-se, para decidir, ao n.º 1, do art. 428.º, do CPP e para
lhe dar a interpretação objecto do presente recurso.
2. Aliás, o n.º 1, do art. 428.º, do CPP é a única disposição deste diploma
legal que determina a reapreciação da matéria de facto pela Relação, pelo que ao
não apreciar “ex novo” toda a matéria de facto (e não, apenas, a que a decisão
de 1ª instância acolhera e no sentido que acolhera) o Tribunal da Relação de
Lisboa acabou, por, ainda que implicitamente, violar o art. 428.º, n.º 1, do
CPP, devendo realçar-se que é o próprio acórdão n.º 116/07, de 16/02/2007,
publicado no DR, II Série, n.º 79, de 23/04/2007, que refere que não se toma
necessário que o acórdão recorrido tenha feito menção expressa ao art. 428.º,
n.º 1, do CPP, bastando uma referência implícita.
3. Por outro lado, também ao contrário da douta decisão sumária, ora, reclamada,
deverá entender-se que o art. 428.º, n.º 1, do CPP, é uma determinação jurídica
de natureza normativa, com carácter genérico e obrigatório.
4. Afirma, por outro lado, a douta decisão sumária reclamada, que “...não é
inteiramente certo que a Relação de Lisboa tenha adoptado, na sua decisão, o
entendimento que resulta da enunciação que o recorrente formula”, o que, salvo
todo o respeito que é devido, trata-se de uma afirmação com carácter vago,
impreciso e contraditório, pois, por um lado refere que não é inteiramente
certo, mas também não diz o que é inteiramente certo ou em que medida não é
inteiramente certo, pelo que estamos perante uma afirmação vaga e imprecisa,
dificultando, até, o teor da presente reclamação, sendo que também é
contraditória, já que, por um lado refere que o Tribunal da Relação de Lisboa
não aplicou o art. 428º, n.º 1, do CPP, e por outro lado refere que não é
inteiramente certo que a Relação de Lisboa tenha adoptado o entendimento da
referida norma.
5. Acresce que, o recorrente, ora, reclamante, nunca admitiu que o Tribunal da
Relação de Lisboa não apreciasse “ex novo” a prova que se encontrava registada,
já que, foi com total perplexidade que tomou conhecimento do teor do acórdão da
Relação, pelo que, nunca ao longo de todo o processo tivera oportunidade e
fundamento para suscitar tal questão de constitucionalidade, que só surgiu, em
absoluto, após a prolação do acórdão recorrido, tal como é, aliás, o
entendimento do acórdão do TC, n.º 116/07, de 16/02/2007, já anteriormente
referido.
6. Aliás, ao contrário do que afirma a douta decisão sumária, ora, reclamada,
nunca, objectiva ou subjectivamente, o recorrente - reclamante, ao interpor o
presente recurso para o Tribunal Constitucional pôs, ou teve intenção de pôr em
causa a decisão da Relação no sentido afirmado pela decisão sumária reclamada,
já que o que se pôs em causa foi a interpretação que a Relação deu, pelo menos,
implicitamente, ao art. 428.º, n.º 1, do CPP, a qual viola os arts. 20.º, n.º 1
e 32.º, n.º 1, da CRP e, segundo a qual, decidindo o Tribunal da 1ª instância de
acordo com o princípio da livre apreciação da prova que perante ele é produzida
(nos termos do art. 127.º, do CPP) o tribunal de recurso, apenas poderá/deverá
apreciar a matéria de facto que aquele considerou provada quando o referido
tribunal de 1ª instância tenha violado qualquer dos passos para a formação da
sua convicção, nomeadamente quando não existam os dados objectivos que se
apontam na fundamentação, quando haja falhas no processo lógico racional
utilizado na apreciação das provas constantes da decisão ou quando não tenha
existido liberdade na formação da convicção, devendo abster-se e fazer uma nova
apreciação dos factos e de toda a prova produzida ou gravada, restringindo-se
aos factos e à apreciação da prova constante da decisão de 1ª instância.
7. O direito ao recurso por parte dos arguidos é, naturalmente, uma das peças
essenciais na arquitectura de um processo penal justo e constitui, mesmo, um
verdadeiro marco civilizacional. A nossa Constituição, de resto, estabelece
expressamente que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso.
Ora, desde 1998, com recurso às gravações áudio das audiências de julgamento e
sua posterior transcrição em papel, os recursos criminais passaram a abranger
não só as questões de direito, isto é, saber se o direito face aos factos dados
como provados foi bem aplicado, mas também as questões de facto, isto é, saber
se os factos dados como provados na 1ª instância estavam ou não suportados na
prova que fora produzida.
Determina o n.º 1, do art. 428.º, do CPP, que as Relações conhecem de facto e de
direito. Estava, assim, o arguido, ora, recorrente-reclamante,
esperançado que o T. Relação de Lisboa, analisando toda a prova que ele indicava
e que tinha sido transcrita das cassetes, chegaria a conclusões diferentes e o
absolveria. Contudo, não teve qualquer sorte, já que o T. da Relação de Lisboa
não apreciou o recurso, esclarecendo que o arguido/recorrente não tinha razão ao
pôr em causa os factos que tinham sido dados como provados na sentença da 1ª
instância e de acordo com o processo lógico-racional utilizado na apreciação das
provas constantes da decisão.
8. O arguido/recorrente ficou perplexo, já que recorrera, apontara os factos que
estavam em causa, explicara os motivos por que entendera que o tribunal de 1ª
instância valorara incorrectamente os diversos depoimentos e o T. Relação de
Lisboa limitava-se a, pura e simplesmente, afirmar que os dados objectivos
indicados na fundamentação da sentença tinham sido colhidos da prova produzida e
que, por isso, o recorrente não tinha razão no seu recurso. Então, não tinha
direito a que o Tribunal da Relação analisasse toda a prova produzida, que,
aliás, constava dos autos, depois de transcrita das cassetes?
9. Por isso, recorreu para o Tribunal Constitucional, alegando, entre outras
coisas, que a interpretação dada pela Relação de Lisboa à referida disposição
legal, que determina que “as Relações conhecem de facto e de direito” cerceava
de forma drástica e intolerável as garantias de defesa do arguido, restringindo,
de maneira insuportável, o núcleo essencial do seu direito ao recurso em matéria
de facto para o Tribunal da Relação, violando a “ratio” e até, a letra daquela
norma legal, defraudando as legítimas expectativas do recorrente e, porque não
dizê-lo, a vontade expressa do legislador.
10. A esperança do recorrente mais se iluminou quando tomou conhecimento que
esse Tribunal Constitucional não seguira esse caminho e, no passado dia 16 de
Fevereiro julgara inconstitucional a norma em causa interpretada “no sentido de
que, tendo o tribunal de 1ª instância apreciado livremente a prova perante ele
produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o
tribunal de 2ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados
na fundamentação da sentença, objecto de recurso foram colhidos na prova
produzida, transcrita nos autos.”
Para o Tribunal Constitucional, o tribunal de recurso terá sempre de explicitar,
através de uma nova apreciação dos factos, como procedeu à verificação de tal
factualidade e, assim, como formou a sua convicção no sentido de confirmar ou
revogar a decisão de 1ª instância, com o seu próprio processo lógico-racional.
Nestes termos e nos mais de direito, deverá a presente reclamação ser atendida
e, em consequência conhecer-se do presente recurso.
3.
O representante do Ministério Público, notificado da reclamação deduzida,
respondeu nos termos seguintes:
1.º
A presente reclamação é, a nosso ver, improcedente.
2.º
Na verdade — e mesmo admitindo que a definição da “norma”, feita pelo recorrente
enuncia, em termos minimamente inteligíveis e satisfatórios, um “critério
normativo”, sindicável pelo Tribunal Constitucional — parece evidente que este
não coincide com a interpretação feita — e aplicada — pela Relação quanto ao
âmbito dos seus poderes decisórios em sede de reapreciação da matéria de facto.
3.º
Efectivamente, a Relação não procedeu, na decisão recorrida, a qualquer anómala
auto limitação dos seus poderes cognitivos: passou em revista a matéria de facto
apurada em 1ª instância, analisou a argumentação expendida pelo recorrente no
seu recurso e aderiu à valoração probatória que tinha sido feita pelo colectivo,
por entender que as dúvidas suscitadas pelo recorrente não mereciam qualquer
consistência.
4.º
Tal “adesão” à apreciação da prova, feita em 1.ª instância, após valoração do
mérito dos argumentos apresentados pelo recorrente, não significa obviamente que
o acórdão recorrido “se haja abstido” de fazer uma nova apreciação dos factos e
meios probatórios — afigurando-se que o recorrente confunde o exercício do duplo
grau de jurisdição quanto à matéria de facto com a realização de um novo
julgamento, que como é óbvio, nenhum princípio constitucional impõe.
5.º
Note-se, finalmente, que a situação dos autos não coincide minimamente com a
situação processual subjacente ao invocado acórdão nº 116/07, já que obviamente
a Relação não se limitou a proclamar que os dados objectivos constantes da
fundamentação da sentença resultaram da prova produzida, procedendo, pelo
contrário, como se referiu, a uma análise crítica da valoração da prova,
ponderando as objecções do recorrente, e concluindo pela sua improcedência.
4.
Começa-se por salientar que, face à imprecisa definição do objecto do recurso no
requerimento de interposição, o Tribunal convidou recorrente, ao abrigo do
artigo 75º-A n.º 5 da LTC a enunciar com rigor a norma cuja conformidade
constitucional contesta. Esclareceu, na sequência da notificação, que pretendia
impugnar a norma, retirada do artigo 428º do Código de Processo Penal, segundo a
qual,
'decidindo o tribunal de 1ª instância de acordo com o princípio da livre
apreciação da prova que perante ele é produzida (nos termos do artigo 127º do
Código de Processo Penal) o tribunal de recurso apenas poderá/deverá apreciar a
matéria de facto que aquele considerou provada, quando o referido tribunal de 1ª
instância tenha violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção,
nomeadamente, quando não existam os dados objectivos que se apontam na sua
fundamentação, quando haja falhas no processo lógico racional utilizado na
apreciação das provas constantes da decisão ou quando não tenha existido
liberdade na formação da convicção, devendo abster-se de fazer uma nova
apreciação dos factos e de toda a prova produzida ou gravada, restringindo-se
aos factos e à apreciação da prova constante da decisão da 1ª instância.'
Ora, é bom que se diga que o recurso de que tratamos se fundamenta (isto é: tem
como objecto) a norma efectivamente aplicada da decisão tomada no tribunal
recorrido, e não permite que, no seu âmbito, se discuta a correcção jurídica da
solução jurisdicional adoptada nessa decisão, ou a escolha do direito aplicável
(artigo 70º n.º 1 alínea b) do LTC).
Todavia, o que se deduz do pedido agora formulado ao Tribunal Constitucional é
que o recorrente pretende que se avalie a concreta decisão da Relação de Lisboa
que teria violado o dito artigo 428º, pois apesar de a norma possibilitar
genericamente o recurso em matéria de facto, a decisão recorrida não lhe dera
cumprimento, não lhe dando a aplicação que o recorrente visaria, assim
determinando a violação dos invocados preceitos constitucionais.
Na verdade, tal como vem formulado, o pedido emergente do presente recurso
cifra-se, em primeiro lugar, em apurar os pressupostos em que se fundamentou a
asserção enunciada a título de norma, designadamente mediante a avaliação de que
o tribunal de 1ª instância não 'teria violado qualquer dos passos para a
formação da sua convicção, nomeadamente, quando não existam os dados objectivos
que se apontam na sua fundamentação, quando haja falhas no processo lógico
racional utilizado na apreciação das provas constantes da decisão ou quando não
tenha existido liberdade na formação da convicção', questões que, para além de
não poderem ser extraídas de qualquer 'norma' constante do artigo 428º do Código
de Processo Penal', se traduzem inelutavelmente na crítica da decisão
jurisdicional, que não adoptou tal entendimento: a verdade é que o Tribunal
recorrido não aplicou o artigo 428º do Código de Processo Penal com o sentido
que o recorrente enuncia.
Tem, por isso, pleno cabimento a observação do representante do Ministério
Público neste Tribunal ao fazer notar que a 'norma' impugnada 'não coincide com
a interpretação feita — e aplicada — pela Relação quanto ao âmbito dos seus
poderes decisórios em sede de reapreciação da matéria de facto' e, ainda, que 'a
Relação não procedeu, na decisão recorrida, a qualquer anómala auto limitação
dos seus poderes cognitivos: passou em revista a matéria de facto apurada em 1ª
instância, analisou a argumentação expendida pelo recorrente no seu recurso e
aderiu à valoração probatória que tinha sido feita pelo colectivo, por entender
que as dúvidas suscitadas pelo recorrente não mereciam qualquer consistência.'
Assim como é igualmente certo que, como também nota o Ministério Público, 'a
situação dos autos não coincide minimamente com a situação processual subjacente
ao invocado acórdão nº 116/07, já que obviamente a Relação não se limitou a
proclamar que os dados objectivos constantes da fundamentação da sentença
resultaram da prova produzida, procedendo, pelo contrário, como se referiu, a
uma análise crítica da valoração da prova, ponderando as objecções do
recorrente, e concluindo pela sua improcedência.'
5.
É, assim, de manter a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 17 de Setembro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão