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Processo n.º 682/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que são
recorrentes A., B., LDA. e C., LDA. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, a Relatora
proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que são
recorrentes A., B., LDA. e C., LDA. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, os
primeiros interpuseram recurso para este Tribunal, em 18 de Maio de 2007, “do
Acórdão proferido em 2 de Maio de 2007 (…), por inconstitucionalidade dos Artº
355 e Artº 410 nº 2 al. a) e ainda do Artº 428 nº 1 todos do Código de Processo
Penal” (fls. 1068).
2. Em 12 de Julho de 2007, por entender que os recorrentes não haviam
explicitado adequadamente as dimensões normativas reputadas de
inconstitucionais, a Relatora junto deste Tribunal determinou o seguinte:
“No uso dos poderes que me são atribuídos pelo n.º 6 do artigo 75º-A da LTC,
determino que seja notificado o recorrente do convite para vir aos autos, no
prazo de 10 (dez) dias, esclarecer quais as interpretações normativas que imputa
à decisão recorrida, uma vez que:
i) Quanto aos artigos 355º e 410º, n.º 2, alínea a), ambos do
CPP, o recorrente limita-se a referir aquelas normas «quando interpretadas no
sentido que lhe é dado no Acórdão recorrido» (fls. 1058), sem explicitar qual é
o referido sentido;
ii) Quanto ao artigo 428º, n.º 1 do CPP, o recorrente aparenta
não colocar qualquer questão relativa a inconstitucionalidade normativa mas
apenas um alegado incumprimento do disposto naquele preceito normativo pela
decisão recorrida, limitando-se a afirmar que «os recorrentes não podiam prever
que o Tribunal da Relação se abstivesse de sindicar a matéria de facto impugnada
em sede de recurso ignorando a citada disposição» (fls. 1059).”
3. Os recorrentes, entre outras considerações não exigidas pelo teor do anterior
despacho, vieram responder ao convite, fixando o sentido interpretativo que, na
sua óptica, foi acolhido pela decisão recorrida, quanto às normas contidas nos
artigos 355º e 410º, n.º 2, al. a) do CPP, nos seguintes termos:
“1. Em relação aos Artºs 355º e 410º nº 2 al. a) do C.P.Penal verifica-se a
inconstitucionalidade das mesmas porque na interpretação do Acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra, os indícios que são suficientes para acusar e pronunciar
também podem ser invocados na condenação dos arguidos desde que o Julgador ao
abrigo do princípio da livre apreciação da prova forme convicção inequívoca
alicerçada em regras da experiência e critérios lógicos de que os arguidos são
culpados.” (fls. 1082 e 1083).
Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 428º do CPP, vieram
ainda os recorrentes esclarecer o seguinte:
“28. A inconstitucionalidade do Artº 428º do C.P.Penal radica como já se alegou
não na violação em concreto desta disposição legal, porque na verdade o Tribunal
da Relação de Coimbra apreciou o recurso, mas na forma como o mesmo interpreta o
Artº 428º nº 1 do C.P.Penal.
29. A interpretação dada é a de que a competência dos Tribunais da Relação nos
recursos interpostos sobre matéria de facto não pode sobrepor-se e desrespeitar
o princípio da oralidade e o princípio da imediação.”
Definido assim o objecto do recurso formulado pelos recorrentes,
cumpre aferir da possibilidade de conhecimento do mesmo.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Apesar de o n.º 1 do artigo 76º da LTC conferir ao tribunal recorrido – in
casu, o Tribunal da Relação de Coimbra – o poder para apreciar a admissão do
recurso, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do
n.º 3 do mesmo preceito legal. Assim, antes de mais, cumpre apreciar se estão
preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos
artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
A) Quanto à alegada inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 355º
e 410º, n.º 2, al. a), ambos do CPP
5. No seu requerimento de interposição de recurso, afirmam os recorrentes,
conforme lhes é exigido pelo n.º 2 do artigo 75º-A da LTC, que suscitaram a
questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 355º e 410º,
n.º 2, al. a), ambos do CPP, no § 15 do seu requerimento de resposta ao parecer
do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 1068 e
1068-verso).
