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Processo n.º 815/07
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O Presidente da República requereu, em 30 de Julho de 2007, ao abrigo do n.º
1 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do n.º 1 do
artigo 51.º e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC),
que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com o disposto nos artigos
2.º, 13.º, 18.º, 20.º, 26.º, n.º 1, 52.º, 266.º e 268.º da CRP das normas
constantes dos artigos 2.º e 3.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da
República, de 5 de Julho de 2007, que “Altera a Lei Geral Tributária, o Código
de Procedimento e de Processo Tributário e o Regime Geral das Infracções
Tributárias”, recebido na Presidência da República em 23 de Julho de 2007, para
ser promulgado como lei.
O pedido assenta nos seguintes fundamentos:
«1° - A parte final da norma do n° 10 do artigo 89°-A da Lei Geral Tributária,
agora acrescentada pelo artigo 2° do decreto em apreço, determina que as
decisões definitivas de determinação da matéria colectável são comunicadas, não
apenas ao Ministério Público, mas também, tratando-se de funcionário ou titular
de cargo sob tutela de entidade pública, à tutela deste para efeitos de
averiguações no âmbito da respectiva competência.
2° - Trata-se de uma disposição que suscita fundadas dúvidas de
constitucionalidade, em face do artigo 13° da Lei Fundamental, uma vez que
estabelece para os funcionários ou titulares de cargos sob tutela de entidade
pública, na sua mera qualidade de contribuintes, um regime distinto do aplicável
aos demais cidadãos, sem que pareça existir um fundamento material bastante para
tal diferenciação.
3° - O decreto ora submetido a promulgação procede ainda, no seu artigo 3º, a
duas alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário surgindo,
também aqui, fundadas dúvidas de constitucionalidade quanto à redacção prevista
para os n°s 2 dos artigos 69° e 110º daquele Código.
4° - Com efeito, as normas dos artigos 69°, n° 2, e 110º, n° 2 do Código de
Procedimento e de Processo Tributário vêm associar ao exercício de um direito de
reclamação ou de impugnação contenciosa por parte de um administrado a
consequência inelutável de, sem o seu consentimento, a Administração fiscal
aceder a informação e documentos bancários que integram a sua reserva de
intimidade da vida privada (artigo 26°, n° 1, da CRP).
5º - Parece verificar-se, assim, uma restrição desproporcionada não apenas do
direito à reserva da intimidade da vida privada como também do princípio do
acesso ao Direito e aos tribunais, acolhido no artigo 20° da Constituição,
enquanto corolário do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2°,
com consequente violação do artigo 18°, ambos da Lei Fundamental.
6° - Ao ligarem o direito de reclamação ou impugnação contenciosa ao
levantamento do sigilo bancário as normas sub judicio vêm pôr em causa, de uma
forma que parece destituída de fundamento, o direito que a todos os cidadãos
assiste de reclamarem de decisões das autoridades — artigo 52° da Constituição —
e, bem assim, o direito que o artigo 268.º, n.° 4, da Lei Fundamental atribui
aos administrados de impugnarem quaisquer actos administrativos que os lesem,
sendo ainda questionável se as citadas normas não afectam o princípio da boa fé
da Administração contido no artigo 266° da CRP.
7º - Afigura-se, por conseguinte, que a possibilidade de acesso a elementos de
natureza bancária, aberta pelo simples facto de o particular ter reclamado ou
impugnado uma dada situação tributária, não só não surge rodeada de um conjunto
necessário de garantias e mecanismos de salvaguarda como configura, em si mesma,
uma restrição desproporcionada e irrazoável dos direitos conferidos pelas normas
dos artigos 2°, 18°, 20°, 26°, n° 1, 52°, 266° e 268° da Constituição.»
Em anexo ao pedido foi remetido um memorando da Assessoria para os Assuntos
Jurídicos e Constitucionais da Casa Civil da Presidência da República.
2. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 30 de Julho de 2007 e o
pedido foi admitido na mesma data.
3. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da
Assembleia da República veio apresentar resposta na qual oferece o merecimento
dos autos e junta cópia dos Diários da Assembleia da República que contêm os
trabalhos preparatórios relativos ao Decreto n.º 139/X.
4. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2, da LTC e fixada a
orientação do Tribunal, importa decidir conforme dispõe o artigo 59.º da mesma
Lei.
II – Fundamentação
5. São duas as questões que o Tribunal deve apreciar.
A primeira refere-se à apreciação da constitucionalidade da norma constante do
artigo 2.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da República.
A segunda concerne à apreciação da constitucionalidade das normas constantes do
artigo 3.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da República
A) Apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 2.º do Decreto
n.º 139/X da Assembleia da República
6. O artigo 2.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da República pretende
adicionar um novo número ao artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária (LGT) que, na
redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro,
estatui o seguinte:
«Artigo 89.º-A
Manifestações de fortuna e outros acréscimos patrimoniais não justificados
1 - Há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falte a
declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna
constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando o rendimento líquido declarado
mostre uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento
padrão resultante da referida tabela.
2 - Na aplicação da tabela prevista no n.º 4 tomam-se em consideração:
a) Os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores pelo sujeito
passivo ou qualquer elemento do respectivo agregado familiar;
b) Os bens de que frua no ano em causa o sujeito passivo ou qualquer elemento do
respectivo agregado familiar, adquiridos, nesse ano ou nos três anos anteriores,
por sociedade na qual detenham, directa ou indirectamente, participação
maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada
ou cujo regime não permita identificar o titular respectivo;
c) Os suprimentos e empréstimos efectuados pelo sócio à sociedade, no ano em
causa, ou por qualquer elemento do seu agregado familiar.
3 - Verificadas as situações previstas no n.º 1 deste artigo, bem como na alínea
f) do artigo 87.º, cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à
realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações
de fortuna ou o acréscimo de património ou o consumo evidenciados.
4 - Quando o sujeito passivo não faça a prova referida no número anterior
relativamente às situações previstas no n.º 1 deste artigo, considera-se como
rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, no ano em
causa, e no caso das alíneas a) e b) do n.º 2, nos três anos seguintes, quando
não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo
90.º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, o
rendimento padrão apurado nos termos da tabela seguinte:
Manifestações de fortunaRendimento padrão
1 – Imóveis de valor de aquisição igual ou superior a € 250 000. 20% do
valor de aquisição.
2 – Automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a € 50
000 e motociclos de valor igual ou superior a € 10 000. 50% do valor no
ano de matrícula, com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
3 – Barcos de recreio de valor igual ou superior a € 25 000. Valor no
ano do registo, com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
4 – Aeronaves de turismo. Valor no ano do registo, com o abatimento de
20% por cada um dos anos seguintes.
5 – Suprimentos e empréstimos feitos no ano de valor igual ou superior a
€ 50 000. 50% do valor anual.
5 - No caso da alínea f) do artigo 87.º, considera-se como rendimento tributável
em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, quando não existam indícios
fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90.º, que permitam à
administração tributária fixar rendimento superior, a diferença entre o
acréscimo de património ou o consumo evidenciados e os rendimentos declarados
pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação.
6 - A decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante
deste artigo é da competência do director de finanças da área do domicílio
fiscal do sujeito passivo, sem faculdade de delegação.
7 - Da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto
constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito
suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento
constante dos artigos 91.º e seguintes.
8 - Ao recurso referido no número anterior aplica-se, com as necessárias
adaptações, a tramitação prevista no artigo 146.º-B do Código de Procedimento e
de Processo Tributário.
9 - Para a aplicação dos n.ºs 3 a 4 da tabela, atende-se ao valor médio de
mercado, considerando, sempre que exista, o indicado pelas associações dos
sectores em causa.»
A alteração resultante do artigo em referência é do seguinte teor:
«Artigo 2.º
Aditamento à Lei Geral Tributária
É aditado um n.º 10 ao artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária, aprovada pelo
Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, na redacção actual, com a seguinte
redacção:
“Artigo 89.º-A
[…]
1- ……………………………………………………………………………
2- ……………………………………………………………………………
3- ……………………………………………………………………………
4- ……………………………………………………………………………
5- ……………………………………………………………………………
6- ……………………………………………………………………………
7- ……………………………………………………………………………
8- ……………………………………………………………………………
9- ……………………………………………………………………………
10- A decisão de avaliação da matéria colectável com recurso ao método
indirecto constante deste artigo, após tornar-se definitiva, deve ser comunicada
pelo director de finanças ao Ministério Público e, tratando-se de funcionário ou
titular de cargo sob tutela de entidade pública, também à tutela deste para
efeitos de averiguações no âmbito da respectiva competência.»
7. Para bem se compreender o alcance do preceito agora introduzido pelo Decreto
n.º 139/X da Assembleia da República e ajuizar da sua validade constitucional,
há que ter presente o sentido prescritivo do artigo 89.º-A, em que o mesmo se
insere.
Como da sua epígrafe logo transparece, esta norma dispõe sobre situações
tributárias em que «falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie
as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando o
rendimento líquido declarado mostre uma desproporção superior a 50%, para menos,
em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela».
Em qualquer destas duas hipóteses, não se efectua a avaliação directa, mas a
avaliação indirecta da matéria colectável. O artigo 89.º-A concretiza, assim, a
alínea d) do artigo 87.º, dando corpo a uma das situações em que está legalmente
prevista a realização daquela forma de avaliação.
Verificada a ocorrência de uma das duas previsões constantes do n.º 1, ao
contribuinte é dada oportunidade de se pronunciar, nos termos da alínea d) do
n.º 1 do artigo 60.º da LGT. Mas inverte-se o ónus da prova, pois deixa de valer
a presunção de veracidade da sua declaração, se a tiver efectuado (artigo 75.º,
n.º 2, alínea d)). Sobre ele recairá então o ónus de provar que os rendimentos
declarados correspondem à realidade e que é outra a fonte das manifestações de
fortuna evidenciadas (n.º 3 do artigo 89.º-A), não gerando rendimentos
tributáveis em sede de IRS.
Não logrando o sujeito passivo efectuar essa prova, apurar-se-á a matéria
colectável pelo método indirecto constante do n.º 4 do artigo 89.º-A, a menos
que a aplicação dos critérios do artigo 90.º permita à Administração fixar
rendimento superior.
A decisão de avaliação da matéria colectável, por este método, é, hoje, da
competência do director de finanças da área do domicílio fiscal do sujeito
passivo, sem faculdade de delegação (n.º 6 do artigo 89.º-A, na redacção dada
pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro). Da decisão cabe recurso para o
tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente
(n.º 7 do mesmo artigo).
Deste regime resulta que ao interessado são facultadas garantias bastantes de
comprovação da situação fiscal real: a decisão de avaliação da matéria
colectável com recurso ao método indirecto só é tomada e só se torna definitiva
quando ele não consegue contrariar os indícios de que dispõe de rendimentos
tributáveis não declarados.
8. O n.º 10 que se pretende aditar ao preceito vem impor ao director de finanças
que comunique a decisão definitiva ao Ministério Público «e, tratando-se de
funcionário ou titular de cargo sob tutela da entidade pública, também à tutela
deste para efeitos de averiguações no âmbito da respectiva competência».
É este segmento da norma cuja conformidade à Constituição é questionada, no
pedido de fiscalização preventiva, nos seguintes termos:
«Trata-se de uma disposição que suscita fundadas dúvidas de constitucionalidade,
em face do artigo 13.º da Lei Fundamental, uma vez que estabelece para os
funcionários ou titulares de cargos sob tutela de entidade pública, na sua mera
qualidade de contribuintes, um regime distinto do aplicável aos demais cidadãos,
sem que pareça existir um fundamento material bastante para tal diferenciação.»
Há que averiguar, pois, se a lei tributária, com a introdução do n.º 10 do
artigo 89.º-A, estabelece, para os funcionários ou titulares de cargos sob
tutela de entidade pública, na sua mera qualidade de contribuintes, um regime
distinto do que vigora para a generalidade dos cidadãos. Em caso afirmativo,
cumpre apreciar se essa diferenciação encontra uma justificação razoável, de
acordo com um critério materialmente fundado e constitucionalmente relevante.
Ora, no estrito âmbito da relação tributária, o que se constata é uma absoluta
paridade de tratamento destes sujeitos em relação aos demais contribuintes. Eles
ficam submetidos ao método de avaliação indirecta consagrado no artigo 89.º-A
apenas por aplicação da previsão, de âmbito subjectivo universal, constante do
n.º 1. O destinatário da norma é “o contribuinte”, sem qualquer especificação
qualificativa de uma certa categoria de sujeitos. A aplicação do regime está
apenas situacionalmente condicionada, pois depende exclusivamente de uma certa
conduta do contribuinte (quem quer que ele seja).
Pode concluir-se, assim, que os funcionários públicos ou titulares de cargos sob
tutela pública detêm, em face da Administração fiscal, em relação aos restantes
sujeitos passivos, uma igual posição de direitos e deveres, quanto aos métodos
de determinação da matéria colectável. Estes em nada são influenciados pelo seu
particular vínculo à Administração Pública.
É a jusante da relação tributária − findo o processo de determinação da matéria
colectável, com recurso ao método indirecto, e obtida uma decisão definitiva,
administrativa ou judicial, a tal respeito − que efectivamente se introduz agora
uma especialidade de regime: no que toca à generalidade dos cidadãos, impõe-se a
comunicação da decisão apenas ao Ministério Público, ao passo que, tratando-se
de um funcionário público ou titular de cargo sob tutela de entidade pública, a
comunicação deve ser endereçada também à tutela. Quanto a esta, esclarece-se que
a comunicação é «para efeitos de averiguações no âmbito da respectiva
competência».
Afrontará esta diferenciação de regimes o princípio da igualdade consagrado no
artigo 13.º da Constituição da República?
Recordemos a situação de base que desencadeia a aplicação do artigo 89.º-A da
LGT. A Administração tributária detectou indícios de uma infracção fiscal,
resultante de o contribuinte evidenciar manifestações de fortuna, sem que tenha
apresentado declaração de rendimentos, ou, tendo-o feito, sem que dela constem
rendimentos tributáveis proporcionais aos meios de fortuna aparentados.
Sendo-lhe dada possibilidade de justificar essa situação, o contribuinte não
consegue fazer prova da regularidade da sua conduta fiscal.
Neste quadro situacional, tem cabimento a dúvida sobre a forma de aquisição de
património por parte do contribuinte. Nessa medida, é comunicada ao Ministério
Público a decisão. Sendo o contribuinte funcionário ou titular de cargo sob
tutela de entidade pública, pode legitimamente questionar-se se os bens de
fortuna alardeados resultam ou não do exercício abusivo, em proveito pessoal,
das funções desempenhadas, ou se ele terá ou não exercitado outras actividades
não permitidas ou não autorizadas. Por esse facto, a situação é presente à
tutela, para que, quando justificado, esta possa proceder a averiguações que
permitam esclarecer se houve ou não, por parte do funcionário em causa,
infracção aos seus deveres funcionais.
Fica patente, por força deste enquadramento sistemático, a teleologia subjacente
a esta exigência de comunicação. Não se trata de retirar consequências
desvantajosas para o sujeito passivo, no plano da sua posição como funcionário
ou titular de cargo sob tutela pública, por mero facto da situação fiscal em que
ele se colocou. Esta situação apenas dá azo a que se deslinde se, por detrás
dela, não haverá irregularidades de conduta no exercício das funções públicas em
que o visado está investido. E, nesse outro plano (que não o do relacionamento
tributário), a terem lugar consequências sancionatórias, designadamente do foro
disciplinar, elas não têm como causa a situação tributária, em si, mas a forma
de obtenção dos meios de fortuna que a originaram.
Por isso se colocam as averiguações a fazer, pela entidade de tutela, “no âmbito
da respectiva competência”. Não uma competência do foro tributário, que não está
aqui em causa. Mas a competência resultante da tutela de um certo serviço ou
organismo públicos, com um determinado âmbito funcional de actuação. O que pode
ser objecto de averiguações são actos do funcionário ou titular de cargo sob
tutela pública praticados no exercício das funções que lhe estão cometidas e não
o seu relacionamento fiscal com a Administração.
Não se trata de impor ao funcionário público ou titular de cargo sob tutela de
entidade pública, pelo facto de o ser, deveres acrescidos de conduta fora do
âmbito da sua relação funcional com a Administração, mas de averiguar se, nesse
âmbito, cumpriu, ou não, os deveres do cargo. A situação patrimonial detectada
fiscalmente pode não ser alheia à violação desses deveres. No interesse público,
que à Administração, em todas as suas dimensões, cumpre prosseguir, há que
proceder a averiguações.
Não se vislumbra, na exigência de comunicação suplementar, para esse efeito,
qualquer discriminação dos sujeitos por ela abrangidos, atentatória do princípio
da igualdade, na sua dimensão de proibição de arbítrio e de diferenciações
injustificadas.
Como se salientou no Acórdão n.º 409/99 deste Tribunal:
«Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da
discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que
estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam
distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente
não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional.»
Ora, no caso sub judicio, só quem está na situação descrita reúne condições
objectivas para se aproveitar do exercício de funções públicas para auferir
ganhos pessoais ilícitos. A delimitação do âmbito subjectivo de aplicação da
norma, com a correspondente diferenciação de tratamento dos sujeitos abrangidos,
encontra cabal justificação na especificidade objectiva da situação contemplada,
em cotejo com a dos cidadãos que não desempenham aquele tipo de funções.
9. De acordo com doutrina credenciada, «as diferenciações de tratamento podem
ser legítimas quando: a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; b)
não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no n.º 2; c) tenham um fim
legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; d) se revelem
necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo» (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 4.ª
ed., Coimbra, 2007, 340).
Todos estes quatro requisitos se encontram aqui preenchidos.
A distinção objectiva de situações não oferece dúvidas, de acordo com o acima
exposto.
O mesmo se diga da não ocorrência de qualquer dos motivos ilegítimos de
discriminação, enunciados no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República.
O fim prosseguido com esta medida é também constitucionalmente relevante. Para
além do objectivo genérico de combate à corrupção, está em causa a salvaguarda
do atendimento exclusivo do interesse e da utilidade públicos por parte da
Administração Pública, de acordo com os parâmetros que a Constituição da
República lhe traça (artigo 266.º).
Ao prescrever uma comunicação da situação fiscal à tutela, para que esta possa
proceder a averiguações, o n.º 10 do artigo 89.º-A da LGT aditado pelo Decreto
em apreço mais não visa do que propiciar um controlo da observância deste
princípio fundamental de toda a nossa arquitectura constitucional. Subordinados
à Constituição e à lei (artigo 266.º, n.º 2, da CRP), os órgãos e agentes
administrativos “estão exclusivamente ao serviço do interesse público”, como
enfaticamente acentua o artigo 269.º, n.º 1. No âmbito da sua competência, a
entidade de tutela (aqui entendida em sentido amplo, por forma a abranger todas
as formas de direcção e controlo funcionais, independentemente da natureza
jurídica do vínculo que liga o visado à Administração Pública) deve assegurar,
como imperativo primário, o efectivo cumprimento destas injunções
constitucionais. Em conformidade, devem-lhe ser presentes situações anómalas,
que um órgão estadual detectou, ainda que a outro nível de funcionamento do
aparelho do Estado (mas dentro do exercício do mesmo tipo de poder – o poder
executivo do Estado) e que podem ter a ver com irregularidades do serviço pelo
qual responde.
Já oferece maior problematicidade a apreciação do respeito pelo princípio da
proporcionalidade, nas suas três projecções. Se a observância da adequação não
levanta dúvidas legítimas, poderá questionar-se se a medida é necessária e
proporcionada, em sentido estrito.
Quanto ao primeiro aspecto, dir-se-á que a comunicação ao Ministério Público,
sempre exigível, já assegura suficientemente a prossecução dos fins visados,
tornando dispensável a comunicação também ao órgão de tutela.
E é, na verdade, certo que, estando em causa eventuais ilícitos criminais, a
intervenção do Ministério Público é ou torna-se sempre necessária, por ele
devendo decorrer as averiguações a levar a cabo. Mas, a participação do órgão de
tutela pode justificar-se por uma razão diferente: tirar, no plano da
organização interna dos serviços, consequências dessa situação e desencadear as
medidas que se entendam apropriadas.
Por outro lado, convém não esquecer que poderão ter que ser averiguadas práticas
do foro exclusivamente disciplinar. Será o caso, por exemplo, do exercício
cumulativo de outras funções remuneradas ou lucrativas, quando proibidas ou não
autorizadas.
No que diz respeito ao critério da justa medida, poderá dizer-se que a simples
abertura de averiguações é de molde a causar incómodos, sendo certo que pode
ficar suficientemente comprovada a total licitude da situação. Mas esse é um
ónus que não se afigura excessivo, tendo também em conta que ele resulta da
atitude omissiva do próprio sujeito, ao não fornecer à Administração tributária
prova bastante da fonte dos seus meios de fortuna, nos termos do n.º 3 do artigo
89.º-A da LGT.
10. Em face do exposto, considera-se que existe fundamento material bastante
para a exigência de comunicação, pelo director de finanças, da decisão de
avaliação da matéria colectável com recurso ao método indirecto também à tutela
de funcionário ou titular de cargo sob tutela de entidade pública, para efeitos
de averiguações no âmbito da sua competência. A situação em que se encontram
estes sujeitos, comparativamente aos restantes contribuintes, diferencia-se sob
um ponto de vista que não é arbitrário nem irrazoavelmente discriminatório, pelo
que a medida legislativa tem suporte material adequado.
Conclui-se, assim, que não há qualquer violação do princípio da igualdade, mesmo
na formulação exigente acima enunciada.
B) Apreciação da constitucionalidade das normas constantes do artigo 3.º do
Decreto n.º 139/X da Assembleia da República
11. O artigo 3.º do Decreto n.º 139/X altera os artigos 69.º e 110.º do Código
de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
433/99, de 26 de Outubro, nos termos seguintes:
«Artigo 3.º
Alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário
Os artigos 69.º e 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, na redacção actual,
passam a ter a seguinte redacção:
Artigo 69.º
[…]
1- ……………………………………………………………………………
2- O direito de o órgão instrutor ordenar as diligências referidas
na alínea e) do número anterior pode compreender, sempre que fundamentadamente
se justifique face aos factos alegados pelo reclamante e independentemente do
seu consentimento, o acesso à informação e documentos bancários relativos à
situação tributária objecto de reclamação.
3- Para efeitos do número anterior, o órgão instrutor procede à
notificação das instituições de crédito, sociedades financeiras e demais
entidades, instruída com a decisão de acesso à informação e documentos
bancários, as quais devem facultar os elementos solicitados no prazo de dez dias
úteis.»
«Artigo 110.º
[…]
1- ……………………………………………………………………………
2- A prova adicional a que se refere o número anterior pode
compreender, sempre que se justifique face aos factos alegados pelo impugnante e
independentemente do seu consentimento, o acesso à informação e documentos
bancários relativos à situação tributária objecto da impugnação.
3- Para efeitos do disposto no número anterior as instituições de
crédito, sociedades financeiras e demais entidades devem facultar os elementos
no prazo de 10 dias úteis, sendo o prazo de 90 dias do n.º 1 ampliado nessa
medida.
4- [anterior n.º 2].
5- [anterior n.º 3].
6- [anterior n.º 4].
7- [anterior n.º 5].
8- [anterior n.º 6].
9- [anterior n.º 7].»
A redacção actual dos citados artigos 69.º e 110.º do CPPT é a seguinte:
«Artigo 69.º
Regras fundamentais
São regras fundamentais do procedimento de reclamação graciosa:
a) Simplicidade de termos e brevidade das resoluções;
b) Dispensa de formalidades essenciais;
c) Inexistência do caso decidido ou resolvido;
d) Isenção de custas;
e) Limitação dos meios probatórios à forma documental e aos elementos oficiais
de que os serviços disponham, sem prejuízo do direito de o órgão instrutor
ordenar outras diligências complementares manifestamente indispensáveis
à descoberta da verdade material;
f) Inexistência do efeito suspensivo, salvo quando for prestada garantia
adequada nos termos do presente Código, a requerimento do contribuinte a
apresentar com a petição, no prazo de 10 dias após a notificação para o efeito
pelo órgão periférico local competente.»
«Artigo 110º
Contestação
1 - Recebida a petição, o juiz ordena a notificação do representante da Fazenda
Pública para, no prazo de 90 dias, contestar e solicitar a produção de prova
adicional, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 5 do artigo 112.º
2 - O juiz pode convidar o impugnante a suprir, no prazo que designar, qualquer
deficiência ou irregularidade.
3 - O representante da Fazenda Pública deve solicitar, no prazo de três dias, o
processo administrativo ao órgão periférico local da situação dos bens ou da
liquidação, mas esse expediente não interfere no prazo da contestação previsto
no n.º 1.
4 - Com a contestação, o representante da Fazenda Pública remete ao tribunal,
para todos os efeitos legais, o processo administrativo que lhe tenha sido
enviado pelos serviços.
5 - O juiz pode, a todo o tempo, ordenar ao serviço periférico local a remessa
do processo administrativo, mesmo na falta de contestação do representante da
Fazenda Pública.
6 - A falta de contestação não representa a confissão dos factos articulados
pelo impugnante.
7 - O juiz aprecia livremente a falta de contestação especificada dos factos.»
12. Vem pedida a apreciação da conformidade das normas constantes daquele artigo
3.º com o disposto nos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 26.º, n.º 1, 52.º, 266.º e 268.º
da CRP.
O pedido convoca, pois, como parâmetros constitucionais de apreciação, os
seguintes:
i) Direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da CRP);
ii) Direito à tutela jurisdicional efectiva, uma das dimensões do conteúdo do
artigo 20.º da Constituição, entendido como corolário do princípio do Estado de
direito, consagrado no artigo 2.º;
iii) Direito de reclamação (artigo 52.º da CRP) e direito de os administrados
impugnarem judicialmente quaisquer actos administrativos que os lesem (artigo
268.º, n.º 4, da Lei Fundamental);
iv) Princípio da proporcionalidade (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP);
v) Princípio da boa fé da Administração, contido no artigo 266.º da CRP.
13. O artigo 3.º do Decreto sob escrutínio altera os artigos 69.º e 110.º do
CPPT no sentido de permitir o levantamento do sigilo bancário em caso,
respectivamente, de reclamação graciosa ou de impugnação judicial pelos
contribuintes, desde que fundadamente tal se justifique, nos termos que a seguir
melhor se explicitará.
Para sua apreciação, impõe-se começar por uma breve análise do actual regime de
acesso, pela Administração fiscal, à informação protegida por sigilo bancário.
O sigilo bancário encontra-se contemplado, como dever de segredo profissional,
nos artigos 78.º a 84.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
Prescreve o artigo 84.º do RGICSF que a violação do dever de sigilo bancário é
punível nos termos do Código Penal (artigo 195.º), sem prejuízo de outras
sanções aplicáveis.
A primeira excepção ao dever de observância do sigilo bancário é a dispensa
voluntária desse dever mediante autorização do cliente transmitida à instituição
bancária (artigo 79.º, n.º 1 do RGICSF). Para além disso, a lei prevê um
conjunto de situações de dispensa legal do dever de sigilo e até de imposição do
dever legal de informar.
Verifica-se que, ao longo do tempo, houve uma evolução extensiva do âmbito das
derrogações ao sigilo bancário: primeiro, em benefício do Banco de Portugal e da
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, enquanto autoridades de supervisão
(Decreto-Lei n.º 298/92, que estabeleceu o Regime Geral das Instituições de
Crédito e Sociedades Financeiras); mais tarde, em prol da Administração
tributária, embora circunscrito ao necessário para preparar o relatório de
inspecção tributária, quando pedida por iniciativa do contribuinte (Decreto-Lei
n.º 6/99, de 8 de Janeiro); depois, em benefício das autoridades judiciárias, no
âmbito do combate ao branqueamento de capitais (Decreto-Lei n.º 313/93, de 15 de
Setembro), ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas
(Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), à criminalidade organizada e à
criminalidade económica (Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro).
Com as alterações decorrentes da Lei n.º 30-G/2000, foram introduzidas novas
possibilidades de acesso a informações protegidas pelo segredo bancário, por
determinação directa da Administração tributária.
Concretamente, o artigo 63.º-B da LGT (com alterações, por último, pela Lei n.º
55-B/2004, de 30 de Dezembro), admite as seguintes derrogações ao sigilo
bancário:
a) Acesso sem prévia autorização judicial
e sem solicitar previamente a colaboração do contribuinte, quando existam: i)
indícios da prática de crime em matéria tributária; ii) factos concretamente
identificados, indiciadores da falta de veracidade do declarado (n.º 1 do artigo
63.º-B da LGT);
b) Acesso sem prévia autorização judicial,
após recusa de exibição ou de autorização para consulta e após audiência prévia
do contribuinte, nos casos tipificados nas alíneas dos n.ºs 2 e 3 do artigo
63.º-B (artigo 63.º-B, n.ºs 2, 3 e 5, da LGT);
c) Acesso com prévia autorização judicial
no caso de informação bancária relativa a familiares ou terceiros que se
encontrem numa relação especial com o contribuinte (n.º 8 do artigo 63.º-B).
Nos casos acima referidos nas alíneas a) e b), estabelece-se o acesso directo da
Administração à informação (isto é, sem dependência de autorização judicial
prévia), mas apenas para as situações aí expressamente enumeradas, mediante o
preenchimento de determinados requisitos e assegurando algumas garantias ao
contribuinte (v. PAULA BARBOSA, “Do valor do sigilo – o sigilo bancário, sua
evolução, limites: em especial o sigilo bancário no domínio fiscal – a reforma
fiscal” in RFDUL, 2005, vol. XLVI, n.º 2, 1265).
Essas garantias e requisitos são os seguintes:
- necessidade de fundamentação da decisão, «com expressa menção dos motivos
concretos que as justificam» − n.º 4 do artigo 63.º-B;
- audiência prévia do contribuinte visado (com excepção dos casos previstos no
n.º 1 do artigo 63.º-B em que se permite um acesso directo e imediato) – n.º 5
do artigo 63.º-B;
- competência exclusiva do director-geral dos Impostos ou do director-geral das
Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo ou dos seus substitutos
legais para tomarem este tipo de decisão (sem possibilidade de delegação) – n.º
4 do artigo 63.º-B;
- possibilidade de recurso judicial da decisão, através do meio processual
urgente previsto no artigo 146.º-B do CPPT que, embora só tenha efeito
suspensivo nos casos do n.º 3 do artigo 63.º-B, conduz, nos casos de deferimento
do recurso, à impossibilidade de utilização dos elementos de prova entretanto
obtidos em desfavor do contribuinte - n.ºs 5 e 6 do artigo 63.º-B.
14. As normas constantes do artigo 3.º do Decreto sob escrutínio vêm estabelecer
ex novo que a Administração tributária pode suscitar a derrogação do dever de
sigilo bancário, no âmbito do procedimento administrativo de apreciação de
reclamação graciosa, assim como no âmbito do processo judicial de impugnação de
acto tributário.
Vejamos em que termos, num caso e noutro.
No procedimento administrativo de reclamação graciosa, que se caracteriza por
ser um procedimento simples e breve (artigo 69.º, alínea a), na redacção
actual), o órgão instrutor pode ordenar “outras diligências complementares
manifestamente indispensáveis à descoberta da verdade material” (alínea e) do
mesmo artigo).
Note-se que a reclamação graciosa desencadeada pelo contribuinte destina-se a
obter uma reanálise de uma certa situação pela Administração fiscal e é uma via
normal de resolução de um litígio entre esta e o sujeito passivo do imposto. Ou
seja, através deste procedimento, o contribuinte pretende obter a anulação
(extrajudicial) de actos tributários, maxime, do acto de liquidação do imposto
(artigo 68.º, n.º 1, do CPPT), com fundamento, nomeadamente, na errónea
qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e
outros factos tributários; na incompetência; na ausência ou vício da
fundamentação legalmente exigida; na preterição de outras formalidades legais
(artigo 99.º, aplicável por força do artigo 70.º, n.º 1, do CPPT).
Além disso, há casos em que impugnação judicial é obrigatoriamente precedida de
reclamação graciosa. É o que se passa, designadamente, nas situações previstas
nos artigos 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 3, 133.º, n.º 2, e 134.º n.ºs 3 e 7, do
CPPT, e no artigo 86.º, n.ºs 2 e 5, da LGT.
O acesso à informação bancária seria permitido nos termos que constam do n.º 1,
alínea e), e do n.º 2 do artigo 69.º, na redacção do artigo 3.º do Decreto n.º
139/X:
i) sem prévio consentimento do contribuinte e sem prévia autorização judicial;
ii) desde que «fundamentadamente se justifique face aos factos alegados pelo
reclamante» e se apresente como uma diligência complementar manifestamente
indispensável à descoberta da verdade material;
iii) desde que a informação e documentos bancários cujo acesso se pretende sejam
relativos à «situação tributária objecto de reclamação».
Nos termos do disposto no artigo 73.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, a competência para a
instrução da reclamação graciosa, incluindo a decisão de ordenar o acesso à
informação e documentos bancários relativos à situação tributária objecto de
reclamação, cabe, em princípio, ao serviço periférico local, ou seja, em regra,
ao serviço de finanças da área do domicílio do contribuinte, da situação dos
bens ou da liquidação.
A situação descrita aplica-se mutatis mutandis ao caso de levantamento do sigilo
bancário pela Administração fiscal em sede de processo judicial de impugnação.
No processo de impugnação judicial − que visa a eliminação (anulação, declaração
de nulidade ou de inexistência) de actos tributários, com os fundamentos acima
referidos (cfr. artigos 99.º e seguintes do CPPT) − a Fazenda Pública pode, em
sede de contestação, solicitar a produção de prova adicional (n.º 1 do artigo
110.º).
A nova redacção do n.º 2 do artigo 110.º, vem permitir que essa prova adicional
compreenda, “sempre que se justifique face aos factos alegados pelo impugnante e
independentemente do seu consentimento, o acesso à informação e documentos
bancários relativos à situação tributária objecto da impugnação”.
À semelhança do que dispõe o novo n.º 3 do artigo 69.º, o n.º 3 do artigo 110.º
(na redacção do artigo 3.º do Decreto n.º 139/X) esclarece que, para efeitos do
acesso a essa informação «as instituições de crédito, sociedades financeiras e
demais entidades devem facultar os elementos no prazo de 10 dias úteis», sendo o
prazo para contestar ampliado nessa medida.
Em suma, tanto na situação de reclamação graciosa como na de impugnação judicial
de actos tributários, prevê-se a possibilidade de a Administração fiscal aceder
directamente, isto é, sem o consentimento prévio do interessado e sem
necessidade de autorização judicial, a informação coberta pelo sigilo bancário,
desde que esse acesso se mostre justificado perante os factos alegados pelo
reclamante/impugnante e desde que a informação bancária esteja relacionada com a
situação tributária objecto da reclamação/impugnação.
15. Descrito o regime vigente e apontadas as alterações contidas no artigo 3.º
do Decreto n.º 139/X, é altura de estabelecer o confronto entre ambos.
As novas normas apresentam diferenças assinaláveis relativamente ao regime do
artigo 63.º-B da LGT, acima descrito.
A primeira e mais saliente inovação prende-se com o facto de a derrogação ser
desencadeada por uma iniciativa do contribuinte, em defesa dos seus direitos. Na
verdade, prevê-se o acesso à informação bancária na sequência de um procedimento
administrativo de segundo grau iniciado pelo contribuinte (reclamação) ou na
sequência de impugnação judicial do acto tributário. Em qualquer caso, a
actividade da Administração e os poderes inquisitórios que lhe compete exercer
estarão conformados pelo objecto da reclamação ou da impugnação, decorrentes do
pedido formulado (neste sentido, v., em anotação ao artigo 58.º da LGT, LEITE DE
CAMPOS/ BENJAMIM RODRIGUES/ LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária, comentada e
anotada, 3ª ed., 2003, Lisboa, 269).
Em segundo lugar, na redacção dada pelo Decreto n.º 139/X aos n.ºs 2 e 3 do
artigo 69.º e aos n.ºs 2 e 3 do artigo 110.º, não se prevê a audiência prévia do
contribuinte, nem se prevê que a informação bancária seja solicitada, em
primeiro lugar, ao seu titular.
Esta conclusão resulta, desde logo, da inexistência de previsão expressa dessa
audiência prévia, sendo de salientar que a primeira versão da Proposta de lei
n.º 85/X, que esteve na génese do Decreto n.º 139/X, propunha uma redacção
diferente do artigo 69.º da LGT, que a seguir se transcreve:
«3 – Para efeitos do número anterior, o órgão instrutor solicita ao reclamante,
por simples via postal, para no prazo de 10 dias úteis fornecer a informação e
os documentos bancários relevantes para a apreciação da reclamação.
4 – Caso a informação solicitada não seja fornecida no prazo indicado, ou seja
considerada insuficiente, o órgão instrutor procede à notificação das
instituições de crédito, sociedades financeiras e demais entidades, instruída
com a decisão de acesso à informação e documentos bancários, as quais devem
facultar os elementos solicitados no prazo de 10 dias úteis.» (v. Proposta de
lei n.º 85/X publicada no Diário da Assembleia da República, II Série A, de 29
de Julho de 2006).
Esta solicitação prévia ao contribuinte foi abandonada na redacção final que
veio a ser aprovada e que consta do Decreto em apreço, da qual agora resulta
que, uma vez tomada a decisão de aceder à informação, a Administração procede à
notificação das instituições bancárias, que devem facultar os elementos no prazo
de 10 dias.
Por outro lado, a fase do procedimento de reclamação em que se insere o problema
do acesso à informação bancária é a fase da instrução, pelo que não é ainda
aplicável o princípio geral de audição do interessado consagrado no artigo 60.º
da LGT. Na verdade, só após a conclusão da instrução e tendo a Administração
formado um projecto de decisão (decisão essa que, em certos casos, nem é da
competência do órgão que instruiu a reclamação – cfr. o artigo 73.º do CPPT),
será o reclamante notificado para exercer o seu direito de audição previsto no
artigo 60.º da LGT.
Não há um dever geral de prévia audição do reclamante quanto às diligências de
prova que a Administração considera necessárias para a instrução da reclamação.
Por isso mesmo é que o artigo 63.º-B da LGT, nos casos em que a quis assegurar,
veio dizê-lo expressamente (n.º 5). Ao invés, a nova previsão é totalmente
omissa quanto a essa garantia.
A inexistência de uma previsão que contemple a audiência do interessado antes da
decisão de aceder à informação bancária é ainda mais óbvia quando esteja em
causa a impugnação judicial do acto tributário. Pois aqui a Administração
tributária tomará essa decisão em sede de contestação do processo, pela Fazenda
Pública. Ora, como expressamente resulta do disposto no novo n.º 3 do artigo
110.º, uma vez tomada a decisão, a Administração solicita as informações às
instituições de crédito, que as devem facultar no prazo de 10 dias, sendo do seu
interesse comunicar tais diligências ao tribunal, para efeitos de obter a
ampliação do prazo para a contestação.
Em terceiro lugar, e também ao contrário do que expressamente resulta do n.º 5
do artigo 63.º-B da LGT, não se prevê especificamente a possibilidade de recurso
judicial da decisão de aceder à informação bancária tomada no âmbito do artigo
69.º ou do artigo 110.º do CPPT.
Essa omissão não pode evidentemente significar a inimpugnabilidade judicial
daquela decisão da Administração, pois, além do mais, tal solução brigaria com o
direito de acesso à justiça administrativa que o artigo 268.º, n.º 4, da CRP,
consagra, como concretização da garantia de acesso aos tribunais (artigo 20.º).
Na falta de indicação normativa específica, o intérprete sente-se levado a
lançar mão do recurso urgente previsto no artigo 146.º-A do CPPT. Na verdade, no
seu n.º 1, esta norma refere genericamente as «situações legalmente previstas de
acesso da Administração tributária à informação bancária para fins fiscais»,
pelo que abrange formalmente as hipóteses em apreço.
Simplesmente, não se vislumbra como será possível articular o procedimento de
reclamação e, principalmente, o processo de impugnação judicial com um processo
judicial autónomo de apreciação da legalidade da decisão de acesso à informação
bancária, sem norma expressa que, nomeadamente, fixe os efeitos desse recurso
judicial. Estando a decorrer uma impugnação judicial, seria inusitado e
verdadeiramente anómalo abrir um novo processo para decisão sobre um meio de
prova a utilizar naquela.
Parece, por isso, de concluir que o meio judicial urgente de impugnação da
decisão de acesso à informação bancária, a que eventualmente se poderia
recorrer, dificilmente poderá ser exercitado, muito menos em tempo útil, nos
casos aqui em apreço.
Em quarto lugar, não pode deixar de se assinalar a diferença entre os órgãos
competentes para decidir a necessidade de acesso à informação bancária. Enquanto
que, no artigo 63.º-B, essa competência é reservada aos directores-gerais ou
seus substitutos legais, no caso da reclamação graciosa, a competência para
decisão idêntica é atribuída ao órgão periférico local (em regra, serviço de
finanças), a quem incumbe a instrução da reclamação. A atribuição de competência
a órgãos superiores da Administração fiscal oferece, à partida, maiores
garantias, do ponto de vista competencial, e diminui fortemente o risco de
proliferação de decisões desencontradas, quanto à interpretação dos pressupostos
relevantes.
Estas assinaláveis diferenças de regime não podem deixar de ser ponderadas na
avaliação da conformidade constitucional das medidas em apreço.
É essa conformidade que vamos passar a analisar, começando pela afectação, ou
não, do direito à reserva da vida privada.
16. O segredo bancário não esperou pela moderna consagração dos direitos de
personalidade e dos direitos fundamentais para vigorar na prática bancária. Pode
dizer-se que desde sempre esteve institucionalmente presente na actividade deste
sector económico, como factor e garantia do funcionamento eficiente do sistema.
Mas é incontroverso que a fundamentação jurídica desse regime ganhou um novo
respaldo com a sua recondução, por largos sectores doutrinais e
jurisprudenciais, à tutela da privacidade. Com isso, o instituto rompeu as
fronteiras da relação contratual banqueiro-cliente, para assumir uma dimensão e
implicações jurídico-constitucionais.
A confirmar-se o acerto deste enquadramento, o direito ao sigilo fica dotado de
uma reforçada força de resistência a intrusões no âmbito protegido. De facto, se
o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º
1, da Constituição da República) puder ser visto como integrando o direito ao
segredo sobre os dados bancários respeitantes ao sujeito titular, a este direito
será aplicável o regime dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente
consagrado.
Esse regime contém, como nota saliente, a vinculação das entidades públicas e
privadas aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República), bem como a
salvaguarda de certos limites a respeitar nas intervenções que os restrinjam
(n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo).
Deste modo, a questão de saber se o segredo bancário recai no âmbito de
protecção do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada é uma
verdadeira questão prévia, cuja solução marca decisivamente a oponibilidade à
Administração Pública, e seus termos, da proibição de acesso aos dados bancários
dos particulares.
É pela resposta a essa questão que começaremos o nosso percurso argumentativo.
16.1. Das três manifestações em que se fracciona o conteúdo do direito à reserva
da intimidade da vida privada e familiar – direito à solidão, direito ao
anonimato, e autodeterminação informativa – é esta última a sua expressão
cimeira e mais relevante, e aquela que particularmente nos interessa quando está
em causa o estatuto constitucional do sigilo bancário.
Por autodeterminação informativa poderá entender-se o direito de subtrair ao
conhecimento público factos e comportamentos reveladores do modo de ser do
sujeito na condução da sua vida privada. Compete a cada um decidir livremente
quando e de que modo pode ser captada e posta a circular informação respeitante
à sua vida privada e familiar.
Mas a determinação do domínio de reserva do sujeito, como objecto desse direito,
não é tarefa fácil, dada a dificuldade de delimitação precisa do que seja a
“vida privada”.
Indicativamente poderá dizer-se que o conceito cobre a esfera de vida de cada um
que deve ser resguardada do “público”, como condição de plena realização da
identidade própria e de salvaguarda da integridade e da dignidade pessoais.
Independentemente da posição perfilhada quanto a certas teorias que – em termos,
aliás, não unívocos – diferenciam várias esferas concêntricas da vida privada,
adere-se à posição de que, quer no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da
República, quer no artigo 80.º do Código Civil, se consagra um direito genérico
à reserva, cobrindo todo o âmbito da vida privada. A fórmula “reserva sobre a
intimidade da vida privada”, em ambas as normas utilizadas, não pode, pois, ser
interpretada no sentido de circunscrever o domínio de protecção a uma certa
parte da vida privada – a vida íntima, como núcleo central da vida privada.
Um pouco redundante, aquela fórmula normativa terá querido denotar o interesse
protegido, demarcando-o do interesse coberto pela liberdade de condução de vida,
e em particular da vida privada, de acordo com as opções próprias (nesse
sentido, P. MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, Boletim da Faculdade de Direito, LXIX (1993), 479 s., 530-531,
referenciando T. AULETTA). Sendo ambos os direitos serventuários de valores de
liberdade, e estando eles unificados no muito genérico conceito norte-americano
de privacy, são entre nós tratados distintamente – o livre desenvolvimento da
personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República e artigo 70.º do
Código Civil), como liberdade comportamental, de livre conformação e expressão
da personalidade, e o direito à reserva, facultando o livre controlo da
informação sobre aquilo que, em decorrência dessa liberdade de conduta, cada um
faz na sua esfera privada (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República e
artigo 80.º do Código Civil).
No plano constitucional, esta interpretação no sentido de que toda a vida
privada é objecto de reserva obtém um claro apoio no disposto no artigo 12.º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aí se proclama que «ninguém sofrerá
intromissões na sua vida privada (…)», sem qualquer especificação restritiva.
Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Constituição da República, «os
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem».
Sem embargo do que fica dito, e sem prejuízo da unidade do valor coenvolvido no
dever de reserva enquanto autodeterminação informativa, reconhece-se, todavia,
que é possível e justificado estabelecer graduações diferenciadoras entre zonas
da vida privada, consoante a sua maior ou menor ligação aos atributos
constitutivos da personalidade. Ainda que se deva evitar as sectorizações
rigidamente tipificadoras, é forçoso admitir que as exigências de
inviolabilidade da esfera privada não se fazem sentir de forma “plana” e
uniforme, no interior da área de tutela. O que tem reflexos de regime, sobretudo
no que diz respeito ao apuramento da gravidade da lesão e dos seus efeitos
danosos, para fixação de montantes indemnizatórios e para a realização adequada
da tarefa de ponderação com outros interesses constitucionalmente protegidos.
Sendo este o âmbito objectivo do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada, é altura de perguntar: cabe nele o sigilo bancário?
16.2. A integração no âmbito normativo de protecção do direito à reserva da
intimidade da vida privada dos dados relativos à situação económica de uma
pessoa em poder de uma instituição bancária é de molde a provocar alguma
perplexidade, se tivermos em conta a natureza e o sentido tutelador dos direitos
da personalidade, que, neste ponto, constituem a matriz do imperativo
constitucional. Poderá, na verdade, pensar-se que, estando em causa a protecção
dos atributos da pessoa, dos bens constitutivos e expressivos da sua
personalidade, só podem ser abrangidas situações subjectivas existenciais, sendo
de rejeitar, à partida, a inclusão de aspectos patrimoniais, respeitantes ao ter
da pessoa.
A isso há a contrapor que não é possível estabelecer, sobretudo nas sociedades
dos nossos dias, uma separação estanque entre a esfera pessoal e a patrimonial.
A posição económica de cada um não deixa de ser uma projecção externa da pessoa,
constituindo um dado individualizador da sua identidade. E o sujeito pode ter,
também no plano pessoal, um interesse tutelável, e tutelável
constitucionalmente, a que, não só o montante e o conteúdo do seu património,
mas também certas vicissitudes, favoráveis e desfavoráveis, que ele pode
experimentar (saída de um prémio de um jogo, recebimento de uma herança,
encargos com uma determinada opção de vida, por exemplo) sejam mantidos fora do
conhecimento dos outros.
Não custa, assim, admitir “uma esfera privada de ordem económica, também
merecedora de tutela” (ALBERTO LUÍS, Direito bancário, Coimbra, 1985, 88), como
componente da mais geral esfera da privacidade.
No caso particular dos dados e documentos na posse de instituições bancárias,
concernentes às suas relações com os clientes, há um argumento suplementar, que
cremos decisivo, nesse sentido. Mormente no que respeita às operações passivas
de movimentação da conta, não é apenas, nem é tanto, o conhecimento da situação
patrimonial, em si mesma, que pode ser intrusivo da privacidade. O que
sobremaneira importa é o facto de esse conhecimento, numa época em que se
vulgarizou e massificou a realização de transacções através dos movimentos em
conta, designadamente pela utilização de cartões de crédito e de débito – o
chamado “dinheiro de plástico” – propiciar um retrato fiel e acabado da forma de
condução de vida, na esfera privada, do respectivo titular.
É sobretudo como instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, de
natureza não patrimonial, que, de outra forma, seriam indirectamente revelados,
que o sigilo bancário deve ser constitucionalmente tutelado.
Na verdade, como se disse no processo decidido pelo Tribunal Constitucional
espanhol, pelo acórdão 110/1984, de 26 de Novembro, «uma conta-corrente pode
constituir ‘a biografia pessoal em números’ do contribuinte» (apud PISÓN CAVERO,
El derecho a la intimidade en la jurisprudencia constitucional, Madrid, 1993,
179). Através da análise do destino das importâncias pagas na aquisição de bens
ou serviços, pode facilmente ter-se uma percepção clara das escolhas e do estilo
de vida do titular da conta, dos seus gostos e propensões, numa palavra, do seu
perfil concreto enquanto ser humano. O conhecimento de dados económicos permite,
afinal, a invasão da esfera pessoal do sujeito, com revelação de facetas da sua
individualidade própria – daquilo que ele é e não apenas daquilo que ele tem.
Conhecimento que, por sua vez, e para além de tudo o mais, é susceptível de
exploração económica (veja-se o florescente mercado de informações sobre dados
dos consumidores), propiciando afinadas estratégias de marketing, frequentemente
violadoras do direito à reserva, agora na sua veste de direito a estar só.
Conclui-se, assim, que o bem protegido pelo sigilo bancário cabe no âmbito de
protecção do direito à reserva da vida privada consagrado no artigo 26.º, n.º 1,
da Constituição da República.
Essa inclusão só é problemática em relação às pessoas colectivas, muito
particularmente as sociedades comerciais, pelo facto de não valerem (ou, pelo
menos, de não valerem de igual modo), em relação a elas, as considerações
fundamentadoras acima aduzidas, que se apoiam na possibilidade de acesso à
esfera mais pessoal.
16.3. Mas uma coisa é o âmbito de protecção, prima facie, de uma previsão de um
direito fundamental, outra é o seu âmbito de garantia efectiva (cfr. GOMES
CANOTILHO, “Dogmática de direitos fundamentais e direito privado”, in INGO
SARLET (org.), Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2.ª ed.,
Porto Alegre, 2006, 341 s., esp. 346 s.).
Este só se recorta, neste caso, em resultado de um balanceamento entre os
interesses e valores ligados à tutela da privacidade e os interesses, também
constitucionalmente protegidos, com eles conflituantes.
Nessa ponderação, e na lição de CANARIS (a propósito dos imperativos
constitucionais de protecção, mas com considerações transponíveis, ao que
julgamos, para uma metodologia geral da ponderação), há que levar em conta, não
só a relação hierárquica abstracta entre os bens em conflito, mas também “o peso
concreto dos bens e interesses envolvidos” – cfr. Direitos fundamentais e
direito privado, trad. port. de Ingo Sarlet e P. Mota Pinto, Coimbra, 2003, 112
s. E, nesta ponderação contextualizada de interesses, não pode deixar de se dar
relevo decisivo ao “nível do direito fundamental afectado” e ao grau da sua
lesão.
Ora, o segredo bancário localiza-se no âmbito da vida de relação, à partida fora
da esfera mais estrita da vida pessoal, a que requer maior intensidade de
tutela. Ainda que compreendido no âmbito de protecção, ocupa uma zona de
periferia, mais complacente com restrições advindas da necessidade de
acolhimento de princípios e valores contrastantes.
Posição esta defendida no recente Acórdão n.º 42/2007 deste Tribunal, onde
expressamente se afirma: “O segredo bancário não é abrangido pela tutela
constitucional de reserva da vida privada nos mesmos termos de outras áreas da
vida pessoal”.
A susceptibilidade de “restrições [ao segredo bancário] impostas pela
necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos” foi, também, amplamente admitida pelo Acórdão n.º 278/95 deste
Tribunal, logo após se ter considerado o sigilo bancário integrado no âmbito de
protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada.
Por outro lado, quando a quebra do sigilo bancário promana da Administração
fiscal, não pode olvidar-se que ela não implica a abertura desses dados ao
conhecimento geral, não tendo o impacto de abrir a porta a uma devassa pública.
Na verdade, os conhecimentos obtidos pelo exercício da função tributária estão
sujeitos ao dever de confidencialidade (artigo 64.º da Lei Geral Tributária) e a
sua violação está tipificada de forma mais gravosa, face ao crime de violação do
sigilo profissional (cfr. o artigo 91.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções
Tributárias e o artigo 195.º do Código Penal, por um lado, e artigo 383.º deste
Código e os n.ºs 2 e 3 daquele artigo 91.º, por outro).
Nessa medida, o levantamento do sigilo bancário mantém a reserva quanto aos
dados que dele são objecto, através da sua cobertura pelo sigilo fiscal, o que
permitiu que se afirmasse que “a tutela dos legítimos interesses dos
contribuintes que seria propiciada pelo sigilo bancário continua a estar
garantida ainda que noutra sede e com menos condições” (BENJAMIM RODRIGUES, “O
sigilo bancário e o sigilo fiscal”, in AAVV., Sigilo bancário, Lisboa, 1997, 103
s., 112).
Só não é inteiramente assim porque o conteúdo do direito à reserva,
contrariamente ao que o termo inculca, abrange não só a não difusão de dados,
mas também a própria tomada de conhecimento. O acesso, em si mesmo e para
prevenir a posterior divulgação, também está protegido (cfr., por todos, PAULO
MOTA PINTO, “A protecção da vida privada e a Constituição”, Boletim da Faculdade
de Direito, LXXVI (2000), 153 s., 169).
Ora, com a derrogação do sigilo bancário por parte da Administração fiscal,
verifica-se o alargamento do círculo de pessoas que tomam conhecimento dos dados
protegidos (ainda que se trate de pessoas obrigadas a guardar segredo), com “o
inerente risco de este mais facilmente poder vir a ser violado”. Mas, não
obstante, é absolutamente certo que, em caso de levantamento do sigilo bancário
pela Administração fiscal, o sigilo fiscal “deixa salvaguardado o conteúdo
essencial tanto do direito à privacidade da vida privada e familiar dos
contribuintes como da dinâmica da actividade bancária” (CASALTA NABAIS, O dever
fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1997, 619; para uma qualificação do
sigilo fiscal como “instrumento jurídico privilegiado” de garantia do direito à
reserva da vida privada e familiar, cfr. o Acórdão n.º 256/2002 do Tribunal
Constitucional).
Constata-se, pois, que, não só o sigilo bancário cobre uma zona de segredo
francamente susceptível de limitações, como a sua quebra por iniciativa da
Administração tributária representa uma lesão diminuta do bem protegido.
16.4. Se é assim do lado do direito à reserva, o que é que pode dizer-se do lado
dos interesses ligados à Administração fiscal que poderão justificar o seu
sacrifício?
Leia-se o que, neste contexto de confronto com o sigilo bancário, se escreveu
sobre os fins do sistema fiscal, no relatório apresentado, em 1996, pela
Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal (Comissão Silva Lopes):
«Trata-se de prosseguir, não um, mas vários objectivos de interesse público,
tantos quantas são as funções reconhecidas ao imposto: a da obtenção das
receitas necessárias à efectivação das despesas públicas, de acordo com a qual
cada indivíduo deverá pagar segundo a sua capacidade contributiva; a da
regulação da actividade económica, sempre que o imposto seja utilizado como
instrumento de políticas económicas conjunturais; e, por último, a de repartição
da carga fiscal em harmonia com os princípios da equidade horizontal e da
progressividade. Sucede que a adequada distribuição dos encargos tributários,
tendo em vista a consecução de um ou de todos aqueles objectivos de interesse
público, só pode alcançar-se através da atribuição à Administração Fiscal de
meios efectivos de controlo. Não será aceitável que o direito à privacidade
tenha de ser protegido nos casos em que esteja a ser invocado para que algumas
pessoas singulares ou colectivas possam escapar às obrigações fiscais cumpridas
por outros contribuintes em situação semelhante» (apud PAULA BARBOSA, ob. cit.,
1255, n. 43).
Estamos, pois, perante um relevantíssimo interesse público e, o que é mais,
perante um interesse público a satisfazer de acordo com parâmetros
constitucionalmente fixados. Em face da exigência primária de obtenção de
receitas para suporte das despesas públicas e a realização dos fins do Estado
social de direito, aos cidadãos é imposto, como encargo de cidadania, “o dever
fundamental de pagar impostos”. O modo de cumprimento desse dever e a
estruturação do sistema fiscal que o enquadra estão submetidos a princípios, de
tributação segundo a capacidade contributiva e de distribuição equitativa da
carga fiscal, que visam, em último termo, assegurar a justiça fiscal.
No âmbito da tributação do rendimento, aceita-se hoje pacificamente, nas
“sociedades bem ordenadas”, que o modo eficiente de realizar estes objectivos
assenta em que a matéria colectável seja determinada com base na declaração
tributária do contribuinte (nas sociedades comerciais, com base no lucro apurado
através da sua contabilidade).
Ora, na lógica do sistema de uma Administração fiscal de cunho predominantemente
fiscalizador e de controlo, e na prossecução dos valores de justiça e equidade
que informam a constituição fiscal, essa posição do contribuinte não pode deixar
de ter como contrapartida o seu dever de cooperação, traduzido na apresentação,
nos prazos fixados, da declaração de rendimentos e na sujeição do seu conteúdo à
verdade material (cfr. SALDANHA SANCHES, “Segredo bancário, segredo fiscal: uma
perspectiva funcional”, Fiscalidade, 21 (2005), 33 s., 37-40).
O princípio da tributação segundo a declaração do contribuinte tem, pois, como
natural corolário, a possibilidade de controlo por parte da Administração, sob
pena de resultarem irremediavelmente frustrados aqueles objectivos e valores que
moldam a “estrutura básica” (para empregarmos um conceito de JOHN RAWLS) da
sociedade politicamente organizada.
A esse controlo não podem subtrair-se, de plano e sem mais, os elementos sobre o
património e rendimentos do contribuinte em poder das instituições bancárias com
quem ele está em relação, em particular os saldos e movimentações referentes a
depósitos bancários. Atendendo ao peso relativo dos interesses aqui ligados à
tutela da privacidade e ao diminuto grau da sua afectação, em concreto, pelo
levantamento do sigilo bancário, por um lado, e à intensidade da exigência de
efectivação da justiça fiscal, por outro, pode concluir-se que, em certas
condições, é constitucionalmente legítima a restrição, com este fundamento, do
direito à privacidade.
O princípio da distribuição equitativa da carga fiscal capacita a Administração
para realizar uma investigação tributária que não pode ser limitada, em
absoluto, pelo sigilo bancário. Mesmo num sistema, como o nosso, fortemente
garantístico, em termos de direito comparado, não existe base constitucional
para que os dados que, em princípio, estão cobertos pelo segredo constituam uma
espécie de “reduto inacessível” ao poder inspectivo da Administração fiscal.
Ainda quando perspectivado como representando uma restrição a um direito
fundamental, o acesso a esses dados está legitimado, em certas condições, pela
vinculação das entidades públicas à preservação de outros bens
constitucionalmente consagrados.
16.5. Ponto é que, na modelação concreta do regime legal, se prevejam resguardos
e se consagrem mecanismos que, na medida do compatível com o essencial dos
objectivos que estão por detrás do levantamento do sigilo bancário, acautelem
ainda, de certa maneira, os interesses cobertos pela tutela constitucional da
privacidade.
Nos seus pressupostos e na sua forma processual e procedimental de exercício, a
derrogação do sigilo deve obedecer a critérios que evitem uma pouco condicionada
ou excessiva intromissão, para além do necessário à satisfação dos fins
constitucionais que a ela presidem.
Como se escreveu no Acórdão n.º 602/2005 deste Tribunal:
«Sendo o controlo administrativo das movimentações bancárias dos contribuintes,
como método de avaliação da sua situação fiscal, uma realidade recente (…), e
postando-se como necessário – e, quantas vezes para tanto como imprescindível –
o conhecimento das respectivas operações, não se poderá deixar de concluir que
se torna justificada, para proteger o bem constitucionalmente protegido da
distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e do dever
fundamental de pagar impostos, a procura da consagração de uma articulação
ponderada e harmoniosa da reserva (se não da intimidade da vida privada, ao
menos da reserva de uma parte do acervo patrimonial) acarretada pelo sigilo
bancário e dos interesses decorrentes dos citados direito e dever».
O que implica uma cuidada ponderação de eventuais meios alternativos, menos
intrusivos, susceptíveis de conjugar harmonicamente ambas as exigências: as de
tutela da privacidade e as de justiça e igualdade fiscais (cfr. SANTAMARIA
PASTOR, “Derecho a la intimidad, secretos y otras cuestiones innombrables”,
Revista española de derecho constitucional, n.º 15, 1985, 159 s., 171.
Para esse efeito, tendo as normas contidas no artigo 3.º do Decreto n.º 139/X da
Assembleia da República conexionado a perda da reserva da privacidade com uma
iniciativa procedimental ou processual do contribuinte, em defesa dos seus
interesses, há que ajuizar se os princípios constitucionais que asseguram o
acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, com garantias de equidade
procedimental e processual, foram ou não suficientemente acautelados. Eles
próprios, em si mesmos, direitos fundamentais, com o estatuto dos direitos,
liberdades e garantias, gozando portanto, de valência autónoma, esses direitos
servem à protecção de outros direitos, entre os quais o de reserva da
privacidade.
Temos, pois, que fazer entrar, no campo valorativo, esses direitos e princípios,
para apreciar se eles são afectados pela disciplina legal em concreto
estabelecida.
17. Na óptica do que fica dito, há que ajuizar se o regime que o n.º 3 do
Decreto 139/X da Assembleia da República visa introduzir satisfaz ou não as
exigências constitucionais garantísticas, quanto ao procedimento e ao processo
administrativos.
Nesta matéria, o princípio primário é o do Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2.º, particularmente no segmento que baseia a República
Portuguesa «no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais». Esse princípio projecta-se no direito do acesso ao direito e à
tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), o qual, por sua vez, no que
respeita à relação cidadão-Administração, encontra uma concretização
particularizadora no artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
Todas estes preceitos formam um bloco normativo, pelo que os trataremos conjunta
e articuladamente. Antes, porém, de entrarmos no fundo da questão, importa fazer
uma curta alusão ao enquadramento constitucional do direito a reclamar.
17.1. Não é uniforme, entre nós, o entendimento sobre qual o suporte normativo
da tutela constitucional do direito de reclamação, enquanto direito no âmbito de
um específico procedimento administrativo.
No sentido de que essa tutela não se inclui no disposto no artigo 52.º da CRP,
já se pronunciou este Tribunal, no Acórdão n.º 198/2003, defendendo que nessa
norma se trata de «um direito que comporta os direitos de representação,
reclamação ou queixa, que se desenvolvem em paralelo com os direitos que se
desenvolvem no procedimento administrativo ou na acção jurisdicional formais».
Na doutrina, aparentemente, admite-se a posição contrária (cfr. JORGE MIRANDA/
RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, 495-496; GOMES
CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, ob. cit., 696, e M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO DE
MATOS, Direito administrativo geral, III, Lisboa, 2007, 207-208).
De todo o modo, aquela primeira posição não põe em causa a dignidade
constitucional de um «direito à actuação administrativa perspectivado na
dimensão de um direito à decisão», no qual não pode deixar de se incluir o
direito à reclamação. Como se escreve no acórdão citado:
«(...) tal direito considerar-se-ia implícito nos grandes princípios
constitucionais, sejam eles o direito a uma resposta da Administração, conforme
resulta do citado artigo 52.º, n.º 1, da CR, seja o princípio da legalidade a
que a Constituição, no seu artigo 266.º, subordina a Administração Pública (ou
de constituir uma decorrência deles, se não mesmo do próprio princípio do Estado
de Direito, conjugado com o “monopólio da autoridade” do Estado), seja ele ainda
o dos “direitos dos administrados”, de que se trata no artigo 268.º daquela».
Independentemente da posição a tomar nesta matéria, o que cumpre, neste
contexto, sobremodo salientar, até pelas atinências com pontos que
posteriormente teremos que tratar, é que, como diz GOMES CANOTILHO, «a exigência
de um procedimento juridicamente adequado para o desenvolvimento da actividade
administrativa considera-se como dimensão insubstituível da administração do
Estado de direito democrático», Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7.ª ed., Coimbra, 274-275.
Daí que o legislador, ao consagrar soluções, mesmo quando não forçosas
constitucionalmente, esteja obrigado a fazê-lo de modo consentâneo com aquelas
exigências.
Como se diz no Acórdão n.º 628/2005, a propósito da garantia constitucional do
direito ao recurso:
«Na verdade, tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais,
pressupõe, igualmente, que na regulação o legislador não adopte soluções
arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer –
mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não
constitucionalmente obrigatórios (assim, v. os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.ºs 1229/96 e 462/2003 (…)».
Reportando estas considerações ao direito de reclamar, é inteiramente seguro
que, onde previsto este mecanismo de defesa do administrado, a sua conformação
deve obedecer às exigências do procedimento equitativo. Até porque, em muitos
casos, quer no domínio fiscal, como já referido, quer fora dele, a reclamação é
um passo obrigatório para acesso à impugnação judicial.
E mesmo quando assim não é, não pode esquecer-se a complementaridade entre ambos
os meios de defesa, como salienta PEDRO MACHETE, acrescentando:
«Os direitos e interesses dos particulares devem ser satisfeitos logo no
procedimento, de modo a que o recurso ao tribunal funcione apenas como uma
ultima ratio» – v. A audiência dos interessados no procedimento administrativo,
Lisboa, 1995, 86.
Por tudo, deve entender-se que o direito ao processo equitativo, consagrado no
n.º 4 do artigo 20.º da CRP, tem uma extensão necessária, com as devidas
adaptações, ao procedimento administrativo.
17.2. A primeira questão que urge apreciar é a de saber se o pressuposto-base da
derrogação do sigilo bancário prevista no artigo 3.º do Decreto 139/X da
Assembleia da República – a iniciativa do contribuinte em apresentar reclamação
graciosa ou impugnação judicial do acto tributário – só por si, e
independentemente dos demais contornos do regime legal, fere ou não de morte a
conformidade constitucional das disposições constantes daquele artigo.
Na verdade, se a abertura do sigilo bancário é um mal para o titular da posição
atingida (até, eventualmente, por razões alheias à relação tributária), pode
dizer-se que a ligação dessa consequência prejudicial àquelas iniciativas de
defesa tem um efeito desincentivador à sua prática. Para evitar a provável perda
do sigilo, o contribuinte retrair-se-á de accionar essas garantias
impugnatórias, por mais fundadas que, a seus olhos, sejam as razões que lhe
assistem.
Deste modo, é a própria lei que cria um contra-motivo ao exercício de direitos
básicos do administrado, também eles direitos fundamentais: no que se refere à
impugnação administrativa, o de apresentar reclamações para defesa dos seus
direitos; no que toca à impugnação judicial, o de tutela jurisdicional efectiva
(artigo 20.º), a implicar, além do mais, a conformação do processo de forma
equitativa (n.º 4 do mesmo artigo). Como garantia de defesa dos direitos e
interesses do administrado, essa tutela abrange, nos termos do n.º 4 do artigo
268.º, «(…) a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem (…)»,
pelo que também esta garantia é afectada.
Do ponto de vista da garantia da efectividade, designadamente da tutela
jurisdicional, é difícil não encarar com reserva medidas deste tipo que,
deixando formalmente intocada uma via de acção ou de defesa, criam
indirectamente entraves fortes à sua real utilização. Se reclama ou impugna, o
administrado arrisca-se seriamente a sacrificar o direito à reserva da
privacidade; se, para evitar essa consequência, o não faz, então está, com essa
atitude, a abrir mão de um instrumento fundamental de tutela dos direitos que a
decisão administrativa pode lesar. Para exercitar um direito verdadeiramente
nuclear do Estado de direito democrático, o contribuinte tem que estar disposto
a pagar o preço elevado de perder o segredo sobre os dados em poder de entidades
bancárias.
Só por si, no puro plano do princípio da efectividade das posições
constitucionalmente protegidas e do direito a um procedimento e a um processo
equitativos, a colocação do contribuinte nesta situação dilemática faz propender
para um juízo de desvalor constitucional.
Mas, também aqui, não nos podemos ficar por um juízo em abstracto, fortemente
apoiado numa pré-compreensão e desligado da consideração dos fins prosseguidos e
dos meios concretamente fixados para os atingir. Para se alcançar, em
definitivo, uma avaliação segura da conformidade constitucional da extensão do
poder administrativo de derrogação do sigilo bancário que se pretende introduzir
teremos, pois, que valorar, do ponto de vista daquelas garantias, as condições e
os termos que a regem. Tarefa esta que, atenta a possibilidade de violação
frontal dos princípios constitucionais referidos, deve ser conduzida com a
consciência de que só uma conformação severamente restritiva e particularmente
garantidora permitirá “salvar” a constitucionalidade daquela medida legislativa.
Obedecerão a essas exigências as condições de exercício daquele poder
administrativo, tal como fixadas nas normas constantes do artigo 3.º do Decreto
n.º 139/X? A resposta a dar remete-nos para uma análise concreta do regime
legal, e para a sua correlação com os fins que ele prossegue.
17.3. Ora, o que, desde logo, se constata é que, tendo que ser fundamentada e
notificada, a decisão administrativa de levantamento do sigilo bancário não
sofre, aparentemente, qualquer outro condicionamento.
Faculta um acesso directo à informação, sem dependência de autorização judicial
prévia e do consentimento do visado, como já foi referido. O que, pondo de lado
as situações particulares do n.º 2 do artigo 63.º-B da LGT, só tem paralelo nas
duas hipóteses do n.º 1 do mesmo artigo. Mas aí estão em causa indícios da
prática de crime em matéria tributária (alínea a) do preceito) ou de falta de
veracidade do declarado (alínea b) do mesmo artigo). E lembre-se que, em
processo executivo, a penhora de depósitos bancários (artigo 861.º-A do Código
de Processo Civil) é um dos raros casos em que, após a reforma de 2003, subsiste
o despacho judicial ordenatório. E, nesse âmbito, para além do interesse
particular do exequente, está também em causa o interesse público – o da
realização da justiça, conexionado com o princípio da efectividade da tutela
jurisdicional.
Em segundo lugar, a derrogação administrativa não é um último recurso, de
aplicação subsidiária, só actuante na falta de cooperação do interessado. Este
não é chamado a exibir os documentos ou a autorizar a sua consulta. As entidades
inspectivas podem, de imediato, notificar as instituições bancárias, pelo que o
contribuinte não é chamado a uma participação voluntária no processo de decisão.
Em terceiro lugar, não estando especificamente previsto o direito de audição,
também não parece, como já referido, que o seu reconhecimento, para este fim e
nesta fase, possa ser integrado numa das previsões do artigo 60.º, n.º 1, da
LGT. Sendo assim, parece que ao contribuinte fica vedado qualquer exercício de
contraditório prévio, o que, por sua vez, faz perder grande parte do sentido
útil do dever de fundamentação adequada.
Por último, não estando especificamente previsto o controlo judicial, não se
afigura, na prática, viável o recurso ao processo urgente previsto no artigo
146.º-A do CPPT.
O que é particularmente notório quando a questão se coloque no âmbito da
contestação a impugnação judicial. Na verdade, se tivesse sido intenção
legislativa possibilitar, de forma célere e eficaz, o recurso judicial da
decisão de acesso aos dados bancários, então muito mais facilmente teria sido
prevista a possibilidade de o interessado pedir ao tribunal onde corre esse
processo a apreciação da legalidade da decisão de acesso. Assim se permitiria
que a questão fosse enxertada no próprio processo de impugnação judicial
regulado nos artigos 99.º e seguintes do CPPT. O que, repete-se, sem norma
expressa não parece possível.
17.4. Persistem, assim, em pontos decisivos, fundadas dúvidas quanto aos
direitos do contribuinte de participação no procedimento de decisão do acesso ao
sigilo bancário e de impugnação judicial dessa decisão.
Esta falta de certeza e segurança jurídicas, só por si, vulnerabiliza a posição
defensiva do contribuinte, em temos constitucionalmente censuráveis, por
violadores do princípio do Estado de direito e do direito fundamental de acesso
ao direito e à via judiciária (v. GOMES CANOTILHO, ob. cit., 497).
Como diz impressivamente o Tribunal Constitucional espanhol, a propósito de
garantia similar à do artigo 20.º da CRP, consagrada no artigo 24.1 da
Constituição do país vizinho: Esta tutela para ser “efectiva”, como exige el
artículo 24.1 da Constitución, ha de ser expedita y fácilmente determinable y no
se puede obligar a un litigante a que averigüe y, casi adivine, en el conjunto
del complejo ordenamiento procesal, qué medios tiene para obtener la protección
de sus derechos e intereses legítimos (STC 30/1984, de 6 de Março, apud
SÁNCHEZ-CRUZAT, Derecho fundamental al proceso debido y el Tribunal
Constitucional, Pamplona, 1992, 213).
17.5. Para além de impreciso quanto às garantias de defesa que oferece, o regime
em análise dá-nos, no seu desenho global, uma nova previsão de derrogação
administrativa do sigilo bancário excessivamente aberta e pouco condicionada.
Precisamente numa situação em que essa medida, para além da afectação do direito
à reserva da privacidade, como inevitavelmente acontece em todos os casos de
levantamento que não passem pelo consentimento do titular, põe em causa também o
direito à reclamação e à tutela jurisdicional efectiva, o legislador não
predispõe medidas cautelares e atenuadoras, possíveis sem sacrifício do
objectivo visado. Isto é, naquele caso em que a efectividade e consistência das
garantias ao contribuinte mais se justificavam, é precisamente aquele em elas
são mais descuradas.
Ao dizermos que essas garantias, e a sua efectividade prática, eram aqui
particularmente requeridas, estamos sobretudo a pensar no contexto e na fase
procedimental ou processual em que se faculta o acesso. Note-se que a
Administração fiscal, durante a instrução que deu origem ao acto agora
impugnado, não dispunha, salvo nas hipóteses do artigo 63.º-B da LGT, do poder
de acesso directo a dados bancários. Quando o contribuinte se apresenta a
exercer o seu direito de reclamação ou impugnação, ela, por esse facto, passa a
deter um poder de acesso que anteriormente lhe estava negado, a pretexto da
prossecução da verdade material a que já anteriormente estava vinculada.
No caso da impugnação judicial, é particularmente nítida a desconformidade ao
princípio do processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da CRP). Na verdade,
houve uma decisão administrativa cuja validade já está a ser sindicada por um
tribunal. E o que se verifica é que, em sede de contestação aos vícios que o
requerente imputa a essa decisão, a Administração ganha novos poderes
administrativos, que depois pode fazer frutificar, a seu ganho, no processo
judicial a decorrer. Para isso, é-lhe inclusivamente concedido um prazo
suplementar de contestação (n.º 3, in fine, do artigo 110.º do CPPT, na redacção
dada pelo artigo 3.º do Decreto n.º 139/X).
Numa espécie de reposição do procedimento tributário cuja decisão está a ser
apreciada, os poderes administrativos, agora reforçados com uma nova
prerrogativa, prolongar-se-iam, assim, na fase judicial.
Decorrendo à margem do processo de impugnação judicial, a derrogação do sigilo
tem repercussão no seu resultado, sem que se mostre devidamente satisfeito, nem
antes, nem após a prolação da decisão, o princípio fundamental do contraditório.
Assim, a violação do princípio do procedimento e do processo equitativo, quanto
ao regime de derrogação do sigilo bancário na hipótese em apreço, vai conduzir a
um condicionamento substancial do exercício, pelo contribuinte, das suas
garantias impugnatórias de actos tributários. Não sendo directa e frontalmente
restringido o direito de reclamar ou impugnar judicialmente, a verdade é que a
forma não equitativa como está prevista a perda do sigilo e o factor causal que
a determina esvaziam, em grande medida, aqueles direitos da sua efectividade
prática.
Deste modo, mostram-se violados os artigos 2.º e os seus corolários: artigo
20.º, n.º 1 e n.º 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República.
18. Se passarmos de uma análise mais concentrada nos direitos fundamentais de
natureza adjectiva para levarmos a cabo uma ponderação de bens, também no plano
substantivo, somos levados a concretizar e desenvolver reflexões já feitas sobre
as restrições à reserva da privacidade, à luz do princípio da proporcionalidade.
Recordemos que, na exposição de motivos da Proposta de lei n.º 85/X, que está
na génese da Decreto n.º 139/X da Assembleia da República, se apresentam duas
razões para as alterações legislativas.
Numa fase do processo em que se previa ainda que elas tivessem incidência apenas
na reclamação graciosa, é-lhes apontado como fim, em primeiro lugar,
«possibilitar à Administração Tributária, em estrita execução do princípio do
inquisitório a que está subordinado o seu procedimento nos termos do artigo 58.º
da Lei Geral Tributária, a averiguação plena dos factos alegados pelo
contribuinte em sede de reclamação graciosa, designadamente mediante o acesso
aos elementos pertinentes protegidos pelo sigilo bancário, de modo a que se
obtenha do modo mais completo possível a verdade dos factos». A este objectivo,
adiciona-se o de «impedir que, por dificuldades conhecidas nos poderes
instrutórios, a contestação de factos tributários perante a administração seja
utilizada como meio dilatório do pagamento da dívida tributária» (Diário da
Assembleia da República, II Série-A, n.º 132, 29 de Julho de 2006, 60).
Estas medidas são expressamente relacionadas com as conclusões do Relatório
sobre o Combate à Evasão e Fraude Fiscais, apresentado na Assembleia da
República, em Janeiro de 2006. Conclusões que, na parte que agora interessa,
foram do seguinte teor:
«O exposto não nos impede, no entanto, de admitir que, à semelhança do regime
belga, se possa associar a contestação administrativa de actos tributários ao
necessário acesso à informação protegida pelo sigilo bancário, na exacta medida
em que seja essencial para a decisão administrativa. Tal seria, também, um meio
de dissuadir a litigância menos sustentada» (Relatório da Proposta de lei n.º
85/X, Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 5, 6 de Outubro de
2006, 22).
É em função destes objectivos que temos que ajuizar da observância das três
exigências em que analiticamente se desdobra o princípio da proporcionalidade:
adequação, necessidade e proibição do excesso. Esta estrutura de valoração,
verdadeiro postulado normativo de correlação de meios a fins, encontra-se hoje
consolidada na jurisprudência portuguesa, tendo sido enunciada no Acórdão n.º
634/93 deste Tribunal, da seguinte forma:
«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio
da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem
revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com
salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para
alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos
restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas,
desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.»
18.1. Consideremos inicialmente o fim primeiramente enunciado.
A busca da verdade material, em execução do princípio do inquisitório,
corresponde a um relevante princípio constitucional da tributação – o da
igualdade fiscal, pautada pela capacidade contributiva, como expressão concreta
do princípio da igualdade material. Não previsto num específico e directo
preceito, o seu fundamento constitucional obtém-se do princípio da igualdade
articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição
fiscal” (nesse sentido, CASALTA NABAIS, Direito fiscal, 4.ª ed., Coimbra, 2006,
154).
Saliente-se, no entanto, que esta apreciação tem de ser relativizada quando
estamos situados num procedimento administrativo de segundo grau iniciado por
acção do contribuinte ou quando a Administração é chamada a contestar uma
impugnação judicial.
No procedimento que conduziu à decisão ora objecto de reclamação ou impugnação,
a Administração já teve oportunidade de lançar mão de todas as diligências
instrutórias previstas na lei. E recorde-se que, quanto ao acesso a dados
bancários, essas diligências estão restringidas pelos pressupostos e garantias
previstos no artigo 63.º-B da LGT, acima sumariamente enunciados.
A questão a pôr, em termos precisos, é portanto a de saber se, quando a
actividade instrutória a desenvolver pela Administração é apenas a necessária
para decidir a reclamação ou para contestar a impugnação, se justifica a
facilitação da possibilidade de acesso a dados cobertos por sigilo bancário.
Isto é, se, por força dessa reacção impugnatória, a Administração deve ser
dotada de um poder inspectivo que anteriormente não detinha.
Sendo nesta fase a actividade instrutória delimitada pelo pedido formulado na
reclamação ou na impugnação, será o regime em apreciação adequado, necessário e
proporcionado?
18.2. A adequação parece evidente, em relação ao fim imediato de obtenção da
verdade material que, estando relacionada com o objecto da reclamação ou
impugnação, possa estar oculta pelo sigilo bancário. Permitindo o acesso a dados
até aí sigilosos, as novas disposições legislativas permitem uma certificação
segura das alegações com eles relacionados.
Pode dizer-se até que, nessa medida, ela é a que mais se adequa ao sentido
ínsito na iniciativa do contribuinte. Impugnando este, judicial ou
extrajudicialmente, um acto tributário, na determinação de cujo conteúdo já
esteve presente o princípio do inquisitório, pelo que a Administração já terá
esgotado os meios de conhecimento ao seu dispor, justifica-se então que a
atenção recaia sobre os dados cujo conhecimento lhe estava até aí vedado. Se o
procedimento anterior tiver sido correctamente executado, a discrepância, a
existir, resultará da impossibilidade de acesso aos elementos cobertos pelo
sigilo bancário. Sendo assim, e na própria lógica do sentido útil da impugnação
(que, naturalmente, é instaurada para ser atendida), é adequado o levantamento
do sigilo.
Já quanto ao objectivo mediato de combate à evasão e à fraude fiscal, que,
confessadamente, constitui o pano de fundo e a teleologia última da medida
legislativa, o veredicto tem que ser o oposto. Não se descortina uma conexão
plausível entre situações de sonegação fiscal e iniciativas de reclamação por
parte daqueles que a elas dão azo. Pelo contrário, plausível é que os
infractores se preocupem em não suscitar a mínima atenção da máquina fiscal,
pelo que serão esses, precisamente, os contribuintes menos dispostos a
desencadear um procedimento de investigação suplementar. Não se vê, pois, que a
medida possa contribuir para atingir o objectivo proclamado. Sendo, nesta
perspectiva, ineficaz, a sua inadequação é manifesta.
18.3. Quanto à necessidade ou exigibilidade, por falta de soluções alternativas
menos gravosas, adensam-se as dúvidas quanto à conformidade constitucional,
deste ponto de vista, das medidas em análise.
Relembre-se a fase do relacionamento tributário em que a questão se coloca. Como
referido, a Administração fiscal já tomou uma decisão, para a qual pôde, de
acordo com o princípio do inquisitório (artigo 58.º da Lei Geral Tributária) e
do princípio da legalidade fiscal (artigo 55.º do mesmo diploma), ordenar
oficiosamente as diligências probatórias indispensáveis ao apuramento da verdade
material, mesmo que elas se tenham destinado a provar os factos alegados pelo
sujeito passivo.
Este reclama ou impugna. A partir daqui o que cumpre sobremaneira assegurar é
que uma obstaculização abusiva do acesso às informações bancárias faça
permanecer uma situação, sob o ponto de vista probatório, desfavorável à
Administração fiscal, nomeadamente por força das regras do ónus da prova
aplicáveis.
Na verdade, se a resolução de tais dúvidas for incontroversamente possível
mediante o acesso às informações bancárias, parece pouco justificado que o
contribuinte se possa prevalecer de uma atitude obstativa para alcançar ganho de
causa. Seria premiar um venire contra factum proprium, uma conduta oportunista
de manipulação de um direito da esfera pessoal para obter vantagens ilícitas de
ordem patrimonial.
Evitar essa consequência de todo injustificada, não só é um objectivo
constitucionalmente legítimo, como pode dizer-se que corresponde ao imperativo
de justiça e igualdade fiscais. Mas, para o atingir, outras soluções menos
gravosas, designadamente um regime de ónus da prova adequado, são facilmente
representáveis. Sem perda assinalável de eficácia, elas deixariam intocadas as
exigências do processo justo e conduziriam a uma menor afectação do direito ao
sigilo.
Para isso, bastaria que, onde fundadamente se demonstrasse a pertinência do
conhecimento dos dados bancários para a decisão da reclamação ou impugnação,
ficasse na disponibilidade do contribuinte (e não, imediata e directamente, na
esfera de poder da Administração) a preservação ou não do segredo. Uma decisão
impeditiva infundada teria sempre consequências processuais desfavoráveis, em
termos probatórios.
É nesta medida que a expressa dispensa de consentimento do contribuinte é
particularmente penalizadora, de forma desmesurada e injustificada, para o bem
jurídico tutelado pelo direito à reserva da privacidade. De facto, em face deste
regime, embora não se possa dizer que o levantamento do sigilo bancário é uma
consequência inelutável da reclamação, pois a Administração pode sempre
considerar que não há fundamento para tal, a verdade é que, com a sua
iniciativa, o contribuinte perde, de imediato, e em bloco, aquilo que, ao fim e
ao cabo, aquele direito lhe visava assegurar: o controlo sobre o fluxo
informativo concernente a dados da sua esfera pessoal. Com isso, verifica-se o
aniquilamento da posição e do valor de liberdade que o direito à reserva
garante, não só quanto ao quando (neste aspecto, inevitavelmente, a partir da
reclamação), mas também quanto ao modus faciendi de levar ao conhecimento da
Administração tributária e ao conteúdo da informação a prestar.
E, mesmo que a Administração decida não derrogar o sigilo, a verdade é que, pelo
simples facto de ter reclamado, o contribuinte fica completamente desinvestido
de qualquer poder de decisão, transferido, in toto, para a esfera de poder da
entidade administrativa. Só com isso é excessivamente afectada, de forma
arbitrária, a autodeterminação informativa da pessoa do contribuinte.
Uma solução alternativa, dentro destes limites, estaria, em termos de direito
substantivo, em sintonia com a natureza da prerrogativa que o direito à reserva
lhe reconhece (um direito de liberdade, perfeitamente susceptível de limitações
voluntárias).
Com a vantagem suplementar de, ao prestar o seu consentimento, o contribuinte
ter a possibilidade de indicar com precisão, ou mesmo, apresentar
comprovadamente, os dados relevantes, evitando uma extensão da inspecção a
outras informações sob sigilo. Mas isso já tem a ver com a proibição do excesso,
que abaixo trataremos.
Dir-se-á que uma solução deste tipo não satisfaz as exigências de verdade
material, pois pode subtrair as informações sob reserva ao poder inquisitório
das autoridades fiscais. Mas a verdade material não é uma verdade absoluta, é a
verdade alcançável pelos meios processuais adequados, de acordo com o princípio
do processo devido. As directrizes do due process of law são um claro limite ao
poder inquisitório.
Recorde-se que, de acordo com o atrás expendido, é apenas o abuso do direito à
reserva que se justifica impedir. Ora, a medida em apreço ultrapassa em muito
esse objectivo, pelo que não satisfaz o critério da necessidade.
18.4. Mas é no plano da proporcionalidade em sentido estrito que mais se
evidenciam aspectos de regime contrários ao imposto pelo princípio da
proporcionalidade, em sentido amplo. As condições de exercício do poder de
derrogação ferem excessivamente, segundo cremos, a garantia de tutela
jurisdicional efectiva e o direito à reserva da privacidade.
É certo que a derrogação não é automática, nem imediata, dependendo de uma
decisão da Administração fiscal, vinculada a três parâmetros. Por expressa
remissão do n.º 2, que se intenta acrescentar ao artigo 69.º do CPPT, essa
medida integra-se nas diligências suplementares previstas na actual alínea e) do
mesmo artigo, e estas só devem ser ordenadas quando se revelem “manifestamente
indispensáveis à descoberta da verdade material”. Por outro lado, o novo n.º 2
precisa que o acesso aos documentos bancários deve circunscrever-se aos
“relativos à situação tributária objecto de reclamação” e só pode ser
determinado “sempre que fundadamente se justifique face aos factos alegados pelo
reclamante”. Indicações análogas às duas últimas foram introduzidas no artigo
110.º, quando se alargou à impugnação judicial o regime de derrogação.
Simplesmente, a efectiva consistência prática destes resguardos só pode ser
valorada tendo em conta a sua exequibilidade e em articulação com os restantes
aspectos do regime legal.
Quanto à primeira, é manifesto que a limitação do acesso aos dados bancários que
tenham a ver com a situação tributária corresponde a um simples “voto pio”,
tendendo a ficar irremediavelmente letra morta, na “praxis” corrente da
actividade da administração tributária. De facto, a selecção, de entre a massa
dos documentos disponíveis, das informações que interessam à decisão da
reclamação ou da impugnação judicial, implica uma consulta e análise de todos os
elementos respeitantes à relação ou relações bancárias do contribuinte. Se este
tiver contactos negociais com mais do que uma instituição, todos os documentos a
eles referidos terão que ser inspeccionados, para se poder identificar os que
interessam à comprovação da situação em litígio.
Para a delimitação do acesso, com solicitação apenas das informações atinentes
ao caso, seria necessário que a Administração fiscal dispusesse de conhecimento
antecipado, de forma precisa, da localização dos dados relevantes. O que, na
maioria dos casos, não acontecerá, sobretudo quando o regime prescinde da
audiência prévia do interessado, como acima se explicitou. Pelo que o critério
da justa medida (aqui, a medida dos fundamentos alegados), que aquelas
indicações normativas visam salvaguardar, não poderá, em muitíssimas situações,
ser respeitado.
É certo que a decisão tem que ser fundamentada (o que já resultaria do artigo
268.º, n.º 3, da CRP, do artigo 77.º da LGT e do artigo 123.º do Código do
Procedimento Administrativo) e notificada ao contribuinte (artigo 268.º, n.º 3,
da CRP e artigo 77.º, n.º 6, da LGT). Tendo este conhecimento da diligência,
poderá vir espontaneamente fornecer informações que permitam a identificação
precisa dos dados relevantes.
Mas, por um lado, é o próprio princípio do inquisitório que não permitirá à
Administração dar como certo que são apenas esses os elementos comprovativos,
pelo que ela não ficará dispensada, em princípio, de alargar a investigação, de
modo a obter uma certificação segura. Por outro lado, nada na lei impede que,
simultaneamente com a notificação ao contribuinte, a Administração faça seguir a
notificação à entidade bancária, não esperando por uma eventual reacção de
cooperação do visado. E então dependerá da atitude desta entidade a
possibilidade de uma participação auxiliar do contribuinte.
18.5. Se é assim quanto ao primeiro objectivo enunciado, o de prossecução da
verdade fiscal, o que dizer do segundo, o de «impedir que (…) a contestação de
actos tributários perante a administração seja utilizada como meio dilatório do
pagamento da dívida tributária», ou, como vem expresso no Relatório sobre o
combate à evasão e à fraude fiscais, reproduzido na exposição de motivos da
Proposta de lei, como «um meio de dissuadir a litigância menos sustentada»?
Trata-se, em primeira linha, de uma razão de conveniência ou de utilidade, de
uma policy, não de um principle, como diria DWORKIN, ainda que, indirectamente,
o funcionamento eficiente do sistema fiscal se repercuta na realização da
justiça fiscal.
Ora, razões de utilidade não podem ser invocadas para restringir direitos com
estatuto dos direitos, liberdades e garantias.
De todo o modo, mesmo que a valoração se concentre no objectivo último de
assegurar, a nível sistémico e macrojurídico, o funcionamento adequado da
máquina administrativa e do aparelho judiciário fiscais, como condição de
realização da justiça, sempre se dirá que, no regime em apreço, esse objectivo é
levado a cabo por meios que vão para além do estritamente necessário.
Na realidade, não custa representar meios alternativos menos gravosos,
designadamente por não acarretarem o sacrifício de bens da esfera pessoal, nem o
abandono de garantias judiciárias nucleares para a efectividade do acesso à
justiça.
Eles já estão presentes, aliás, no nosso ordenamento jurídico. Refira-se, antes
de mais, o regime geral da litigância de má fé, aplicável no processo fiscal
(artigos 104.º da LGT e 122.º, n.º 2, do CPPT). No próprio procedimento fiscal,
está previsto que, em caso de pedido de revisão da matéria colectável fixada por
métodos indirectos, possa ser aplicado ao sujeito passivo «um agravamento até 5%
da colecta reclamada quando se verificarem cumulativamente as seguintes
circunstâncias: a) Provar-se que lhe é imputável a aplicação de métodos
indirectos; b) A reclamação ser destituída de qualquer fundamento; c) Tendo sido
deduzida impugnação judicial, esta ser considerada improcedente» (artigo 91.º,
n.º 9, da LGT).
Se o legislador, dentro da margem da sua livre apreciação e conformação, for de
entendimento que os meios existentes são insuficientes, tem sempre a
possibilidade de alargar o âmbito aplicativo de medidas deste tipo. Tratando-se
de sanções de natureza pecuniária, sem efeitos colaterais em bens de outra
ordem, elas, sem perda da eficácia pretendida, estão, à partida, em boas
condições para superarem o test da proporcionalidade, desde que se contenham, em
termos quantitativos, dentro de limites razoáveis.
Nos moldes em que vêm formuladas, as alterações operadas aos artigos 69.º e
110.º do CPPT, pelo artigo 3.º do Decreto n.º 139/X, independentemente do que
esteve presente na mens legislatoris, têm objectivamente por efeito
obstaculizar, não apenas as reclamações notoriamente infundadas, de propósitos
meramente dilatórios, mas, pura e simplesmente, em geral, a faculdade de
reclamar e de impugnar judicialmente actos da Administração fiscal.
Por isso, e em conclusão, elas não se limitam “ao necessário para salvaguardar
outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 2 do artigo
18.º da Constituição da República), tendo um carácter desproporcionado.
19. Em face de tudo o que fica dito, podemos concluir que, tal como vem
concretamente regulada, a solução sub judice não garante um procedimento e um
processo justos no que diz respeito às condições de derrogação do sigilo
bancário. Só por si, tal constituiria fundamento bastante para uma decisão de
inconstitucionalidade.
Mas aquele vício, traduzido na falha de efectivação do “direito à normação
procedimental”, de forma precisa e adequada, repercute-se agravadamente no
processo em que se reclama ou impugna, fundamentalmente na medida em que coloca
o cidadão-contribuinte perante um dilema constitucionalmente inaceitável: ou
corre o risco forte de perder a reserva sobre a sua privacidade, ou perde um
instrumento importante de defesa dos seus direitos e interesses. Em vez de uma
limitação harmónica e equilibrada das duas posições, permitindo a preservação
simultânea do essencial das vantagens que elas propiciam, aquelas alterações
“forçam” o contribuinte a uma opção entre uma ou outra.
O que não pode deixar de se considerar constitucionalmente inadmissível.
III. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 278.º da Constituição da República, o Tribunal
Constitucional decide:
a) Não se pronunciar pela
inconstitucionalidade da parte final da norma do n.º 10 do artigo 89.º-A da Lei
Geral Tributária, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto n.º 139/X da
Assembleia da República.
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade
dos n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 110.º, ambos do Código
de Procedimento e de Processo Tributário, na redacção dada pelo artigo 3.º do
Decreto n.º 139/X da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º,
18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 26.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa.
Lisboa, 14 de Agosto de 2007.
Joaquim Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Vítor Gomes (com declaração de voto anexa)
Benjamim Rodrigues (com a declaração anexa)
Ana Maria Guerra Martins (com declaração de voto anexa)
Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à alínea a) da decisão, pelas razões
constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Carlos Cadilha, que
inteiramente subscrevo, e ainda pela intolerável indeterminabilidade da menção
a “titular de cargo sob tutela de entidade pública”)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à alínea a) da Decisão pelas razões
constantes da declaração de voto junta)
João Cura Mariano (vencido quanto à alínea a) da decisão, pelas razões
constantes da declaração de voto do Exmo Conselheiro Carlos Cadilha, que
inteiramente subscrevo)
Gil Galvão (vencido quanto à alínea b) da decisão, conforme declaração anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Considero que a inclusão do sigilo bancário de que sejam
titulares pessoas colectivas no âmbito de protecção do direito à reserva da
intimidade da vida privada, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição,
não será apenas problemática, como o acórdão concede (n.º 16.2, último
parágrafo), mas é, mais radicalmente, de afastar. E, como só na medida em que
constitui refracção deste direito à reserva da privacidade se me afigura
possível dar guarida ao sigilo bancário no elenco dos direitos fundamentais,
entendo que o legislador não está subordinado, no reconhecimento e conformação
do sigilo bancário relativamente a pessoas colectivas (e entes equiparados), ao
regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
Efectivamente, os direitos fundamentais são primordialmente
direitos de indivíduos, de pessoas singulares. As pessoas colectivas somente são
titulares daqueles direitos fundamentais que sejam compatíveis com a sua
natureza (artigo 12.º, n.º 2, da CRP), o que coloca um problema de determinação
que só casuisticamente pode ser resolvido. É certo que ser ou não compatível com
a natureza das pessoas colectivas depende da própria natureza de cada um dos
direitos fundamentais e que, em si mesmo, no conteúdo de protecção e poderes em
que se analisa, as pessoas colectivas podem gozar do direito ao segredo
bancário, como o direito ordinário torna evidente. Mas o que aqui se pondera é a
cobertura do sigilo bancário pelo direito fundamental à reserva da intimidade da
vida privada. Ora, mesmo quando seja concebível a conexão de certo direito
fundamental com a personalidade colectiva, daí não se segue que a sua
aplicabilidade nesse domínio opere nos mesmos termos e com a mesma amplitude com
que decorre relativamente às pessoas singulares (Cfr. Jorge Miranda e Rui
Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, pag. 113).
Como o acórdão bem salienta, o que pode justificar que
aspectos do 'segredo do ter' da pessoa, patentes na conta e noutros dados da
situação económica do titular em poder de uma instituição bancária, sejam
assimilados ao 'segredo do ser' protegido pela reserva da intimidade da vida
privada é o que esses elementos podem revelar das escolhas ou contingências de
vida do indivíduo, dos seus gostos e propensões, do seu perfil concreto enquanto
ser humano, que cada um deve ser livre de resguardar do conhecimento e juízo
moral de terceiros. Esta teleologia intrínseca surge eminentemente ligada à
protecção da dignidade da pessoa humana, não sendo extensível a entes que apenas
tem uma capacidade jurídica funcional, limitada pelo princípio da especialidade
do fim que estatutariamente prosseguem, que não têm projecto de vida livremente
determinado, pelo que o direito ao segredo bancário que contratual e legalmente
se lhes reconheça não goza da protecção constitucional especificamente conferida
pela inclusão do bem protegido pelo sigilo no âmbito do direito à reserva da
intimidade da vida privada, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição.
Aliás, não deve olvidar-se que a potenciação da capacidade de
agir a coberto da personalidade colectiva é um dos mais poderosos factores de
exponenciação do risco que o sigilo bancário comporta para outros interesses ou
valores constitucionais, designadamente para aqueles que à Administração fiscal
compete prosseguir.
Todavia, a negação da fundamentalidade do direito quando
esteja em causa a situação de pessoas colectivas (e entes equiparados) não obsta
a que acompanhe a pronúncia pela inconstitucionalidade da solução normativa a
que se refere a alínea b) da Decisão, pelas mais razões que levam o acórdão a
concluir que ela não garante um procedimento e um processo justos no que diz
respeito às condições de derrogação do sigilo bancário.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votando, embora, ambas as pronúncias do Tribunal, restam-me, porém, algumas
dúvidas sobre a fundamentação da decisão construída em torno da violação do
direito constitucional de reserva à intimidade da vida pessoal e familiar,
consagrado no art.º 26.º, n.º 1, da CRP.
É que já defendemos que o sigilo bancário, consubstanciando, essencialmente e na
sua matriz originária, um dever de sigilo profissional, não valia na direcção da
administração fiscal (Benjamim Rodrigues, “O sigilo bancário e o sigilo fiscal”,
op. cit.).
Mas desde a altura em que sustentámos essa posição – e já lá vai uma década -
muita coisa mudou quer no domínio do risco objectivo de uma cada vez mais
difícil gestão controlada da informação obtida, aqui incluída a informação
bancária, quer no da possibilidade e facilidade de identificação, no seio da
administração tributária e dos media, dos autores da violação do dever de sigilo
fiscal, que nos infunde fundadas dúvidas sobre se, hoje, o sigilo bancário não
deve ser entendido como integrando a reserva de privacidade económica,
constitucionalmente tutelada.
Na verdade, os meios tecnológicos de que o homem, hoje, dispõe, associados à
extensão dos dados que puderam passar a constar dos registos bancários por força
do acesso directo e quase universal dos cidadãos ao sistema bancário e à
possibilidade e facilidade da sua descodificação, permitem desnudar
verdadeiramente o cidadão-contribuinte.
Os registos bancários permitem hoje, em relação aos utilizadores do sistema – e
é preciso registar que são quase a totalidade dos cidadãos-contribuintes –
identificar não só os movimentos de crédito, de débito e de financiamento, como
a generalidade das pessoas com quem foram efectuadas essas operações, e até o
tipo de bens a que elas respeitam, e, com eles, o estilo de vida pessoal que se
tem.
Por seu lado, a facilidade de análise de todos esses dados quase permite afirmar
que o tempo da obtenção da informação digital é quase coetâneo do tempo do
acesso ao sistema e que aquela pode abranger o passado histório quase com a
mesma visibilidade do presente, por força da amplitude arquivística que o
registo histórico pode abranger.
A tudo isto acresce a desmaterialização dos meios de registo, as dificuldades em
identificar não só a pessoa que lança a informação como aquela que a distrai do
sistema e a torna pública, com o facilitismo que os mesmos meios tecnológicos
permitem, e a extensíssima amplitude do conhecimento sobre a pessoa que o
cruzamento de dados e das bases de dados faculta.
O acesso em si mesmo à informação transporta, hoje, por isso, um elevadíssimo
risco de apreensão de factos que podem nada têm a ver com a razão desse acesso,
bem como de uma posterior divulgação, feita de forma precisa, extensa, anónima
ou dificilmente identificável.
Ora, numa altura em que cada vez mais as pessoas são também o
que têm, deve questionar-se se este bem não cabe na reserva constitucionalmente
recortada no art. 26.º, n.º 1, da CRP.
E estas dúvidas não se me esfumam, mesmo considerada a
especial vinculação constitucional e legal da administração fiscal. É que,
dentro da actual estrutura orgânica administrativa, cada vez mais se perde a
relação entre o facto e o agente-pessoa e com isso os elementos desveladores de
quem ilicitamente deixou sair para fora do seu foro funcional informação nele
obtida.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanhei a fundamentação de nºs 16, por considerar que não é pacífica a
inclusão do sigilo bancário no direito à reserva da intimidade da vida privada
(no mesmo sentido, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Anotação ao artigo 26º,
Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, pg. 469).
Em meu entender – tal como o próprio Acórdão admite no nº 19 – a violação do
direito a um procedimento e a um processo justos, só por si, afigura-se como
fundamento bastante para justificar a pronúncia pela inconstitucionalidade das
normas constantes dos n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º e dos n.ºs 2 e 3 do artigo
110.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, na redacção
dada pelo artigo 3.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da República.
Lisboa, 14 de Agosto de 2007
Ana Maria Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
A possibilidade consagrada no n.º 10 do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária, na
redacção introduzida pelo Decreto n.º 139/X da Assembleia da República, de
comunicação da decisão de avaliação da matéria colectável através de métodos
indiciários à entidade da tutela, para efeitos de averiguações, quando essa
decisão se reporte a funcionário ou titular de cargo, é susceptível de violar o
princípio da igualdade no ponto em que a diferenciação que assim se estabelece
em relação a qualquer outro cidadão contribuinte não se encontra justificada por
um qualquer fundamento material válido.
A aludida norma não poderá deixar de ser interpretada como impondo à
Administração tributária a obrigação de comunicar a um órgão administrativo (que
detenha poderes de inspecção sobre o funcionário ou titular de cargo) a simples
decisão de submeter esse funcionário ou agente a um procedimento de avaliação
indirecta para efeitos da determinação da matéria tributável. A comunicação
deverá conduzir, como necessária decorrência da imposição legal, à abertura de
um processo de averiguações que, dentro do quadro jurídico definido pelo artigo
88º do Estatuto Disciplinar, implica a realização de diligências destinadas a
detectar a eventual existência de faltas ou irregularidades no funcionamento dos
serviços, e que poderão culminar com a subsequente instauração de um processo de
inquérito ou um processo disciplinar.
Embora se reconheça, em tese geral, a existência de um princípio de cooperação
entre as entidades administrativas relativamente à notícia e participação de
factos praticados por um qualquer funcionário ou agente que sejam susceptíveis
de integrarem uma infracção disciplinar (artigo 46º do Estatuto Disciplinar), o
que sobreleva no dever de comunicação previsto na citada norma do n.º 10 do
artigo 89º-A da Lei Geral Tributária, é a circunstância de a Administração
tributária se aproveitar do conhecimento privilegiado de que dispõe
relativamente à situação fiscal de um funcionário para despoletar a realização
de averiguações sobre eventuais comportamentos disciplinarmente puníveis, quando
é certo que, por um lado, os dados recolhidos sobre a situação tributária dos
contribuintes está sujeita, em princípio, a uma reserva de confidencialidade
(artigo 64º da Lei Geral Tributária), e, por outro lado, o que está na origem do
dever de comunicação é uma mera decisão de procedimento tributário, e, por isso,
uma decisão administrativa que em si mesma não é indiciária do cometimento de
qualquer falta ou irregularidade que deva ser valorada disciplinarmente.
É claro que a Administração Pública e os seus funcionários e agentes, quando no
exercício da suas funções, estão vinculados a um princípio de legalidade (artigo
266º da CRP). Porém, a principal consequência que daí decorre é a de que os
cidadãos poderão reagir jurisdicionalmente contra quaisquer actuações materiais
ilícitas ou decisões administrativas ilegais que lesem os seus direitos ou
interesses legalmente protegidos (artigo 268º, n.ºs 4 e 5, da CRP); e, no plano
das relações internas, o Estado e as demais entidades públicas poderão ainda
accionar a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos seus funcionários
e agentes pelas acções e omissões praticadas no exercício das suas funções e por
causa desse exercício (artigo 271º, n.º 1, da CRP). Nestes termos, a
responsabilidade específica do funcionário e agente público pressupõe uma
conexão funcional com o serviço, não podendo estar em causa simples
comportamentos privados, nem bastando uma relação indirecta ou ocasional com o
serviço (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, pág. 952).
Assim se compreende que, contrariamente ao que resultava do antigo estatuto
disciplinar de 1943, o actual regime legal tenha passado a definir a infracção
disciplinar como o facto praticado «com violação de algum dos deveres gerais ou
especiais decorrentes da função», tendo deixado de a caracterizar como uma
infracção desse tipo a violação de deveres sociais e, portanto, a simples a
contravenção de deveres inerentes à vida privada do funcionário (cfr. artigo 3º,
n.º 1, do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de
Janeiro, no confronto com o artigo 2º do Estatuto Disciplinar aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 32659, de 9 de Fevereiro de 1943).
No caso vertente, o que está em causa é a prolação pela Administração tributária
de uma decisão procedimental que implica a sujeição do contribuinte a uma
avaliação indirecta da matéria tributável, quando se considerem verificados os
pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária, e que
se traduzem na possível divergência entre a situação declarada pelo interessado,
para efeitos tributários, e os meios de fortuna que externamente evidencie. Essa
decisão, de natureza administrativa, é susceptível de recurso para o tribunal
tributário, por parte do contribuinte (artigo 89º-A, n.º 6), que poderá desde
logo discutir, por essa via, a validade dos indicadores que serviram de base à
avaliação indirecta. Por outro lado, a decisão, para além de poder ser revista
jurisdicionalmente, não indicia em si mesma a prática de qualquer comportamento
disciplinarmente censurável. Isto é, o que se pretende que seja comunicado ao
serviço ou entidade administrativa com competência disciplinar sobre o
contribuinte-funcionário não é a ocorrência de quaisquer factos indiciários de
faltas ou irregularidades cometidas no âmbito da relação de serviço de que se
tenha tomado conhecimento no âmbito de um procedimento tributário, mas
unicamente a decisão (adoptada nesse procedimento) de que resulta para o
interessado uma certa consequência fiscal.
E o que é importante notar é que essa comunicação é impulsionada por uma
situação da vida particular do funcionário, como é o facto de este, enquanto
mero cidadão, se ter relacionado com a Administração no âmbito de uma relação
jurídica tributária.
O comando contido na referenciada norma do n.º 10 do artigo 89º-A da Lei Geral
Tributária evidencia, como bem se vê, uma injustificável permeabilidade entre a
relação jurídica tributária e a relação de serviço, e coloca o funcionário ou
agente administrativo numa situação mais gravosa de qualquer outro cidadão
contribuinte, sem que para isso subsista um fundamento material válido.
É patente que não há uma qualquer equivalência entre a sujeição comum de
qualquer cidadão de vir a ser objecto, fundada ou infundadamente, de uma
denúncia que envolva a eventual instauração de um processo sancionatório, e a
situação particular do funcionário que, apenas pelo facto de o ser, passa a ter
um tratamento diferenciado em relação a qualquer outro cidadão contribuinte, a
ponto de a sua inclusão numa certa situação fiscal vir a desencadear, não apenas
as consequências que estão definidas, em geral, para todos os contribuintes, mas
também a suspeição do envolvimento em irregularidades em termos de justificar a
abertura de um processo de averiguações.
É claro que um tal processo de averiguações, tendo por base uma decisão de
procedimento tributário que prefigura uma divergência entre os meios de fortuna
que o funcionário ostenta na sua vida privada e a declaração de rendimentos para
efeitos fiscais, apenas pode ter como objectivo a indagação de factos que possam
indiciar a obtenção de ganhos ilícitos – e que, por isso, se relaciona
directamente, não com quaisquer considerações de interesse público que possam
justificar uma reorganização dos serviços ou uma modificação do seu
funcionamento, mas com a própria posição jurídica do funcionário. E neste plano
de análise, o que interessa reter – conforme se deixou já esclarecido - é que
não é uma simples decisão administrativa incidente sobre a situação fiscal do
contribuinte, desligada de factos indiciários da prática de infracção
disciplinar (que, a existirem, justificariam a instauração de processo
disciplinar e não de mero processo de averiguações), que pode vir a interferir
ao nível na relação de serviço, quando o contribuinte detenha também a qualidade
de funcionário. Isso porque, como também se anotou, não é o presuntivo
incumprimento de um dever fiscal (por não correspondência entre os rendimentos
declarados e os rendimentos efectivamente existentes) que pode constituir, por
si, uma infracção disciplinar.
De outro modo, a aceitar-se uma diferença específica com base no estatuto
profissional dos contribuintes, sempre se poderia perguntar por que é que
idêntico regime não é tornado extensivo a qualquer trabalhador activo, que,
mesmo que inserido numa relação de trabalho de direito privado, está igualmente
sujeito ao poder disciplinar da entidade empregadora.
Por tudo, entende-se que a parte final da norma do n.º 10 do artigo 89º-A da Lei
Geral Tributária, na redacção introduzida pelo Decreto n.º 139/X da Assembleia
da República, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, n.º 1,
da Constituição da República, enquanto determina uma diferenciação entre
cidadãos, com base em condições meramente subjectivas, e potencia, nesses
termos, uma desigualdade na aplicação do direito. Pelo que, também nessa parte,
ter-me-ia pronunciado pela inconstitucionalidade do referido segmento normativo.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à alínea b) da decisão, no essencial pelas razões que,
dadas as circunstâncias, muito sumariamente, passo a expor:
1. Em primeiro lugar, porque considero que a Constituição da República
Portuguesa não consagra um direito fundamental ao sigilo bancário para os
clientes das instituições financeiras sujeitas ao dever de segredo.
Desde logo, porque um tal direito não consta de disposição expressa da
Constituição, mas também porque considero que o sigilo bancário resultante do
dever de segredo imposto às instituições financeiras se não encontra coberto
pela reserva de intimidade da vida privada consagrada no artigo 26º, n.º 1 da
Constituição. Na verdade, os elementos constantes dos ficheiros e documentos
sujeitos ao dever de segredo por parte das instituições financeiras, além de
dizerem respeito a transacções em que a própria instituição financeira é parte,
não fazem naturalmente parte da esfera íntima do cliente e, em última instância,
contêm apenas informação voluntariamente cedida às instituições financeiras, no
decurso de transacções financeiras comuns, sem que daí decorra que, de cada vez
que uma tal transacção acontece, o cliente esteja a expor a intimidade da sua
vida privada a todos os empregados bancários com acesso às respectivas contas ou
ao tratamento dos elementos da respectiva transacção.
2. Em segundo lugar, consequentemente, porque, não sendo o sigilo bancário um
direito fundamental dos clientes das instituições financeiras, estamos fora do
âmbito de direitos, liberdades e garantias, o que implica que a liberdade de
conformação do legislador não está necessariamente sujeita aos estritos limites
constantes dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição. E, sendo assim, como
iniludivelmente me parece que é, a criação pelo legislador, dentro da sua
liberdade de conformação, de um sistema em que a Administração Tributária -
incumbida da liquidação e cobrança da tributação que, constitucionalmente, visa
a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades
públicas, bem como uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza e, também
ela, sujeita ao dever de segredo – tem acesso a dados protegidos pelo sigilo
bancário legalmente estabelecido, não afronta, em si mesmo, o Estado de direito
democrático, nem quaisquer preceitos ou princípios constitucionais. Sendo ainda
certo que, não valendo o actual artigo 63º-B da Lei Geral Tributária como
parâmetro de aferição da validade de quaisquer medidas legislativas respeitantes
ao levantamento do referido sigilo, as diferenças de regime eventualmente
existentes, além de se poderem incluir na já mencionada liberdade de
conformação, não têm de “ser ponderadas na avaliação de conformidade
constitucional das medidas em apreço”.
3. Finalmente, porque entendo, ao contrário da maioria que fez vencimento, que o
acesso por parte da Administração Tributária a dados cobertos pelo sigilo
bancário, quando, face a factos alegados pelo contribuinte, que pretende a
anulação de actos tributários, tal se apresente como uma diligência
manifestamente indispensável (e, consequentemente, em absoluto, fundadamente se
justifique) para concretizar a justiça fiscal e a igualdade contributiva
constitucionalmente exigidas e menos consideradas na tese vencedora (conferindo
ou negando razão ao reclamante/impugnante), não afecta, em nada, quaisquer
direitos de reclamação ou de impugnação. Aliás, nos casos em análise,
constatando-se que, na ausência de um tal acesso, é consabido que é a
Administração Tributária quem tem “o braço mais curto”, tal acesso, ao invés de
constituir um “contra-motivo ao exercício de direitos básicos do administrado” e
de pôr em causa a tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo
equitativo, constituirá, porventura, condição essencial para que este último
tenha efectivamente lugar. Sendo ainda certo que, em última instância, caberá
sempre a um tribunal apreciar a prova adicional produzida e o respectivo valor.
4. Neste contexto, pronunciei-me pela não declaração de inconstitucionalidade
dos n.ºs 2 e 3 do artigo 69º e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 110º, ambos do Código de
Procedimento e de Processo Tributário, na redacção dada pelo artigo 3º do
Decreto n.º 139/X da Assembleia da República.
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
1– Devo começar por dizer, quanto à alínea b) da decisão – que todavia subscrevo
–, que, na minha opinião, o Acórdão n.º 198/2003 pretendeu não tomar posição
sobre se 'o direito de reclamação' se inclui, ou não inclui, 'no disposto no
artigo 52º da Constituição', diferentemente do que se afirma no ponto 17.1. do
presente aresto, onde se diz que o Tribunal, no referido Acórdão, optou por
entender que 'essa tutela não se inclui no disposto no artigo 52º da CRP'.
2– E votei vencido quanto à alínea a) da decisão pelas razões que, em síntese,
são as seguintes:
A norma impugnada determina que, no caso de a avaliação da matéria colectável
ocorrer com recurso ao método indirecto, a respectiva decisão da administração
fiscal deverá ser comunicada ao Ministério Público e, no caso de o contribuinte
ser funcionário público ou agente de entidade pública, também 'à tutela deste',
'para efeitos de averiguações no âmbito da respectiva competência'.
Esta técnica (seja qual for o real alcance da norma, que não foi averiguado)
radica no entendimento – que o acórdão subscreve mas que, salvo o devido
respeito, não acompanho – de que a divergência entre a declaração de rendimentos
do contribuinte e aquilo que o legislador entende ser o padrão médio de vida do
cidadão com tais rendimentos, conduz irrecusavelmente a um juízo de censura
social do contribuinte, não dando margem a que se tenha por não ilegítimo um
comportamento (leia-se, declaração de rendimento para efeitos fiscais) que se
revele não totalmente coincidente com a avaliação da administração fiscal, mesmo
nos casos em que, na determinação final, não ocorre a intermediação de um órgão
independente, como é um tribunal.
Nesta óptica, a norma não terá outra utilidade que não a de exercer uma clara
função intimidadora do contribuinte, especialmente quando este é funcionário ou
agente público que, por esta via, vê ligar-se a estabilidade do seu emprego e a
reserva da intimidade da sua vida privada e familiar à docilidade com que aceita
as prescrições administrativas da autoridade fiscal.
É que as regras legais em vigor – retiradas, por exemplo, do estatuto do
Ministério Público, do processo penal e do estatuto da Função Pública –, já
impõem o dever de denúncia de crimes, ou de ilícitos disciplinares, às
autoridades com competência para a investigação criminal, ou para o procedimento
disciplinar, conforme os casos, quando a notícia de qualquer uma destas
infracções é conhecida no decorrer da actividade das autoridades públicas.
Mas não é isto – por evidente desnecessidade – que a norma pretende reafirmar: o
que se pretende é que, mesmo não ocorrendo nenhuma infracção, quer de natureza
criminal, quer de natureza disciplinar, a administração passe a denunciar a
situação fiscal do contribuinte, comunicando ao serviço onde presta funções o
funcionário ou o agente a 'decisão de avaliação da matéria colectável', decisão
onde necessariamente constam dados sobre a vida privada do cidadão, permitindo
ainda – dada a imprecisão normativa – que, de um modo totalmente abusivo, se
possa entender que a incorrecta declaração fiscal signifique autonomamente
ilícito disciplinar.
A meu ver, a norma provoca, sem justificação suficiente, a violação do sigilo
fiscal, garantia que este Tribunal já reconheceu assumir 'um carácter
instrumental de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada'
(Acórdão n.º 256/2002).
Votei, portanto, no sentido da inconstitucionalidade da norma, por
desconformidade com o artigo 26º n.ºs 1 e 2 da Constituição.
Carlos Pamplona de Oliveira