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Processo n.º 492/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
A Empresa A., Lda., assistente nos autos de instrução criminal que correm termos
no Tribunal Judicial do Funchal, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça de
um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou o despacho de não
pronúncia do arguido pela prática dos crimes que lhe eram imputados.
Não tendo sido admitido o recurso, no tribunal recorrido, com fundamento no
disposto no artigo 400º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal (CPP), a
assistente reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, alegando
que essa referida norma, «na interpretação de que o despacho de não pronúncia é
irrecorrível, é inconstitucional, […] por clara violação do direito de acesso ao
direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos, consagrado no artigo 20º da CRP».
Por decisão de 14 de Março de 2007, o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação, considerando que a decisão que se
pretendera impugnar era irrecorrível, por estar abrangida pela previsão do
artigo 400º, n.º 1, alínea d), do CPP, já que, conforme jurisprudência do
Supremo Tribunal de Justiça, «o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a
decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados,
constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a
absolvição da instância».
Nessa decisão, acrescenta-se ainda o seguinte:
«[…] no que concerne à inconstitucionalidade imputada ao artigo 400º, n.º 1,
alínea d), do CPP, por violação do artigo 20º da CRP, cabe dizer que o princípio
da tutela jurisdicional efectiva se concretiza, em princípio, através da
instância única, só se impondo o direito ao recurso, em processo criminal, no
âmbito do n.º 1 do artigo 32º da CRP.
E, mesmo neste caso, reportado às garantias de defesa dos arguidos e não dos
assistentes, como expressamente se refere no texto do Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 168/03, de 28 de Março […]».
A Empresa A., Lda. Recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo «ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, n.º
1, alínea d), do Código de Processo Penal», por violação do artigo 20º da
Constituição, e afirmando ter suscitado a questão de inconstitucionalidade na
reclamação do despacho que não lhe admitira o recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça.
Admitido o recurso no tribunal recorrido, no Tribunal Constitucional o relator
proferiu decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da Lei
do Tribunal Constitucional, no sentido de negar provimento ao recurso, por ser
manifestamente infundada a questão suscitada, baseando-se, para tanto, na
orientação jurisprudencial que considera constitucionalmente inexigível um
segundo grau de recurso jurisdicional e, em particular, no entendimento
formulado no acórdão n.º 189/01, de 3 de Maio, que se pronunciou já, em situação
similar, sobre a conformidade constitucional da norma do artigo 400º, n.º 1,
alínea f), do Código de Processo Penal, que igualmente contempla uma situação de
inadmissibilidade de recurso.
Desta decisão vem interposta reclamação para a conferência em que a reclamante
alega o seguinte:
1 –A decisão de fls. (…) negou provimento ao recurso com os seguintes
fundamentos:
a) Não está em causa nos autos a garantia de defesa em processo penal, mas
apenas o direito a um duplo grau de recurso jurisdicional para a defesa do
interesse do assistente;
b) De nenhuma norma constitucional – nomeadamente dos artigos 32.º e 20.° da
Constituição — resulta a garantia de um triplo grau de jurisdição relativamente
a todas as decisões proferidas em processo penal;
c) Assim, não é possível reconhecer o direito de recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça relativamente a um acórdão proferido, já em recurso, pela Relação, e
confirmativo de decisão de não pronúncia da 1.ª instância;
2 – Salvo o devido respeito, a Reclamante não concorda com a decisão proferida.
3 – Na verdade, a Reclamante interpôs o recurso que deu origem à decisão de que
ora se reclama, pretendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 400°, n.° 1, alínea d), do Código do Processo Penal, na
interpretação de que o despacho de não pronúncia é irrecorrível, efectuada pelo
Supremo Tribunal de Justiça;
4 — Desde logo porque, a sua aplicabilidade viola o direito de acesso aos
tribunais para defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos,
consagrados no artigo 20.° da CRP;
5 — Ora, vem a douta decisão a que ora se reclama, negar provimento ao recurso
interposto com base no facto de considerar que a Constituição da República
Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de
um duplo grau de jurisdição e que esta apenas existe quanto às decisões penais
condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à
privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais;
7 — Em bom rigor, ao interpretar-se a norma do artigo 400°, n.° 1, alínea d), no
sentido de considerar como decisões absolutórias, os despachos de não pronúncia,
impedindo assim o recurso dos acórdãos que as determinarem, coarcta-se
claramente os direitos legítimos dos cidadãos;
8 – Com efeito, o juízo que prevalece num despacho de pronúncia é diferente do
juízo de julgamento que prevalece nas sentenças.
9 - «Nas fases preliminares do processo. (entenda-se na fase de inquérito e de
instrução), não se visa a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só
dos indícios. .sinais, de que um crime foi eventualmente cometido por
determinado arguido. As provas nas fases preliminares do processo não
constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão
processual quanto à prossecução do processo ate à fase de julgamento» vide
Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Volume III, Editorial
Verbo 1994, pág. 182 e ss.
L0 — Pelo contrário, na fase de julgamento, o juízo operado é mais maturado,
sobretudo se tiver sido precedido já de uma fase instrutória.
11 — Na fase de julgamento, decorrente também do princípio do contraditório, do
princípio da imediação da prova, já não basta um mero juízo de razoável
probabilidade.
12— Nesta fase, o juízo está já enformado por uma fundamentação e profundidade
acrescidos.
13— Por outro lado, considerar que a garantia da jurisdição existe apenas quanto
às decisões penais condenatórias, ou às respeitantes à situação do arguido face
à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais
é por si só limitador do conceito contido no artigo 20.° da CRP;
14— Na verdade, a exigência de um processo equitativo constante do artigo 20.°
da CRP, postula a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos
princípios do contraditório e da igualdade de armas entre as partes;
15 — O que não sucederá a aplicar-se a norma constante do artigo 400º, n.° 1,
alínea d), conforme a interpretação atrás explicitada.
Nestes termos
Deve ser dado provimento à presente reclamação e a final ser revogada a decisão
sumária de fls. (…), ora reclamada e ordenado o prosseguimento do recurso
interposto para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 400°, n.°
1, alínea d), do Código do Processo Penal, na interpretação de que o despacho de
não pronúncia é irrecorrível, efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O Exmo magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do
improvimento da reclamação, dizendo que «a argumentação da reclamante em nada
abala os fundamentos subjacentes à firme e reiterada jurisprudência
constitucional quanto ao âmbito do direito ao recurso em matéria penal».
Vem o processo à conferência sem vistos.
2. Fundamentação
A recorrente impugnou perante o Tribunal Constitucional a decisão do Presidente
do Supremo Tribunal de Justiça, que, em sede de reclamação, não admitiu o
recurso jurisdicional para esse Supremo Tribunal do acórdão da Relação que,
decidindo já em segundo grau de jurisdição, manteve uma anterior decisão
instrutória de não pronúncia.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça consignou expressamente que o
acórdão da Relação que, em recurso, confirma a decisão de não pronúncia, por
insuficiente indiciação dos factos imputados ao arguido, constitui decisão
absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância,
pelo que considerou aplicável a regra de não admissibilidade de recurso do
artigo 400º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, que dispõe: «[N]ão é
admissível recurso de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas
relações, que confirmem decisão de primeira instância».
No Tribunal Constitucional, o relator, por decisão sumária, negou provimento ao
recurso por considerar não verificada a invocada violação do princípio do acesso
ao direito e à tutela judicial efectiva, constante do artigo 20º da
Constituição, baseando-se no entendimento genérico de que a Constituição não
assegura um triplo grau de jurisdição, e, em particular, no entendimento já
firmado no acórdão n.º 189/01, de 3 de Maio, que se pronunciou sobre a
conformidade constitucional da norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal (norma essa que igualmente prevê uma situação de
inadmissibilidade de recurso, embora nesse caso por referência a acórdãos
condenatórios proferidos pelas Relações e que confirmem decisões de primeira
instância, em processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a
oito anos).
Na reclamação para a conferência, a reclamante começa por discutir a bondade da
equiparação feita no despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça entre
decisões absolutórias e despacho de não pronúncia, sustentando que a decisão
absolutória, sendo proferida em fase de julgamento, assenta num maior grau de
exigência probatória, não se bastando com um juízo de mera probabilidade.
Estamos aqui, no entanto, perante um problema de subsunção jurídica sobre o qual
o Tribunal Constitucional não tem de pronunciar-se, sendo que, nos termos do
artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, este Tribunal
aprecia apenas a norma (ou interpretação normativa) aplicada na decisão
recorrida, sob o ponto de vista da sua conformidade constitucional, e não a
aplicabilidade dessa norma ao caso concreto.
O despacho recorrido considerou que o acórdão da Relação que confirma, em
recurso, o despacho de não pronúncia corresponde a um acórdão absolutório, a que
se torna aplicável a regra do artigo 400º, n.º 1, alínea d), do CPP, que se
refere a «acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisões de primeira instância». Não estando em causa um eventual erro
de aplicação da lei, que o Tribunal Constitucional, não pode censurar, cabe
unicamente averiguar, no recurso de constitucionalidade de normas, se a
inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um despacho
de não pronúncia, é susceptível de violar o falado princípio do acesso ao
direito que decorre do artigo 20º, n.º 1, da Constituição.
Neste plano, o entendimento corrente, que o Tribunal Constitucional, tem
frequentemente corroborado, é o de que o direito de acesso aos tribunais não
impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a
diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona
como um mecanismo de racionalização do sistema judiciário e por isso se aceita
que o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à definição dos
requisitos e graus de recurso (acórdãos 125/98, 72/99 e 431/02). Um duplo grau
de jurisdição está constitucionalmente consagrado unicamente no âmbito do
processo penal, e ainda assim não relativamente a todas as decisões proferidas,
mas em relação às decisões condenatórias do arguido e às decisões respeitantes à
situação do arguido em face da privação ou restrição da liberdade ou de
quaisquer outros direitos fundamentais (acórdãos 353/91, 373/99, 387/99, 459/00,
417/03, 390/04, 610/04, 104/05, 616/05, 2/06, 36/07 e 313/07; veja-se sobre
estes aspectos, também, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição revista, pág. 418; Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 200).
Isso é o que resulta, desde logo, do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, que
determina: «[O] processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso». Contudo, não se exige necessariamente, mesmo neste
restrito âmbito, um triplo grau de jurisdição, como se ponderou no acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 189/01, já citado.
A este propósito, escreveu-se neste aresto:
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o
recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no nº 1
do artigo 32º (O processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a
considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais
que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou
decisões proferidas na pendência do processo (v.g., quer de despachos
interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos nºs 118/90, 259/88, 353/91,
in Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 15º, pág. 397; 12º, pág. 735 e 19º,
pág. 563, respectivamente, e Acórdão nº 30/2001, sobre a irrecorribilidade da
decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação
particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito),
como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não
tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se
garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo
STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 209/90, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º. V., pág. 553).
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a
instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões
de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta
limitação à recorribilidade das decisões penais condenatórias tem, assim, um
fundamento razoável.
Sustenta a reclamante, porém, que o reconhecimento de garantia da jurisdição
apenas quanto às decisões penais condenatórias ou às decisões privativas ou
restritivas da liberdade é limitador do conceito contido no artigo 20.° da CRP e
que a exigência de um processo equitativo, que esse preceito consagra, postula a
efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do
contraditório e da igualdade de armas entre as partes.
O certo é que o entendimento jurisprudencial (com apoio na doutrina), e que foi
acolhido na decisão sumária ora reclamada, é aquele que se deixou anteriormente
exposto e a situação do assistente em processo penal, não só não é equivalente à
do arguido que tenha sofrido uma decisão condenatória em processo crime a que
seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, relativamente à qual
também não é admissível recurso em segundo grau (situação versada no citado
acórdão n.º 189/01), como também não é mais gravosa do que aquela outra em que
venha a ser proferida decisão absolutória em sede de julgamento, que, conforme o
entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido, está sujeita ao mesmo regime de
recurso por aplicação do artigo 400º, n.º 1, alínea d), do CPP.
Não se vê, por outro lado, em que termos é que a inadmissibilidade de um segunda
via de recurso pode afectar o princípio do contraditório e da igualdade das
armas quando a verdade é que o assistente teve oportunidade de requerer a
abertura da instrução, oferecendo provas e requerendo diligências, cujos
resultados probatórios foram ponderados pelo juiz de instrução, e pode
igualmente interpor recurso jurisdicional da decisão instrutória. O assistente,
enquanto sujeito processual usufruiu, portanto, da possibilidade de expor as
razões de facto e de direito que justificavam a indiciação do arguido, quer
através do requerimento de abertura de instrução, quer por via da alegação de
recurso relativo à decisão instrutória, e pode, portanto, pronunciar-se sobre as
questões relativamente às quais devia ser proferida a decisão judicial dispondo
dos meios jurídicos necessários para esse efeito.
Neste contexto, não era naturalmente o recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça que permitiria assegurar a aplicação dos princípios do contraditório e
da igualdade de armas, já que o processo sempre decorreu (ou pode decorrer) de
acordo com as exigências que eram impostas por esses critérios processuais.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam em indeferir a reclamação e
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 11 de Julho de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão