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Processo n.º 387/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público veio interpor recurso do despacho
proferido pelo Meritíssimo Juiz da Comarca de Vagos, que julgou inconstitucional
o limite mínimo consignado no nº 1 do artigo 65º do Código das Custas Judiciais
(C.C.J) para se deferir o pagamento das custas em prestações.
Exarou-se, nomeadamente, no despacho recorrido:
“Segundo o artigo art. 204 da Constituição da República Portuguesa ‘(...) não
podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados’: Os tribunais têm, assim (todos eles) a competência
para fiscalizar, mediante um processo de fiscalização difuso, concreto e
individual, a constitucionalidade das normas, devendo, oficiosamente, recusar a
aplicação de norma ao caso concreto submetido a decisão judicial, ou
interpretá-la num sentido conforme à Constituição, sempre que a julguem
desconforme ao texto fundamental.
É precisamente o que se verifica no caso dos autos:
Nos termos do n.º 1 do art. 65 do Código das Custas Judiciais, ‘sempre que o
montante das custas seja superior a 4 UC, pode o juiz, no seu prudente arbítrio,
a requerimento do responsável, no prazo de pagamento voluntário, autorizar o
pagamento em prestações mensais não inferiores a 1 UC, até ao período máximo de
12 meses’. Sendo o valor da UC para o triénio de 2004 a 2006 de €89,00,
conclui-se que o requerido o pagamento das custas em prestações só serão
ponderáveis pelo juiz as circunstâncias pessoais, designadamente económicas e
sociais do responsável por custas, quando o valor das mesmas for superior a
356,00 €. A letra da lei é, assim, clara, no sentido de impor ao julgador um
limite mínimo de montante de custas, para que possa, sequer, ponderar o seu
pagamento em prestações. Dito de outra maneira: independentemente da situação
económica e social do responsável pelas custas — seja ele um indigente ou um
milionário — apenas se o montante das custas em dívida for superior a €356,00
poderá o tribunal ponderar o pagamento das custas em prestações.
Está bem de ver que o valor de 4 UC’s (actualmente, como se disse, €356,00) não
é um valor absoluto, no sentido em que não têm a mesma importância ou efeito na
esfera jurídica de todas as pessoas; 356,00 pode exceder a totalidade do
rendimento auferido por certo sujeito ou ser apenas uma pequena parcela desse
rendimento.
Ora, ao impor um limite mínimo abstracto e geral (de 4 Uc’s) para que o julgador
possa apreciar, em função das concretas condições do responsável pelas custas,
se é ou não de deferir o seu pagamento em prestações, a lei viola a Constituição
da República uma vez que estabelece um regime ofensivo do princípio da igualdade
plasmado no artigo 13°.
Como é sabido, nos termos do art. 13 da Constituição da Republica Portuguesa,
sob a epígrafe ‘Principio da Igualdade’ estabelece-se que todos os cidadãos têm
a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sendo que ninguém pode ser
prejudicado em razão da sua situação económica (cfr. n. ° 1 e 2 da referida
norma). A ideia de igualdade ínsita nesta norma deve ser entendida, desde logo,
como igualdade perante a lei no sentido jurídico-formal, abrangendo quaisquer
direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa. No entanto não se
pode olvidar que, a par deste sentido formal, tal princípio implica, também, uma
noção de igualdade real ou material entre os cidadãos, ou seja, a lei terá de
ser igual para todos, mas não deixando de respeitar as desigualdades de facto,
designadamente, motivo pelo qual caberá ao poder público e à sociedade civil
assegurarem as condições para que todos possam usufruir dos mesmos direitos e
cumprir os mesmos deveres (neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, in
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, Coimbra Editora, página 120). Este
corolário do princípio da igualdade pode mesmo exigir tratamento diferenciado,
repondo juridicamente a igualdade que, por força de factores externos à ordem
jurídica, não existia à partida — é a chamada «discriminação positiva» (sobre a
questão, Vital Moreira/Gomes Canotilho, Constituição Anotada, 3 ed. P.128).
Concretizando o acima exposto, a afirmação de que todos são iguais perante a lei
mais não significa do que a exigência de igualdade na criação e na aplicação do
direito. Mais concretamente no que diz respeito à criação do direito, o
principio da igualdade impõe, não apenas a ideia de que para todos os indivíduos
com as mesmas características devem prever-se iguais situações ou resultados
jurídicos (o postulado da universalidade ou justiça pessoal), mas também a
exigência de uma igualdade material, no sentido de se tratar de forma igual o
que é igual e desigual o que é desigual (o postulado da igualdade material
através da lei).
Traduzindo exemplificadamente a ideia de igualdade material, escreveu Gomes
Canotilho: ‘uma lei fiscal impositiva da mesma taxa de imposto para todos os
cidadãos seria formalmente igual, mas profundamente desigual quanto ao seu
conteúdo, pois equiparava todos os cidadãos, independentemente dos seus
rendimentos, dos seus encargos e da sua vida familiar’ (J.J. Gomes Canotilho, in
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, página 390).
Exactamente do mesmo modo, o referido art. 65 do Código das Custas Judiciais ao
considerar, como se explicitou, um limite mínimo pré-definido geral e abstracto,
abaixo do qual não pode o julgador ponderar a situação económica e social do
devedor de custas para, eventualmente, lhe deferir o pagamento das custas em
dívida em prestações, embora formalmente igual - dado que prevê um tratamento
uniforme e igualitário para todos os cidadãos que pretendam usufruir da
prorrogativa do pagamento das custas judiciais em prestações - a verdade é que
acaba por dar um tratamento profundamente desigual aos
cidadãos, já que não permite atender às particularidades da situação social e
económica de cada cidadão em concreto e ao efeito que a exigência do pagamento
integral das custas teria.
Nestes termos, e por considerar este tribunal que a imposição do limite mínimo
preceituado no n.º 1 do art. 65 do Código das Custas Judiciais para se ponderar
o pagamento de custas em prestações é inconstitucional, porque violador do
disposto no art. 13 da Constituição da Republica Portuguesa, o Tribunal
decide-se por não aplicar a referida norma, na parte em que fixa o apontado
limite.(…)”
2.O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
concluiu a sua alegação, sustentando que:
“Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
A norma constante do n° 1 artigo 65° do Código das Custas Judiciais, ao
estabelecer os requisitos de que depende a admissibilidade do pagamento em
prestações do débito de custas, condicionando-a, nomeadamente, em função de
determinado limite mínimo (actualmente 4 uc) — com vista a obviar a uma
desproporcionalidade entre o valor do débito em causa e o acréscimo de custos
burocráticos e processuais que sempre envolve o pagamento fraccionado daquela
dívida — não afronta qualquer norma ou princípio constitucional.
Na verdade, nos casos de carência económica, dispõe a parte de plena
oportunidade para requerer o apoio judiciário, podendo este ser concedido —
perante situações de insuficiência económica meramente parcial — na modalidade
de ‘pagamento faseado’ das custas.
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
II – Fundamentação
Encontra-se em equação o pretenso direito ao pagamento em prestações de todo e
qualquer débito de custas judiciais.
Essa possibilidade veio a ser amplamente concedida pelo artigo 65º do Código das
Custas Judiciais de 1996, pois que “o regime excepcional do pretérito (viria a
ser) arvorado em regime geral, isto é, aplicável a todos os responsáveis por
dívidas de custas” (Salvador da Costa, in “Código das Custas Judiciais”, 1997,
pág., 250).
Na reformulação do mencionado Código das Custas Judiciais (C.C.J), mantendo-se o
regime geral apontado, viria o legislador a condicionar a possibilidade do seu
deferimento, impondo um limite mínimo das custas em divida, que, no entanto foi
reduzido de 6 para 4 UC da versão do C.C.J de 1996 (Decreto-lei nº 224-A/96, de
26 de Novembro) face à reformulação legal operada em 2003 (Decreto-lei nº
324/2003, de 27 de Dezembro) ao mesmo tempo que se impunha um prazo máximo para
o pagamento em prestações da dívida de custas.
Esse montante mínimo das custas, em dívida, fixado na lei ordinária, hoje 356 €
não visa tão somente proteger o interesse da parte devedora, visa, também,
proteger o interesse público, consubstanciado no facto de só justificar pôr em
marcha um incidente processual, com os inerentes custos dessa actividade
judiciária, se tal acréscimo de actuação se justificar.
O legislador considerou que se a dívida de custas for inferior a 4 UC não tem
razão de ser esse “plus”, não devendo, assim, a máquina judiciária, nesse
particular, iniciar qualquer tipo de intervenção com a inerente despesa por esse
funcionamento.
Consubstancia uma opção do legislador ordinário não passível de censura, já que
não afronta, contrariamente ao sustentado no despacho recorrido, quaisquer
princípios constitucionais.
Com efeito, não afronta o princípio da igualdade, já que tais limites e
pressupostos têm incidência para todo o universo de interessados que pretendam
utilizar o mecanismo previsto no citado artigo 65º do C.C.J.
De igual forma, também não se revela beliscado o principio do acesso ao direito,
já que, a montante, o interessado teria na sua disponibilidade a utilização de
meios processuais, como o instituto do apoio judiciário, se a sua situação
económica revestisse os atinentes índices de insuficiência com vista ao
pagamento efectivo de custas.
Poderia, inclusive, conforme bem sustenta o Exmo. Magistrado do Ministério
Público, junto deste Tribunal, obter o apoio judiciário na modalidade de
pagamento faseado, nos termos do artigo 16º nº 1, alínea d) da Lei nº 34/04, de
29 de Julho, por essa via obtendo um beneficio semelhante ao pagamento
fraccionado do débito de custas.
Não foi, consequentemente, ofendido o artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa.
Acresce que a norma posta em crise no despacho recorrido (artigo 65º do C.C.J)
não exige um encargo financeiro intolerável a quem recorre aos tribunais,
estabelecendo uma restrição desproporcional e injustificada ou arbitrária do
direito à efectivação do acesso à justiça.
Com efeito, a Constituição não impõe que o serviço de administração da justiça
seja gratuito.
Nesta sede, o Tribunal Constitucional vem entendendo que a Constituição se
limita a proibir que o acesso aos tribunais seja contrariado pela insuficiência
de meios económicos (Acórdão nº 495/96, in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, tendo em conta a condição económica média do cidadão português, não pode
considerar-se o limite mínimo de €356 como desproporcionalmente elevado nem
violador do principio de igualdade ou que coloque em crise a garantia de acesso
ao direito.
III – Decisão
Nestes termos, acordam, no Tribunal Constitucional em dar provimento ao recurso,
revogando-se, no que se refere à questão da inconstitucionalidade, a decisão
recorrida.
Não são devidas custas.
Lisboa, 10 de Julho 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos