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Processo n.º 856/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1.A., L.da, intentou no Tribunal Judicial
da Comarca do Funchal acção declarativa, com forma de processo sumário, contra
B., pedindo que fosse decretada a cessação do contrato de arrendamento, por
denúncia realizada pela autora, sendo a ré condenada a reconhecer tal cessação
de arrendamento e a despejar imediatamente o locado, contra o recebimento da
importância de Esc. 3 000 000$00.
Citada a ré, veio esta, tempestivamente,
deduzir contestação, defendendo‑se por excepção e impugnação e requerendo,
subsidiariamente, o diferimento da desocupação do locado. Excepcionou a ré a
inconstitucionalidade do dispositivo legal que permitiu a denúncia do contrato
de arrendamento pela autora, designadamente os artigos 89.º‑A e 89.º‑B do Regime
do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro
(RAU), por violação do disposto nos artigos 65.º, 13.º e 18.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
1.2. Após resposta da autora e prolação de
despacho de abstenção da selecção de matéria de facto assente e por provar,
fundado na simplicidade da causa, realizou‑se audiência de julgamento, finda a
qual foram dados como provados os seguintes factos:
1) A sociedade autora é dona e legítima
possuidora do prédio urbano situado na Rua …de polícia, freguesia de São Pedro,
concelho do Funchal (…).
2) O mencionado imóvel da autora é
constituído, além do mais, por uma pequena moradia, situada no r/c, com entrada
pela Rua do …., da freguesia de São Pedro, concelho do Funchal.
3) Por documento de 30 de Setembro de 1966,
a autora deu de arrendamento, com destino à habitação, a C., essa moradia do seu
prédio.
4) O arrendamento foi participado na então
1.ª Repartição de Finanças do Funchal.
5) O dito C. era casado com D..
6) O casal tinha uma filha, a aqui ré B..
7) A renda mensal inicialmente estipulada
era de Esc. 950$00 e, no ano de 2000, cifrava‑se em Esc. 6910$00.
8) Após a celebração do contrato de
arrendamento, mais concretamente a partir de 1 de Outubro de 1966, o casal
formado pelo arrendatário C. e pela D. passou a viver e conviver no locado com a
sua filha, a aqui ré B..
9) Em 27 de Dezembro de 1969 morreu o
primitivo arrendatário C..
10) Por morte deste, a posição de
arrendatário transmitiu‑se para a viúva, D..
11) Em 28 de Janeiro de 2000, morreu a viúva
D..
12) A morte da referida D. foi comunicada
pela aqui ré, B., à autora, por carta registada com aviso de recepção, recebida
por esta em 27 de Julho de 2000.
13) Na sequência dessa carta da ré, a autora
denunciou aquele contrato de arrendamento, mediante o pagamento de uma
indemnização correspondente a 10 anos da renda em vigor, no montante total de
Esc. 829 200$00 (Esc. 6910$00 x 12 x 10), por carta registada enviada para a ré
em 19 de Agosto de 2000.
14) A ré, por carta registada com aviso de
recepção recebida pela autora em 16 de Outubro de 2000, opôs‑se a tal denúncia
e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 89.º‑B do RAU, propôs uma nova
renda no montante de Esc. 50 000$00.
15) Face ao que a autora, por carta
registada com aviso de recepção enviada para a ré em 7 de Novembro de 2000, e
por esta recebida em 13 de Novembro de 2000, optou pela denúncia do dito
contrato de arrendamento, agora mediante uma indemnização calculada com base
nesta renda de Esc. 50 000$00 proposta pela ré e correspondente a dez anos de
renda proposta, ou seja, do valor global de Esc. 6 000 000$00 (Esc. 50 000$00 x
12 x 10).
16) Em 12 de Dezembro de 2000, a autora
pagou a importância de Esc. 3 000 000$00, correspondente a metade da aludida
indemnização, importância que esta então recebeu integralmente e de que prestou
quitação – assim reconhecendo e aceitando a cessação do mencionado arrendamento
por efeito da denúncia da senhoria e aqui autora.
17) Por carta registada com aviso de
recepção de 16 de Julho de 2001, recebida pela ré em 19 de Julho de 2001, a
autora pediu à ré a restituição do locado, informando que no acto da entrega do
mesmo seria efectuado o pagamento de Esc. 3 000 000$00, respeitante à segunda
metade da dita indemnização e indicando o dia 17 de Agosto de 2001, pelas 15.00
horas, para a realização de tais operações.
18) A ré não fez a entrega do locado à
autora na apontada oportunidade nem posteriormente.
19) A ré é empregada doméstica.
20) Actividade com a qual aufere o
vencimento mensal bruto de € 243,66.
21) A ré não tem quaisquer bens imóveis.
22) A ré tem três filhos, dos quais apenas
uma, a mais nova, E., continua a viver consigo na casa objecto dos presentes
autos.
23) A referida filha da ré, E., é estudante,
encontrando‑se a frequentar o 12.º ano do liceu, bem como o Conservatório de
Música.
24) O pai da E. contribui mensalmente com
uma quantia em dinheiro para o seu sustento.
25) À excepção daquela ajuda, todo o
sustento da ré e da sua filha é assegurado pela ré.
26) A ré é divorciada.
27) A ré paga os estudos musicais da sua
filha, no valor de € 13,50 mensais.
28) A ré suporta a quantia de € 34,47 que
vem depositando mensalmente na Caixa Geral de Depósitos, relativamente ao
arrendamento subjacente nos presentes autos.
29) À data em que a ré propôs à autora uma
nova renda, no valor de Esc. 50 000$00, em Outubro de 2000, vivia ainda consigo,
para além da referida filha E., outro filho seu, F..
30) Sendo que este último, trabalhando como
mecânico, contribuía para a economia familiar substancialmente.
31) O referido filho da ré, F., já não vive
com a mesma.
32) E, tendo as suas próprias despesas de
habitação, alimentação, etc., agora nada contribui para a economia da sua mãe,
aqui ré, e da sua referida irmã, E..
33) A ré nasceu em 18 de Janeiro de 1951.
34) O trabalho da ré e a escola da filha são
no centro do Funchal.
35) No Funchal e arredores, uma habitação
correspondente às necessidades de habitação da ré e sua filha, ou seja, com
tipologia T2, aproxima‑se, pelo menos, do valor de compra de € 100 000,00, e do
valor de arrendamento mensal de € 500,00, ambos incomportáveis para a ré.
36) Tais razões levaram a ré, logo que
ocorreu a denúncia do contrato de arrendamento por parte da autora, a contactar
os serviços de habitação social, quer da Câmara Municipal do Funchal, quer do
Instituto de Habitação da Madeira, junto de quem formulou e se encontra pendente
pedido de habitação social para si e sua filha E.
37) Sem lhe ter sido, até à data,
disponibilizada habitação social.
38) A autora é dona de diversas habitações
existentes na mesma rua do imóvel em causa nos presentes autos – Rua … –, entre
si confinantes.
39) Todas essas habitações estiveram
sujeitas a arrendamento habitacional e desde há longa data.
40) Uma parte das mesmas encontra‑se livre e
desocupada.
41) Todas as referidas habitações apresentam
um elevado grau de deterioração e são em si, além do mais, muito modestas.
42) A sua localização é em pleno centro do
Funchal.
43) O destino certo de todas as referidas
habitações será, nunca a sua reconstrução ou reparação, mas antes a sua
demolição global, para a realização de nova e maior construção.
44) Tal projecto apenas poderá ser
empreendido mediante a libertação de todo esse conjunto de habitações, o que
está longe de acontecer.
45) As habitações desocupadas encontram‑se
fechadas, sem utilização ou obras em curso.
46) A autora tem prevista, para o conjunto
predial formado pelo prédio locado e outros prédios com ele confinantes de que é
proprietária, a construção de um amplo empreendimento imobiliário (destinado a
hotelaria e comércio).
Com base nestes factos, a sentença de 15 de
Julho de 2004 do 3.º Juízo Cível do Funchal julgou a acção procedente e, em
consequência, declarou a cessação do contrato de arrendamento em causa, por
denúncia validamente realizada pela autora; condenou a ré a despejar
imediatamente o locado, contra o recebimento da importância de Esc. 3 000 000$00
(€ 14 963,94); e julgou improcedente, por não provado, o pedido de diferimento
da desocupação do locado formulado pela ré, indeferindo‑o.
Para alcançar esta decisão, desenvolveu a
sentença a seguinte fundamentação:
“O artigo 85.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, do RAU (Regime
do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de
Outubro) afasta a regra geral do artigo 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código
Civil, segundo a qual o contrato de locação caduca com a morte do locatário,
permitindo a transmissão da posição contratual do arrendatário do primitivo
contratante para o seu cônjuge sobrevivo e, ainda, deste para descendente que
com ele convivesse há mais de um ano, considerada a data do óbito.
Pelo que era fundada a pretensão da ré em querer aceder à
posição contratual da arrendatária, sua mãe.
Comunicada ao senhorio a morte do primitivo arrendatário – o
que equivale à declaração de vontade de operar a transmissão da posição
contratual –, nos termos do artigo 89.º do RAU, a este restam duas opções.
Ou aceita a transmissão, mantendo‑se o arrendamento como antes
ou submetido ao regime de renda condicionada (artigo 87.º do RAU).
Ou denuncia o contrato, nos termos do artigo 89.º‑A do mesmo
diploma, ou seja, mediante o pagamento de uma indemnização correspondente a 10
anos de rendas.
Foi esta última opção que tomou a autora.
Fazendo‑o de forma regular e tempestiva.
Por sua vez, a ré opôs‑se, tal como lhe permitia a lei (artigo
89.º‑B, n.º 1, do RAU), propondo uma nova renda.
Mecanismo que visaria a manutenção do contrato em moldes mais
justos – porque a renda tenderia a aproximar‑se do real valor locativo – ou uma
mais justa indemnização – posto que o despejo se tornaria mais oneroso quanto
mais ajustada àquele valor fosse a renda.
Isto porque, perante a posição da ré, a autora podia, também
ela, optar (artigo 89.º‑B, n.º 2, do RAU).
Ou pela manutenção do arrendamento, com a nova renda proposta
pela ré.
Ou pela denúncia, pagando, agora, uma indemnização calculada
com base na nova renda proposta.
Foi esta última opção que tomou a autora.
Procedendo à denúncia com observância das formalidades legais,
incluindo o pagamento de metade da indemnização devida após a consolidação da
denúncia, pela qual optou, pagamento esse que a ré aceitou.
O que quer, então, a ré?
Aceitando o pagamento de metade da indemnização, a ré não
desocupou voluntariamente o locado e opôs‑se à presente acção, invocando a
inconstitucionalidade dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B do RAU por não permitirem a
transmissão do arrendamento por morte do primitivo arrendatário, a não ser em
condições incomportáveis para pessoas de débil situação económica.
Desde logo, anote‑se que as pessoas referidas no artigo 85.º
do RAU não são titulares de um arrendamento mas, antes, titulares de um direito
à transmissão desse arrendamento em condições a negociar, nos termos
rigidamente demarcados pela lei, com o senhorio.
Senhorio esse que tem sempre a última palavra, em homenagem ao
princípio da liberdade contratual.
Embora a lei, atenta às expectativas jurídicas que os
potenciais transmissários do arrendamento possuem, condicione a extinção do
contrato por vontade do senhorio ao pagamento de uma indemnização que se
pretende justa.
Tal como Menezes Cordeiro (Colectânea de Jurisprudência –
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo 1, p. 6), não se vê que a
solução adoptada mereça reparos constitucionais.
Repetindo‑se aqui o estafado argumento que não são os
proprietários particulares do parque habitacional quem tem de suportar o
encargo de prover às necessidades de habitação dos socialmente desfavorecidos.
Sem o que se criaria outra desigualdade: a de o senhorio do
inquilino pobre ser, tendencialmente, um senhorio pobre, enquanto o senhorio de
um inquilino rico ser, tendencialmente, um senhorio rico.
Aliás, no caso concreto, a actuação da ré constitui abuso de
direito já que aceitar o pagamento de parte da indemnização devida pela denúncia
e, depois, não restituir o locado e opor‑se à acção de despejo integra um
verdadeiro venire contra factum proprium.
Roçando a sua actuação processual a litigância de má fé.
No que respeita ao pedido de diferimento da desocupação,
também ele não procede.
Na verdade, a situação económica da ré, que é de facto débil,
será amplamente reforçada com o recebimento da indemnização paga pela autora, a
qual cobrirá, pelo menos, 5 anos de rendas aos valores reais do mercado de
arrendamento.
Acresce que a ré tem pendente o pedido de atribuição de casa
de habitação social, o qual, certamente, será privilegiado em caso de
procedência desta acção, pelo que não é de reputar razoável aquele lapso de
espera de 5 anos, apontado.
Com a ré vive apenas uma filha, estudante do último ano do
Ensino Complementar e, por consequência, a entrar na idade laboral, o que
reforçaria a capacidade económica do agregado.
Não há notícia de problemas de saúde.
A actuação contratual e processual da ré, como se assinalou
supra, não tem sido pautada pela boa fé.
Finalmente, a autora tem prevista para o local a construção de
um amplo empreendimento imobiliário e hoteleiro, o que faz indiciar que a
desocupação imediata do local não causa à ré prejuízo superior à vantagem
conferida à autora.
Razões pelas quais se entende que não se mostram reunidos os
pressupostos para o diferimento da desocupação do locado, a que se referem os
artigos 102.º, n.º 1, e 103.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do RAU.”
1.3. Contra esta sentença apelou a ré para o
Tribunal da Relação de Lisboa, formulando, no final das respectivas alegações,
as seguintes conclusões:
“a) São materialmente inconstitucionais os artigos 89.°‑A e 89.°‑B do RAU, por
violação dos artigos 65.°, 13.° e 18.°, n.º 2, todos da CRP, interpretados
conjuntamente, e porquanto o regime resultante das referidas normas do RAU:
b) Estabelece um critério que, de forma clara e inequívoca, protege mais o
transmissário/inquilino que mais possibilidades económicas tem (nomeadamente
para efeitos de habitação), e menos o transmissário/inquilino que menos
possibilidades económicas tem;
c) Estabelece um critério que apenas atende ao confronto, por natureza meramente
formal, entre a denúncia do senhorio / a proposta do transmissário / e a
resposta final do senhorio – sem atender, em termos de fundo, e ainda que de
forma mínima, à comparação entre a necessidade/beneficio para o senhorio em face
do sacrifício/possibilidades do transmissário;
d) Estabelece um critério que, de forma totalmente alheia à efectiva e concreta
disponibilização de habitação social para os mais desfavorecidos, permite a
cessação de soluções habitacionais há muito duradouras, sobretudo para esses
mesmos mais desfavorecidos (porque tendo menos posses para a proposta de nova
renda), aqueles justamente perante quem a obrigação do Estado em garantir
habitação é maior;
e) Admitindo, por mera hipótese, que assim se não entenda, sempre se verifica,
pelo menos, a inconstitucionalidade, por violação das mesmas regras
constitucionais, da interpretação dos referidos normativos do RAU, feita pelo
Tribunal a quo, segundo a qual se considera procedente o despejo, na sequência
de denúncia efectuada pelo senhorio por morte do primitivo inquilino, mediante o
pagamento de € 29 927,87 ao destinatário da denúncia e do despejo, sendo este
uma empregada doméstica com 53 anos de idade, auferindo € 243,66 por mês, para
seu sustento e de uma filha, estudante, que consigo vive, não tendo quaisquer
bens imóveis, e para quem se verifica ser incomportável o valor quer de compra
(€ 100 000,00), quer de arrendamento (€ 500,00 por mês) de nova habitação, e à
qual não foi ainda disponibilizada habitação social;
f) As inconstitucionalidades ora apontadas podem e devem ser conhecidas por
esse Tribunal (artigo 207.° da CRP), com as devidas e legais consequências, a
saber, a absolvição da ré dos pedidos contra si formulados pela autora.”
1.4. Ao recurso foi negado provimento pelo
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Maio de 2005, que, após
transcrição dos artigos 89.º, 89.º‑A e 89.º‑B do RAU e 13.º, 18.º, n.º 2, e 65.º
da CRP, desenvolveu a seguinte argumentação jurídica:
“Dois tipos de inconstitucionalidades são levantadas pela ré.
Uma, a inconstitucionalidade material das citadas normas do
RAU:
«O RAU estabelece um critério que, de forma clara e
inequívoca, protege mais o transmissário/inquilino que mais possibilidades
económicas tem – nomeadamente, para efeitos de habitação – e menos o
transmissário inquilino que menos possibilidades económicas tem;
Apenas atende ao confronto, por natureza meramente formal,
entre a denúncia do senhorio / a proposta do transmissário / e a resposta final
do senhorio – sem atender, em termos de fundo, e ainda que de forma mínima, à
comparação entre a necessidade/benefício para o senhorio em face do
sacrifício/possibilidades do transmissário;
De forma totalmente alheia à efectiva e concreta disponibilização de habitação
social para os mais desfavorecidos, permite a cessação de soluções habitacionais
há muito duradouras, sobretudo para esses mesmos mais desfavorecidos – porque
tendo menos posses para a proposta de nova renda –, aquelas justamente perante
quem a obrigação do Estado em garantir habitação é maior.»
Outra, respeitante à concreta interpretação e aplicação dos normativos do RAU:
«Admitindo, por mera hipótese, que assim se não entenda, sempre se verifica,
pelo menos, a inconstitucionalidade, por violação das mesmas regras
constitucionais, da interpretação dos referidos normativos do RAU, feita pelo
Tribunal a quo, segundo a qual se considera procedente o despejo, na sequência
de denúncia efectuada pelo senhorio, por morte do primitivo inquilino, mediante
o pagamento de € 29 927,87 ao destinatário da denúncia e do despejo, sendo este
uma empregada doméstica com 53 anos de idade, auferindo € 243,66 por mês, para
seu sustento e de uma filha, estudante, que consigo vive, não tendo quaisquer
bens imóveis e para quem se verifica ser incomportável o valor quer de compra –
€ 100 000,00 –, quer de arrendamento – € 500,00, por mês – de nova habitação, e
à qual não foi ainda disponibilizada habitação social.»
Quanto à primeira, mantém‑se actual a decisão do Tribunal Constitucional,
expressa no Acórdão de 1 de Outubro de 1992 – publicitado em
www.dgsi.pt.atcol.nsf/9 –, do seguinte teor:
«Não existe qualquer exigência constitucional impondo à lei ordinária o dever de
consagrar uma transmissão sucessiva e ilimitada da posição jurídica de
arrendatário mortis causa, sendo manifesto que a norma do artigo 65.° da
Constituição não obriga a semelhante entendimento, mesmo quando se entenda que
o direito à habitação deve prevalecer sobre o direito de uso e disposição da
propriedade privada.»
Quanto à segunda constitucionalidade arguida:
Pensamos que não assiste razão à recorrente.
Senão vejamos.
O facto de a ré ser empregada doméstica, ter 53 anos de idade e auferir o
ordenado mensal de € 243,66, não é impeditivo da ratificação da denúncia do
contrato de arrendamento, legalmente operada.
O valor da indemnização recebida e a receber acautela o interesse, também
legítimo, da ré de ter uma habitação.
O legislador equiparou, e bem, a situação da ré à de um inquilino sujeito a uma
renda condicionada.
Se o senhorio mantiver a vontade de denunciar o contrato de arrendamento, terá
que se sujeitar à contraproposta da ré – o que aconteceu, tendo a proposta da ré
sido no valor de € 250 mensais – e a indemnização é calculada com base nesse
montante e no total de 10 anos de renda.
Há que convir ser esta solução legislativa equilibrada, pois a renda
condicionada é a que mais se aproxima dos valores do mercado habitacional,
decorrentes da oferta e procura, e permite que se arbitre a favor do inquilino
uma indemnização equitativa e que proporciona a este os meios económicos
suficientes para assegurar o direito à habitação que a Constituição da República
Portuguesa lhe reconhece.
Sabendo‑se que há que conciliar o analisado direito à habitação do inquilino com
o direito de propriedade do senhorio, compete também ao Estado intervir, nos
termos que o artigo 65.° da CRP enuncia e, com a urgência possível,
disponibilizar à ré uma habitação social, que tenha em consideração a sua
situação pessoal e económica.
Significa isto que reputamos de constitucional a interpretação do RAU feita pelo
Tribunal a quo.
Contudo, impõe‑se o diferimento da restituição do locado, a aferir pelo Tribunal
da 1.ª Instância, em concreto, e em conformidade com a resposta do Estado ao
pedido já deduzido pela ré, no sentido de lhe ser atribuída uma habitação
social, interesse esse que se sobrepõe ao da autora de dispor, de imediato, do
imóvel em questão – artigos 103.° n.ºs 1, alínea b), e 2, do RAU.”
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal da
Relação de Lisboa decidiu: (i) julgar conformes à CRP os normativos em apreço
do RAU e a interpretação feita dos mesmos pelo Tribunal a quo, declarando-se
cessado o contrato de arrendamento, por denúncia validamente realizada pela
autora; (ii) condenar a ré a despejar o locado, contra o recebimento da
importância de Esc. 3 000 000$00 (€ 14 963,94); e (iii) diferir, porém, a
restituição do locado, nos termos dos artigos 103.º, n.ºs 1 e 2, do RAU, sendo o
prazo do diferimento a aferir pelo Tribunal da 1.ª Instância, em concreto, em
consonância com a resposta do Estado ao pedido já deduzido pela ré para que lhe
seja atribuída uma habitação social.
1.5. A recorrente requereu a aclaração do
anterior acórdão, aduzindo:
“1 – Na parte decisória do referido Acórdão desta Relação – c)
– foi decidido que o prazo do diferimento seria aferido pelo Tribunal da 1.ª
Instância, em concreto e em consonância com a resposta do Estado ao pedido já
deduzido pela ré para que lhe seja atribuída uma habitação social;
2 – O Estado, porém, poderá demorar mais do que o ano de
diferimento máximo, previsto no artigo 104.º do RAU, como, aliás, se vem
verificando;
3 – Nesse caso, não ficou claro, salvo o devido respeito, se o Tribunal de 1.ª
Instância poderá, ou não, alargar o prazo de diferimento, em consonância com a
resposta do Estado, para além do prazo de 1 ano previsto no artigo 104.º do RAU;
Sendo, precisamente, este o aspecto que pelo presente requerimento se pretende e
espera ver esclarecido.”
Sobre esse pedido de aclaração recaiu o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Junho de 2005, onde se
expendeu:
“A recorrente e ré nos autos quer que o Tribunal esclareça se
o diferimento do despejo pode, ou não, ultrapassar o prazo de um ano, pelas
razões acima aduzidas.
Dispõe o artigo 104.º do RAU que:
«1 – O diferimento da desocupação por razões sociais não pode
exceder o prazo máximo de um ano, a contar da data do trânsito em julgado da
sentença que tenha decretado o despejo.
2 – O prazo referido no número anterior absorve quaisquer
outros diferimentos permitidos por leis gerais ou especiais.»
O diferimento do despejo está regulado no normativo supra
enunciado, que não permite duas interpretações.
O n.º 2 do artigo 104.º do RAU é peremptório no sentido de que
o prazo de um ano é o limite máximo para o diferimento da desocupação.
Significa isto que o Tribunal a quo não pode diferir o despejo para além do
prazo legalmente previsto de um ano.
DECISÃO.
Assim e pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Relação, com o
esclarecimento acima efectuado, mantêm o antes decidido por este mesmo Tribunal
da Relação de Lisboa.”
1.6. É contra o acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, de 12 de Maio de 2005, que por B. vem interposto o presente
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 65.º, 13.º e 18.º,
n.º 2, da CRP: (i) em primeiro lugar, das normas dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B do
RAU, cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente nas alegações da
sua apelação; e (ii) em segundo lugar, da norma do artigo 104.º do RAU, cuja
inconstitucionalidade só no requerimento de interposição de recurso é suscitada,
por a norma em causa ter sido aplicada, pela primeira vez nos autos, pelo
acórdão recorrido, ao que acresce que “a resposta negativa que o Tribunal da
Relação dá quanto à invocada inconstitucionalidade dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B
do RAU afigura‑se indissociável da aplicação que o mesmo faz do artigo 104.º do
RAU”.
No Tribunal Constitucional, o relator, no
despacho em que determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes
se deviam pronunciar, querendo, “sobre a eventualidade de vir a entender‑se
excluir do objecto do recurso a questão de inconstitucionalidade reportada à
norma do artigo 104.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro (RAU), por falta do requisito de
admissibilidade específico dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na ónus de
arguição, pelo recorrente, perante o tribunal recorrido, antes da prolação da
decisão impugnada, da inconstitucionalidade da norma que nela veio a ser
aplicada”, uma vez que “tal requisito só se pode considerar dispensado quando a
decisão recorrida tiver procedido à aplicação de determinada norma de modo
insólito, inesperado ou anómalo (decisão‑surpresa), em termos de não ser
razoável exigir ao recorrente a prévia suscitação da questão de
inconstitucionalidade dessa interpretação normativa, situação que pode vir a
entender‑se não ocorrer no presente caso, em que era previsível a aplicação da
citada norma, dado que foi a ora recorrente quem requereu, embora a título
subsidiário, o diferimento da desocupação do local arrendado com fundamento
nos artigos 102.º e seguintes do RAU (cf. contestação de fls. 72 a 82), o que
foi expressamente indeferido pela sentença apelada (fls. 176 a 180), vindo a
ser deferido pelo acórdão ora recorrido (fls. 233 a 250), que procedeu a mera
interpretação literal do preceito em causa”.
1.7. A recorrente apresentou alegações, no
termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“a) Quanto à questão prévia, da admissibilidade de apreciação da
constitucionalidade do artigo 104.º do RAU, verifica‑se que a mesma só agora
pôde ser suscitada, em face do teor do Acórdão da Relação de Lisboa, na medida
em que:
– por um lado, sendo certo que os recursos apenas servem para reapreciar as
questões que já hajam sido objecto de apreciação, verifica‑se que o artigo 104.º
do RAU não foi aplicado pelo Tribunal de Primeira Instância, apenas o sendo,
agora, pelo Tribunal da Relação;
– por outro lado, a resposta negativa que o Tribunal da Relação dá quanto à
invocada inconstitucionalidade dos artigos 89.º-A e 89.º-B do RAU afigura-se
indissociável da aplicação que o mesmo faz do artigo 104.º do RAU;
b) Assim sendo, quer por se tratar de questão nova, quer por se mostrar
associada à decisão do Tribunal da Relação quanto à questão da
inconstitucionalidade já suscitada, também deverá agora conhecer‑se da
conformidade ou não do disposto no artigo 104.º do RAU com o disposto nos
artigos 65.º, 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP;
c) Quanto ao fundo da questão, pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi
desatendida a questão da inconstitucionalidade dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B do
RAU suscitada pela recorrente, sendo em abono do respectivo entendimento
invocado o Acórdão do Tribunal do Constitucional de 1 de Outubro de 1992;
d) Porém, nunca foi colocada pela recorrente a questão de uma transmissão
ilimitada da posição do arrendatário, a qual, com toda a propriedade, e no
referido Acórdão, esse Tribunal Constitucional afastou, tendo a recorrente
discutido, isso sim, o modo pelo qual e as condições em que opera a denúncia
impeditiva da transmissão, modo e condições que não podem deixar de condicionar
a actuação do Estado;
e) Tal discussão terá na sua base o princípio da necessária harmonização entre
os direitos em colisão, de propriedade do senhorio e de habitação do inquilino,
harmonização ou concordância prática estas que impõem ao Estado uma obrigação
efectiva de prestação de habitação ao inquilino carenciado, quando esta deva
ceder perante o direito de propriedade do senhorio, e obrigação essa do Estado
que só em caso de impossibilidade poderá incumprir;
f) Ora, não é mediante o simples diferimento por um ano, a aguardar a eventual
disponibilização de habitação do Estado, que se mostram conciliados os direitos
em conflito, de propriedade e de habitação;
g) É que, no caso de o Estado não cumprir com a sua obrigação no prazo de um
ano, se trata da pura e simples ablação absoluta do direito de habitação do
inquilino em prol do direito de propriedade do senhorio, apenas adiado por
aquele prazo, e ablação essa constitucionalmente inadmissível, porquanto
inexiste hierarquia entre os referidos dois direitos, obrigando, reitera‑se, à
respectiva harmonização;
h) Neste aspecto reside a inconstitucionalidade do artigo 104.º do RAU, tal como
aplicado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em conjugação com os artigos 89.º-A
e 89.º-B do RAU,
i) Normativos estes que são materialmente inconstitucionais, por violação dos
artigos 65.º, 13.º e 18.º, n.º 2, todos da CRP, interpretados conjuntamente, e
porquanto o regime resultante dos mesmos:
j) Estabelece um critério que, de forma clara e inequívoca, protege mais o
transmissário/inquilino que mais possibilidades económicas tem (nomeadamente
para efeitos de habitação), e menos o transmissário/inquilino que menos
possibilidades económicas tem;
k) Estabelece um critério que apenas atende ao confronto, por natureza meramente
formal, entre a denúncia do senhorio / a proposta do transmissário / e a
resposta final do senhorio – sem atender, em termos de fundo, e ainda que de
forma mínima, à comparação entre a necessidade/benefício para o senhorio em face
do sacrifício/possibilidades do transmissário;
l) Estabelece um critério que, de forma totalmente alheia à efectiva e concreta
disponibilização de habitação social para os mais desfavorecidos, permite a
cessação de soluções habitacionais há muito duradouras, sobretudo para esses
mesmos mais desfavorecidos (porque tendo menos posses para a proposta de nova
renda), aqueles justamente perante quem a obrigação do Estado em garantir
habitação é maior;
m) Admitindo por mera hipótese que assim se não entenda, sempre se verifica,
pelo menos, a inconstitucionalidade, por violação das mesmas regras
constitucionais, da interpretação dos referidos normativos do RAU, feita pelo
Tribunal a quo, segundo a qual se considera procedente o despejo, na sequência
de denúncia efectuada pelo senhorio por morte do primitivo inquilino mediante o
pagamento de € 29 927,87 ao destinatário da denúncia e do despejo, sendo este
uma empregada doméstica com 53 anos de idade, auferindo € 243,66 por mês, para
seu sustento e de uma filha, estudante, que consigo vive, não tendo quaisquer
bens imóveis, e para quem se verifica ser incomportável o valor quer de compra
(€ 100 000,00), quer de arrendamento (€ 500,00 por mês) de nova habitação, e à
qual não foi ainda disponibilizada habitação social;
n) As inconstitucionalidades ora apontadas podem e devem ser conhecidas por
esse Tribunal (artigo 207.º da CRP), com as devidas e legais consequências, a
saber, a absolvição da ré dos pedidos contra si formulados pela autora.”
1.8. A autora, ora recorrida, contra‑alegou,
considerando inadmissível o recurso tendo por objecto a norma do artigo 104.º do
RAU e propugnando o improvimento do mesmo na parte relativa às normas dos artigo
89.º‑A e 89.º‑B do RAU, caso se entenda que a recorrente procedeu à adequada
identificação da interpretação dessas normas cuja conformidade constitucional
pretende ver apreciada.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Pelas razões já apontadas no despacho
do relator atrás transcrito, não há que conhecer da questão da
inconstitucionalidade da norma do artigo 104.º do RAU, por não ter sido
suscitada pela recorrente antes de proferida a decisão recorrida, sendo certo
que, por um lado, a interpretação feita desse preceito, correspondendo ao seu
sentido literal, nada tem de anómalo, e, por outro lado, a aplicabilidade do
regime do diferimento do despejo foi preconizada pela própria recorrente, pelo
que a aplicação da norma em causa nada tem de inesperado.
Aliás, nem sequer no pedido de aclaração do
acórdão ora recorrido (apesar se esse já não constituir momento idóneo para o
efeito) a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma em
causa.
2.2. Dispõem os artigos 89.º, 89.º‑A e
89.º‑B do RAU:
“Artigo 89.º (Comunicação ao senhorio)
1 – O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta
registada com aviso de recepção, a morte do primitivo arrendatário ou do
cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência. (redacção do
Decreto‑Lei n.º 278/93, de 10 de Agosto).
2 – A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos
documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do
transmissário.
3 – A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a
transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por
todos os danos derivados da omissão. [Este n.º 3 foi revogado pelo Decreto‑Lei
n.º 278/93, mas o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 410/97, declarou
inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do disposto na
alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, a norma do artigo 1.º do
Decreto‑Lei n.º 278/93, na parte em que eliminou o n.º 3 do artigo 89.º do RAU].
Artigo 89.º‑A (Denúncia pelo senhorio)
1 – Nos casos referidos no artigo 87.° [contratos transmitidos para
descendentes com mais de 26 anos de idade e menos de 65, para ascendentes com
menos de 65 anos e afins na linha recta, nas mesmas condições, a que é
aplicável o regime de renda condicionada – n.º 1 –, regime extensivo aos
contratos transmitidos para descendentes ou afins menores de 26 anos quando
completem aquela idade e desde que haja decorrido um ano sobre a morte do
arrendatário – n.º 2], e em alternativa à aplicação do regime de renda
condicionada aí prevista, pode o senhorio optar pela denúncia do contrato,
pagando uma indemnização correspondente a 10 anos de renda, sem prejuízo dos
direitos do arrendatário a indemnização por benfeitorias e de retenção, nos
termos gerais.
2 – A denúncia é feita por carta registada, com aviso de recepção, no prazo de
30 dias após a recepção da comunicação prevista da morte do primitivo
arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, ou da comunicação prevista no n.º 3 do
artigo 87.° [comunicação da data em que completa 26 anos, que o transmissário
referido no n.º 2 deve fazer ao senhorio, por declaração escrita, com a
antecedência mínima de 30 dias], conforme os casos.
3 – Presume-se a aceitação da denúncia quando não haja oposição nos termos do
artigo seguinte.
Artigo 89.º‑B (Oposição do arrendatário)
1 – O arrendatário pode opor‑se à denúncia propondo uma nova renda, por carta
registada com aviso de recepção, no prazo de 60 dias após a recepção da
comunicação referida no artigo anterior.
2 – Recebida a oposição, deve o senhorio, no prazo de 30 dias, optar pela
manutenção do contrato com a renda proposta ou pela denúncia, mas então com uma
indemnização calculada na base da renda proposta pelo arrendatário.”
Estes artigos 89.º‑A e 89.º‑B foram aditados
pelo Decreto‑Lei n.º 278/93, editado ao abrigo da autorização legislativa,
concedida ao Governo pela Lei n.º 14/93, de 14 de Maio, para legislar no domínio
do regime jurídico do arrendamento para fins habitacionais, com o sentido e a
extensão constantes do seu artigo 2.º, designadamente no sentido de
“possibilitar a denúncia dos contratos de arrendamento para habitação a cuja
transmissão seja aplicável a alteração do regime de renda previsto no artigo
87.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90,
de 15 de Outubro, mediante o pagamento de uma indemnização igual a 10 anos de
renda, praticada à data da transmissão, sem prejuízo de o arrendatário poder
propor um novo valor de renda que, caso não seja aceite para efeitos de
continuação do contrato, relevará para cálculo da indemnização referida” (alínea
d)), pelo que, quanto a estas alterações, não se coloca o problema de falta de
credencial parlamentar que determinou a declaração de inconstitucionalidade
proferida pelo referido Acórdão n.º 410/97.
Justificando a introdução desta
possibilidade de denúncia do contrato, lê‑se no preâmbulo do Decreto‑Lei n.º
278/93:
“2. Mais delicado do que dispor para o futuro é alterar o
regime dos arrendamentos já constituídos. E, no entanto, é neste âmbito que se
encontram os principais factores de constrangimento na legislação do
arrendamento, os maiores problemas sociais e a principal causa da degradação de
tão larga parcela do nosso património imobiliário urbano.
Reconhecendo isso, o Regime do Arrendamento Urbano já limitou
os casos de transmissão do arrendamento por morte do arrendatário. Consagra‑se
agora uma alternativa à transmissão para descendentes com mais de 26 e menos de
65 anos, para ascendentes com menos de 65 anos e para afins na linha recta nas
mesmas condições, traduzida numa indemnização correspondente a 10 anos de
renda. Para tutelar os beneficiários da transmissão, permite‑se que estes se
possam opor a essa pretensão, oferecendo um novo montante para a renda. Caso
esta não seja aceite, a indemnização aos inquilinos terá esse valor na sua base.
A solução é equilibrada, já que o despejo se torna tanto mais oneroso quanto
mais justa é a renda. E, quanto maior for a indemnização, mais facilmente poderá
o transmissário do direito ao arrendamento prover, de forma alternativa, à sua
necessidade de alojamento. Refira‑se, por outro lado, que o montante daquela
indemnização não é tributável em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas
singulares.”
2.3. O artigo 65.º da CRP – norma que a
recorrente considera violada pelo critério normativo seguido pelo acórdão
recorrido – proclama que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma
habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que
preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (n.º 1), incumbindo ao
Estado, “para assegurar o direito à habitação” (n.º 2): (i) “programar e
executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do
território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma
rede adequada de transportes e de equipamento social” (alínea a)); (ii)
“promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a
construção de habitações económicas e sociais” (alínea b)); (iii) “estimular a
construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação
própria ou arrendada” (alínea c)); “incentivar e apoiar as iniciativas das
comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos
problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a
autoconstrução” (alínea d)), para além de o Estado dever adoptar “uma política
tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar
e de acesso à habitação própria” (n.º 3), e de o Estado, as regiões autónomas e
as autarquias locais deverem definir “as regras de ocupação, uso e transformação
dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no
quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo” e
proceder “às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de
fins de utilidade pública urbanística” (n.º 4).
O Tribunal Constitucional já foi chamado,
por diversas vezes, a apreciar a conformidade de diversos aspectos do regime
legal do arrendamento para habitação – designadamente quanto à sua transmissão
por morte do primitivo arrendatário – com os comandos do artigo 65.º da CRP.
No Acórdão n.º 101/92 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 21.º vol., p. 381), que não julgou inconstitucional a norma do
artigo 1111.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção do Decreto‑Lei n.º 328/81, de
4 de Dezembro, que restringiu a transmissão do arrendamento por morte do
arrendatário ao cônjuge do primitivo arrendatário e aos parentes ou afins deste
na linha recta, ponderou‑se:
“O direito à habitação consagrado neste normativo [artigo 65.º
da CRP], tal como outros direitos sociais, apresenta uma dupla natureza: (1) de
um lado, consiste no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou
de não ser impedido de conseguir uma, revestindo então a forma de «direito
negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do
Estado e de terceiros, apresentando‑se, nessa medida, como um direito análogo
aos «direitos, liberdades e garantias» (cf. artigo 17.º); (2) de outro lado, o
direito à habitação consiste no direito de a obter, traduzindo-se na exigência
das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo. Neste
sentido, constitui um verdadeiro e próprio «direito social», implicando enquanto
tal determinadas obrigações positivas do Estado (n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 65.º),
que conferem àquele a natureza de direito positivo que justifica e legitima a
pretensão do cidadão a determinadas prestações (cf. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp.
345 e 346).
A norma cuja constitucionalidade vem questionada retomou, após
o interregno provocado pelo Decreto‑Lei n.º 293/77, a orientação definida pela
Lei n.º 2030 e mantida pelo Código Civil de 1967, segundo a qual a transmissão
mortis causa da posição jurídica de arrendatário só se verifica em relação ao
primitivo arrendatário ou ao seu cessionário, e não já em relação a qualquer
outra pessoa a quem tenha sido transmitido, por morte, o respectivo direito.
Todavia, se é certo que o preceito em causa, na sua actual
redacção, se deve considerar mais limitativo da transmissão ex lege do
arrendamento por morte do arrendatário do que o regime definido pelo Decreto‑Lei
n.º 293/77, ainda assim, não pode, por tal facto, falar‑se a seu respeito de
inconstitucionalidade.
Com efeito, a vertente mais significativa do direito à
habitação enquanto «direito económico, social e cultural» contém-se na sua
dimensão positiva, isto é, no direito dos cidadãos às medidas e prestações
estaduais adequadas à concretização do objectivo ali enunciado – o direito a
obter uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em
termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Gomes
Canotilho e Vital Moreira (cf. ob. e loc. cit.) a este respeito assinalam que «o
incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das obrigações
constitucionais (...) indicadas constitui uma omissão inconstitucional, e pode
e deve desencadear os mecanismos da inconstitucionalidade por omissão (artigo
283.°)».
Ao contrário, a chamada dimensão negativa do direito à
habitação traduz‑se num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros em
ordem a não praticarem actos que possam prejudicar a efectiva realização daquele
direito.
Ora, no plano desta vertente do direito à habitação não pode
aceitar‑se como constitucionalmente exigível que a realização daquele direito
esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de
terceiros (que não o Estado), direitos esses, porventura também
constitucionalmente consagrados, como sucede, aliás, com o direito de
propriedade privada, elencado no título constitucional correspondente aos
direitos económicos, sociais e culturais.
Escreveu‑se a este propósito no acórdão recorrido, que «o
facto de a Constituição reconhecer a todos o direito à habitação não implica que
os proprietários de casas tenham de entregá‑las a quem as não tem e muito menos
que o tenham de fazer para todo o sempre, como se os seus verdadeiros donos
fossem os respectivos arrendatários e seus sucessores (…)».
Na verdade, não existe qualquer exigência constitucional
impondo à lei ordinária o dever de consagrar uma transmissão sucessiva e
ilimitada da posição jurídica de arrendatário mortis causa, sendo manifesto que
a norma do artigo 65.º da Constituição não obriga a semelhante entendimento,
mesmo quando se entenda que o direito à habitação deve prevalecer sobre o
direito de uso e disposição da propriedade privada.
A isto acresce que a solução consagrada na norma sob controvérsia garante um
quadro de transmissão do arrendamento no qual se contempla e protege
suficientemente a dimensão social mais premente do direito à habitação,
acautelando os interesses do cônjuge sobrevivo e dos parentes ou afins na linha
recta do de cujus, os quais, aliás, beneficiam, em certos casos, do regime de
rendas subsidiadas instituído pela Lei n.º 46/85.
Há‑de dizer-se que, neste domínio de particular sensibilidade social, uma
dialéctica fundada nos interesses conflituantes que aqui se colocam (os do
inquilino e do direito à habitação e os do senhorio e do direito de uso e
disposição da propriedade privada), pode conduzir a opções de política
legislativa diversas daquela que hoje se contêm na norma do artigo 1111.º do
Código Civil. Simplesmente, deve reconhecer‑se que a solução vigente poderá
sofrer contestação neste domínio mas não já seguramente por vício de violação do
artigo 65.º da Constituição.”
No Acórdão n.º 131/92 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 21.º vol., p. 505), que não julgou inconstitucionais as normas
dos artigos 1096.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, 1097.º e 1098.º do Código
Civil, respeitantes à denúncia do contrato de arrendamento para habitação pelo
senhorio, ponderou‑se (no mesmo sentido, cf. o Acórdão n.º 151/92, obra e vol.
citados, p. 647):
“O «direito à habitação», ou seja, o direito a ter uma morada
condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II
(direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos,
sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica
determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado,
são indicadas nos n.ºs 2 a 4 do artigo 65.º da Constituição (cf. J. J. Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp.
680‑682). Está‑se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao
nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e
de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da
chamada «reserva do possível» (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos,
económicos e sociais [cf. J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a
Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial
do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia – 1984, Coimbra,
1989, p. 26; J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976 (reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, pp. 199 ss. e 343
ss.].
O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja
entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera
pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205 e 209) ou,
antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do
cidadão (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não
confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é
directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as
regiões autónomas e os municípios – como único sujeito passivo – e nunca, ao
menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso,
ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o
seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento,
nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à
habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si
mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que
o senhorio denuncie o contrato de arrendamento quando necessitar do prédio para
sua habitação.
Estas considerações são suficientes para demonstrar que a
norma da primeira parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 1096.º, bem como as dos
artigos 1097.º e 1098.º, todos do Código Civil, nunca poderão infringir o
disposto no artigo 65.º da Constituição.”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 143/2007
(Diário da República, II Série, n.º 69, de 9 de Abril de 2007, p. 8992), que não
julgou inconstitucional, face aos artigos 13.º e 65.º da CRP, a norma extraída,
por interpretação conjugada, dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 85.º do RAU, segundo a
qual se o cônjuge do arrendatário pré‑defunto, encabeçado na posição contratual
de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo
RAU, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua
morte, a este novo cônjuge, foi reafirmada a orientação jurisprudencial
constante do Tribunal Constitucional sobre a matéria.
Entende‑se, assim, não ser
constitucionalmente imposta uma ilimitada (re)transmissão do arrendamento por
morte do arrendatário, designadamente quando, como no presente caso ocorre, se
trata já de uma segunda transmissão, e quando o sacrifício da posição do
candidato à transmissão do arrendamento é compensado através de uma indemnização
que não pode deixar de considerar‑se adequada, correspondendo a dez anos do
valor da renda por ele contraproposta e que, por isso, se deve presumir
tratar‑se da renda por ele tida por justa.
Por outro lado, a eventual limitação quanto
ao valor da renda a contrapropor pelo transmissário de menores recursos, em
contraste com transmissários com superior capacidade económica, não é idónea a
justificar a negação do direito do proprietário do prédio a proceder à denúncia
do contrato através do pagamento da indemnização legalmente fixada, devendo a
solução para a apontada situação de carência ser propiciada pelo Estado, através
de adequadas políticas sociais. Neste contexto, carece de fundamento a imputação
à solução legislativa questionada de violação dos artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da
CRP.
Não se mostra, assim, constitucionalmente
inaceitável o regime que dimana dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B do RAU, na sua
directa estatuição, nem na dimensão em que foram aplicados na decisão recorrida,
dimensão esta que, aliás, atentos os termos em que a recorrente a formula, é
susceptível de ser considerada como destituída de carácter normativo, por
indissociavelmente ligada às especificidades do caso concreto.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não conhecer do objecto do recurso na
parte relativa à questão de inconstitucionalidade imputada ao artigo 104.º do
Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de
Outubro;
b) Não julgar inconstitucionais as normas
dos artigos 89.º‑A e 89.º‑B do mesmo Regime, aditados pelo Decreto‑Lei n.º
278/93, de 10 de Agosto; e, consequentemente,
c) Negar provimento ao recurso, confirmando
o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos