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Processo n.º 1018/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. e B. reclamam, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho do Desembargador
Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Julho de 2007, que não lhe
admitiu recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
1.1. Os reclamantes haviam recorrido para o Tribunal da
Relação de Lisboa da decisão que, em processo cautelar (restituição provisória
de posse), por eles intentada contra C., SA, e D., revogara, em sede de
oposição, a providência decretada, tendo sintetizado o teor das correspondentes
alegações nas seguintes conclusões:
“1.ª – Conforme o considerado pelo acórdão da Relação de Lisboa
revogado pela decisão recorrida, nessa parte dado por reproduzida, no caso dos
autos, acha‑se envolvida uma situação de locação financeira mobiliária,
titulada pelo contrato n.º 53509 e relativo ao veículo Opel Corsa n.º ..‑..‑..,
constante de autos a fls. 6 e 7, 18 a 20, 97 e 98 ou 114 e 15, em que o
requerente A. e a esposa, com domicílio contratual na Estrada …, .., …, 2670
Loures, são locatários e a requerida C., SA, é locadora.
2.ª – Nem dos depoimentos de qualquer das testemunhas E. (cf.
cassete 1, lado A, rot. 0005 a 1549) e F. (cf. cassete 1, lado A, rot. 1550 a
1852, e lado B, rot. 0003 a 0521) e nem de qualquer documento junto por qualquer
dos requeridos resulta que tivesse sido remetido aos locatários, para a sua
morada da Estrada …, .., …, 2670 Loures, comunicação no sentido da resolução do
contrato: os documentos de fls. 99 e 100 e fls. 116 e 117 são meras cópias de
presumível carta remetida, em nome dos locatários, mas para a morada da “Estrada
…, …, …, Loures, 2720 Loures”, não constante do contrato de locação financeira
em causa e nem indicada pelos locatários como da sua residência. Sendo que nem
do depoimento de qualquer das ditas testemunhas, nem de qualquer documento
constante do processo resulta que tenham sido remetidas para a morada dos
locatários da Estrada .., .., …, 2670 Loures, ou que, por estes, tenham sido
recebidas. Nunca se operando, pois, a resolução do contrato pretendida pela
requerida. Pelo que, ao julgar em contrário, considerando que em 27 de Dezembro
de 2004 foram remetidas aos locatários para a sua morada indicada no contrato a
carta de resolução do contrato cuja cópia consta de fls. 99 e 100 e fls. 116 e
117, a sentença recorrida fez errada apreciação dos factos, nomeadamente, dos
documentos de fls. 6 e 7, 18 a 20, 97 e 98 ou fls. 99 e 100 e 116 e 117.
Devendo, por isso, ser, nessa parte, revogada e substituída por outra que dê por
provado que «15. A requerida enviou para a morada da Estrada …, …, …, Loures,
2720 Loures, e em nome dos locatários cartas, registadas com aviso de recepção,
datadas de 27 de Dezembro de 2004, comunicando que o contrato seria considerado
resolvido se, decorrido o prazo de oito dias, não fosse efectuado o pagamento
total dos montantes em dívida». «16. As referidas cartas não foram enviadas para
a morada da Estrada …, …, …, 2670 Loures, constante do contrato como sendo a dos
locatários, não tendo sido reclamadas».
3.ª – Na situação dos autos, a locação financeira envolvida não se
mostra resolvida. Sendo que, no caso, a lei confere aos locatários o recurso a
meios possessórios, designadamente, ao procedimento cautelar de restituição
provisória da posse, mesmo contra o locador, uma vez verificados os requisitos
de esbulho e da violência no acto de esbulho, independentemente da situação
concreta do cumprimento do contrato (artigo 10.º, n.º 2, alínea b), do
Decreto‑Lei n.º 149/95, de 24 de Junho).
4.ª – Na situação dos autos, de locação financeira do sobredito Opel
Corsa não resolvida, verifica‑se que o locatário, ora recorrente, foi
efectivamente desapossado do veículo locado, pelo locador, usando de meios
privados violentos, quando, para a resolução de qualquer dissídio sobre o
contrato porventura existente se achavam ao seu dispor todos os meios
processuais propiciados pelo artigo 2.º do CPC, nomeadamente, o recurso a acção
e a procedimento cautelar, a que, sem inconveniente, podia recorrer.
5.ª – Havendo, no caso apreciado, de locação financeira de veículo
não resolvida, esbulho violento da locadora sobre os requerentes, a concessão da
providência de restituição provisória de posse decretada pelo acórdão da
Relação de Lisboa se mostra justificada. Pelo que, ao julgar em contrário,
vindo a revogá‑lo, no pressuposto entretanto erróneo de que o contrato de
locação financeira envolvida se achava resolvido, a sentença recorrida terá
feito, nos termos expostos, aqui dados por reproduzidos, errada interpretação
quer dos factos, quer da lei. Devendo, por isso, ser revogada e substituída por
outra, que, em atenção aos factos e à lei, mantenha a providência de restituição
provisória da posse já decretada.
6.ª – Mesmo no caso de já ter operado a resolução do contrato
suposta pela sentença recorrida, não parece que o melhor caminho a adoptar pela
requerida fosse a de recurso a actuação por meios próprios usada. É que «(...)
na medida em que tivesse consagrado, amplamente, o direito de acção (artigos 1.º
e 2.º do CPC), o sistema jurídico português estabeleceu a regra da proscrição
da justiça privada, só admitida nos casos que especialmente previu (cf. artigos
336.º, 367.º e 339.º do Código Civil), não configurados de qualquer modo no caso
dos autos. De maneira que a sentença recorrida, sancionando positivamente a
actuação dos requeridos de por meios próprios se investirem contra os requentes
e retirar‑lhes, nas circunstâncias patenteadas, o veículo em causa, parece, além
de injustificada e ilegal, ofensiva do princípio da ordem pública portuguesa,
aliás, de valor constitucional. Pelo que a interpretação seguida de validar,
fora das situações previstas por lei, a actuação de justiça privada, além de
contrária ao disposto no artigo 280.º do Código Civil, é ofensiva do princípio
constitucional do Estado de direito material. Nunca podendo, por isso, ser
admitida. Antes devendo ser afastada, com a consequente manutenção da
providência de restituição da posse decretada nos autos.”
1.2. A esse recurso foi negado provimento, por acórdão
de 8 de Março de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa, com a seguinte
fundamentação:
“II – As razões do inconformismo dos recorrentes são, em síntese, as
seguintes:
1 – Da prova testemunhal ou documental não resulta que tivesse sido
remetido para a morada dos locatários (Estrada …, A ...) a comunicação de
resolução do contrato.
2 – A resolução não operou, portanto.
3 – A comunicação foi, sim, para a morada «Estrada .., n.º B...» e
que não era a do contrato.
4 – O locatário foi esbulhado da posse do veículo em causa.
5 – Mesmo que tivesse operado a resolução, os artigos 1.º e 2.º do
CPC proíbem o recurso à força como forma de realização do direito.
A parte contrária pugna pela confirmação do julgado.
Está em causa um contrato de leasing de um veículo automóvel, que
foi apreendido por ordem da locadora, porque os locatários não pagaram as 33.ª,
34.ª e 35.ª rendas.
Dão‑se, assim, por reproduzidos os factos provados (artigo 713.º,
n.º 6, do CPC), sem embargo de se apreciar a questão levantada atinente à morada
para onde terá sido enviada a carta de resolução.
Ora bem:
– A carta de resolução terá sido enviada para a Estrada …, n.º B –
queixam‑se os recorrentes – quando o deveria ter sido para o n.º A., que era a
morada constante do contrato...
De facto, a morada do contrato refere o n.º A, quando a petição
inicial refere, como morada dos autores, o n.º B. Mais: um telegrama junto por
eles (fls. 31) refere também o n.º B, o mesmo sucedendo com o documento n.º 4 –
junto pelos autores.
Quer dizer: o local habitual e, ao que parece, útil para os autores
serem encontrados era precisamente o n.º B.
Por isso, ante esta indefinição propiciada pelos próprios autores,
não admira que a sentença lhes imputasse a responsabilidade do hipotético não
recebimento da carta, nos termos do artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil.
Certíssimo.
Aliás, neste cenário não custa tirar a ilação de que, fosse a carta
enviada para o n.º B ou para o n.º A, sempre seria recebida pelos autores por
serem ambas moradas suas.
Depois, não se diga que, mesmo com uma resolução actuante (tal como
o artigo 436.º do Código Civil prescreve), os réus não poderiam fazer justiça
por suas mãos ...
Nada disso.
O locador limitou‑se, dentro da previsão contratual, a apreender o
carro, pois o locatário, face ao incumprimento, de nenhum título dispunha para o
usufruir.
Não se percebe, assim, esta insistência cega numa providência que
não tinha razão de ser, pois nenhum locador pode aceder a ficar privado do
objecto locado quando o locatário, contumazmente, se recusa a pagar as
respectivas rendas.
Se, então, ponderarmos que nos encontramos em sede de processo
cautelar, no qual releva o fumus boni juris, ou seja, a aparência mínima do
direito, mais se impunha aos locatários, como supostos boni patres familiae,
alegarem na sua petição inicial algo como isto: – Sr. Juiz, temos cumprido o
contrato… não se vê razão para o que o locador nos apreenda o carro …
Ora, esta alegação tanto mais se impunha quanto é certo (ou seja: é
facto notório... o normal da vida…) que o locador o que quer é que lhe paguem as
rendas, e não levantará problemas se isso acontecer.
Portanto, para ter de apreender o carro, é porque algo de anormal
terá acontecido...
Cabia, pois, ao locatário infirmar essa natural presunção – até
porque sabia muito bem que, tendo a providência corrido sem audiência da parte
contrária, não era possível esta contrapor a falta de pagamento das rendas.
Mais não é preciso dizer para evidenciar a sem razão dos
recorrentes. Mais:
A dar‑se o desfecho insólito de se lhes conceder provimento,
teríamos esta pedagogia verdadeiramente antijurídica: – que tanto monta pagar...
como não pagar as rendas… que o carro continuaria sempre nas mãos do locatário…
Não pode ser.
Nega‑se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão.”
1.3. Notificados deste acórdão, os recorrentes
interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional através de requerimento do
seguinte teor:
“A. e B., recorrentes nos autos, notificados do acórdão dos autos,
aqui dado por reproduzido, a aprovar, contra o princípio da acção e da ordem
pública e fora dos casos previstos por lei e com base na interpretação dada ao
artigo 436.º do Código Civil, mas contra o princípio do Estado de direito
consagrado pela Constituição da República, entretanto invocado pelo recurso –
aqui dado por reproduzido – o uso pela recorrida de meios privados coactivos e
violentos para o exercício de um seu suposto direito, vem, respeitosamente e ao
abrigo do disposto no artigo 70.º, [n.º 1], alínea b), da [Lei do Tribunal
Constitucional] e do princípio constitucional do Estado de direito, dele
interpor, para o Tribunal Constitucional, recurso, com vista à apreciação da
eventualidade de violação dos ditos artigo e princípio constitucionais e cuja
admissão requer.”
1.4. Este recurso não foi admitido pelo despacho do
Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Julho de 2007,
nos seguintes termos:
“Está em causa uma simples providência cautelar e subsequente
agravo.
Vêm os requeridos recorrer para o Tribunal Constitucional.
Ora, ao longo do processo e especificamente no recurso de agravo,
jamais se suscitou qualquer problema de inconstitucionalidade.
Logo: o recurso não é admissível: artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e
76.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro).
Não basta uma vaga e genérica alusão a meios violentos … para
exercício de um suposto direito.
Não admito, pois, o recurso.”
1.5. É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, do seguinte teor:
“1 – No agravo interposto da sentença que revogou a providência de
restituição provisória da posse entretanto concedida por esse alto Tribunal da
Relação, foi sustentado o seguinte:
– «(...) o acórdão da Relação de Lisboa em causa decretou a
providência de restituição provisória da posse com base em que, no caso, havia
tanto uma situação de locação financeira sobre a viatura Opel n.º 33‑11‑SI
referenciada a favor do locatário e requerente A., como esbulho, levado a efeito
mediante meios violentos, empregues pelos requeridos.»
– A tese da «(...) sentença parecia ser, pois, a de que, em
situação de locação financeira, o locador poderia investir‑se contra o
locatário e, por meios próprios, retirar‑lhe a coisa locada, sem que este
pudesse usar de meios processuais para cautelarmente atalhar a situação, a não
ser que alegasse e provasse o pagamento pontual das rendas».
– «Mesmo no caso de (...) resolução do contrato suposta pela
sentença recorrida não parece que o (...) caminho (...) fosse a de recurso a
actuação por meios próprios usada». É que «(...) na medida em que tivesse
consagrado, amplamente, o direito de acção (artigo 1.º, n.º 2, do CPC), o
sistema jurídico português estabeleceu a regra da proscrição da justiça privada,
só admitida nos casos que especialmente previu (cf. artigos 336.º, 367.º e 339.º
do Código Civil), não configurados de qualquer modo no caso dos autos. De
maneira que a sentença recorrida, sancionando positivamente a actuação dos
requeridos de por meios próprios se investirem contra os requentes e
retirar‑lhes, nas circunstâncias patenteadas, o veículo em causa, parece, além
de injustificada e ilegal, ofensiva do princípio da ordem pública portuguesa,
aliás, de valor constitucional. Pelo que a interpretação seguida de validar,
fora das situações previstas por lei, a actuação de justiça privada, além de
contrária ao disposto no artigo 280.º do Código Civil, é ofensiva do princípio
constitucional do Estado de direito (...). Nunca podendo, por isso, ser
admitida. Antes devendo ser afastada (...)».
2 – Considerando embora que, pelos recorrentes, «Mesmo que tivesse
operado a resolução, os artigos 1.º e 2.º do CPC proíbem o recurso à força como
forma de realização do direito», o acórdão de 8 de Março de 2007 (fls. 332 e
seguintes) decidiu‑se pela confirmação da sentença recorrida, na base de que:
– «Não se diga que mesmo com uma resolução actuante (tal como o
artigo 436.º do Código Civil prescreve), os réus não poderiam fazer justiça por
suas próprias mãos. Nada disso, O locador limitou‑se, dentro da previsão
contratual, a apreender o carro, pois o locatário, face ao incumprimento, de
nenhum título dispunha para o usufruir».
3 – Mas, vendo os ora reclamantes que, apesar de suscitada a
inconstitucionalidade do artigo 336.º do Código Civil e do princípio da acção
envolvida pela interpretação que lhes foi dada pela sentença recorrida, nos
termos do seu dito requerimento de alegações, o acórdão dos autos entretanto a
confirmou, incorrendo, por isso também, no mesmo vício de
inconstitucionalidade, pelo seu requerimento de 2 de Julho de 2007, aqui dado
por reproduzido, dele interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, nos
termos seguintes: «(...) notificados do acórdão dos autos, aqui dado por
reproduzido, a aprovar, contra o princípio da acção e da ordem pública e fora
dos casos previstos por lei e com base na interpretação dada ao artigo 436.º do
Código Civil, mas contra o princípio do Estado de direito consagrado pela
Constituição da República; entretanto invocado pelo recurso (…) o uso pela
recorrida de meios privados coactivos e violentos para o exercício de um seu
suposto direito, vem, respeitosamente e ao abrigo do disposto no artigo 70.º,
[n.º 1], alínea b), da [Lei do Tribunal Constitucional] e do principio
constitucional do Estado de direito, dele interpor, para o Tribunal
Constitucional, recurso, em vista à apreciação da eventualidade da violação dos
ditos artigo e princípio constitucionais (...)».
A grandeza da importância teórica e prática da questão envolvida
pela interpretação em causa, que, a ser seguida, conduziria à
institucionalização, por impulso de decisão judicial e contra a ordem
constitucional, do sistema de justiça privada impunha esse procedimento.
Porém, o despacho reclamado indeferiu o recurso, com base em «(...)
ao longo do processo e especificamente no recurso de agravo jamais se suscitou
qualquer problema de inconstitucionalidade (...)» e que, por isso, «O recurso
não é admissível: artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro). (...) Não basta uma vaga e
genérica alusão a meios violentos (....) para o exercício de um suposto
direito».
Mas, contrariamente ao pretendido pelo dito despacho, é de ver que,
do dito teor das alegações dos recorrentes segundo o qual «A tese da (…)
sentença parecia ser, pois, a de que, em situação de locação financeira, o
locador poderia investir‑se contra o locatário e, por meios próprios,
retirar‑lhe a coisa locada, sem que este pudesse usar de meios processuais para
cautelarmente atalhar a situação, a não ser que alegasse e provasse o pagamento
pontual das rendas»; «Mesmo no caso de (...) resolução do contrato suposta pela
sentença recorrida, não parece que o (...) caminho (...) fosse a de recurso a
actuação por meios próprios usada». E que «(...) na medida em que tivesse
consagrado, amplamente, o direito de acção (artigo 1.º, n.º 2, do CPC), o
sistema jurídico português estabeleceu a regra da proscrição da justiça privada,
só admitida nos casos que especialmente previu (cf. artigos 336.º, 367.º e 339.º
do Código Civil), não configurados de qualquer modo no caso dos autos. De
maneira que a sentença recorrida, sancionando positivamente a actuação dos
requeridos de por meios próprios se investirem contra os requentes e
retirar‑lhes, nas circunstâncias patenteadas, o veículo em causa, parece, além
de injustificada e ilegal, ofensiva do princípio da ordem pública portuguesa,
aliás, de valor constitucional. Pelo que a interpretação seguida de validar,
fora das situações previstas por lei, a actuação de justiça privada, além de
contrária ao disposto no artigo 280.º do Código Civil, é ofensiva do princípio
constitucional do Estado de direito (...). Nunca podendo, por isso, ser
admitida. Antes devendo ser afastada (...)», resulta que a questão
constitucional recorrida foi suscitada. Pelo que a rejeição liminar do recurso
interposto, com base em que «Não basta uma vaga e genérica alusão a meios
violentos (...) para o exercício de um suposto direito», envolve erro na
apreciação da questão colocada. Importando, por isso, que o despacho em causa
seja revogado e substituído por outro que admita o recurso, nos termos
interpostos. Daí a presente reclamação, em vista à revogação do despacho
recorrido e à sua subsequente substituição por outro que admita o recurso, nos
termos interpostos – que se requer.”
1.5. Neste Tribunal, o representante do Ministério
Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que os
reclamantes não delinearam, em termos processualmente adequados, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao
recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como é sabido, só compete ao Tribunal Constitucional
a apreciação de questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, de
questões de alegada violação de normas ou princípios constitucionais por parte
de normas (ou de interpretações normativas), e já não directamente por parte de
decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente
caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos
de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Ora, no presente caso, é patente que os recorrentes não
suscitaram perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada,
apesar de terem disposto de oportunidade processual para o efeito, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente reportada ao
preceito legal indicado no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade (artigo 436.º do Código Civil). Com efeito, na alegação do
recurso endereçado ao tribunal recorrido, como ressalta da sua conclusão 6.ª, os
recorrentes imputam directamente à decisão judicial então impugnada, em si mesma
considerada, a violação de normas de direito ordinário e de princípios
constitucionais, o que não constitui modo idóneo de suscitação de questão de
constitucionalidade normativa.
Nestes termos, merece conformação o despacho de não
admissão do recurso.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando‑se a taxa de justiça
em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Novembro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos