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Processo n.º 535/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Em 10 de Outubro de 2002, foi comunicada
pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis ao
representante do Ministério Público no Tribunal Judicial da mesma comarca a
situação de duas menores, A. e B., de 14 e 15 anos de idade, respectivamente,
cada uma já mãe de um filho, sendo pai de ambos C., que, segundo suspeitas,
poderia andar a aliciar outras menores para a prática de relações sexuais.
Em 14 de Outubro de 2002, o representante do
Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis,
considerando a situação descrita susceptível de integrar a prática de um crime
de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 2, do
Código Penal, em relação à menor A., e de um crime de actos sexuais com
adolescentes, previsto e punido pelo artigo 174.º do mesmo Código, em relação à
menor B., ilícitos que possuem natureza semi‑pública, entendeu, porém, que, no
caso, apesar de não ter sido apresentada queixa, o interesse das vítimas, ambas
menores de 16 anos, justificava a instauração de procedimento criminal contra o
denunciado, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, até porquanto da
prática dos factos participados resultou a gravidez das menores.
Determinada, assim, a instauração de
inquérito, foi o mesmo, em 3 de Dezembro de 2002, remetido ao Ministério
Público da comarca de Albergaria‑a‑Velha, por ser a territorialmente
competente, tendo o respectivo magistrado, por despacho de 17 do mesmo mês,
através de despacho fundamentado, reiterado a intervenção oficiosa inicial do
Ministério Público, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal. Esse
despacho é do seguinte teor:
“I. Aqui se deixa consignado, aliás na esteira do decidido no primeiro despacho
do Ministério Público elaborado neste inquérito, ainda nos serviços do
Ministério Público em Oliveira de Azeméis, que se iniciou o procedimento
criminal contra o arguido no estrito cumprimento da norma do artigo 178.°, n.°
4, do Código Penal (que reproduz a do artigo 113.°, n.° 6, do mesmo diploma), ou
seja, entendendo que o «interesse das vítimas» – ambas com menos de 16 anos à
data dos eventos – vem a impor que se inicie o inquérito contra o arguido,
independentemente da queixa apresentada por quem de direito (seus pais e
representantes legais).
Aqui, o interesse da vítima é o da garantia das melhores condições para o seu
desenvolvimento integral, que é uma obrigação constitucional da sociedade e do
Estado (artigo 69.° da CRP), sendo a sua defesa colocada nas mãos do Ministério
Público, magistratura que, de resto, tem por função estatutária – artigo 3.°,
n.° 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público – representar os interesses
dos menores, mesmo quando não coincidentes com os dos seus representantes
legais.
Aos magistrados do Ministério Público cabe a responsabilidade de, mesmo se o
procedimento criminal depender de queixa, na sua inexistência, garantir que o
sistema funcione no sentido de a justiça penal ter intervenção quando, atendendo
aos interesses do menor com menos de 16 anos, a deva ter.
Este preceito – artigo 178.°, n.° 4 – é de grande importância em casos como o
presente em que o pretenso «abuso sexual de menores» terá ocorrido em contextos
intrafamiliares, atentos os constrangimentos familiares, económicos e culturais
que sempre derivam do facto de estarmos a falar de situações encobertadas pelo
próprio universo familiar mais próximo das vítimas.
Assim sendo, o processo iniciou‑se validamente, num caso em que está em causa a
prática de crime contra a autodeterminação sexual, que deixou de ser, após a
revisão de 1995 do Código Penal, um crime contra os valores e interesses da
vida em sociedade para se transformar, e muito bem, num crime contra as pessoas
– aqui, protege‑se a autodeterminação sexual, não face a condutas que
representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas
face o condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da
vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento
da sua personalidade.
A lei acaba por presumir iuris et de iure que a prática de actos sexuais com
menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global
(e o menor é um sistema) do próprio menor.
Fica, desta forma, devidamente fundamentada, na sequência do 1.° despacho
proferido nos autos, a legitimidade do Ministério Público para iniciar o
procedimento criminal in casu.”
Terminado o inquérito, foi, em 7 de Maio de
2003, deduzida acusação pelo Ministério Público contra C. e D., imputando ao
primeiro a autoria material, em concurso real, de forma consumada e continuada,
de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 30.º,
n.º 2, 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 3, e de um crime de actos sexuais com
adolescentes, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 174.º e 177.º, n.º 3,
e à segunda a autoria material, de forma consumada e continuada, de um crime de
lenocínio de menores, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º
1, alínea a), todos do Código Penal, por os autos indiciarem suficientemente
que:
“O arguido conheceu a menor A., nascida no dia 15 de Janeiro de 1988, em Maio de
2000, num bar em Pinheiro de Bemposta, onde esta foi acompanhada de sua irmã
E..
Continuou a encontrar a menor, então com 12 anos de idade, nas noites de Sábado
para Domingo nesse mesmo bar e na Discoteca adjacente («…»), com ela
conversando.
Em Junho de 2000, a menor passou a ir fazer limpezas a casa do arguido, sita em
Albergaria‑a‑Velha (T0 no edifício …), aos sábados, aí indo também lavar roupa e
passar a ferro.
Em Agosto de 2000, a menor foi viver para uma outra casa do arguido, também em
Albergaria‑a‑Velha (Rua … ), com o consentimento da sua mãe, a arguida D.,
passando a aí pernoitar.
Nesse apartamento, o arguido teve a primeira relação sexual de cópula completa
com a menor, tendo, antes disso, um relacionamento que se caracterizava por
carícias e beijos mútuos próprios de um trato amoroso.
Passou então o arguido a ter relações de cópula completa com a menor, levando e
trazendo‑a da Escola, deixando‑a ficar em casa da mãe quando ia para Lisboa em
trabalho, contando como contava com o consentimento da mãe da menor.
Viveu o arguido com a A. até Janeiro de 2002, altura em que o seu relacionamento
cessou, tendo ainda vivido juntos na actual residência do arguido (…, em
Albergaria‑a‑Velha).
A A. veio a engravidar na sequência do relacionamento sexual que encetou com o
arguido, tendo desta relação nascido, em 8 de Setembro de 2002, uma criança do
sexo feminino de nome F., registada como filha da menor A. e do arguido.
Entretanto, o arguido havia conhecido a menor B., nascida em 26 de Novembro de
1986, como amiga da A., em princípios do ano de 2001.
A menor era recebida assiduamente em casa do arguido, que com ela privava de
forma cativante.
O relacionamento prosseguiu de tal forma que, em Janeiro de 2002, o arguido
convidou a menor B. para ir viver com ele, tendo começado a relacionar‑se
sexualmente com a dita menor, então com 15 anos de idade, passando, a partir
dessa altura, a viver com ela, mantendo relações de cópula completa com a menor
que apenas cessaram quando souberam que a B. estava grávida.
Deste relacionamento, veio a nascer, em 23 de Setembro de 2002, uma criança do
sexo feminino de nome G., registada como filha da menor B. e do arguido.
O arguido não ignorava as idades das duas menores quando começou a relacionar‑se
sexualmente com elas.
O arguido bem sabia, por isso, que as menores não tinham capacidade para avaliar
e valorar os actos sexuais que praticavam, sabendo que elas não se determinavam
livremente em termos sexuais, inexperientes que eram nessa matéria de índole
sexual.
Nomeadamente, a menor B. era desconhecedora, por força da sua idade e natural
imaturidade a ela inerente, do que significava, realmente, uma vivência a dois,
debaixo do mesmo tecto, como se de um casal se tratasse.
A B. usufruía de uma vivência sem futuro e ilusória e de facilidades de índole
económica que lhe foram proporcionadas pelo arguido por forma a que a mesma,
prematuramente, tenha optado por deixar de estudar e de investir na sua formação
como pessoa autónoma e em fase de crescimento.
A mãe da menor A., a arguida D., soube do relacionamento sexual existente entre
a filha e o arguido, pelo menos desde o Natal de 2000.
Nessa altura, a arguida passou a fazer a limpeza da casa do arguido, onde vivia
ao mesmo tempo a sua filha.
A arguida recebia dinheiro do arguido para fazer face às suas despesas.
A arguida nada fez para impedir o relacionamento entre a filha e o arguido,
tendo antes facilitado, como pessoa que, sendo titular do poder paternal e que,
efectivamente, o exercia relativamente à sua filha, a continuação dessa vivência
tão precoce para uma criança, durante o tempo em que esta tinha 12 e 13 anos de
idade.
Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que
praticavam actos punidos e proibidos por lei.”
Não tendo sido requerida instrução, o
processo seguiu para julgamento.
Antes do início da audiência, os pais da
ofendida B. apresentaram o requerimento de fls. 288 a 290, no qual declaravam
desistir da queixa contra o arguido, e este apresentou a contestação de fls. 306
a 213, na qual, como “questão prévia”, suscitou a questão da ilegitimidade do
Ministério Público por, tratando‑se de crimes semi‑públicos, os representantes
legais das menores não terem apresentado queixa e já ter expirado o prazo de 6
meses, a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos e do seu autor,
de que dispunham para o efeito (artigos 113.º e 178.º, n.º 1, do Código Penal e
49.º, n.º 1, do CPP) e por não constar dos autos qualquer despacho dos
representantes do Ministério Público com a legalmente exigível fundamentação
expressa das razões por que entendiam que, no caso, o interesse das vítimas
impunha o exercício da acção penal, ao abrigo do disposto no artigo 178.º, n.º
4, do Código Penal.
No início da audiência de julgamento, em 24
de Setembro de 2003, o Juiz Presidente do Tribunal Colectivo ditou para a acta
despacho a indeferir aquela desistência de queixa, por tal direito assistir à
própria vítima, que já perfizera os 16 anos de idade (artigo 113.º, n.ºs 1, 3 e
5, do Código Penal), e não aos seus pais, e a desatender a questão prévia da
ilegitimidade do Ministério Público suscitada na contestação do arguido, por
resultar do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal que o Ministério
Público, nos casos excepcionais aí previstos, tem a faculdade de dar início ao
procedimento criminal independentemente de queixa.
No decurso da audição da arguida D., esta
declarou pretender desistir do procedimento criminal contra o arguido C. quanto
ao crime em que é ofendida a sua filha A., relativamente à qual exercia em
exclusivo o poder paternal, de acordo com decisão proferida pelo Tribunal
Judicial de Oliveira de Azeméis. E, de seguida, a ofendida B. e os seus pais
declararam desistir do procedimento criminal contra o arguido. Face à não
oposição do arguido e do representante do Ministério Público, o Juiz Presidente
do Tribunal Colectivo ditou para a acta despacho a considerar válidas as
desistências e a declarar extinto o procedimento criminal contra o dito
arguido. Prosseguindo o julgamento apenas contra a arguida, veio esta a ser
absolvida, por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Albergaria‑a‑Velha,
de 29 de Setembro de 2003, por se ter considerado que não haviam sido provados
os factos integradores do crime de lenocínio por que vinha acusada.
Entretanto, o magistrado do Ministério
Público que, por despacho do Vice‑Procurador‑Geral da República, de 6 de Outubro
de 2003, fora designado para passar a intervir no processo, interpôs recurso,
para o Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho que julgara válidas as
desistências de queixa e extinto o procedimento criminal contra o arguido,
terminando a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – Presentemente, os crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual previstos no Código Penal têm, em regra, natureza
semi‑pública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa do ofendido
ou de outras pessoas.
2.ª – É o caso dos crimes de abuso sexual de crianças e de
actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos, respectivamente, pelos
artigos 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 3, do Código Penal e 174.º e 177.º, n.º 3, do
mesmo diploma, de que se achava acusado o arguido C.
3.ª – A ideia subjacente, que foi particularmente cara,
nomeadamente à Reforma de 1995, traduz‑se no facto de se considerar que a
intervenção do direito penal, neste domínio, pode ser mais prejudicial que
benéfica, na perspectiva da vítima, sendo, por vezes, preferível o esquecimento
do que a publicidade e, mesmo, o escândalo.
4.ª – Excepciona‑se, porém, nos termos do artigo 178.°, n.º 1,
com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, quando
de qualquer desses crimes resultar suicídio ou morte da vítima e quando o crime
for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para
requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal,
tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. Neste último caso, existe a
possibilidade de o Ministério Público suspender provisoriamente o processo,
tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com auxílio de um relatório
social (n.ºs 2 e 3) .
5.º – Sem prejuízo desta possibilidade, e quando os crimes
forem praticados contra menor de 16 anos de idade, pode o Ministério Público
dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser (n.º 4, também do
artigo 178.º).
6.ª – Na sequência, aliás, do consagrado na disposição geral
do artigo 113.°, n.º 6.
7.ª – Ora, no caso sub judice, foi o Ministério Público que,
depois de ter tido conhecimento dos factos em causa, através de uma participação
da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis, deu
início ao procedimento criminal contra o arguido C., ao abrigo da norma do
artigo 178.°, n.º 4, do Código Penal, invocando o interesse das vítimas,
menores de 16 anos, que ficaram ambas grávidas do arguido, e fundamentando a sua
posição (cfr. a fls. 6 e também a fls. 125).
8.ª – Em momento algum do processo, os representantes legais
das menores ofendidas apresentaram queixa contra o arguido ou manifestaram
vontade em fazê-lo.
9.ª – Pelo que não tinham legitimidade para, no início da
audiência do julgamento, desistirem da queixa contra o arguido.
10.ª – O mesmo se verifica em relação à menor B., que tem
agora já 16 anos de idade.
11.ª – É que, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do Código
Penal, só o queixoso, isto é, quem tenha legitimamente exercido o direito de
queixa, pode desistir da queixa.
12.ª – Ora, tendo o presente processo sido iniciado,
oficiosamente, pelo Ministério Público, no interesse das vítimas, o respectivo
procedimento criminal deixou de estar na disponibilidade das ofendidas ou dos
seus representantes legais (cf., nesse sentido, o acórdão da Relação do Porto,
de 31 de Janeiro de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 1, p.
232).
13.ª – Nesta conformidade, as desistências de queixa
apresentadas teriam de ser consideradas irrelevantes.
14.ª – Mal andou, por conseguinte, o Tribunal colectivo, ao
considerá‑las válidas e relevantes, declarando, em consequência, e sem mais,
extinto o procedimento criminal contra o referido arguido, sem ter em atenção a
forma como se tinha iniciado o processo e sem cuidar se tais desistências iam de
encontro aos interesses das menores ou se, pelo contrário, visavam outro tipo
de interesses.
15.ª – Do mesmo modo, discordamos completamente da posição
assumida pelo Ministério Público, em sede de julgamento, ao ter promovido que
se declarassem válidas as referidas desistências de queixa.
16.ª – Para além do mais, não se vê que o interesse das
menores justificasse o passar uma esponja sobre o sucedido, uma vez que estamos
perante uma situação clara de predominância do interesse do procedimento
criminal sobre o do segredo, dado que a divulgação dos factos foi tão extensa,
nomeadamente na comunicação social, que já não há, neste momento, intimidade
alguma a preservar ou danos acrescidos a evitar (Numa situação algo idêntica,
vide o acórdão da Relação de Coimbra, de 26 de Fevereiro de 2003, no proc. n.°
3910/02, da 2.ª Secção, sendo relator o Desembargador Barreto do Carmo).
17.ª – Por outro lado, não deixa de ser chocante que o
arguido, homem maduro, com 62 anos, pai de filhos, que exibia poder económico,
não tenha sido submetido a julgamento pelos factos gravíssimos pelos quais se
encontrava suficientemente indiciado, apenas devido às desistências de queixa
que, ilegitimamente, os representantes legais das menores apresentaram, sendo
certo que, no caso da menor A., a sua representante legal foi a sua mãe, D.,
co‑arguida neste mesmo processo, acusada de um crime de lenocínio de menores,
previsto e punido pelos artigos. 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 1, alínea a), do
Código Penal.
18.ª – O Tribunal Colectivo interpretou, assim, em nosso
entender, erroneamente a lei e, devido a essa deficiente interpretação,
violou, entre outros, os artigos 178.º, n.°s 1 e 4, 116.º n.° 2, e 113.º, n.° 6,
todos do Código Penal.”
O arguido, na sua resposta perante o
Tribunal da Relação de Coimbra, formulou as seguintes conclusões:
“A) Nunca o princípio da subordinação hierárquica poderá ser
entendido no sentido de o Ministério Público poder, através do magistrado
titular do processo, declarar, expressa e ponderadamente, em audiência de
julgamento, que não se opõe à desistência de queixa e, volvidos alguns dias, vir
esse mesmo corpo de Magistratura, pela mão de um Procurador substituto, declarar
que não se conforma com a decisão do Colectivo que acolheu a sua própria
promoção, num autêntico venire contra factum proprium, fazendo do processo um
uso manifestamente reprovável, a configurar abuso de direito e litigância de má
fé.
B) Com uma tal interpretação, as normas dos artigos 2.º, n.º
2, 68.º, n.º 1, e 76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e do
artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal seriam materialmente
inconstitucionais, por violação do artigo 219.º da CRP.
C) Os crimes previstos nos artigos 172.º e 174.º do Código
Penal têm natureza semi‑pública, dado que o procedimento criminal depende de
queixa do ofendido ou dos demais titulares desse direito estabelecidos no artigo
113.º do mesmo diploma.
D) Isso radica no facto de estes crimes terem a ver muito
particularmente com a esfera de intimidade da vítima e se privilegiar o
interesse desta, a ela cabendo decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o
que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente
estigmatização processual.
E) O elemento lógico‑sistemático de interpretação conduz à
conclusão de que se o legislador pretendesse conferir natureza pública àqueles
crimes na hipótese prevista no n.º 4 do artigo 178.º do Código de Processo
Penal, tê‑la‑ia colocado como terceira alínea do n.º 1 da mesma norma,
juntamente com as duas situações em que tais ilícitos assumem, sem quaisquer
dúvidas, tal natureza.
F) Tendo em conta a imprescindível conjugação com o n.º 1, a
redacção do n.º 4 do citado artigo 178.º significa que, tratando‑se de menor de
16 anos e o interesse da vítima o impuser, o Ministério Público não tem de
esperar que quem de direito apresente queixa para dar início ao procedimento.
G) Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que
o Ministério Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de
16 anos, porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da
situação, dá início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha
de provas ou indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o
risco de se perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
H) Mas isso não significa que se tenha afastado a
possibilidade de a vítima, ou os seus legais representantes, decidirem o que é
mais relevante para o interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se
o recato e esquecimento que melhor se atingem sem ela.
I) Neste caso, o impulso processual do Ministério Público
determinado nos termos do disposto no citado artigo 178.º, n.º 4, tem natureza
subsidiária, ficando, por isso, sujeito aos interesses do menor ofendido.
J) Assim entendido, o disposto no n.º 4 do artigo 178.º
permite que o Ministério Público dê início ao processo e o faça prosseguir
quando os titulares do poder paternal não exercerem o direito de queixa por
razões censuráveis, na medida em que, neste caso, terá sempre a possibilidade,
quando não mesmo o dever, de inibir, limitar ou suspender o exercício do poder
paternal nos termos do disposto nos artigos 194.º e 199.º da OTM.
L) Não é inaceitável que os progenitores, titulares e em pleno
exercício do direito de queixa, venham pôr termo ao procedimento criminal por
entenderem que essa é a atitude que melhor defende os interesses do menor, que
justificaram a natureza semi‑pública deste tipo de crimes, e o Ministério
Público, teimosamente, os procure contrariar, insistindo no seu prosseguimento
movido por razões ou interesses que podem não coincidir com o das vítimas.
M) Tanto mais quanto é certo que o Ministério Público nunca
terá a mesma capacidade dos progenitores para fazer uma adequada avaliação da
concreta solução que os interesses do menor justificam, sendo certo ainda que,
embora esgrimindo com o interesse da vítima, o Ministério Público pode ser
tentado, como no caso dos autos, a agir em defesa de um qualquer interesse
público ou de determinada política criminal que ultrapassem o âmbito do caso
concreto e secundarizem os interesses que a lei, em primeira linha, visou
proteger.
N) Os artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, interpretados no
sentido de que os crimes assumem natureza pública, estão feridos de
inconstitucionalidade na medida em que destarte se veria um pressuposto da
perseguição penal fixado por critérios de mera oportunidade do Ministério
Público, não estabelecidos na lei e judicialmente incontroláveis, o que viola o
artigo 29.º da Lei Fundamental, por traduzir um desvio do princípio da
legalidade na aplicação de reacções criminais.
O) Por outro lado, o entendimento de que, nas situações
previstas no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, os crimes de abuso sexual de
crianças e de actos sexuais com adolescentes mantêm a natureza semi‑pública, mas
que o procedimento criminal deixa de estar na disponibilidade das ofendidas ou
dos seus representantes legais, ainda que estes não estejam judicialmente
inibidos do exercício do poder paternal, viola os direitos fundamentais do
titular dos interesses que o legislador pretendeu proteger com aqueles tipos
legais de crime, quais sejam os direitos à integridade pessoal e à reserva da
intimidade da vida privada.
P) Um tal entendimento redundaria na inconstitucionalidade
material dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, por violação
do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.”
Por acórdão de 10 de Março de 2004, o
Tribunal da Relação de Coimbra concedeu provimento ao recurso do Ministério
Público, revogando em consequência o despacho recorrido, por não ser admissível
a desistência de queixa, devendo o julgamento prosseguir para a apreciação dos
factos imputados ao arguido. Essa decisão baseou‑se na seguinte fundamentação:
“Já no Rec. n.º 1035/98, de 3 de Fevereiro de 1999, desta Relação, em que fomos
relator, se decidiu:
«A questão está, assim, em saber se, face ao artigo 178.º, n.º 2, do Código
Penal, como se entendeu no despacho recorrido, o Ministério Público carece de
legitimidade para acusar por os pais da ... (artigo 113.º do Código Penal) não
terem exercido o direito de queixa, ou se, como entende o Ministério Público, o
poder de iniciar o inquérito engloba o direito de acusar.
Foi imputado ao arguido a prática do crime do artigo 172.º, n.º 1, do Código
Penal. Esta norma prevê: quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de
14 anos, ou o levar a praticá‑lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena
de prisão de 1 a 8 anos.
É esta a redacção actual da mesma norma, já que a alteração
introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, a manteve, alterando apenas
os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
Por sua vez, o artigo 178.º, n.º 1, quer na actual redacção
quer na anterior (dado não ter sido alterado pela referida Lei), estatui que: O
procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e
171.º a 175.º depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar
suicídio ou morte da vitima.
E o n.º 2 do mesmo artigo referia, antes daquela alteração:
Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for menor de 12 anos,
pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais razões de
interesse público o impuserem.
Com a Lei n.º 65/98 passou este n.º 2 a ter a seguinte
redacção: Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado
contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento
se o interesse da vítima o impuser.
Há que aplicar ao caso a redacção anterior à Lei n.º 65/98, já
que os factos terão sido praticados em 20 de Fevereiro de 1998, data em que a
vítima ainda não tinha 12 anos.
Ninguém põe em causa que o interesse público impunha que o
Ministério Público desse início ao processo. Não é essa, pois, a questão
suscitada.
Quanto à questão objecto do recurso:
A favor da tese defendida no despacho recorrido poderíamos fazer uma observação:
conhecendo o legislador, como não podia deixar de conhecer, a tradicional
distinção entre crimes particulares, semi‑públicos e públicos e que a queixa é
uma condição objectiva de procedibilidade, porque introduziu, pelo Decreto‑Lei
n.º 48/95, de 15 de Março, a redacção referida no n.º 2 do artigo 178.º, em que
reduziu a necessidade de queixa apenas ao início do processo?
Mas pelo mesmo Decreto‑Lei introduziu também o n.º 5 do artigo
113.º, em que usa semelhante fórmula, e, pela Lei n.º 65/98, introduziu o seu
n.º 6, em que refere: quando o procedimento criminal depender de queixa, o
Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento
quando o interesse da vítima o impuser.
Se atendermos às razões do referido artigo 113.º, n.º 5
(quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade
caberia apenas, no caso, ao agente do crime...) somos levados a concluir que
foi intenção do legislador caracterizar de público tal crime, já que, nesse
caso, nunca poderia haver o exercício do direito de queixa e então o início do
procedimento seria um acto inútil se tal procedimento não pudesse conduzir à
acusação.
Essa intenção resulta também explicitamente da exposição de
motivos da Proposta de Lei n.º 92/VI (Diário da Assembleia da República, II
Série‑A, de 24 de Fevereiro de 1994), em que se diz: Uma outra nota que acentua
a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que
especiais razões de interesse público o justifiquem, poder desencadear a acção
penal quando a vítima for menor de 12 anos. O sublinhado é nosso. Não se fala
apenas em dar início ao processo mas sim em desencadear a acção penal.
Trata‑se de um reforço da protecção do menor, atenta a sua
especial vulnerabilidade e a falta de protecção familiar, de que pode estar
carecido, como refere Maia Gonçalves. Se a finalidade de tal norma é proteger o
menor da carência de protecção familiar, isto é, de quem teria o direito de
queixa, não se compreenderá que se deixe ficar a acção penal dependente dessa
queixa que se quis suprir.
E aquando da discussão na Assembleia da República da Proposta
que veio a dar lugar à Lei n.º 65/98, pela voz autorizada do Ministro da
Justiça: sendo, em regra, semi-públicos, os crimes sexuais podem actualmente ser
perseguidos, independentemente de queixa, por iniciativa do Ministério Público,
quando especiais razões de interesse público o impuserem e a vítima for menor de
12 anos.
Parece‑nos, assim, que outro entendimento não teve o
legislador.
Mas há outros argumentos.
Desde logo, a Constituição atribui ao Ministério Público a
função de exercer a acção penal.
Mas que significa tal função? A lei não o define.
Diz Germano M. da Silva (Curso de Processo Penal, I vol., pág.
228 e seguintes): O Decreto‑Lei n.º 35 007 parecia dar à acção penal o sentido
de promoção do processo penal em sentido estrito, isto é, da fase judicial do
processo e traduzir‑se na actuação do Ministério Público em juízo, que se
iniciaria com a acusação. O Decreto‑Lei n.º 605/75 não utilizava a expressão
acção penal e antes promoção do processo penal e assim sucede também com o
CPP/87. Segundo o artigo 1.º do CPP/29 “a todo o crime (ou contravenção)
corresponde uma acção penal, que será exercida nos termos deste Código”.
Compreende no conceito toda a actividade dirigida a obter a punição do réu;
compreendendo nessa actividade a de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera
de acção, cooperam para se obter aquele fim.
Não é unívoco o conceito de acção penal. Umas vezes equivale a
processo – e será o seu sentido mais amplo –, outras vezes a promoção da
actividade judicial no processo – e será o seu sentido mais restrito –, e
outras ainda corresponderá à mera prossecução da actividade processual.
Sendo assim, a fórmula usada pelo legislador no Decreto‑Lei
n.º 48/95 nem é, afinal, nada de extraordinário por corresponder à nossa
tradição legislativa.
Por outro lado, e isso parece‑nos decisivo, se é certo que o
critério para a distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares é
essencialmente pragmático (são públicos aqueles em que a lei não exige queixa,
semi-públicos aqueles em que exige queixa e particulares os que exigem queixa e
acusação), certo é que é a natureza dos interesses que está subjacente àquela
distinção. Ora, se é a lei que expressamente faz depender do interesse público
que o Ministério Público possa iniciar o processo, mais não está do que a
definir como público ou semi-público tal crime.
Aliás, outro raciocínio se poderá fazer:
Se os crimes sexuais, como resulta do artigo 178.º, n.º 1,
são, em princípio, semi-públicos (dependem de queixa e já não de acusação
particular), o que o n.º 2 faz é deixar de exigir a queixa e como semi-público,
em que a queixa foi suprida, já o Ministério Público sempre terá legitimidade
para acusar. Ou seja, o raciocínio do despacho recorrido só teria
verdadeiramente sentido se o crime fosse particular, se fosse exigida a acusação
particular, o que não é.
Assim sendo, outra conclusão não se poderá extrair do artigo
178.º, n.º 2, do Código Penal que não seja a de que a possibilidade de o
Ministério Público iniciar o processo criminal, independentemente de queixa,
torna‑o parte legítima para acusar, independentemente dessa mesma queixa. O
interesse público subjacente a tal possibilidade supera o interesse particular
típico da necessidade de queixa.».
*
A situação não era a mesma, mas o sentido da decisão já ali se descortina.
O que ali se discutia era se o Ministério Público podia, no caso, acusar,
aqui o que se discute é se pode haver desistência da queixa. Mas as razões
acabam por ser as mesmas.
Agora, para este caso especial da desistência de queixa,
acresce ainda o disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código Penal. Se não houve
queixosos, precisamente porque não houve queixa, porque legalmente não era
precisa, como é que se pode aceitar com válida a desistência de queixa?
Repare‑se que, pela acusação, os actos imputados ao arguido C.
se iniciaram, em relação à A., em Agosto de 2000, quando esta tinha 12 anos, e
que os actos relacionados com a B. se iniciaram em Janeiro de 2002, quando esta
tinha 15 anos.
Não faz qualquer sentido que (como, aliás, se decidiu no
primeiro despacho na referida audiência – supra alínea d)) o Ministério
Público possa dar início ao procedimento criminal e deduzir acusação,
independentemente de queixa, e se venha admitir como relevante esta mesma
desistência. Seria tornar inútil tal possibilidade, seria subverter o espírito e
os fins que a lei pretendeu atingir e seria menosprezar os interesses que a lei
pretendeu proteger.
Poder‑se‑á dizer que, neste caso, e em relação à menor A., a
titular do direito de queixa (a mãe da menor) não é a agente dos crimes cuja
desistência foi aceite (os do arguido C.). Mas não é bem assim. É que aquela é
também arguida por crime relacionado com os crimes do arguido. Os actos de
fomentar, favorecer ou facilitar, de que é acusada, são precisamente referidos
aos actos do arguido.
E este entendimento, salvo melhor opinião, não é interpretar
extensivamente o texto da lei. A lei é clara ao estatuir regime próprio quando
o interesse da vítima o impuser.
Neste caso, os eventuais interesses das vítimas que poderiam
existir (o segredo dos factos, o evitar do escândalo e a exposição pública)
estão e foram, em concreto, não só ultrapassados pela realidade, mas sobretudo
pelo superior interesse das vítimas.
*
E não há aqui qualquer natureza subsidiária, no sentido de que
o Ministério Público intervém enquanto e só porque o menor não quer ou não
pode fazer queixa. É subsidiária no sentido de que se substitui,
definitivamente, ao menor. O interesse público, subjacente às referidas normas
legais, não é subsidiário dos interesses particulares. Não se trata de qualquer
critério de mera oportunidade, como é bem evidente. É uma razão de política
criminal. É o interesse público que está em causa.
Como diz Maia Gonçalves (anotação ao n.º 6 do artigo 113.º):
«este dispositivo veio permitir que os crimes semi-públicos, em casos previstos
na lei, como os dos artigos 152.º, n.º 2, e 178.º, n.º 2, passem a ter natureza
de públicos...».
*
Nada impede que o Ministério Público, como órgão da
administração da justiça (artigo 219.º, n.º 1, da CRP), sujeito ao princípio da
subordinação hierárquica (artigo 219.º, n.º 4, da CRP) e tendo como uma das
funções primordiais defender a legalidade, possa interpor recurso duma decisão
com um sentido que, antes, um seu agente tinha defendido.
É perfeitamente admissível uma ordem superior que mande seguir
uma determinada interpretação legal de entre várias possíveis.
Nem tal integra o conceito de venire conta factum proprium. O
Ministério Público não é um interessado duma certa decisão.
O recurso tem, pois, de proceder.
Nestes termos, revogando‑se o despacho recorrido, por não admissível a
desistência de queixa, deverá o julgamento prosseguir para apreciação dos factos
imputados ao arguido C..”
É contra este acórdão que, pelo arguido, vem
interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), o presente recurso, visando a
“apreciação da inconstitucionalidade das normas, aplicadas pela decisão posta
em crise, ínsitas no n.º 6 do artigo 113.º e no n.º 4 do artigo 178.º, ambos do
Código Penal, com a interpretação que delas é feita naquele aresto, por violação
do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 29.º, todos da Constituição
da República Portuguesa”, questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada na sua resposta à motivação do recurso interposto pelo Ministério
Público.
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“A) Os crimes previstos nos artigos 172.º e 174.º do Código
Penal têm natureza semi‑pública, dado que o procedimento criminal depende de
queixa do ofendido ou dos demais titulares desse direito estabelecidos no artigo
113.º do mesmo diploma.
B) Isso radica no facto de estes crimes terem a ver muito
particularmente com a esfera de intimidade da vítima e se privilegiar o
interesse desta, a ela cabendo decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o
que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente
estigmatização processual.
C) O elemento lógico‑sistemático da interpretação conduz à
conclusão de que se o legislador pretendesse conferir natureza pública àqueles
crimes na hipótese prevista no n.º 4 do artigo 178.º do Código de Processo
Penal, tê‑la‑ia colocado como terceira alínea do n.º 1 da mesma norma,
juntamente com as duas situações em que tais ilícitos assumem, sem quaisquer
dúvidas, tal natureza.
D) Tendo em conta a imprescindível conjugação com o n.º 1, a
redacção do n.º 4 do citado artigo 178.º significa que, tratando‑se de menor de
16 anos e o interesse da vítima o impuser, o Ministério Público não tem de
esperar que quem de direito apresente queixa para dar início ao procedimento.
E) Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que
o Ministério Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de
16 anos, porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da
situação, dá início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha
de provas ou indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o
risco de se perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
F) Mas isso não significa que se tenha afastado a
possibilidade de a vítima, ou os seus legais representantes, decidirem o que é
mais relevante para o interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se
o recato e esquecimento que melhor se atingem sem ela.
G) Neste caso, o impulso processual do Ministério Público
determinado nos termos do disposto no citado artigo 178.º, n.º 4, tem natureza
subsidiária, ficando, por isso, sujeito aos interesses do menor ofendido.
H) Assim entendido, o disposto no n.º 4 do artigo 178.º
permite que o Ministério Público dê início ao processo e o faça prosseguir
quando os titulares do poder paternal não exercerem o direito de queixa por
razões censuráveis, na medida em que, neste caso, terá sempre a possibilidade,
quando não mesmo o dever, de inibir, limitar ou suspender o exercício do poder
paternal nos termos do disposto nos artigos 194.º e 199.º da OTM.
I) Não é inaceitável que os progenitores ou o próprio ofendido
maior de 16 anos, titulares e em pleno exercício do direito de queixa, venham
pôr termo ao procedimento criminal por entenderem que essa é a atitude que
melhor defende os interesses do menor, que justificaram a natureza semi‑pública
deste tipo de crimes, e o Ministério Público, teimosamente, os procure
contrariar, insistindo no seu prosseguimento movido por razões ou interesses
que podem não coincidir com o das vítimas.
J) Tanto mais quanto é certo que o Ministério Público nunca
terá a mesma capacidade dos progenitores ou do próprio ofendido para fazer uma
adequada avaliação da concreta solução que os interesses do menor justificam.
L) A entender‑se de outro modo abrir‑se‑ia a hipótese de,
esgrimindo embora com o interesse da vítima, o Ministério Público poder ser
tentado, como no caso dos autos, a agir em defesa de um qualquer interesse
público ou de determinada política criminal que ultrapassem o âmbito do caso
concreto e secundarizem os interesses que a lei, em primeira linha, visou
proteger.
M) Salvo melhor entendimento, é inconstitucional, por violação
do artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos
artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, segundo a qual, na
situação prevista nesta última norma, os crimes de abuso sexual de crianças e
de actos sexuais com adolescentes assumem a natureza pública, na medida em que,
destarte, se veria um pressuposto da perseguição penal fixado por critérios de
mera oportunidade do Ministério Público, não estabelecidos na lei e
judicialmente incontroláveis, traduzindo um desvio dos princípios da legalidade
e da tipicidade na aplicação de reacções criminais.
N) Por outro lado, é inconstitucional, por violação dos
artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a
interpretação dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, segundo
a qual, na situação prevista nesta última norma, os crimes de abuso sexual de
crianças e de actos sexuais com adolescentes mantêm a natureza semi‑pública, mas
o procedimento criminal deixa de estar na disponibilidade dos ofendidos ou dos
seus representantes legais, ainda que estes não estejam judicialmente inibidos
do exercício do poder paternal, do ponto em que abre a porta à violação de
direitos fundamentais do titular dos interesses que o legislador pretendeu
proteger com aqueles tipos legais de crime, quais sejam os direitos à
integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada.”
O representante do Ministério Público junto
do Tribunal Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1 – Goza o legislador ordinário de ampla discricionariedade
relativamente à possibilidade de criminalizar determinadas condutas, por razões
de necessidade ou conveniência, ditadas pelo interesse público, no âmbito de
políticas criminais a prosseguir.
2 – Tal discricionariedade abrange as condições de
procedibilidade, não lhe estando vedado, relativamente a determinadas categorias
de crimes, em optar por soluções não totalmente enquadráveis nos regimes
próprios e típicos das infracções penais, no que respeita à sua divisão em
públicas, semi‑públicas e particulares.
3 – Não viola qualquer norma ou princípio constitucional uma
interpretação normativa dos preceitos dos n.º 6 do artigo 113.º e n.º 4 do
artigo 178.º, ambos do Código Penal, segundo a qual o Ministério Público pode
exercer o respectivo procedimento criminal em nome do interesse da vítima menor
de 16 anos de idade, face a razões de política criminal e de interesse público,
não podendo aquele extinguir‑se por desistência de queixa do ofendido, que não a
apresentou.
4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Na redacção originária do Código Penal
de 1982, os “crimes sexuais” integravam a Secção II (artigos 201.º a 218.º) do
Capítulo I (Dos crimes contra os fundamentos ético‑sociais da vida social) do
Título III (Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade) da
Parte Especial desse Código, dispondo o artigo 211.º, sob a epígrafe
Necessidade de queixa:
“1. Nos crimes previstos nos artigos antecedentes [violação,
violação da mulher inconsciente, cópula mediante fraude, estupro, atentado ao
pudor com violência, atentado ao pudor com pessoa inconsciente, homossexualidade
com menores e cópula ou atentado ao pudor relativamente a pessoas detidas ou
equiparadas], o procedimento criminal depende de queixa do ofendido, do cônjuge
ou de quem sobre a vítima exerce o poder paternal, tutela ou curatela.
2. O disposto no número anterior não se aplica quando a vítima
for menor de 12 anos, o facto for cometido por meio de outro crime que não
dependa de acusação ou queixa, quando o agente seja qualquer das pessoas que nos
termos do mesmo número anterior tenha legitimidade para requerer procedimento
criminal ou ainda quando do crime resulte ofensa corporal grave, suicídio ou
morte da vítima.”
Foi a revisão desse Código operada pelo
Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março, publicado no uso da autorização
legislativa concedida pela Lei n.º 35/94, de 15 de Setembro, que introduziu
significativas alterações nesta matéria, transferindo‑a do Título relativo aos
crimes contra valores e interesses da vida em sociedade para o Título dedicado
aos Crimes contra as pessoas (Título I da Parte Especial), em Capítulo criado de
novo (Capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual),
integrado pelos artigos 163.º a 179.º, dispondo o artigo 178.º (correspondente
ao primitivo artigo 211.º), sob a epígrafe Queixa, que:
“1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos
163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º [coacção sexual, violação, abuso
sexual de pessoa incapaz de resistência, fraude sexual, actos exibicionistas,
abuso sexual de crianças, abuso sexual de adolescentes e dependentes, estupro e
actos homossexuais com menores], depende de queixa, salvo quando de qualquer
deles resultar suicídio ou morte da vítima.
2. Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for
menor de 12 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais
razões de interesse público o impuserem.”
A Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, alterou a
redacção deste n.º 2, que passou a dispor:
“2. Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for
praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao
procedimento se o interesse da vítima o impuser.”
Finalmente, a Lei n.º 99/2001, de 25 de
Agosto, procedeu à reformulação global do preceito, que passou a dispor:
“1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos
163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º depende de queixa, salvo nos
seguintes casos:
a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da
vítima;
b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o
agente tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre
a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo.
2. Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o
Ministério Público decidir‑se pela suspensão provisória do processo, tendo em
conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social.
3. A duração da suspensão pode ir até ao limite máximo de 3
anos, após o que há lugar a arquivamento, em caso de não aplicação de medida
similar por infracção da mesma natureza ou de não sobrevir naquele prazo queixa
por parte da vítima, nos casos em que possa ser admitida.
4. Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3, e quando os crimes
previstos no n.º 1 forem praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério
Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.”
2.2. Da referida evolução legislativa
resulta que enquanto na redacção originária do Código Penal o procedimento
criminal pelos crimes em causa dependia, em regra, de queixa, excepto se a
vítima fosse menor de 12 anos, o facto fosse cometido por meio de outro crime
que não dependesse de acusação ou queixa, o agente fosse qualquer das pessoas
que tinha legitimidade para requerer procedimento criminal ou do crime tivesse
resultado ofensa corporal grave, suicídio ou morte da vítima, a partir da
revisão de 1995, a par das situações (que continuam a ser a regra) em que o
procedimento criminal depende sempre de queixa e das situações em que nunca
depende de queixa (quando do crime tiver resultado suicídio ou morte da vítima
e, com a Lei n.º 99/2001, também quando o crime tiver sido praticado contra
menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer procedimento
criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a
tiver a seu cargo, embora, com a possibilidade de o Ministério Público
decidir‑se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da
vítima [Maria João Antunes, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte
Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 595, defendia que já decorria do artigo
113.º, n.º 5, do Código Penal que o Ministério Público podia dar início ao
procedimento criminal se a titularidade do direito de queixa couber apenas ao
agente do crime e especiais razões de interesse público o impuserem]), foi
introduzido um tertium genus, através da possibilidade de, relativamente a
situações à partida dependentes de queixa, o Ministério Público decidir dar
início ao procedimento, se a vítima for menor de 12 anos (redacção da Lei n.º
48/95), limite elevado para 16 anos pela Lei n.º 65/98, mantido pela Lei n.º
99/2001, e se tal for imposto por “especiais razões de interesse público”
(redacção de 1995) ou pelo “interesse da vítima” (redacções de 1998 e 2001).
Em anotação ao artigo 178.º, na versão de
1998, Maria João Antunes (Comentário citado, pp. 593‑597), refere, quando à
razão da regra da natureza semi‑pública dos ilícitos em causa, que (§ 8):
“Estamos nesta matéria na presença de crimes que contendem de
uma forma muito particular com a esfera da intimidade, pelo que à vítima cabe
«decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal do
desvelamento da sua intimidade e da consequente estigmatização processual; sob
pena, de outra forma, de poderem frustrar‑se as intenções político‑criminais
que, nesses casos, se pretenderam alcançar com a criminalização» (Figueiredo
Dias, DP II § 1069). Sendo a vítima menor, a protecção que lhe é concedida
através da natureza semi‑pública do crime tem a ver muito especialmente com os
prejuízos que um processo penal poderia acarretar para o desenvolvimento da
personalidade de alguém que ainda está em fase de formação (…). Sendo a vítima
maior de 16 anos, porque tem plena capacidade para o exercício do direito de
queixa, a natureza semi‑pública do crime tem a vantagem de permitir uma selecção
prévia por parte daquela dos casos que comportam uma efectiva ofensa à sua
liberdade e autodeterminação sexual (p. ex., relativamente aos comportamentos
previstos nos arts. 167.°, 171.° e 173.°‑1). Para além destas razões
fundamentais, é ainda de destacar uma outra: tratando‑se de crime contra a
liberdade e autodeterminação sexual em que o agente seja um familiar da vítima,
a exigência de queixa desempenha aqui também a função de evitar que o processo
penal represente uma indesejável intromissão na esfera das relações familiares.”
Considerações que não impediram a mesma
Autora “de aplaudir as alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de
Setembro: ao admitir a promoção do processo por parte do Ministério Público
quando a vítima é menor de 16 anos – e não menor de 12 como acontecia
anteriormente – reduzem‑se certamente os casos de impunidade, decorrentes da
circunstância de a vítima não ter ainda capacidade para apresentar queixa
(artigo 113.º, n.º 3) e de o titular não a apresentar dadas especiais relações
com o agente da prática do crime (v. g. o agente é cônjuge ou unido de facto da
mãe da vítima); ao esclarecer que a promoção processual nestes casos depende do
«interesse da vítima» fixa‑se o entendimento correcto da expressão anterior –
«especiais razões de interesse público»” (§ 4). (No sentido de que estas
“especiais razões de interesse público” eram sempre razões “no interesse do
menor”, cf. José Damião da Cunha, “A participação dos particulares no exercício
da acção penal (Alguns aspectos)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano
8, fasc. 4.º, Outubro‑Dezembro 1998, pp. 593 e seguintes, em especial p. 606).
2.3. A questão de saber se, tendo o
Ministério Público exercitado o poder‑dever de, independentemente de queixa, dar
início ao procedimento por crime sexual praticado contra menor de 16 anos por
entender que tal era imposto pelo interesse da vítima implica que o
prosseguimento do procedimento deixa de estar na disponibilidade do ofendido ou
de quem o represente, ou, ao invés, é compatível com a atribuição de relevância
a posteriores manifestações de vontade destes interessados (impropriamente
designadas de “desistências de queixa”) no sentido da cessação do procedimento
criminal, tem conhecido diferentes respostas por parte da doutrina e da
jurisprudência. Assim, em contraponto ao entendimento de que, tomando o
Ministério Público a decisão de iniciar o procedimento, tudo se passaria como se
de um crime público se tratasse, com a consequente irrelevância de posteriores
manifestações de vontade do menor ou seus representantes no sentido da cessação
do procedimento (cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Maio de
2004, 8 de Julho de 2004 e 23 de Setembro de 2004, em www.dgsi.pt/jtrl, do
Tribunal da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, Colectânea de
Jurisprudência (CJ), ano XXVI, tomo I, pp. 232‑234, e do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 3 de Novembro de 2004, em www.dgsi.pt/jtrc; Manuel Maia Gonçalves,
Código Penal Português, 16.ª edição, Coimbra, 2004, p. 609; Manuel de Oliveira
Leal‑Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª
edição, vol. II, Lisboa, 2000, p. 465)), tem sido sustentado ser relevante a
desistência, pelo ofendido ou seus representantes, do procedimento iniciado
nesses termos pelo Ministério Público (cf. acórdãos do Tribunal da Relação do
Porto, de 3 de Dezembro de 1997, CJ, ano XXII, tomo II, pp. 233‑237, de 10 de
Fevereiro de 1999, CJ, ano XXIV, tomo I, pp. 241‑244, criticado por Maria João
Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, fasc. 2.º, Abril‑Junho
de 1999, pp. 315‑329, de 23 de Maio de 2001, em www.dgsi.pt/jtrp, e José Mouraz
Lopes, Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal,
3.ª edição, Coimbra, 2002, p. 123).
Entre as referidas posições contrapostas,
têm sido defendidas posições matizadas, que, sem transformarem os crimes em
causa em crimes públicos nem atribuírem irrestrita relevância à oposição do
ofendido ou seu representante ao prosseguimento do procedimento, consideram que
“a todo o tempo o Ministério Público tem de aferir se o prosseguimento do
processo não contende com o concreto interesse da vítima, pois se tal suceder
cessa a legitimidade para o prosseguimento do processo”, sendo um dos factores
relevantes para essa reponderação a manifestação de vontade dos interessados
(Jorge Dias Duarte, “Homossexualidade com menores”, Revista do Ministério
Público, ano 20.º, n.º 78, Abril‑Junho 1999, pp. 73 e seguintes, em especial pp.
89‑90). Nesta linha intermédia se insere a posição defendida por Maria João
Antunes (“Oposição de maior de 16 anos à continuação de processo promovido nos
termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal”, Revista do Ministério Público,
ano 26, n.º 103, Julho‑Setembro 2005, pp. 21‑37), que defende que, “de acordo
com o disposto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, a oposição do maior de
16 anos de idade é relevante, no sentido de a intervenção processual penal do
Ministério Público dever cessar, sempre que por via desta oposição sejam
reavaliadas as razões que determinaram o início ou a continuação do processo e
se venha a concluir que o interesse da vítima não impõe o prosseguimento
deste”.
2.4. Como é sabido, não compete ao Tribunal
Constitucional tomar partido sobre qual das diversas soluções dadas à questão da
relevância da manifestação de oposição do ofendido ou seu representante ao
prosseguimento de procedimento criminal iniciado ao abrigo do n.º 4 do artigo
178.º do Código Penal é a preferível, ao nível da interpretação do direito
ordinário.
Do que se trata é de apreciar se o critério
normativo seguido pelo acórdão recorrido se mostra materialmente conforme às
normas e princípios constitucionais relevantes.
Ora, como este Tribunal tem reiteradamente
afirmado, cabe ao legislador ordinário, dentro do respeito do princípio da
necessidade das reacções criminais, uma considerável margem de liberdade de
conformação na opção pela criminalização de condutas. Como se referiu, entre
outros, no Acórdão n.º 494/2003 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 57.º
vol., p. 681, e texto integral disponível em www.tribunalconstitucional,pt):
“8.2. Ao mesmo tempo que tem reconhecido a consagração
constitucional dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas,
o Tribunal Constitucional tem, contudo, também reiteradamente sublinhado que
«não se deve simultaneamente perder de vista que o juízo de constitucionalidade
se não pode confundir com um juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao
Tribunal Constitucional substituir‑se ao legislador na determinação das opções
políticas sobre a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos
comportamentos» (assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/2002).
Como sublinha Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 3.ª ed., Coimbra, 1999, pág. 876), a «política deliberativa
sobre as políticas da República pertence à política e não à justiça»; e, por
isso mesmo, no dizer de Jorge Miranda, ao juiz constitucional não compete
«apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor
bondade para o interesse público», mas tão‑só averiguar «a correspondência (ou
não descorrespondência) de fins, a harmonização (ou não desarmonização) de
valores, a inserção (ou não desinserção) nos critérios constitucionais» (Manual
de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra Editora, 2001, págs. 43‑44), sem
«transformar o juízo de constitucionalidade em juízo de mérito em que se valora
se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela própria estabelecidos» (idem, vol.
II, Coimbra, 1991, pág. 342).
No mesmo sentido, mas agora referindo‑se já especificamente ao
espaço de discricionariedade reconhecido ao legislador penal, refere também
Costa Andrade («O novo Código Penal e a moderna criminologia», Jornadas de
Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, fase 1, Lisboa, 1983, nota 34,
pág. 228):
«(...) importa, acima de tudo, salvaguardar o ‘primado
político do legislador’ (Bachof) nos espaços de discricionariedade decorrentes
do princípio da subsidiariedade. A sub‑rogação de qualquer outro órgão neste
domínio, designadamente do Tribunal Constitucional, representaria uma
questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma
violação do princípio da separação dos poderes. Como refere Bachof, deve
reservar‑se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e
os critérios de adequação, como assumir os riscos pelas expectativas ou
prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas.»
Também José de Sousa e Brito conclui («A lei penal na
Constituição», Estudos sobre a Constituição, 2.º volume, p. 218), no que
constitui doutrina sistematicamente reafirmada pelo Tribunal Constitucional, ser
«evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em
primeira linha, ao legislador, ao qual se há‑de reconhecer, também neste
matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de
conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição
criminal se apresente como manifestamente excessiva».
Em suma: do que vai dito pode concluir‑se, como se fez no já
citado Acórdão n.º 99/2002, que, sendo certo que «também em matéria de
criminalização o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita
e absoluta, devendo manter‑se dentro das balizas que lhe são traçadas pela
Constituição», é, por outro lado, igualmente certo que, «no controlo do
respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com
fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal
Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente
arbitrárias ou excessivas».”
Mas se isso é assim quanto a esta opção
fundamental (criminalizar ou não criminalizar), não menor espaço de actuação
assistirá ao legislador na regulação das condições de procedibilidade das
condutas criminalizadas. Neste campo, não estava o legislador limitado à opção
pela tripartição tradicional entre crimes públicos, semi‑públicos e
particulares, sendo‑lhe constitucionalmente lícito criar novas categorias ou
introduzir modulação nas categorias tradicionais. Seria, designadamente, lícito
ao legislador elevar para o limite de 16 anos de idade do ofendido os casos em
que os crimes em causa assumiriam natureza pública, sacrificando inteiramente
eventuais interesses na preservação da intimidade da vida privada aos interesses
públicos na repressão de condutas tidas como comunitariamente inaceitáveis. Por
maioria de razão, é‑lhe lícito estabelecer um regime especial para esses crimes,
permitindo que quando o interesse da vítima o impuser o procedimento seja
iniciado pelo Ministério Público independentemente de queixa e que, de acordo
com o critério seguido pelo acórdão recorrido, seja irrelevante, por si só, a
posterior manifestação de vontade da vítima ou dos seus representantes no
sentido da cessação do procedimento criminal.
A razoabilidade desta solução legislativa
foi evidenciada por Maria João Antunes, na referida anotação crítica ao acórdão
do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Fevereiro de 1999, onde, além do mais,
salientou que “ao exigir uma valoração do interesse da vítima”, a norma em causa
“supõe claramente uma promoção processual subsidiária” do Ministério Público,
“duplamente condicionada”: “o titular do direito de queixa não o exerce por
razões alheias ao interesse da vítima” e “a protecção do menor exige o início do
procedimento criminal”, prosseguindo:
“(…) a introdução do n.º 2 do artigo 178.° teve como finalidade evitar a
desprotecção do menor de 16 anos – incapaz de exercer o direito de queixa
(artigo 113.°, n.º 3, do Código Penal) – naqueles casos em que o titular do
direito de queixa não a apresenta (ou desiste dela) por razões alheias ao
interesse da vítima. Ao admitir‑se que o Ministério Público pode dar início ao
procedimento quando o crime contra a liberdade e autodeterminação sexual for
praticado contra menor de 16 anos reduzem‑se certamente os casos de impunidade:
os resultantes da circunstância de a vítima ainda não ter capacidade para o
exercício do direito de queixa e de o titular não a apresentar (ou dela
desistir), não porque o interesse da vítima justifica a não promoção do processo
(ou o não prosseguimento), mas porque entre o titular daquele direito e o agente
da prática do crime intercedem relações de certo tipo que condicionam a decisão
de apresentar queixa (ou dela desistir). (…)
(…) com efeito, com o artigo 178.°, n.º 2, não se quis que o titular do direito
de queixa – não a vítima, porque esta não tem capacidade para a apresentar –
deixasse de poder decidir se ao mal do crime convém juntar o que pode ser o mal
do desvelamento da intimidade do menor e o mal de um desenvolvimento perturbado
do ponto de vista sexual. E daí o já assinalado carácter subsidiário da promoção
processual por parte do Ministério Público. Mas, seguramente, foi querido pelo
legislador que esta magistratura possa dar início ao procedimento (ou decidir a
continuação deste), precisamente naqueles casos em que as razões justificativas
da natureza semi‑pública dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual
não presidem à não apresentação (ou à desistência) da queixa.
(…) bem se compreende, afinal, que o Ministério Público possa decidir dar início
ao procedimento criminal, segundo critérios de estrita objectividade (artigo
53.° do Código de Processo Penal). Decidir se, no caso concreto, o interesse da
vítima do crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual, menor de 16
anos, justifica a iniciativa processual. A iniciativa processual ou,
esclareça‑se, a continuação do processo, naqueles casos em que o procedimento
criminal se iniciou com a apresentação da queixa pelo respectivo titular,
havendo posteriormente uma desistência ditada por razões de todo em todo alheias
ao interesse da vítima menor de 16 anos.”
A atribuição desta faculdade ao Ministério
Público, devendo ser, como o foi no caso, devidamente fundamentada, também não
contende com os princípios da legalidade e da determinabilidade, estando
fixadas na lei as condições que possibilitam o exercício da acção penal. A
ponderação, a ser feita necessariamente caso a caso, da intensidade do interesse
do menor, sendo, como é, rodeada da referida garantia de dever de fundamentação
expressa, não permite a acusação de estarmos perante uma situação em que o
risco da arbitrariedade e da subjectividade seja incompatível com aqueles
princípios constitucionais.
Carece, neste ponto, de todo o sentido a
tese do recorrente de que a apontada solução representa um desvio ao princípio
da tipicidade das reacções criminais, dado que o arguido só virá a ser condenado
se, após julgamento rodeado de todas as garantias de defesa, um tribunal
independente e imparcial julgar ter o mesmo praticado factos integradores de
condutas qualificadas como criminais por lei anterior.
E também não assiste razão ao recorrente
quando aduz a violação dos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP. Os
direitos à integridade moral e à reserva da intimidade da vida privada não são
absolutos, sendo constitucionalmente admissível a sua restrição na medida do
necessário para assegurar o respeito de outros valores fundamentais, como a
defesa (incluindo criminal) do direito à liberdade e autodeterminação sexuais,
designadamente de menores (crianças ou jovens), a quem o Estado deve especial
protecção (artigos 69.º e 70.º da CRP).
Improcedem, assim, na totalidade, as
conclusões da alegação do recorrente, registando‑se ter o mesmo abandonado, no
presente recurso, a questão de inconstitucionalidade que, perante o tribunal
recorrido, havia suscitado quanto às normas dos artigos 2.º, n.º 2, 68.º, n.º 1,
e 76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e 401.º, n.º 1, alínea a),
do CPP.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma
constante dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal,
interpretados no sentido de que, iniciado o procedimento criminal pelo
Ministério Público por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com
adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou seus representantes
legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era imposto pelo
interesse das vítimas, a posterior oposição destas ou dos seus representantes
legais não é suficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento;
e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando
a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos (Vencido, nos termos da declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da tese que fez vencimento no Acórdão por considerar que o critério
normativo subjacente à decisão recorrida, na interpretação que faz das normas
dos arts.113º, n.º6, e 178º, n.º4, ambos do Código Penal, para estabelecer a
eficácia possível da ulterior oposição das vítimas ou dos seus representantes
legais, nos casos em que o Ministério Público haja desencadeado procedimento
criminal por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com
adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou dos seus
representantes legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era
imposto pelo interesse das vítimas, não se limita a considerar que aquela
oposição é insuficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento.
Com efeito, ao afirmar conclusivamente que tal oposição é ineficaz «por não
admissível» e, como antecedente jurídico de tal ilação, que «” […] este
dispositivo [o n.º6 do art.113º] veio permitir que os crimes semi-públicos, em
casos previstos na lei, como os dos artigos 152º, n.º2, e 178º, n.º2, passem a
ter natureza de públicos […]”», a decisão recorrida filia, a nosso ver, o
sentido do respectivo pronunciamento no critério segundo o qual, iniciado o
procedimento criminal pelo Ministério Público por crimes de abuso sexual de
crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa das
ofendidas ou dos seus representantes legais, por ter entendido, em despacho
fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, a posterior
oposição destas ou dos seus representantes legais é sempre inidónea para
conduzir à cessação do procedimento, excluindo-se a possibilidade de este findar
por efeito, mesmo que concorrente ou mediado, de uma manifestação de vontade
contrária à intervenção das instâncias formais de controlo.
Vinculando o raciocínio argumentativo seguido à ideia segundo a qual «não faz
sentido que (…) o Ministério Público possa dar início ao procedimento criminal e
deduzir acusação, independentemente de queixa, e se venha a admitir como
relevante essa mesma desistência de queixa», a decisão recorrida revela, pois, a
adesão a uma concepção do sistema em que a atendibilidade da ulterior oposição
da vítima e/ou dos respectivos legais representantes se encontra
aprioristicamente excluída por lhe corresponder acto de efeito processual
incompatível com a natureza e características que o procedimento criminal, pelo
facto de haver sido desencadeado ao abrigo do disposto no art.178º, n.º4, do
Código Penal, passará a assumir em definitivo.
Tendo conduzido a que a manifestação de oposição à continuação do processo
ocorrida em primeira instância fosse desatendida por «inadmissível», o critério
normativo subjacente à decisão recorrida não se limitou, pois, a recusar-lhe
auto-suficiência ou a colocar pressupostos ou condições para a respectiva
operatividade. Ao invés, interditou a possibilidade de tal oposição vir a
relevar, eliminando assim o espaço que, em diferente concepção, estaria
reservado à apreciação judicial, precedida de audição dos demais sujeitos
processuais, do contexto factual em que aquela fora concretamente produzida em
ordem a verificar, através de juízo sindicável por via de recurso, se a posição
assim manifestada deveria ser considerada expressão de circunstâncias, senão
infirmadoras do sentido da valoração feita pelo Ministério Público no início do
processo, pelo menos reveladoras e justificativas da insubsistência do interesse
da vítima no prosseguimento do processo penal.
Não se limitando a subordinar a eficácia da oposição da vítima e/ou respectivos
legais representantes ao resultado da reavaliação das razões que determinaram a
promoção do processo penal, mas negando-lhe, por considerá-la inadmissível,
aptidão processual para fazer findar o procedimento criminal, o juízo decisório
subjacente ao acórdão recorrido tem necessariamente implícita a assunção de que,
iniciado o procedimento criminal pelo Ministério Público por crimes de abuso
sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de
queixa das ofendidas ou dos seus representantes legais, por ter entendido, em
despacho fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, esse
despacho torna-se condição simultaneamente necessária e suficiente da
subsistência do processo penal, excluindo, pelas características que directa e
autonomamente atribui ao procedimento, a atendibilidade de manifestações de
vontade contrárias ao exercício do poder punitivo por parte do Estado.
E, assim sendo, a ratio decidendi da decisão recorrida não pode deixar de se
considerar integrada pela implícita, cumulativa e sequencial adesão a um
conjunto de postulados que, sinteticamente, poderão enunciar-se nos seguintes
termos:
- possibilidade de utilização de conceitos indeterminados no âmbito do direito
penal positivado, incluindo aqueles cujo preenchimento só possa fazer-se através
de um juízo de valor.
- possibilidade de utilização deste tipo de conceitos para definir a natureza do
crime e, por consequência, a permeabilidade do procedimento que houver sido
instaurado a manifestações de vontade contrárias à sua subsistência.
- possibilidade de um tal conceito ser unilateralmente preenchido pelo titular
da acção penal, consequenciando tal preenchimento a legitimidade da instauração
do procedimento criminal.
- possibilidade de a integração positiva do conceito em tais termos realizada
reconduzir o procedimento criminal à categoria daqueles em que é inadmissível a
manifestação de um vontade contrária à sua subsistência por parte do titular do
interesse protegido pela norma indiciariamente violada.
- exclusão apriorística da atendibilidade da oposição à intervenção das
instâncias formais de controlo, com consequente negação de qualquer avaliação
judicial e contraditada sobre a subsistência do interesse da vítima na
continuação do processo por via da imperativa e sindicável valoração das
circunstâncias, pretéritas e supervenientes, objecto de alegação pelos
intervenientes processuais ouvidos ou passíveis de se tornarem oficiosamente
conhecidas.
Justamente por pressupor a aceitação integral de um tal conjunto de proposições,
a solução jurídica sufragada pela decisão recorrida é, quanto a nós,
incompatível com o parâmetro constitucional de controlo colocado pelo art.32º,
n.º1, da Constituição.
Com efeito, ao excluir a admissibilidade processual da oposição manifestada pelo
titular do bem jurídico protegido pela norma indiciariamente violada com
fundamento na natureza adquirida pelo procedimento criminal quando instaurado ao
abrigo do disposto nos arts.113º, n.º6, e 178º, n.º4, ambos do Código Penal, o
critério decisório implícito no acórdão recorrido aceita que a integração
positiva do conceito unilateralmente feita pelo Ministério Público para
legitimar o exercício da acção penal se converta em condição simultaneamente
necessária e suficiente da subsistência do procedimento assim instaurado,
prescindindo, por consequência, da confrontação, necessariamente judicial e
contraditada, daquele juízo de valor sobre as exigências do interesse da vítima
com a singularidade fáctica e dinâmica do caso concreto.
Prescindindo desse julgamento, impede inevitavelmente o arguido de nele
participar e, justamente por negar ao arguido a possibilidade de intervir,
incluindo pela via de recurso, no controlo da actualidade de um pressuposto
resultante de uma actividade valorativa e do qual depende a própria viabilidade
do procedimento contra si instaurado, a solução perfilhada pela decisão
recorrida, a nosso ver, dificilmente se poderia justificar perante o princípio
segundo o qual «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa […]».
Rui Moura Ramos