Compulsados os autos, verifica-se que, nessa sede, os recorrentes alegaram o
seguinte:
“15. Donde, serão manifestamente INCONSTITUCIONAIS os Artºs 355 e Artº 410º nº 2
al. a) do C.P.Penal quando interpretados no sentido de permitirem a valoração de
provas determinantes para a condenação dos arguidos que não foram confirmadas em
audiência de discussão e julgamento (Cfr. Artº 204º da Constituição).” (fls.
1003 e 1003-verso).
Sucede, porém, que, convidados pela Relatora junto deste Tribunal a precisar
qual o concreto sentido interpretativo que imputavam à decisão recorrida, os
recorrentes vieram expressamente referir que aquela seria inconstitucional por
interpretar os artigos 355º e 410º, nº 2, al. a) do C.P.Penal, no sentido de que
“os indícios que são suficientes para acusar e pronunciar também podem ser
invocados na condenação dos arguidos desde que o Julgador ao abrigo do princípio
da livre apreciação da prova forme convicção inequívoca alicerçada em regras da
experiência e critérios lógicos de que os arguidos são culpados” (fls. 1082 e
1083). Ora, como é bom de ver, o sentido interpretativo que os recorrentes agora
reputam de inconstitucional não tem qualquer correspondência com aquele que os
mesmos reputaram de inconstitucional em sede de resposta ao parecer do
Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra.
Uma coisa é afirmar-se que determinado tribunal valorou provas que não foram
confirmadas em audiência de julgamento, outra totalmente diversa é considerar-se
que uma decisão condenatória não pode, ao abrigo da faculdade de livre
apreciação da prova, invocar indícios suficientes da prática do crime que
constem da acusação ou da pronúncia. Como é evidente, nada obsta a que tal
suceda – pelo contrário, é precisamente isso que sucederá nos casos de
procedência da acusação ou de confirmação da pronúncia –, desde que o juiz de
julgamento aprecie e valore, de novo, em audiência de julgamento, as provas já
constantes da acusação ou da pronúncia.
Como tal, há que concluir que, tendo em conta a determinação do objecto do
recurso por parte dos recorrentes, não houve uma suscitação da questão de
inconstitucionalidade, tal como conformada a fls. 1082 e 1083, de modo
processualmente adequado, perante o tribunal “a quo”, de modo a que este
estivesse obrigado a dela conhecer. Consequentemente, por força do n.º 2 do
artigo 72º da LTC, não podem agora os recorrentes vir interpor recurso para este
Tribunal, dado que não colocaram, de modo adequado e atempado, a questão de
inconstitucionalidade acima referida.
B) Quanto à alegada inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo
428º do CPP
6. No que diz respeito à alegada inconstitucionalidade da interpretação
concedida à norma contida no n.º 1 do artigo 428º do CPP, aceita-se a tese
avançada pelos recorrentes na resposta ao convite, segundo a qual “a referida
expressão deve ser entendida no contexto da justificação da admissibilidade do
presente recurso” (fls. 1088), pelo que o principal propósito dos recorrentes
radica na invocação da inconstitucionalidade de uma interpretação que passasse
por entender que os tribunais da relação apenas detêm poder para apreciar, em
sede de recurso, matéria de facto, desde que não desrespeitem o princípio da
oralidade (fls. 1089).
Seguindo esta linha de raciocínio, os recorrentes empenharam-se em “amarrar” a
decisão recorrida a uma suposta “corrente jurisdicional que sistematicamente
nega aos recorrentes uma autêntica reapreciação da matéria de facto na 2ª
instância” (fls. 1070), de molde a justificar a aplicação ao caso dos presentes
autos de jurisprudência deste Tribunal que já considerou inconstitucional a
interpretação da norma contida no n.º 1 do artigo 428º do CPP que permita a um
tribunal da relação limitar-se a afirmar que a matéria de facto dada como
provada tinha efectivamente suporte objectivo na fundamentação da sentença
recorrida, sem indagar da verificação da mesma (cfr., citados pelo recorrente,
Acórdãos n.º 680/98, publicado in «Diário da República», IIª Série, n.º 54, de
05 de Março de 1999, e n.º 116/07, publicado in «Diário da República», IIª
Série, n.º 79, de 23 de Abril de 2007).
7. Contudo, esta tentativa não logra vencimento.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida não aplica efectivamente a interpretação
normativa reputada de inconstitucional pelos recorrentes, no sentido de a
competência dos tribunais de recurso, em sede de apreciação da matéria de facto,
não se poder sobrepor aos princípios da oralidade e da imediação. Aliás, note-se
que, no seu requerimento de recurso (fls. 1070), os recorrentes chegam a tentar
descontextualizar a fundamentação da decisão recorrida, mediante a extracção de
um excerto parcial que desvirtua o sentido da “ratio decidendi” daquela. Isto
porque, sendo verdade que a decisão recorrida declarou que:
“O fundamento do recurso em matéria de facto não pressupõe, todavia, uma
reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova
produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em
plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo
tribunal «a quo» (…)” (fls. 1041);
Não é menos verdade que aquele “dictum” não pode deixar de ser completado, de
modo a apreender o real sentido decisório expresso pelo tribunal recorrido:
“(…) sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal «a quo»
relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere
incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na
indicação do mesmo, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte
técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – mencionado
artigo 4123.º, n.º 3, alínea b) –, ou, determinando-se a renovação das provas
nos pontos em que se entenda dever fazer-se tal tarefa.
Certo é, porém que se a reapreciação da matéria de facto não determina uma
avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais
quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos
limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo
autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e
as provas que serviram de suporte à convicção.” (fls. 1041, com sublinhado e
realce nosso).
Daqui decorre, inequivocamente, que a “ratio decidendi” da decisão recorrida não
é de todo equivalente àquela que os recorrentes lhe pretendem imputar. Ao
contrário do que os recorrentes se empenharam em demonstrar, a decisão recorrida
nunca interpretou a norma contida no n.º 1 do artigo 428º do CPP, de modo a que
se eximisse de reavaliar a prova e de reponderar o sentido decisório da primeira
instância.
O que sucedeu é que, atenta a forma como os recorrentes conformaram o objecto do
recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, este apenas pôde reapreciar a
matéria de facto nos exactos limites fixados pelo recorrente (fls. 1043 e 1044).
Diga-se, aliás, que o tribunal recorrido revelou uma especial preocupação em
assegurar o direito fundamental de protecção jurisdicional efectiva, fazendo
menção ao Acórdão n.º 803/03, de 02 de Junho de 2004, do Tribunal Constitucional
e apreciando o recurso sobre a matéria de facto, ainda que tal matéria não tenha
sido inequívoca e detalhadamente enunciada nas conclusões do respectivo
requerimento de recurso e ainda que o Ministério Público junto do tribunal de
primeira instância haja pugnado pelo não conhecimento do recurso (cfr. fls.
1040).
Acresce ainda que, compulsada a decisão recorrida, constata-se que, em oposição
radical ao afirmado pelos recorrentes, o tribunal “a quo” reapreciou
efectivamente a prova produzida em audiência de julgamento perante a primeira
instância, tendo até lido os depoimentos de testemunhas e verificado quais os
documentos juntos aos autos, justificando a dispensa da sua leitura em
audiência:
“Lendo-se exaustivamente os depoimentos das testemunhas D. e E., resulta que o
Tribunal recorrido apenas deles extraiu os factos sobre os quais efectivamente
demonstraram ter conhecimento.” (fls. 1050, com sublinhado nosso);
“Com efeito, ao contrário do sufragado pelos recorrentes, relativamente aos
documentos questionados, o Tribunal «a quo» procedeu de acordo com o plasmado no
regime decorrente do artigo 355º citado (…).
Os documentos mencionados não se mostravam de leitura proibida em julgamento
porque não cont[ê]m declarações de arguidos ou de testemunhas – artigo 356.º,
n.º 1, alínea b) do CPP. Acresce que o respectivo exame pode fazer-se aquando da
deliberação do tribunal, não se impondo a sua leitura em audiência (…).” (fls.
1048 e 1049, com sublinhado nosso).
Em suma, não tendo a decisão recorrida aplicado efectivamente a norma do n.º 1
do artigo 428º do CPP com o sentido interpretativo reputado de inconstitucional
pelos recorrentes, não podem agora, com este fundamento, recorrer para este
Tribunal, uma vez que, ao contrário do que exigido pela alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, a decisão recorrida não aplicou “norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
8. A finalizar, acrescente-se apenas que, ainda que aquele sentido normativo
tivesse sido aplicado – o que já se rejeitou liminarmente –, sempre seria
forçoso concluir que os recorrentes não estavam dispensados de suscitar a
referida inconstitucionalidade por um eventual sentido decisório naquele sentido
não ser imprevisível, inaudito ou insólito. É certo que os recorrentes afirmam
que “não podiam prever que o Tribunal da Relação se abstivesse de sindicar a
matéria de facto impugnada em sede de recurso ignorando a citada disposição”
(fls. 1068-verso)
Porém, deveras contraditoriamente, são os próprios recorrentes que confessam, no
seu requerimento de recurso estarem bem cientes de alguma controvérsia
jurisprudencial e doutrinária sobre o alcance do direito de recurso sobre a
matéria de facto, inclusive citando diversa doutrina e jurisprudência sobre a
matéria:
“12. A confirmar o que se acaba de referir podem ler-se as citações da Doutrina
do Prof. Alberto dos Reis e a [de] Chiovenda constantes do Acórdão as quais
confirmam a existência do erro doutrinal e de direito comparado que persiste no
nosso sistema judicial sobre a oralidade como verdade irrefutável o qual se
mostra denunciado por Alexandre Pessoa Vaz in «Direito Processual Civil – do
Antigo ao Novo Código», Almedina – Coimbra, 1998, pág. 192” (fls. 1069-verso);
“19. Como já se alegou o recurso é também admissível por via do disposto no Artº
70º nº 1 al. b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro e porque não era exigível aos
recorrentes que contassem com a interpretação do Artº 428º nº 1 do C.P. Penal
que veio a ser plasmada no Acórdão da Relação de Coimbra e porque urge pôr termo
à corrente Jurisprudencial que sistematicamente nega aos recorrentes uma
autêntica reapreciação da matéria de facto na 2ª instância violando, desse modo,
o principio constitucional já referido.” (fls. 1070, com realce e sublinhado
nosso);
Ainda mais surpreendentemente, no requerimento de resposta ao
convite para precisar o sentido interpretativo que aquele atribui às normas cuja
inconstitucionalidade foi suscitada, os recorrentes vieram mesmo admitir que já
tinham conhecimento de que – segundo eles – a jurisprudência do Tribunal da
Relação de Coimbra seria esmagadoramente apoiante de uma interpretação do n.º 1
do artigo 428º do C.P.P. que impediria a reapreciação da prova, em sede de
recurso de matéria de facto:
“26. Apesar desta interpretação dada ao Artº 428º do C.P.P. ser recorrente na
Jurisprudência da Relação de Coimbra o facto é que ela [é] manifestamente
INCONSTITUCIONAL, porque visa dispensar a 2ª instância de demonstrar que no caso
concreto a matéria de facto dada como provada tinha efectivamente suporte
objectivo na fundamentação do acórdão da primeira instância.” (fls. 1089).
Ora, ainda que não caiba a este Tribunal pronunciar-se sobre a veracidade da
alegada “recorrente jurisprudência” do Tribunal da Relação de Coimbra, não pode
evitar concluir-se que a questão – tal como colocada pelos recorrentes – não
lhes era desconhecida no momento de interposição de recurso para o tribunal “a
quo”. Assim, ao admitirem ter conhecimento da alegada “corrente
jurisprudencial”, os recorrentes ficariam onerados com a prévia suscitação da
questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 428º do CPP, ainda que
apenas “ad cautelam”, não podendo vir agora alegar o carácter surpreendente da
decisão.
III. DECISÃO
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro, e pelos fundamentos acima expostos, decide-se não conhecer do
objecto do recurso.»
2. Inconformados com esta decisão, vêm os recorrentes reclamar, para a
conferência, contra a não admissão do recurso, com os fundamentos seguintes:
«(…) 2. Desde logo, e com o devido respeito, a decisão de não admissão do
recurso não leva em conta a argumentação vertida no requerimento apresentado em
26 de Julho de 2007 na plenitude do seu contexto.
3. É um facto que os recorrentes comprovaram a afirmação de que existe
Jurisprudência da Relação de Coimbra semelhante ao Acórdão proferido no âmbito
dos presentes autos, invocando o Acórdão do Tribunal Constitucional n° 116/2007.
4. Esta circunstância, no entanto, não significa que os recorrentes já
estivessem “avisados” ou que não podiam deixar de contar que a
Inconstitucionalidade pudesse ocorrer, uma vez que quando o referido Acórdão no
116/07 foi publicado no Diário da Republica quando os presentes autos já tinham
o julgamento marcado na 2ª instância.
5. No caso do recurso interposto nos presentes autos, até pela natureza do
mesmo, estamos perante uma situação excepcional e anómala, em que os recorrentes
não dispuseram de oportunidade processual para suscitar a questão da
constitucionalidade do Art° 428 nº 2 do C.P.Penal no Tribunal comum.
6. Antes de proferida a decisão recorrida, não era exigível aos recorrentes que
suscitassem então a questão de constitucionalidade até porque os seus efeitos só
são detectáveis após a prolação da decisão, conforme é o entendimento deste
Tribunal Constitucional no já citado Acórdão nº116/20071.
7. É essa a Doutrina deste Tribunal Constitucional, também plasmada no Acórdão
n.º 255/98, proferido no Processo n.º 287/97, da 1ª Secção2, onde se pode ler o
seguinte:
«(...) tem ainda razão (...) quando afirma que não é ‘razoável impor às partes o
ónus de anteciparem, em termos rigorosos e definitivos, quais os precisos
“artigos da lei” cuja inconstitucional interpretação funda o recurso de
fiscalização concreta interposto (...) ».
8. Por sua vez, o recurso é admissível pois utilizando a formulação do Acórdão
do T.C. n.º 367/94: «ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma
interpretação que do mesmo se faça. (...).
9. Considerando o objecto do recurso interposto, e o desfasamento entre a prova
efectivamente produzida em julgamento e a matéria de facto que veio a ser dada
como provada no Acórdão condenatório, o que, em rigor, se verifica no caso
concreto é uma verdadeira “decisão-surpresa” do Tribunal da Relação de Coimbra.
10. Como é sabido, as “decisões-surpresa” são exactamente uma das hipóteses em
que os recorrentes se podem considerar dispensados do ónus da prévia suscitação
da questão da inconstitucionalidade, relativamente à qual seria excessiva
obrigar os arguidos a práticas de “adivinhação”.
11. Não sendo vinculativa a regra do precedente no Sistema Judicial Português,
também não existe qualquer regra no Processo Constitucional que imponha aos
recorrentes o conhecimento antecipado da Jurisprudência do Tribunal da Relação
de Coimbra (referida na ultima pagina da decisão reclamada), pelo que não é
legitimo imputar aos recorrentes qualquer confissão de [que] podiam ter
suscitado a inconstitucionalidade do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal em momento
anterior à prolação do Acórdão recorrido.
12. Tudo isto vale por dizer que não é crível, nem lógico que os recorrentes
pudessem, ter suscitado desde logo e de forma eficaz, a questão da
inconstitucionalidade do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal nas alegações de recurso
“para o caso de...“, ou seja, por mera antecipação, sendo certo que o objecto do
recurso reside precisamente no pedido de reapreciação da matéria de facto dada
como provada, que é da competência exclusiva do Tribunal de 2ª Instancia, in
casu o Tribunal da Relação de Coimbra
13. Donde, constitui um mero exercício de antecipação de conhecimento
conceber-se que os recorrentes podiam arguir desde logo a inconstitucionalidade
do Art° 428 nº 1 do C. P. Penal, pois esvaziar-se-ia o objecto do recurso da
matéria de facto para a 2ª instancia, sendo certo que tal intenção, nem sequer
resulta minimamente do comportamento processual dos recorrentes.
14. Coisa diversa é o facto de os recorrentes serem surpreendidos em 2 de Maio
de 2007, com o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Maio de
2007, constatarem que os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores não
ouviram as cassetes com depoimento do Inspector Tributário D.. porque entendem
que o Art° 428 nº 1 do C.P.Penal não permite um acesso concreto aos meios de
prova orais produzidos em audiência.
15. Pelo exposto, os recorrentes suscitaram atempadamente a questão da
inconstitucionalidade do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal, já estribados do Acórdão nº
116/2007, no único momento em que a podiam suscitar ou seja, quando in casu
constaram, a violação do Art° 32 nº 1 da Constituição pois o Tribunal da Relação
de Coimbra, como já se demonstrou, não apreciou o recurso com acesso concreto
aos meios de prova orais produzidos em audiência, em violação do citado comando
constitucional.
16. Por outro lado, constata-se ainda que, salvo melhor entendimento, é a
decisão reclamada lavra em equívoco quando em sede de apreciação liminar de
admissão do recurso não admitiu o recurso com o seguinte fundamento:
“Em primeiro lugar, a decisão recorrida não aplica a interpretação normativa
reputada de inconstitucional pelos recorrentes, no sentido de a competência dos
tribunais de recurso, em sede de apreciação da matéria de facto, não se poder
sobrepor aos princípios da oralidade de da imediação. (...)
Acresce ainda que compulsada a decisão recorrida, constatou-se que, em oposição
radical ao afirmado pelos recorrentes, o tribunal “a quo” reapreciou
efectivamente a prova produzida em audiência de julgamento perante a primeira
instancia, tendo até lido os depoimentos das testemunhas e verificado quais os
documentos juntos aos autos, justificando a dispensa da sua leitura em
audiência.
(...)
Em suma, não tendo a decisão recorrida aplicado efectivamente a norma do nº 1 do
artigo 428° do CPP com o sentido interpretativo reputado de inconstitucional
pelos recorrentes, não podem agora, com este fundamento, recorrer para este
Tribunal (...)“.
17. Pese embora o labor atribuído ao Acórdão da Relação de Coimbra proferido em
2 de Maio de 2007, o facto é que consta do mesmo o seguinte:
“É que uma tal “revisão” da decisão recorrida não permite um acesso concreto aos
meios de prova orais produzidos em audiência, e o que os recorrentes logo
começam por apontar é uma indevida e excessiva consideração dos depoimentos
testemunhais aí considerados (mormente depoimentos das testemunhas D.. e E.).
Por outro lado, os factos provados mostram-se suficientes para a decisão da
condenação proferida (o que, aliás, e extirpada a questão da matéria de facto
provada, nem vem questionado pelos recorrentes) e não se vislumbra que tenha
existido algum deficit de investigação pelo Tribunal a quo
Nesta senda tem também decidido o STJ. Na verdade, entende-se, a insuficiência
para a decisão da matéria de facto só ocorrerá quando, da factualidade vertida
nessa decisão, se colher que faltam elementos que, podendo e devendo ser
indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de
direito) de condenação ou de não condenação”
18. Donde resulta que os recorrentes não podem, concordar com a decisão sumária
de não admissão do recurso, quando na mesma se refere que os recorrentes
“descontextualizaram” a fundamentação da decisão recorrida, pois o Acórdão da
Relação de Coimbra é bem claro ao não permitir o acesso concreto aos meios de
prova orais produzidos em audiência, fazendo também consignar o seguinte: “Se a
decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis
segundo as regras da experiência, ela será inatacável...”.
19. Na verdade, e perante o teor da decisão que se transcreve constata-se que o
Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que o Art° 428 nº 1 do C.P.Penal, deve
ser interpretado no sentido de que o recurso da matéria de facto não permite um
acesso concreto aos meios de prova orais produzidos em audiência.
20. A interpretação do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal no Acórdão recorrido é
manifestamente INCONSTITUCIONAL quando por um lado faz consignar que: “lendo-se
exaustivamente os depoimentos das testemunhas D. e E., resulta que o Tribunal
recorrido apenas deles extraiu os factos sobre os quais efectivamente
demonstraram ter conhecimento”, mas por outro lado, faz consignar o seguinte:
“Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de
processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, dada a sua
falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha,
e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar
da credibilidade de um depoimento.”
21. Donde, resulta que o Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Maio de 2007 não
analisou qualquer facto concreto do Acórdão impugnado, conforme pretendiam os
recorrentes ao abrigo do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal, porque em boa verdade o
aresto apenas se limitou a decidir que: “factos provados mostram-se suficientes
para a decisão da condenação proferida”.
22. Não permitindo acesso concreto aos meios de prova orais produzidos em
audiência, o Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Maio de 2007, furta-se a
analisar as contradições entre factos provados e não provados com base numa
interpretação do Art° 428 nº 1 do C.P.Penal que já foi declarada
inconstitucional no Acórdão deste TC. nº 116/2007.
23. Com efeito, é manifestamente inconstitucional uma interpretação do Art° 428
n° 1 do C.P.Penal no sentido de que o recurso da matéria de facto não permite ao
Tribunal de 2ª instancia, à luz do principio da presunção da inocência e da
culpa, analisar quais as consequências de não se ter apurado absolutamente nada
sobre o tipo de negócio alegadamente simulado, nem qual a alegada suposta
contrapartida acordada entre os arguidos e não se retirem consequências de a
Administração Fiscal ter recebido na pendência do processo-crime a quantia de
IVA alegadamente simulada, ainda assim subsiste a condenação dos arguidos.
24. O processo adequado à defesa de qualquer arguido deverá ser não só o
processo legal, no qual constem todos os actos prescritos na lei, como também o
processo justo, imbuído de justiça material, o que implica que os actos
jurisdicionais nele proferidos sejam todos sustentados em normas conformes à Lei
Fundamental e respeitadores dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Pelo exposto, e nos termos do n.º 1 do artigo 770 da LTC, requer-se que seja
apreciada e decidida a presente reclamação da decisão sumaria e que seja
proferida decisão a admitir o presente recurso de inconstitucionalidade do
Art°428 nº 1 do C.P.Penal.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da
referida reclamação, vem responder-lhe nos termos seguintes:
«1º
A reclamação deduzida é, a nosso ver, improcedente.
2°
Na verdade — e ao contrário do afirmado pelo reclamante — o acórdão proferido
pela Relação não aplicou, como “ratio decidendi”, o critério — desmesuradamente
restritivo dos poderes cognitivos da 2ª instância em sede de matéria de facto —
enunciado pelo recorrente. »
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Os reclamantes limitam a reclamação ao não conhecimento da
inconstitucionalidade do art. 428º, nº 1, CPP, pelo que deve considerar-se
transitada em julgado a Decisão Sumária reclamada quanto aos demais preceitos.
Os reclamantes não têm, porém, razão.
Com efeito, como se disse na Decisão Sumária ora reclamada, e bem nota o Digno
Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, «o acórdão proferido
pela Relação não aplicou, como “ratio decidendi”, o critério — desmesuradamente
restritivo dos poderes cognitivos da 2ª instância em sede de matéria de facto —
enunciado pelo recorrente».
Assim, apesar da insistência, os reclamantes não conseguem provar que a decisão
recorrida interpretou a norma constante do n.º 1 do artigo 428º do CPP no
sentido “de que a competência dos Tribunais da Relação nos recursos interpostos
sobre matéria de facto não pode sobrepor-se e desrespeitar o princípio da
oralidade e o princípio da imediação” (fls. 1088). Pelo contrário, os excertos
da decisão recorrida invocados pelos reclamantes não apagam a profusa e bem
articulada fundamentação da mesma, que nunca consagra uma concepção tão
restritiva do dever de reapreciação da matéria de facto como aquela que os
reclamantes lhe imputam. Apenas para que dúvidas não restem, reitera-se a
reprodução da seguinte passagem da decisão recorrida, que é deveras elucidativa
quanto ao sentido interpretativo efectivamente adoptado pela mesma:
“(…) sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal «a quo»
relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere
incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na
indicação do mesmo, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte
técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – mencionado
artigo 412º, n.º 3, alínea b) –, ou, determinando-se a renovação das provas nos
pontos em que se entenda dever fazer-se tal tarefa.
Certo é, porém que se a reapreciação da matéria de facto não determina uma
avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais
quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos
limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo
autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e
as provas que serviram de suporte à convicção.” (fls. 1041, com sublinhado e
realce nosso).
Daqui decorre, inequivocamente, que, ao arrepio do que os reclamantes persistem
em afirmar, a decisão recorrida nunca interpretou a norma contida no n.º 1 do
artigo 428º do CPP, de modo a justificar qualquer dispensa de reavaliação da
prova e de reponderação do sentido decisório da primeira instância.
Tanto basta para que se não possa conhecer do recurso.
5. Não estando preenchidos os pressupostos processuais de admissibilidade do
recurso de constitucionalidade, não deve este Tribunal pronunciar-se sobre a
questão de fundo, ou seja, a questão de inconstitucionalidade.
Assim sendo, a presente reclamação é manifestamente improcedente.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 8 de Outubro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão